sexta-feira, 16 de setembro de 2005

Notas de um homem feliz no quase silêncio do anoitecer

Estou em casa, no primeiro andar que dá para a esquina da mercearia de Seu Vital, aqui no Poço da Panela. O silêncio do anoitecer só é interrompido pelas batidas secas do dominó – pec, pec, pec – e depois, o barulho das pedras girando no centro do tablado, porque alguém bateu a partida. O entardecer foi embora há pouco, o amarelo do céu passou para o rosa e depois para algo misterioso no firmamento. Restos de penumbra iluminaram paredes muito antigas.

Ando a recolher pedras para um canteiro no quintal que virou jardim. Saio para uma volta no quarteirão, vejo uma boa pedra e trago comigo, sorrateiramente. Só agora entendo a fascinação dos doidos pelas pedras. Elas, as pedras, têm o fascínio da permanência. Junto as pedrinhas e pedronas e, aos poucos, vai nascendo um canteiro de florespedras, em meio às florespétalas.

Há pouco o sino tocou. Blem, blem, blem – e já não sei mais o que seu Jaime quer dizer com essas badaladas secas, se quase não temos missas, e os casamentos têm ficado para os sábados. Não importa o objetivo. Um sino, para existir, deve badalar. Blem, blem, blem.

Daqui a pouco, desço para um café e como aquela pipoquinha salgada da Kinitos. Saberei da vida dos amigos que passam todos os dias, ao anoitecer. Creio que nos amamos muito, porque algo nos atrai para o mesmo lugar, todos os dias, à mesma hora. Tem uma esquina no meio de nossas vidas.

Como sempre, vou dar um palpite aleatório sobre uma eventual jogada no dominó, simulando conhecer o tratado das pedras e dos números. Com o gosto do café na boca, os dedos com restos de manteiga devidamente limpos na barra da calça ou da bermuda, voltarei para casa em fá menor sustenido.

Ultimamente tem sido assim o anoitecer, e é o que me basta. Dou mais uma reparada no quintal, fico muito quieto como aquelas pedras e sinto aquela dúvida existencial me tomar o espírito – quando, deus do céu, aprenderei a jogar dominó?

Volto ao primeiro andar, olho para a esquina e as pedras continuam batendo – pec, pec pec.

Sei que está fora de moda, não combina com a morgação da vida pública do nosso País, mas tenho sido, modestamente, um homem feliz.

10 comentários:

Anônimo disse...

Um sino, para existir, deve badalar também é bom.

Anônimo disse...

Para você, homem feliz!!!


Depois que se é avó
é que se está pronto para ser mãe.
Depois que se é poeta
é que se aprende a calar.
Depois que se envelhece
é que se começa a viver.

Um estado completa-se sempre em outro estado.
A flor na espada, a água na pedra, o dia na noite,
o fogo no vento, o todo no nada.

O homem é uma sucessão de incompletudes,
uma praia que não cessa de encher e de secar,
para que a completude possa se completar.
É por isso que nenhum estado é todo inteiro.
Para que se faça inteiro pelas partes que faltam.

Não há estado em si isolado.
Não há estado em si inteiro.

Na dissonância sinfônica das almas
não há estado que não busque
encaixe de cantos e de calmas.

Gustavo.

Mariana Mesquita disse...

Sama,
Você tá pensando em publicar essas lindezas que escreve aqui? Minha nossa, todo dia tem algo de delicado, de profundo, de singelo. Tou viciada no seu blogue. Obrigada por me matar a (ou de!) saudade do Poço. Manda um beijo pro pessoal, toma por mim uma coca-cola em seu Vital e dá uma pipoca pra o papagaio (Dudu?). Um cheiro grande, menino.

Anônimo disse...

É na simplicidade das coisas que começamos a valorizar a felicidade!
Não importa como o que importa é ser feliz!!!
Seja feliz sempre.
Beijo.

Anônimo disse...

Estou feliz por você.
kika

Anônimo disse...

Esse teu jeito de viver é de causar inveja.Que bom que você conseguiu fazer essa opção.

Anônimo disse...

"Notas de um homem feliz no quase silêncio do anoitecer"
O tema de hoje me soou como uma resposta! Eu tava achando vc triste, (até comentei para um amigo em comum!)talvez porque entenda as tuas palavras aqui no Estuário como autobiográficas...
Além das notas - que eu adorei, saber que vc tá bem também me deixou feliz!

Anônimo disse...

Que engraçado Sama! Esse post lembrou-me quando era criança, tinha uns cinco ou seis anos e morava em Juazeiro do Norte! As vezes, por volta das 18:00, ficava no quintal da casa a olhar para o céu escurecendo, e escutando as badaladas do sino da igreja!! Era um momento de contemplação q agora me veio à mente!

Anônimo disse...

Em Batalha o sino da igreja católica toca todos os dias às 18h, mesmo qd não tem missa. Suponho então que sirva pra avisar as horas. Qd menina, brncava na rua com a molecada e assim que o sino tocava a gente sabia que era hora de correr pra casa tomar banho e jantar.
E qt ao dominó não esquente, eu jogava com meu cachorro e ele ganhava!

Anônimo disse...

Menino danado, o que é isso?
É tanta pureza, tanta beleza, que a gente que anda discrente, volta a acreditar na simplicidade da vida. Vixe Maria, que coisa mais linda!
Toma um abraço apertado.
Naire