quarta-feira, 2 de novembro de 2005

Cenas da vida - I

Passei defronte ao bar, foi ontem, já bem tarde. Ele, um gordinho com cara mansa, sandálias havaianas e bermuda quase nos joelhos, disse para os amigos:

“Vocês são todos uns surdos, que não conseguem ver nada!”

Achei ótimo aquilo. Surdos que não conseguem ver. Conheço alguns.

Estava de pé, com os cabelos desgrenhados, os óculos pendurados no pescoço, aqueles óculos para ler. Ele também via pouco, creio. A camisa de manga cortada, meio surfista, emoldurada numa extensa barriga, lhe dava um ar patético, infantil, e ao mesmo tempo simpático. Ele saiu do bar, contrariado, desconfio que sem pagar a conta, e reduzi o passo, para acompanhá-lo. O ser humano, minha eterna paixão.

Ele foi por ali, tropeçando nos próprios passos, gemendo de cansaço e solidão, creio. Repetiu algumas vezes “uns surdos”, “todos surdos, esses idiotas”. Andava roçando as paredes, que pareciam velhas companheiras. Companheiras de titubeio.

Dobrou a esquina como quem se desvencilha de uma dor. Segui-o, vendo o cambaleio perpétuo, até a entrada do seu prédio, que data do número 2345. Ele tocou o interfone. Silêncio.

“Sou eu, meu amor”.

A porta abriu, diante daquele código secreto, embaralhado pelo cigarro e o àlcool, que ela já não estranhava, creio. Talvez o esperasse, preocupada.

Ele entrou no prédio. Bateu no vidro da guarita e falou para o vigilante:

“Eu gosto tanto de rubronegro mesmo...”

Não havia maldade. Era um cumprimento de fim de farra, troçando com o porteiro, torcedor de um time adversário. Depois, ele entrou no saguão, e o perdi de vista. Sei que foi dormir exausto, sem trocar a roupa. Vai acordar sem lembrar de muita coisa. Se for antigo mesmo, vai correr em busca de um Engov e prometerá, solene:

"Minha filha, vou parar de beber".

Mas a vida seguirá sem muita dor. Depois da ressaca, voltará ao bar. Encontrará os amigos, uns surdos, outros não. Discutirá, brindará, roçará outras vezes os muros, mas chegará em casa, de um jeito ou de outro.

Vi a cena em câmera lenta e lembrei de uma frase do Fernando Pessoa:

"Mas o que me preocupa é esta palavra: devagar..."

Voltei para casa chutando pedrinhas. Adoro andar chutando pedrinhas.

Um comentário:

Luana disse...

otima cronica. Parabens!