segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Os fundamentais atos desimportantes

Outro dia um grande amigo veio me falar sobre uma criança aqui do meu bairro, um menino meio arisco, muito na dele, aquele tipo de menino que a gente acha que é chato, mas que muitas vezes é só um tímido, um excessivo tímido, e muitas vezes sofre por isso. O meu amigo me disse que o menino começou a falar de uma bola de futebol que dei de presente ano passado, e foi falando com os olhos brilhando de felicidade, cheio de um afeto e uma ternura que eu nem imaginava.

“Ele disse que foi o presente mais importante que ganhou na vida, principalmente porque não veio de ninguém da família, mas de um amigo, tu precisava ver o jeito dele falando, o carinho com que ele falava de ti”, disse meu amigo.

Então, mais que um menino de uns 11 anos aqui do bairro, tenho agora mais um amigo, e adoro a amizade dos pequenos, porque eles sabem das coisas, quando a gente vai crescendo é que vai desaprendendo das coisas da felicidade.

Eu não sabia que a bola teve tanta importância assim, especialmente porque foi um presente coletivo. Dei a bola para um pequeno grupo de meninos, e cada um deles tinha direito de ficar um dia da semana como o dono da bola, num revezamento que funcionou direitinho, sem brigas ou mágoas, até a bola furar, num chute de Moraes numa estaca, que deixou meu amigo tímido arrasado.

Mas para o menino tímido, o presente foi para ele. Um dia na semana, a bola era dele, inteiramente dele e somente dele. Lembro que comprei a bola logo depois de receber uma boa grana por um trabalho, e não custou muito, mas ela tinha algo extra: era uma bola oficial, não era aquelas fuleiras que furam batendo numa parede rugosa, que dão no Dia das Crianças, essa fajutice.

Desconfio que a gente muitas vezes nem imagina como uma besteirinha dessas, os pequenos atos desimportantes, acabam deixando marcas nas pessoas, e talvez esta seja uma das grandes belezas da vida: não é preciso muito para entrar no coração das pessoas e ficar lá, até dispositivo contrário, a famosa decepção.

Mas há uma diferença fundamental entre o júbilo, que nos faz entrar no coração das pessoas, e a decepção, quando a gente é retirado subitamente, muitas vezes sem aviso: para o júbilo, pequenas coisas, gestos mínimos, uma palavra, tudo isso serve. Para a decepção, só com coisas grandes. Ninguém se decepciona com alguém por besteira, é sempre algo grande, ou uma soma infinita de pequenas coisas, até a gota d’água. Não há nada mais lamentável que a decepção, e o amor acaba mesmo é quando a gente se decepciona, me disse outro dia uma sábia recifense.

Esses atos desimportantes, essas palavras sem muita pompa, esses presentes que chegam em silêncio são minha profissão de fé na vida e minha esperança mais secreta.

Os presentes mais importantes que recebi na vida foram coisas pequenas, que não custaram muito, ou foram coisas subjetivas, que não têm preço. Um álbum de fotografias, presente da Kika; o jantar que minha tia Flocely esquentava, antes de ir dormir, para quando eu voltasse da Universidade, já tarde da noite; algumas cartas de longe, por debaixo da porta; uma mensagem pelo celular, de um ex-aluno, falando da importância daquela disciplina que ensinei com muito gosto. As decepções, ah, deixemos as decepções no cantinho delas e sigamos a vida, mesmo que tateando sem bengala.

Uma vez, uma grande amiga estava em Paris, teria um encontro importante com uma editora, ela se arrumou muito, toda elegante, e quando foi entrar no metrô, levou uma baita de uma queda, sangrou o nariz. Aproveitou para chorar por várias outras dores e decepções que andavam guardadas, até pela morte do Ayrton Senna ela chorou.

Lá pelas tantas, alguém estendeu uma caixa de lenços de papel. Ela foi pegar um lenço, mas a pessoa insistiu, em silêncio, e ela ficou com a caixa de lenços. Nunca viu sequer o rosto da pessoa.

Que nunca nos falte uma caixa de lenços, nesses tropeços, ou alguém que te diga “como estás bonito hoje”, na hora em que você duvida de tantas coisas.

Perdão, mas hoje eu estou num lirismo total, de norte a sul na minha alma.

6 comentários:

Anônimo disse...

Samarone, hoje vc me fez refletir sobre o fim do amor.Será que ele chega ao fim?Ou pelas decepções adormece, fica lá no cantinho quientinho, sem forças para se movimentar, reivindicar, reinventar até encontrar um outro amor que nunca será igual ao adormecido porque somos únicos.
Beijo. Ana

Anônimo disse...

Foi um dos textos mais bonitos que vc já escreveu. Parabéns!!!

Anônimo disse...

belíssimo texto meu caro Sama! Um super beijo.

Anônimo disse...

não precisa pedir perdão pelo lirismo exacerbado Sama, nós que agradecemos por ele.

Anônimo disse...

Acho que paixao pode acabar com decepção. Amor não. O amor sabe que as pessoas são passíveis de erros. Mas a decepção dói de todo jeito!

Anônimo disse...

Esse seu texto foi um presente p mim hoje! meu dia vai ficar muito melhor, obrigada.
Raquel