sábado, 1 de abril de 2006

Como infernizar uma cidade

Recebi dinheiro ontem, almocei com o velho Inácio e meus olhos brilharam. “Vou à livraria Cultura”, buscar meu exemplar do Robert Arlt, o maior dos argentinos (“Os sete loucos” e “Os lança-chamas”, reunidos na mesma edição, a R$ 69,00). Compro o livro, chegou ao ponto de ônibus parecendo um menino, que ganhou sua primeira Monareta, lambendo os beiços. Ah, nada como um bom livro...

Então começa o inferno. Às 16h, estou na parada. O Alto Santa Isabel não passa nunca, penso em ligar para Lucimério, o dono da empresa, que bebe aqui em Seu Vital, mas, pensando bem, deixa o cara em paz. Às 16h50, chega o ônibus, lotado. Um calor derretendo tudo. Tudo no centro está um caos. Meia hora depois, andamos um quilômetro. Velhos exaustos, mães segurando filhos, é sexta-feira, todo mundo só o bagaço, o calor arrancando suspiros. Motivo do caos no trânsito: a transmissão do cargo do atual governador, Jarbas Vasconcelos, para o vice, Mendonça Filho. Jarbas é candidato ao Senado. Tudo mudou no trânsito desde a manhã, ruas foram fechadas, a patuléia, o povo, a rafaméia, que se vire, é o recado. Estou no meio.

Só ontem, pela graça de Deus, ele perdeu milhares de votos, dos desgraçados (eu no meio), que sofriam dentro de ônibus lotados. Olho no Jornal do Commercio, edição de 13.12.2005: só no ano passado, 394 pessoas podem ter morrido, em sete hospitais públicos, por falta de vaga em UTI.

Às 18h, o ônibus está na Agamenom Magalhães, parado há meia hora. Não há um vento para sacolejar uma folha. Estou suado, exausto, triste com essa miséria toda que fazem com o povo brasileiro. Ao meu lado, uma senhora solta longos suspiros e repete "ô, meu Deus..."

Desço e vou caminhando, melhor que cozinhar dentro de um ônibus. Chegou à Rosa e Silva: tudo parado. Sigo a pé, tentando entender o caos. Perto da sede do Náutico, um boçal de um policial da CTTU fecha o trânsito. Um simples, reles e boçal policial, que deve ter passado o dia aplicando multas, fecha a avenida com uma motoca. Então, já é o caos completo mesmo, a Rosa e Silva fechada às 18h de uma sexta-feira.

Vejo uma aglomeração. Ôx, mas o jogo não é domingo à tarde, contra o meu Santinha? Já vi jogos decisivos, milhares de pessoas nas ruas ao redor, e sempre há espaço na Rosa e Silva. Penso em algum acidente grave, uma ambulância tinha passado agoniada. Vou me aproximando e vejo o motivo daquele caos: duas centenas de adolescentes do lado de fora, no meio da rua. Dentro, no clube, um show rolando.

“É o ensaio do Saia Rodada, a festa de um colégio”, me explica um cambista, que vende ingresso.

Então é isso. Milhares de pessoas estão arrasadas, dentro dos ônibus, esperando a hora de chegar em casa, para ver se os filhos jantaram, muitos levando um pedaço de alguma coisa, o dinheiro do pão, depois de uma semana inteira se fodendo, oito horas por dia, muitos deles trabalhando em pé, no calor, doidos por um banho e um descanso, e a Rosa e Silva, uma das avenidas mais movimentadas do Recife, está fechada por causa de uma festa de adolescentes, de um colégio particular. Me perdoem o palavrão, leitores, mas puta que o pariu!

Do lado de fora, muitos já estão bêbados, porque a bebida rola solta. Duas senhoras caminham à minha frente e comentam:

“É porque são ricos, podem tudo”.

A frase parece definir um país, que é o Brasil. Quem tem, pode tudo.

Me pergunto com que direito essa classe média fecha uma rua para uma festinha, como se a cidade fosse um bem particular, não um bem comum, atrapalhando, humilhando, lascando a vida de milhares de pessoas, durante algumas horas.

Caminho, caminho, caminho, estou exausto, suado, já puto com o Robert Arlt, esse porra, quem mandou escrever tão bem. Já são 19h, há três horas entrei nesse inferno. Por sorte, não estou tão fodido de grana, não tem ônibus passando na Rosa e Silva por conta da festinha da burguesia, resolvo pegar um táxi. O cara, o taxista, está fodido, cansado, puto da vida, diz que a cidade está um caos completo.

Um governador que vai ser possivelmente senador da República e uma festinha de adolescentes, e a cidade vira um inferno. Não, eu não deixo pra lá coisa nenhuma. Isso é uma merda, a CTTU nos deve explicações, esse colégio nos deve explicações, o agora ex-governador nos deve explicações, mas sei que ninguém vai dizer nada.

Eu fico puto, lembro do Contardo Calligaris, que adoro, que fala sobre o “dever de lutar por coisas pequenas”, a necessidade da intransigência, que é muito diferente da intolerância, sobre as coisas pequenas. Deixo de lado minhas besteiras de sempre aqui no Blog e dou meu pequeno alerta – ou vocês, que ainda têm alguma grana, se aprumam, ou isso aqui vai virar um inferno.

Estava terminando minha crônica de hoje, quando vi a manchete no JC On Line de hoje:

“Briga de adolescentes causa tumulto nos Aflitos”.

"Uma briga de adolescentes, nessa sexta-feira à noite, tumultuou o trânsito e provocou uma grande confusão na Avenida Rosa e Silva, na frente da sede do Náutico, no bairro dos Aflitos. No clube estava havendo uma festa organizada por alunos de um colégio particular do Recife para arrecadar dinheiro para a formatura da turma e centenas de adolescentes ficaram apavorados”.

Sem comentários.

5 comentários:

Anônimo disse...

As ruas da cidade são a sua identidade. Em BH a reunião do BID fechou ruas, provocou mudanças no trânsito, retirou paradas de ônibus e muitos disseram VIVA!
Até já. Vou te mandar um e-mail decente daqui a pouco. Abraço do mano PH

Anônimo disse...

As cidades viraram mesmo um inferno. Em compensação, Roberto Arlt, que maravilha!

Anônimo disse...

Isto é a cara da cidade. Classe média babaca. acha que pode tudo. Herança do engenho. A cana de açucar que moe gente.Do publico ao privado.

Anônimo disse...

Isto é a cara da cidade. Classe média babaca. acha que pode tudo. Herança do engenho. A cana de açucar que moe gente.Do publico ao privado.

Anônimo disse...

Trabalho na Agamenon. Sexta estava tendo um coquetel de inauguração do novo prédio, mas eu tinha aula da pós-graduação. Aí resolvi não ficar no evento - eu nem gosto daquelas conversas "enche-saco" de coquetel.
A aula começa às 6h00 ali no predio da UNE. Saí às 5h45 do trabalho. Não olhei pela janela. Saí achando que estava tudo normal. Foi a pior escolha que fiz esse ano. Melhor seria ter ficado no tal coquetel.
Em 40 minutos andei uns 500 ou 600 metros. Achei que pudesse ser algum problema na Agamenon. Peguei o desvio pelo Comprebem que vai dar na Conde da Boa Vista. Péssima escolha. A essa altura (7h15), já desisti de chegar na aula em tempo razoável. Comecei a pensar como sáir dali pra Olinda. Fui bater na Av. Guararapes, que com os desvios estava autorizada a se andar de carro: tome engarrafamento. 7h45.
Fome. Vendendores de pipoca. Ôba! Eu nem gosto de pipoca. Mas to com fome. Abro o vidro do carro e compro uma pipoca. Já estou desesperado. Já lembrei da posse do fila da puta do Governador e entendi o que tava acontecendo. O som do meu carro foi roubado (essa cidade...). Tem que curtir a raiva. Aí eu abri o vidro pra comprar a pipoca. Um camarada que tava no ônibus ao meu lado também comprou. Comecei a conversar com ele:
- E aí, tu sabe o que danado é isso? (perguntei)
- Num é a "profissão"... tá tendo uma "profissão". (ele respondeu)
Isso eu não sabia, ainda por cima tava tendo uma procissão.
Resolvi dizer-lhe que ainda tinha a posse. Aí ele:
- É mesmo... nem lembrava... o Governador.
Continuei conversando amenidades por uns 5 minutos. Os únicos minutos agradáveis da viagem. Aqueles em que a pessoa bota pra fora toda a raiva conversando com que ta com a mesma raiva que você.
Lembrei que se ocorresse isso há uns 8 meses eu estaria era dentro do ônibus tb. Num calor do carai. Ou seja, poderia ser pior. Eu tava ali no carro, no ar condicionado (sem som, é verdade) e ele com a mesma fome, mas no ônibus, o que é bem pior, mas ele levava a situação muito mais na boa que eu. Tranquilizei-me mais. Cheguei em Olinda às 08h30 e fui tomar uma gelada pra refrescar o cucuruto.
Quantos de nós não passamos por isso nessa danada dessa sexta-feira? Obrigado Jarbas! obrigado Mendoncinha!