quinta-feira, 11 de maio de 2006

Pequena lembrança de longas conversas

Recebo um email do Gustavo, meu interminável amigo, falando de algo espetacular – acaba de ser lançada,em espanhol, uma edição daquelas tipo “obra completa”, do nosso amado argentino Antonio Porchia, que sempre cito aqui neste espaço. Mais que isso: o livro traz um DVD, com a voz do Porchia, lendo suas coisinhas, suas pequenas frases que encantam, que abrem horizontes. Pena que dificilmente este lançamento chegue ao Brasil. Demoraremos a escutar coisas do tipo “Hace mucho que no pido nada al cielo y aún no han bajado mis brazos”, ou “Donde hay una pequeña lámpara encendida, no enciendo la mía”.

O email chegou num momento em que estou relendo uma encadernação puída, sem data, mas que deve ser de uns cinco anos atrás, somente com material impresso sobre o Porchia e a interlocução seu grande amigo, o poeta Roberto Juarroz.

A amizade de Porchia e Juarroz é algo fascinante, e convém algumas linhas, num tempo de tanta velocidade, afazeres, onde há tantos encontros para falar de tudo, do futebol, passando por alguma mazela amorosa, questões de relacionamento, sacanagens no trabalho etc. Tudo, menos do essencial, disso que se chama mistério, ou simplesmente o mais profundo da alma, sei lá. Acho que sempre tive isso na minha amizade com o velho Gustavo, este espírito de crença no humano e afirmação da vida, e cada vez que nos aquietávamos para longas, intermináveis conversas, deixávamos os assuntos do cotidiano em banho maria. Acho que nos dedicávamos a essas conversas do espírito, como faziam Porchia e Juarroz.

Juarroz, esse poeta imenso, diz que uma das coisas mais apaixonantes da vida poética são os encontros, especialmente os não-buscados. “Como o amor, os encontros não buscados são sempre os mais frescos”.

Ele já tinha visto o velho Porchia andando pelas ruas de Buenos Aires. Ficava observando de longe seu jeito manso, absorto. De vez em quando, o velho Porchia se abaixava e pegava um papelzinho na rua, “talvez pensando que encontraria o segredo, a chave”. Depois de saber que Porchia tinha publicado um pequeno livrinho de aforismos, o “Voces”, Juarroz resolveu “investigar” onde vivia aquele homem. Encontrou a casa modesta onde vivia, na periferia da capital. O primeiro encontro foi simples – pareciam velhos amigos.

“Um ser muito humilde em seu aspecto, de estatura pequena, de voz indescritível. Essa voz tem que ser escutada”, lembraria Juarroz, muitos anos depois. Para ele, escutar a voz de Porchia era a possibilidade de escutar o profundo, o mais profundo.

Os dois se tornaram amigos até o fim da vida. Juarroz fazia uma peregrinação à casa de Porchia, do outro lado da cidade, somente para o mistério do encontro, da conversa, do mergulho na alma humana. “Seu modo de vida era extremamente humilde, saía com uma bolsinha a comprar suas verduras. Mas o caracterizava a generosidade”, diz Juarroz. Ele jamais esqueceria a oferenda do velho amigo, que sempre o recebia com pão, vinho, queijo e salame. As conversas começavam às oito, nove da noite, e seguiam até o amanhecer. Lá pelas duas da manhã, Porchia puxava uma maça do bolso e dava de presente a Laura, esposa de Juarroz, que adorava maçãs. Sempre assim, a cada encontro. A maçã parecia ser um detalhe – “não esqueci de você”.

Juarroz passou a chamá-lo de Dom Antônio. Estava sempre cuidando do seu jardim, e neste momento, conseguia “escutar” as frases que fizeram parte de sua obra. Viveu sempre à margem dos circuitos literários, academias etc. Foi um homem simples e bom, que amou uma "mulher da vida", mas se afastou, quando soube que poderia causar problemas para ela.

Uma vez, uma grande revista de Buenos Aires pediu alguns textos, que ele entregou de imediato. Com a demora na publicação, Porchia perguntou o que estava acontecendo. Falaram de “alguns problemas de gramática”. Ele foi à revista, pediu os originais de volta e foi embora, sem alarde. Era sempre assim.

“Era um ser de uma humildade exemplar, mas, ao mesmo tempo com essa coisa inconvertível, imodificável, que nos faz pensar nas árvores centrais, aquelas em que o bosque inteiro parece se apoiar”, diz Juarroz.

Ao se despedir, Porchia sempre dizia:

“Tratem de estar bem”.

Segundo Juarroz, era quase um pedido, algo assim como “uma apelação infinitamente terna e delicada: um chamado à nossa possibilidade, apesar de tudo”.

Muitas vezes, acrescentava:

“Acompáñense”.

Algumas frases de Porchia iluminam meus dias, outras iluminam a vida inteira. “Um amigo, uma flor, uma estrela não são nada, se não pões neles um amigo, uma flor, uma estrela”.

Há outra frase maravilhosa dele - "Quiero tu bondad, pero no sin una sonrisa en tus labios".

Bem, vamos lá, tocar a vida...

4 comentários:

Anônimo disse...

Cadu,meu caro,
cometi um pequeno erro quando saí do JC, que foi o de não informar para onde iria escrever. Bem, aos poucos os velhos leitores estão se chegando, como é o teu caso. Isso é uma alegria para mim.
Um abraço,
samarone.

Anônimo disse...

Lindo,Samarone, lindo! Não tenho o hábito de ler poesias (ainda!) mas gosto das tais "conversas do espírito".
Eduardo

Anônimo disse...

Samarone!
A crônica está maravilhosa... Um dia quero ver se conheço estes grandes poetas!
Um bom final de semana pra você e até a próxima crônica.
Um grande abraço,
Priscila

Anônimo disse...

Olá Samarone,
Também acompanhava a sua coluna do JC, passei pro Blog do Santinha e agora achei o Estuário. Desde a primeira vez que li, passei a gostar dos seus textos. Onde posso encontrar o teu livro que é a compilação das cônicas do JC ?
Um Abraço!
Yuri Melo