sábado, 8 de julho de 2006

Perambulações

Saio pela Conde da Boa Vista debaixo de uma chuva desesperada, cada pingo arranca um pedaço do asfalto. Acompanha-me uma música de churrascaria, o tradicional órgão, no mesmo compasso da noite que me atrai. Vejo a decadência desse bares fora do circuito. A decadência me interessa muito mais que o luxo. Lá pelas tantas, duas putas, uma com os peitos já sugados por seus muitos homens, dançam agarradas. Começa a tocar Bartô Galeno. Corpos cambaleiam, cabeças hesitam. Bêbados gritam “ó meu amado/por que brigamos? Ó minha amada/Não posso mais viver assim/perto de ti”.

O solitário sempre me interessa. A solidão me interessa mais que a decadência. Sentado, diante do copo de Vermout, ele, o mais solitário da noite, pensa em algo. O olhar está voltado para algum ponto vazio. A música embebeda o tom da canção, e logo todos estão altos, nesta sexta-feira de ruas e corpos encharcados. “Volta meu amor/ Fica comigo, só mais uma vez”, geme o órgão, com o teclado imprestável. A mesma balada serve para todas as músicas, todos os sentimentos.

A chuva para. A Conde da Boa Vista está coberta por um espelho doce e recente, a água reflete luzes apressadas, de carros que chegam. Ônibus se acotovelam, à procura de um lugar na noite, ainda intranqüila. Não há elegância em nada que vejo, mas não há deselegância. Há somente a vida, que salta, que se desdobra, que multiplica seu viço e sua incerteza. São os homens e mulheres que fazem o Recife ser o que é. Uma cidade que pulsa ferida, calcinada pela própria existência.

Há algo de frágil neste bar onde estou. O álcool ilumina desesperos, acalma covardes, refaz a esperança dos moribundos, que tateiam seus nacos de vida. A fragilidade da existência que é apenas um toque de bengalas nos abismos das mesas e cadeiras.

Falta um bêbado que dance sozinho. Sempre, em algum lugar decadente, há um bêbado que dança sozinho. Sempre há um bêbado que chora. Há bêbados que contam toda sua vida em 15 segundos. É necessário ouvi-los. É necessário emprestar ouvidos a esses que querem apenas nos emprestar por alguns segundos suas próprias dores. O desdém é um pecado irrecuperável. Eu mandaria para o inferno quem escutasse minhas dores com um olhar evasivo. Seria capaz de matar, se, ao final da minha história de amor, alguém dissesse: “eu sei o que é isso, já passei por isso”. Mataria a amizade, creio, o maior dos crimes.

Não. O que o homem quer é sempre salvação. E salvação não vem do passado. Para salvar-se, é necessário deixar que a ciranda do amor e da morte circulem no mesmo coração. Querer salvar-se é o desejo mais nobre de qualquer desesperado.

Me identifico com esses que não têm para onde ir, e se forem, não ficarão muito tempo. Com esses que confessam fraquezas e fracassos. Com essa estranha humanidade que a noite faz aflorar, feita de álcool, sorrisos, lágrimas, palavras entorpecidas e um breve cruzamento de vida e morte, passageiros de uma agonia precoce e antiga.

11 comentários:

Anônimo disse...

Cada um de nós tem uma história guadadinha lá dentro do peito, esperando tv a oportunidade pra exterioriza-la!
O coração é um baú cheio de sentimentos, uns revelados outros não... e as dores que nele tb habitam são tão fortes qto esses sentimentos.
Mas a vida nos dá sim novas oportunidades de reescrevermos nossa história e transformarmos nossas dores em experiências de vida. Apenas precisamos estar atentos a essas oportunidades...
Beijos pra vc, Sama!
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Anônimo disse...

Sama, muito bom o texto.. muito bom.. me senti em pela conde da boa vista.. o fedor da avenida... a "zuada" toda.. essa grande colcha de retalhos no coração do centro da cidade.. costurada de muitas vidas e sentimentos...
Abraço.

Anônimo disse...

zango-me quando estou só.
zombam, aguçam críticas,
apenas solidão.
somente a paz de estar só,
o silêncio do calar,
o estalo do pensamento,
consola-me neste momento.

Anônimo disse...

belíssima

Anônimo disse...

Samarone, tu és um dos melhores cronistas dessa cidade do Recife, que amamos tanto, por sua beleza, que inclui essa decadência, de que tiramos lições e de onde você tira poesia. No caso desse texto (como em muitos outros), vale lembrar o velho Baudelaire: "Sois toujours poète, même en prose"

Anônimo disse...

Hummm... pensei um monte de coisas para dizer, mas já está tudo aí, tão bem escrito, tão completo, que meu comentario seria supérfluo. Mas parece tão banal dizer apenas que gostei muito. Aliás, gosto sempre.

Anônimo disse...

Seu blog é, sem dúvidas, uma das melhores indicações que recebi. Meu primo, Júlio Vila Nova me indicou. Garanto virar frequentador assíduo.
Parabéns!

Anônimo disse...

Como sempre ... toca bem fundo e é um exemplo do que podemos chamar de belo !!!

Por detrás da malha fina disse...

Samarone, cheguei ao teu blog depois que voce o citou numa palestra sobre jornalismo na unicap. Queria saber os nomes e onde encontrar os teus livros...
Tenho gostado muito de alguns dos teus textos.

Samarone Lima disse...

por detrás da malha fina:
meu primeiro livro, o "Zé", eu vendo a 20 mangos.
O Clamor, só com a Objetiva. Estuário, é com a Livro Rápido.Ainda bem que você tem gostado dos textos. O esforço aqui é grande.
Abraço,
samarone

Unknown disse...

EU QUERO MAMAR UMA ROLA...

DANUZA....UNICAP