segunda-feira, 28 de agosto de 2006

O porre que faltou

Semana passada, nós freqüentadores assíduos da mercearia de Seu Vital, aqui no Poço da Panela, nos dedicamos a atualizar nosso obituário. É uma tradição que mantemos há algum tempo. Chegou alguém novo à turma, começa a ficar habitué, tem que preencher o nosso pequeno questionário, informando sobre as preferências, na hora do embarque final: comida, bebida, a música, quem vai fazer o discurso, texto para a lápide etc. Depois de respondidas as perguntas, as pessoas ficam aliviadas. Ninguém, pelo menos aqui, vai ser contrariado no momento fatal.

Um dos amigos escolheu a música “Naquela mesa”, para acompanhar seu último trajeto, e chamou a atenção. É uma música cheia de lembranças, a letra muito evocativa, falando de um filho que admira o pai, enfim. Cada caso é um caso. Meu amigo João, por exemplo, pediu o hino do Santa Cruz. Naná quer que cantem “Shalalalala/ Coisa boa é namorar”. Barrabás, o primeiro da nossa turma que partiu para outros mundos, nos deixou um baita problema: pediu que cantássemos “Eu bebo sim/estou vivendo/tem gente que não bebe e está morrendo”. Como sua família é evangélica, tivemos que pedir a autorização para realizar o derradeiro pedido.

“Podem cantar. Ele gostava mesmo de beber”, admitiu alguém da família, num sábado à tardinha, no cemitério de Casa Amarela. Os amigos, todos mamadinhos, cantaram a modinha, enquanto o coveiro fazia sua parte.

Mas voltando ao tema. No dia seguinte, perguntei ao meu amigo sobre a escolha de “naquela mesa”. Ele me respondeu o seguinte:

“Faltou um porre na minha vida”.

Foi com o pai dele, me explicou.

O fato foi o seguinte. Quando o pai bebia, o meu amigo era atleta, remador, ganhava mais medalhas que o satanás, e só bebia guaraná, suco, vitamina, essas coisas de atleta campeão estadual, nordestino, quase nacional. Depois, quando o meu amigo passou a beber (e muito), o pai tinha adoecido do fígado, e teve que parar. Resultado: os dois nunca tomaram um porre juntos.

Mas aquela frase ficou martelando. “Faltou um porre na minha vida”.

Só depois entendi o motivo. Há algumas semanas, estive em Fortaleza para rever a família, e fiz as pazes com meu pai. Sim, há muitos anos as coisas vinham meio atravessadas, aqueles desentendimentos mútuos, o conflito de gerações, as incompreensões, essas chateações todas, que muitas vezes resultam em uma perda de tempo absurda, para não falar da perda afetiva, que é irreparável.

Como estávamos há três anos intrigados mesmo, igual a dois meninos pequenos, o encontro foi cheio de mistérios e dúvidas. Coube à minha irmã, a Mônica, fazer a ponte. Me senti meio clandestino de mim mesmo, porque tive que ficar esperando um telefonema com o “sinal verde”, ou “sinal vermelho”.

Lá pelas tantas, apareceu a luz verde, e nos encontramos em um restaurante. De longe, vi a careca do velho. Por sorte, ele tinha colocado um litro de whisky em cima da mesa, e já tinha virado duas doses. Eu, que não sou chegado a whisky, achei a bebida linda. Mandamos ver. Não, não tivemos aquelas conversas longas e profundas, cheias de acertos de conta, revolvendo o passado, o que foi, o que foi, o que não foi, o que deixou de ser, você fez isso, eu fiz aquilo. Foi apenas uma noite divertida com meu pai e minha irmã. Há muito tempo não via o velho tão leve, tão sorridente. Parecia mesmo um menino. Eu, não menos.

De lá, fomos para um forró meio esquisito, aqueles forrós em que todo mundo está meio bêbado, dançando descalço, alguns já sem camisa, e você espera somente a hora da próxima confusão.

“Não deixe nossos copos ficarem vazios”, disse ele para a garçonete, e já estávamos na cerveja.

Não teve confusão nenhuma. Foi uma noite divertidíssima, alegre, leve. As armaduras de tantos anos ficaram de fora.

Na saída, dei um abraço no velho, e acabou um tempo de porta entreaberta em nossas vidas.

Acho que ele também estava querendo este encontro. Ainda bem que este porre não vai faltar nunca em minha vida - nem na dele.

Para o Zé Vicente, então, meu pai.

15 comentários:

Anônimo disse...

Olá, Samarone!
Na minha, por exemplo, faltou um porre, muitos diálogos e alguns sorrisos.
Um abraço,
Arley Haley

cometaurbano disse...

Sama,

texto simples e cativante. Tb me emociono com a música citada. A participação de Mônica na mediação pai e filho, quem diria, nos ajuda a entender que não conhecemos os outros por completo. Saudades do mano PH, amigo deste leitor alcóolico emocional que te escreveu anteriormente (Arley)

Anônimo disse...

Que bom, Sama, que na sua vida não faltou esse porre! Fico feliz de verdade. Esses rompimentos familiares, como vc mesmo disse, trazem perdas irreparáveis...aproveite seu pai bem muito!
Um beijo!

Anônimo disse...

Que ótima notícia!

betita disse...

Na minha também falta.
Sempre era ele bebendo, falando e eu escutando. Hoje ele bebe, fala, eu escuto e falo. Amanhã eu vou beber, falar e ele vai escutar.

Anônimo disse...

Mas, Sama, inda bem que escreve-se o que foi pedido ao obituário, viu? Porque eu mesmo já nem lembro dos meus desejos. Aliás, já não lembrava no dia seguinte...

Anônimo disse...

Eu tive meu porre! Foi ótimo. Mas o velho já partiu... e "naquela mesa" ficou sendo uma espécie de hino à saudade paterna. Também tem "As rosas não falam" por que el fez uma resposta para ela "... e as rosas falaram" que diz "tudo terminou em um jardim. E ele dorme para sempre e sonha sozinho seus sonhos por fim." Saudades do velho Péricles de Morais e Silva. Abraço, Mestre Samarone!

Anônimo disse...

meu pai é fã de Nelson...esta semana caiu minha ficha de que meu velho realmente tá ficando velho...vamos tomar muitas ainda com certeza!

Anônimo disse...

Sabe Sama, você não imagina o quanto fico feliz por ter uma pequena parcela de participação na sua aproximação junto ao nosso pai. Sempre senti que o mesmo(pai), necessitava de um complemento em sua vida, ou seja, algo que o fizesse mais feliz e percebi que papai amadureceu bastante e você foi um fator determinante para que isso acontecesse. Bom, você veio a Fortaleza e achei o momento totalmente oportuno para que ambos pudessem quebrar um pouco do orgulho e demonstrassem um sentimento amplo e profundo que vinham carregando ao longo desse tempo, porém um sentimento reprimido, que faz com que soframos de uma forma muito mais intensa do que de fato representa, penso eu... Quero inclusive dar um depoimento pessoal, pois você transformou muito a minha vida ao vir a Fortaleza, a nossa aproximação foi grande, intensa, isso gerou uma reflexão da minha parte e cheguei a conclusão que somos muito parecidos e que a cada dia que passa, estou mais ligada a você e admirando-o cada vez mais como homem, profissional, irmão e com o coração imenso.Conte sempre comigo!Beijos!(Mônica Lima)

Anônimo disse...

oi, Samarone!
Fiquei emocionada e muito feliz por voce!
um abraco,
Claudia

Anônimo disse...

Mônica, lembre de imprimir a crônica e mostrar para o velho!
sama

Anônimo disse...

Samarone, pena que no meu caso não haja mais tempo para aquela mesa. Mas converso muito com o velho, que, lá do outro mundo, espero que me ouça.

Anônimo disse...

Que bom Samarone! Fico feliz por vcs!
Um abraço.

Anônimo disse...

Lindo, Samarone
que forma maravilhosa de se retomar afetos.
Adorei. Aliás, leio vc todo dia e me delicio com suas histórias
Abraço
Rosário

Anônimo disse...

Cadê o outro texto que estava aqui?
O gato comeu?