sexta-feira, 29 de setembro de 2006

Zé Butico

Sento num banco de praça à guisa de tomar algumas notas soltas. É noite. Ao lado, numa quadra de futebol de salão, uma pelada vai caminhando, acirrada, entre gritos e chutes. Há skatistas e ciclistas. Passa uma senhora gorda, com seu cachorro pequeno e bem cuidado. Reparo bem. O animal, daqueles que tomam banho com água quente e xampu, usa uma pequena roupinha. Faz côcô, ela puxa um saquinho da bolsa, recolhe o material radioativo e coloca no lixo.

Ao lado, um homem brinca com um cachorro, um vira-lata de primeira grandeza. Fico espiando. Não parece um homem e um cão. Parecem dois meninos, de idade incerta. Lá pelas tantas, o homem vem sentar no banco ao lado. Tem uns 50 anos, é aquele sujeito troncudo, atarraxado, de carne dura. Parece as gentes do sertão. É baixinho e usa um bigode fino.

Ele senta, o cão fica ao lado, altivo. Depois, o animal sai para uma volta ali por perto. Vai caçar uma arvorezinha-mictório, creio, para aliviar a barra.

“Como é o nome da fera?”, pergunto.

“Zé Butico”, responde, com um sorriso.

“Ele tem três anos, é o rei do parque”.

Daqui a pouco, o cão volta, fica perto.

Chamo Zé Butico com os dedos, ele me trata com desdém e um olhar ausente.

“Zé Butico! Zé Butico!”, chamo animadíssimo. Nada. O cão me ignora olimpicamente.

“Quando as cachorras dele estão viçando, ninguém chega perto, que ele quebra no pau mesmo”, me explica o sertanejo.

A conversa já pegou. Sei quando isso acontece.

“Enconteri ele no posto de gasolina. Botei o olho nele e disse - é Zé Butico, o nome desse cachorro. Vi que ele também foi com a minha cara".

E ficou assim mesmo. Amor à primeira vista.

Pensei em assoviar, mas o meu amigo, que tem uma intuição fortíssima, me alertou:

“Nem adianta chamar assoviando, que ele não vem”.

Teimoso que sou, dou uma assoviada suave, aquela que todo cachorro atende, mas o cachorro ignora. Mais freesco!

“Agora, basta eu dizer Zé Butico! – que ele vem”.

Nessa hora, o frango do cachorro olha para ele, entendendo tudo. Eu acho que eles até fazem esse negócio combinado.

A conversa foi rendendo. Daqui a pouco, toca o celular do meu amigo de praça. Ele chama o cachorro, e a coisa começa a virar um espetáculo de circo.

“Eu viro a orelha dele e boto o celular. Ele fica feliz”.

Então, ele chama o Zé e vira a orelha dele. Coloca o celular juntinho, e o canino abre aquele largo sorriso. Não sei se algum dos meus leitores já passou pela experiência estética e existencial de falar ao celular com um cachorro. Se fez isso ontem, informo que presenciei a cena, e que o cão se chama Zé Butico.

Acabada a ligação, meu amigo passou à definição psicológica do animal.

“Ele não gosta é de cheira-cola e velho que é ruim. Ele dá uma mordida que parece um leão”.

Surgiu outra dúvida: como ele sabe que alguém está cheirando cola? Treinamento na Polícia? E como descobrir quando um velho é ruim? Terá o cachorro um sexto sentido apuradíssimo, contra os malas da terceira idade? Por sorte, não faço parte de nenhum dos dois grupos. Mas, a título de precaução, paro de chamar Zé Butico com aquela animação da amizade recente.

Daqui a pouco, meu amigo resolve sair.

“Vou aqui, pegar uma cerveja. Vê como ele não sai do canto, até eu voltar”.

O homem sai, Zé Butico olha, com aquele cansaço das lidas do dia e as preocupações da carne, fora as encenações no parque. Sabe que estamos falando dele, o pilantra, e segue atrás do seu dono.

A madame volta com seu cachorrinho, e me parece sem nenhuma personalidade, mesmo que tenha seu côcô recolhido.

Sinceramente, eu sou mais mesmo é o Zé Butico.


ps. quem quiser comprar a segunda edição de Estuário, favor deixe uma mensagem aqui no Estuário, de preferência deixando o email, que entrarei em contato. A segunda edição vai ser mais em conta - R$ 25,00. Se tudo correr bem, quarta-feira estarei com os exemplares em mãos.

quinta-feira, 28 de setembro de 2006

O não-lançamento de Estuário

Estava tudo certo. As revisões foram feitas. Crônicas meia-boca foram retiradas, as novas, do Blog, foram adicionadas. Mexi na orelha do livro, fiz algumas correções, e a Editora Bagaço anunciou solenemente a edição de 300 exemplares de Estuário: crônicas do Recife, deste que vos fala. Melhor que isso: com aquele delicioso “Segunda Edição”, na capa.

"Quarta-feira, dia 27 de setembro, o livro está pronto, pode vir buscar, me avisaram. Então comecei os preparativos.

Pessoas queridissimas ajudaram na divulgação. Saí até nas colunas sociais. Dona Luzilá Gonçalves, escritora de mão cheia, teceu alguns elogios ao livro, em sua coluna do Diário de Pernambuco, da terça-feira. Meu Deus, que alegria! Dêem os descontos, que ela é muito amiga minha.


Ricardo Mello incluiu o lançamento na Semana de Comunicação da Católica. Falei com Seu Vital que o pós-lançamento seria em sua venda, com a presença de amigos os mais diversos e desconhecidos por conhecer. Ele reforçou a cerveja e o vinho Carreteiro, produto bastante consumido no Poço da Panela. Separei uma camisa boa e uma calça engomada.

Na metade da tarde, liguei para a editora, para saber onde pegar as caixas com os 300 exemplares. A Inês me disse, com uma voz de choro:


“Todos os fotolitos do livro queimaram ontem. Não temos livro”.


Me deu uma fraqueza no espirito e uma vontade de chorar, mas isso durou cinco segundos, porque tenho lido muito o Guimaraes Rosa, e ele diz que o que a vida quer da gente e coragem.


Fui à Bagaço com dois quentes e um fervendo, para arranjar arruaça. Como é que me deixam sem o livro no dia do lançamento, isso é uma irresponsabilidade, essas coisas do sangue fervendo.


Mas encontri a Inês, ela estava mais triste que eu, chateada mesmo, a zanga passou na hora, eu quase tive que ampará-la um pouco, e comecei a pensar que besteira essa, o mundo não se acaba porque um livro não ficou pronto. No entardecer, tomei banho e passei xampu (eu nunca sei como se escreve shampoo direito). O creme Viscaya, comprado pela dona Ermira, que vem a ser minha mae, tinha acabado. Me virei com outro. Escovei os dentes igualzinho aos caras das propagandas. Estava prontinho para o não-lançamento oficial.


Às 17h30, estava na Católica, no famoso “Café com o Quê?” (sinceramente, esse nome de café não foi uma escolha muito feliz), ao lado do senhor Ricardo Mello, que já sabia da novidade e ficou deveras abalado. Levei o único exemplar sobrevivente da primeira edição, pela Livro Rápido. Levei para mostrar que não estava mentindo, que o livro existiu um dia, e, sendo assim, poderia voltar a existir.


Surgiu a idéia de passarmos uma lista com os interessados em comprar Estuário, e logo consegui vender uns 15 livros imaginários. Algumas alunas do quinto período fizeram uma entrevista para um trabalho. Ganhei um pedaço bom de tapioca, tomei um cappuccino grande e depois peguei um ônibus para o Poço. Era a imagem clássica do autor sem sua obra. Eu não estava desolado nem triste. No ônibus, comecei foi a achar graça de tudo. Esse negócio de levar as coisas a sério demais envelhece a gente, cansa, maltrata o espírito.


Cheguei em Seu Vital às 19h12 e encontrei Tio Jadi ao lado de Boy. Tio Jadi já estava para lá de qualquer fronteira. Se escorava naquele santo que ajuda a aprumar os bêbados. Apertou minha mão por uns quinze minutos. Perguntei o que ele tinha bebido:


“Um vinhozinho”.


Tradução: algumas garrafas de Carreteiro.


Logo, ele começou a cantar Lupicínio Rodrigues, e a noite ficou mais mansa.


“Ela disse-em assim, tenha pena de mim, vá embora...”


Depois foi chegando a malandragem. Naná, Rodrigo Lobo, Walter Barba, João Magro Valadares, Serjão, Josildo Sá, fora os habitués naturais de Vital. Informo que a turma do bairro estava mais preocupada mesmo era com o dominó. Negócio de livro...


“Cadê o livro”, perguntava cada um que chegava.


“Os fotolitos queimaram”, eu explicava.


Ninguém acreditava. João disse que foi golpe publicitário meu. Alguém disse que não tenho jeito. Passei a lista, pedi que colocassem email, que eu avisaria sobre a chegada do difícil Estuário.


A sorte era que a cerveja estava geladinha e a mesa foi ficando cheia de amigos. Conversa boa, numa quarta-feira à noite. Papo manso, alegre. Consegui vender um exemplar de “Zé”, e foi uma festa. Serjão informou que está me faltando é organização.


“Você só poderia divulgar quando o livro estivesse pronto”, disse. Só faltou me chamar de Zé Mané.


Lá pelas tantas, a Débora Suassuna me levou um livro de presente, com uma dedicatória bacana, e fiquei sem graça de não ter nada para dar em troca. A Alessandra trouxe um livro de poemas de sua mãe, e fiquei encantado com o nome da poeta: Musa. Está aqui, comigo.


Como é o padrão básico de Seu Vital, no melhor da festa acabou a cerveja. Acabou não, começou a sair mais quente que leite fervido. Ele tem essa mania estranha: quando está acabando a cerveja, ele joga duas grades quentes em cima das geladas. Aí, nem mel nem cabaça.


Pagamos a conta e olhei na listagem Deu para vender, imaginariamente, 53 livros.


Quarta-feira que vem, recebo finalmente os 300 livros, se os fotolitos não voltarem a pegar fogo. Vou falar com o Serjão para ele me ajudar a organizar nas vendas. Serjão, meus amigos, com aquela voz de tenor, é capaz de vender uma cadeira de rodas para um maratonista.


Aguardemos.


Nota: Recebi a maravilhosa notícia que a Naire Valadares está bem, depois da cirurgia. Disse seu filho que ela recebeu as informações sobre a operação, como seria feita, a anestesia, aquela coisa toda.

Ao final da explicação, ela só fez uma pergunta:

“Sim, doutor, mas eu quero saber mesmo é se eu vou poder votar no domingo”.

Ah, essas pessoas guerreiras me enchem de esperança e beleza.

Força, Naire, que estamos contigo!


segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Segunda edição de Estuário será lançada hoje!

Este jovem escritor (37 anos) informa que o livro "Estuário", lançado ano passado pela Livro Rápido, acaba de ganhar a segunda edição. A gloriosa Editora Bagaço, da saudosa Elita, resolveu fazer uma nova edição, com aquele negócio sensacional na capa: "Segunda Edição".

O livro será relançado hoje, às 17h30, na Universidade Católica, graças à louvável iniciativa do senhor Ricardo Melo, que vem a ser o coordenador do curso de Jornalismo. Fui informado pelo dito cujo, que o lançamento seria lá, durante a Semana de Jornalismo. Nem discuti com ele, porque ele é também meu chefe na escola onde ensino, apesar de estar licenciado. Temo represálias as mais diversas. Por enquanto, o local marcado é o "Café com o quê?", um nome péssimo para café, mas isso não vem ao caso.

Ao contrário do que vinha informando este jovem cronista, o referido café não funciona no bloco A, e sim no bloco G. Quem estudou na Católica sabe muito bem onde fica o citado bloco A. Quem não estudou, é só perguntar.

Após o pré-lançamento, rumaremos para o lendário boteco do Seu Vital, lugar tradicional de lançamentos os mais diversos. Falarei com Marcel Tito, se vivo estiver (o sujeito andou numas bicadas, meus amigos, que eu vou dizer), para ele levar sua roda de samba. Pagarei algumas cervejas aos músicos.

Sobre o livro:

"Estuário" é uma coletânea com as crônicas menos ruins, entre 2004 e 2005. Tinha apenas as crônicas escritas para o JC On Line, mas, como na apresentação, o senhor João Valadares citou vários textos que eu nem tinha ainda escrito, tive que escrever para não passar vergonha. Então, tirei alguns textos muito ruins mesmo, e coloquei outros, tentando melhorar um pouco o conteúdo.

A Bagaço ainda não me informou o preço, mas acho que vai ficar mais em conta.

Quem puder ajudar na divulgação, eu agradeço. Quem não puder, eu também agradeço. Nos vemos na Católica ou em Seu Vital. Em Vital, vai ser mais divertido.

Samarone

Ps. Para quem não sabe onde fica a mercearia de Seu Vital, é só ir até a Igreja do Poço da Panela. O estabelecimento fica defronte, numa esquina afamada e bem frequentada por homens distintos e moças donzelas. Quem não sabe onde fica o Poço da Panela, não é do Recife, desconfio.

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Quando nevou no Recife da minha imaginação

Foi ontem à tardinha. Estava molhando as plantas depois de um daqueles dias em que tudo urge, as demandas saem como aqueles milhos de pipoca, estourando todos de uma vez, e o sujeito se vê exausto, ao crepúsculo, quando me ocorreu algo.

Fiquei imaginando a chegada de uma enorme frente fria, no Recife, em pleno mês de setembro. Mais que isso. Fiquei vendo aqueles floquinhos de neve, que começam a descer lentamente do céu, igualzinho ao cinema. Perdão, amigos, não tenho contrato com o pessoal da previsão do tempo. Foi apenas uma divagação íntima. Então fiquei imaginando esta memória.

Ato contínuo (ôps, Davi), os meninos daqui do Poço da Panela, que são muitos, sairiam correndo, aos gritos.

"Olha a neve ai/ Olha a neve aí", estirando as mãos para pegar no algodão geladinho.

Não, não haveria mãe alguma gritando da porta:

"Passa já para dentro, menino, que tu vai pegar uma gripe braba".

Tampouco os meninos sentiriam frio. Quem, aos sete anos, morando no Recife, sentiria frio, com a chegada dos primeiros floquinhos de neve em pleno verão?

A venda de Seu Vital, aqui na esquina, ficariam imediatamente entupida de gente, porque a nevasca aconteceria ao anoitecer. Sem poesia, amigos, não vamos longe.

Os tradicionais pedidos, por uma cerveja gelada, seriam transferidos para algo mais forte.

"Vital, um conhaque, s’il vous plâit", diria Tony, puxando o cachecol, que estaria quase arrastando no chão.

Sim, amigos, com a chegada da neve, todo recifense ressuscitaria seu passado francês, seu passé composé.

"Il fait froid", responderia outro, tremendo.

"Uma Pitu, Seu Vital, uma Pitu que essa neve pegou a gente desprotegido, ula-la", completaria alguém, usando esse "ula-la" famoso.

Vital, com seu casaco de general e luvas, continuaria a ser a mais delicada das criaturas.

"Toma logo, peste!", responderia docemente.

Nas semanas seguintes, a neve se acumularia pelas ruas. Aqueles que costumam caminhar nas primeiras horas da manhã, passariam com seus esquis, creio, desengonçadamente, tentando acertar o passo.

"Essa primeira nevasca a gente nunca vai esquecer", comentariam.

Casais apaixonados jogariam neve uns nos outros. Com as crianças, seria diferente. Haveria uma batalha diária. Escondidos detrás dos postes e dos carros, os pirralhos mandariam ver. Eu lembro de uma guerra de mangas, há muitos anos, que durou muitas horas. Além disso, neve dói menos que caroço de manga.

Lulu passaria no seu carrinho, toda coberta, mas teria a intuição de botar a mão para fora, olhar com aqueles olhos de amêndoa e dizer:

"Neve, Samarone, Neve!"

O movimento nos bares, creio, iria reduzir. Os amigos se juntariam mais, e se beberia muito vinho. Creio que os poetas escondidos ousariam mostrar seus escritos. Logo, surgiriam os saraus. Aqui-acolá, alguém comentaria, olhando pela vidraça aquele mar de branco do lado de fora:

"E essa nevem, heim?"

Como estamos no Recife, logo começariam as campanhas. Agasalhos urgente, que o povo está com frio. Aquecedores surgiriam com a devida urgência, em todas as lojas, em dez parcelas cheias de juros. Creio que nossos animais, acostumados ao calor, sofreriam muito, e seriam mandados para os países vizinhos, como o Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas.

"Aquilo sim, é que é lugar quente e bom", comentariam os bebinhos do Mercado de Casa Amarela.

Depois de algumas semanas, nos daria aquela impaciência. E aquele sol do domingo? E caminhar só de calção, às seis da matina? E a pelada semanal, com a neve cobrindo a terra?

Logo surgiria um problema existencial, de caráter irreversível: a impossibilidade de jogar decentemente um bom dominó, com a utilização de luvas grossas.

Então veio passando um carro na rua, meu regador estava atrapalhando a passagem, tive que parar de divagar. Súbito, parou de nevar na minha imaginação, tudo voltou ao normal, aquele calor da tardinha, início de noite no Recife. Depois, molhei as plantas do quintal, guardei a mangueira, tomei um banho e fui tomar um cafezinho em Vital, a minha Pasárgada.

Fiquei rindo um pouco, imaginando meus camaradas tremendo de frio, mas felizes por terem um ótimo motivo para beber coisas fortes e falar um francês precário. O dominó já corria solto. Alguns bebericavam a cerveja, não tão gelada.

"Esse febrento", reclamou Seu Vital, quando seu parceiro errou a jogada.

Fiquei com essa dúvida no espírito: como será que se diz "febrento", em francês?

Emilia vai me ajudar, tenho certeza.

Au revoir.

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Estrela da Vida Inteira e uma imensa ternura

Estou dando aulas, fazendo um levantamento com os alunos de uns livros que vamos comprar para montar nossa biblioteca, quando vejo um aluno com uma edição supimpa do Manuel Bandeira, nada mais nada menos que o Estrela da Vida Inteira, da Nova Fronteira. Dois dias antes, eu tinha feito uma pesquisa de preços numa livraria, estava lá, cravado: R$ 49,00.

Caramba, então a escola está me enrolando. Não eram jovens da periferia do Recife, com suas limitações as mais diversas?

O aluno me explicou. Foi um presente da Prefeitura.

"Isso é para comprar voto, professor", alfinetou o outro.

Bem, se alguém nesta cidade está comprando votos com a poesia de Manuel Bandeira, vamos e convenhamos, os tempos estão mudando. Antigamente, era dez mangos ou uma cestinha básica, e estava tudo certo. Daqui a pouco, a cesta básica acabava, e tudo voltava à estaca zero. Fome é um troço que retorna sempre.

Com a poesia é diferente. Ela não tem tempo, e mata outras fomes.

No dia seguinte, vi uma notinha no jornal. Confesso: sou um tarado por notinhas de jornal. Às vezes nem leio as matérias principais. Saio vasculhando tudo, até os classificados. Nas notinhas, às vezes, está a manchete do jornal. Outro dia, descobri um sujeito que estava fazendo uma baita pesquisa, para tirar a acidez da cebola, aquele troço maravilhoso, que faz a gente chorar, quando quer chorar escondido. Quase escrevi uma carta ao jornal, pedindo para o pesquisador tirar umas férias e pesquisar sobre a velocidade média dos caramujos do Recife, que anda crescendo pacas.

Pois bem. A notinha dizia que a Prefeitura gastou R$ 171.500 para comprar os livros do Manuel Bandeira para os alunos e professores. Cada um saiu por R$ 34,30. O preço aqui nem é o principal, porque quando essa turma lá de cima quer pegar pesado, um garrafão de água mineral sai mais caro que um carro pipa. Outro dia teve um show da Sandy e Júnior, e custou, parece, R$ 400 mil. Dava um Manuel Bandeira per capita.
Mas o que vale é mesmo essa intenção da poesia, uma pequena estrela que pode iluminar o coração desses meninos, que estão começando na vida das letras. Acho que tentam compensar uma deficiência criminosa: a cidade do Recife, segundo a Folha de Pernambuco, tem duas bibliotecas municipais, para 1,5 milhão de habitantes. Depois reclamam que o povo não lê.

Na aula seguinte, mais dois alunos chegaram com seus Manueis Bandeiras da vida inteira. Eu, um lírico profissional, penso logo em telefonar para meu amigo Gustavo e dizer:

"Gustavo, os meninos por aqui andam com o Bandeira debaixo do braço".

Mas o Gustavo, meu deus, anda trabalhando tanto, está em tantas bancas, teses, viagens, palestras, que é melhor apenas escrever aqui. Sei que ele sempre anda dando sua reparada nas minhas notas soltas.

Fui aqui pegar a minha edição, aquela coleção "Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa". Está com a data de maio de 1998, o maio dos meus 29 anos, que nunca mais vai voltar. Abri, cheirei, lembrei daquele momento, quando morava em São Paulo com o já citado Gustavo, irmão da vida inteira e de tantas histórias, e esbarrei na página 251. Está lá, todo rabiscado, o poema "Minha grande ternura". Ternura é uma das três palavras mais bonitas da língua portuguesa.

Perdão, mas grandes ternuras precisam ser compartilhadas.

"Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos,
Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;

Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser;

Pelas mulheres que amaram
E que eu não pude amar.

Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.

Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldada.

Minha grande ternura
Pelas gostas de orvalho que
São o único enfeite
De um túmulo".
Ps. Influenciado pelo clima de Pasárgada da cidade, voltei a atualizar meu blog de poesias: www.quemerospoemas.blogspot.com

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

O menino da escada

Algumas pessoas mais chegadas me saíram com essa. Era uma história de que eu tinha um menino, lá em casa, ele ficava debaixo da escada espiralada que leva para o primeiro andar. Em alguns momentos, alguns dias específicos, o menino aproveitava que eu estava dormingo, subia, ligava o computador, e escrevia em meu lugar. Os melhores textos, portanto, os mais delicados, penso, seriam do tal menino, ou o Menino Tao, se for o caso.

Estou começando a achar que é verdade. Nunca o vejo direito, mas penso que ele existe. Às vezes, quando abro a porta bruscamente, sei que ele conseguiu ficar quietinho, sem respirar muito, para que eu não o veja. Entre nós, portanto, vem surgindo uma cumplicidade de presença e ausência, e já nem reclamo, quando ele escreve no meu lugar. No fundo, é bom ter alguém para escrever no lugar da gente, quando falta algo para dizer.

Talvez eu recorra ao menino quando quero escrever coisas tristes, essas coisas que chegam pelas estradas da vida, pelos atalhos, pelos remendos, pelas feridas e derrotas. Eu tenho o estranho defeito de não querer compartilhar sofrimentos, eu sofro com um egoísmo profundo. Mas há dias em que dá vontade de chorar mansamente, baixinho, sem alarde, como quem reza sozinho, humilde, em uma catedral, repleta de silêncio. Reza, mas nada pede. Há dias em que a vontade é de aceitar a comoção com certos encontros, com as marcas no rosto de algumas pessoas que passaram pelos meus olhos, o vinco na carne, na face, as tatuagens do tempo, uma fivela nos cabelos emaranhados de luz.

Alguém me disse, hoje, que todos somos anjos caídos. Então me veio uma vontade de aceitação, um desejo de reconhecer outras calçadas, de me abrigar, de permitir não só o sorriso na chegada, mas o desamparo da perpétua busca, de compartilhar livremente os murmúrios. Me ocorreu também a presença de certos acenos, olhares que me valem mais que diamantes, silêncios que me dizem mais que todos os poetas.

Ah, vejam só o que me ocorreu. Comecei a escrever, ambalado por certas nostalgias do hoje, e o menino da escada perdeu os pudores. Saiu do seu cantinho, subiu a escada e chegou perto de mim. Depois, abriu um sorriso e me pediu para escrever comigo.

Perdoem pelas poucas linhas, pela fragilidade que me ocorre, pela falta de algum farelo de pão, que ofereço com algumas palavras. Eu talvez esteja confessando minha fome, com a ajuda do tal menino.

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Derrotas que doem

Não sei como foi o 7 de Setembro de vocês, amados leitores. Não sei se assistiram à parada militar, se foram para o famoso Grito dos Excluídos. Eu, no meu caso particular, estive envolvido com o famoso Torneio de 7 de Setembro dos Caducos Futebol Clube, aqui do Poço da Panela.

Walter conseguiu duas taças e fez a doação de um garrafão de água mineral, que bebemos bem. Hércules topou ser juiz por R$ 30,00. Este ano, por falta de organização, não tivemos medalhas.

De sorte que no dia 7 de Setembro, às 7h45, este que vos fala estava no campo de Seu Abdias, marcando a grande área, o meio campo e o local do pênalty. Camorim marcava com a cal, eu só acompanhava, diga-se de passagem, segurando a corda. A cal quem comprou foi Batman, nosso lateral direito. A marca do pênalty foi motivo de controvérsias, porque contaram sete passos, e eram nove, fato muito bem reparado por Hércules, o juiz. Por sinal, criei um apelido originalíssimo para nosso árbitro: "Hércules, um juiz forte".

Às 8h52 tivemos o sorteio dos times. Fiquei no time Real do Poço 2, indicando que estou no segundo escrete. Pelada da Cachaça pegou, no primeiro jogo, o escrete do Cansadinho, e meteu dois a zero fácil, ainda no primeiro tempo. Pode parecer redundante, mas Cansadinho estava mesmo sem fôlego nenhum. No segundo jogo, o Real do Poço 1 ganhou do time de Santana por W X O. Para quem não entende patavinas de futebol, WO é quando o time adversário não entra em campo.

Nosso time, o quadro B do Poço, Real do Poço 2, enfrentou o esquadrão da Pelada dos Amigos. Amigos, pensem num time arrumado, que tocava a bola bem e tinha fôlego! Todos de Casa Amarela, por sinal. Começamos o jogo com Bode (no gol), Lando (lateral esquerda, avançando), Samarone (zagueiro central), Batman (lateral direita, avançando), Zé Carlos (meia) e Ciço Boi (sem posição compreensível). O grande drama do nosso escrete foi justamente Ciço Boi, ou Fera, para os mais íntimos. O infeliz não acertou uma jogada e prejudicou muito nosso raçudo time.

Seguramos um 0 x 0 dramático até o final do jogo. Fiz minha parte bem, marcando colado um magro do time adversário que corria feito um louco. Dei duas entradas mais intensas, mas só fui advertido por Hércules. Foi, modestamente, minha melhor partida do ano.

Ganhamos nos pênaltis: 3 x0 2 e avançamos para a semifinal.

No jogo seguinte, pegamos o time do Resto do Mundo. Foi uma partida dramática, dura, nosso time com limitações na saída de bola, eu mandando para o mato qualquer possibilidade de gol adversário. Levei uma entrada na canela que não foi fácil e está aqui, ardendo. Zé Carlos deu a única vacilada do jogo, num escanteio, e Cascata fez o gol de cabeça. Perdemos de 1 x 0 numa partida dramática. Até o último minuto, tivemos chance do empate. Mas vamos e convenhamos: ganhar do Resto do Mundo não é tarefa assim tão fácil.

Na final, o time principal do Poço1 ganhou do Resto do Mundo por 2 x0. Então, houve a cerimônia da entrega das taças e bebemos um bocado.

Depois de várias cervejas, passei em Seu Vital, olhei o dominó, mas estava chateado com o gol de Cascata. Só pensava no vacilo de Zé Carlos, que deixou o adversário sozinho. Fui descansar, meio abatido, desencontrado da vida. Não fosse aquele gol, teríamos chegado aos pênaltis, e a participação na final era certa.

Fui dormir, querendo esquecer de tudo. E eu tinha dito ao Zé Carlos que colaria com Cascata na hora do escanteio. Ele respondeu:

"Deixa comigo".

Então marquei Elias, e deu no que deu.

Vai a confissão: ficar de fora da final da pelada dos Caducos, em pleno 7 de Setembro, dói um bocado.

Vou aqui, tentando me recuperar.

Para Gerrá e Alessandra, que casam neste sábado, em Bezerros.

segunda-feira, 4 de setembro de 2006

Somente as miudezas da vida são importantes

Calma, meus queridos, que a frase não é minha, muito embora tenha já pronunciado algo assim, nas minhas pequenas crônicas bloguianas. O autor é um camarada alemão, chamado Joseph Roth, que não se considerava um redator, mas um poeta. O livro, novinho em folha, se chama "Berlim", e comprei por indicação de uma amiga de viagem, a senhora Priscila, que conheci em um albergue em Salvador, quando eu andava pesquisando para escrever um livro chamado Clamor.

Pois bem. Onde estávamos? Ah, sobre as miudezas importantes da vida. E me flagrei outro dia pensando em algo muito simples: como seria o dia de algumas pessoas.

Explico. Sou professor, dou aulas duas vezes por semana, na parte da manhã. A tarefa é simples: despertar nos jovens o prazer da leitura e da escrita, coisa dificílima, num país que obriga a moçada a ler Dom Casmurro antes de completar 17 anos, quando a paixão pela leitura deve começar por coisas mais simples e divertidas. Não que eu ache o senhor Machado de Assis impertinente, mas eles, os jovens, precisariam de mais traquejo com leitura, antes de pegar uma pauleira pela frente. O salário, o meu, não é nada espetacular, vou vivendo.

Aqui-acolá, faço um bico para ganhar uma moralzinha e comprar aqueles livros de capa dura. Quando recebo o dinheiro desses extras, é comum eu me aventurar a andar de táxi, dando menos dinheiro ao meu amigo Lucimério, dono da Transcol. Também dou algumas palestras em semanas de jornalismo, entrevistas para programas produzidos por alunos, na Universidade Católica, e sou incluído aleatoriamente nas programações de seminários e debates, coisas dos meus amigos que trabalham com ONGs. Bem, isso tudo é grátis, é um pouco do que chamam de participação social. A última participação foi uma mini-oficina para jovens do Coque, a convite da dona Gorete, da ONG Auçuba. Foi uma tarde inteirinha.

Olhando bem, minha rotina de trabalho não é tão pesada. Tenho tempo para ler, escrever, atualizar o blog e perambular. A vadiagem é uma das maiores virtudes do ser humano, e lamento muito quando tenho que trabalhar pesado.

É aqui que chego ao ponto. Outro dia, dentro da Transcol, lendo o meu velho em bom Fernando Pessoa, comecei a reparar nas pessoas, e no dia que elas teriam pela frente. Como estávamos às sete e pouco da manhã, me peguei imaginando como seria o dia delas. A única coisa que me ocorreu foi a seguinte: eu sou feliz e não sei.

O ônibus parou defronte a uma banca do jogo do bicho, a famosa Sonho Real. Estava uma mulher, uma morena bonita, debaixo de um guarda-chuva, com seu filho no colo. O menino chorava abertamente, escancaradamente. Ela dava a chupeta, o menino recusava, e pensei na gravidade do problema. Quando uma criança recusa uma chupeta, amigos, algo vai muito mal.
Pelos meus cálculos, era ficaria ali até as 18h. Com muita sorte, um parente buscaria a criança, ali pelo meio dia. Fiquei assombrado com isso, essa miudeza de ficar o dia inteiro sentada, passando jogo do bicho, e mais o filho chorando. Viver, como diz o velho Guimarães Rosa, é muito perigoso. Eu diria que viver, para muita gente, é muito sofrido.

Como estamos em campanha eleitoral, temos no Recife a figura clássica do "segurador de bandeira". O troço é o seguinte: o sujeito passa o dia inteiro segurando uma bandeira de um cara que ele nem conhece, em algum logradouro público, em troca de uma grana, que varia de candidato para candidato. Outro dia não resisti e perguntei:

"Tas faturando quanto por dia?"

"Dez reais".

Meu Deus, minha Nossa Senhora, meu São Francisco. Dez reais por um dia inteiro de pé, no calor. Pior que isso: o trabalho dele não gera nada. Não é como um agricultor, que se rala no sol, mas vê a produção, em algum momento. Nada vezes nada. Ele apenas segura uma bandeira. Pior que isso é se ele não tiver nenhuma bandeira para segurar, uma bandeira que seja sua.

Na Conde da Boa Vista, outras miudezas da vida. O vendedor-de-óculos-escuros. Quantos óculos ele vai ter que vender, para levantar dez reais? O entregador-de-panfletos no-sinal. O vendedor de sapatos, o dia inteiro em pé, caçando clientes. O camarada que vende pipocas, entre os ônibus, a R$ 0,50. Com quantas mil pipocas ele fará o salário mínimo?

O vendedor do Pernambuco da Sorte. Para quem vive longe do Recife, o Pernambuco da Sorte é uma loteria misturada com bingo, que a turma acompanha pela TV, aos sábados, creio. É um sucesso. Outro dia, Rabaçan, aqui do Poço, ganhou R$ 60 mil e todo mundo ficou sabendo. Ele está gastando direitinho, dizem. Eu, com essa grana, dava três voltas ao mundo, com minha mochilinha nas costas.

Conversei com um desses milhares de vendedores outro dia. Ele é tricolor. Estava sentado, ao lado de uma banquinha, aqui na 17 de Agosto. Era um sábado, um sol rachando tudo, derretendo até mármore. Ele, na parada de ônibus, com a camisa do Pernambuco, comentou alguma coisa sobre a recente derrota do Santa Cruz, algo cada vez mais freqüente. Fiquei sabendo que ele iria ficar até às 18h ali, sentado. Num dia bom, informou meu informante, ele venderia R$ 25,00 ou 30,00. Não ousei perguntar, mas a comissão deve ser, no máximo, de 20%. Tem uma turma no Brasil que ganha R$ 10,00 por dia e consegue viver.

O dono do fiteiro no bairro de São José; o vendedor de vale-transporte no Cais de Santa Rita; o lavador de carros, na praça de Parnamirim; essa multidão, essa legião, essa enormidade de gente. Cada dia, uma batalha pela vida, uma luta contra as horas, as intermináveis horas, quando estamos fazendo algo que não gostamos.

Eu iria falar sobre o livro, mas me distraí e acabei falando de outra coisa. Desculpem, mas ando muito distraído.

Vou ali, dar um abraço no professor Davi, que hoje completa 56 anos. No elenco, Naná, Walter e Zé Luís também disse que vai. Joguei no bicho o ano que Davi nasceu. Se der, amigos, vou ficar na medida. Torçam por mim.