quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Descobrindo o Rio

Enfim, comecei a descobrir o Rio de Janeiro. Começo a circular impunemente, aqui por Botafogo - mas somente depois de escrever meus dois capítulos obrigatórios, diários, minha missão pós-Cuba. Descubro os meandros, e vou fazendo o meu pequeno presépio, que é o cotidiano.

Encontrei a banca de Jornal, um senhor muito sério, que mal dá bom-dia, mas me entrega o Jornal do Brasil como se eu fosse cliente há anos. Até amanhã, descobrirei o nome e time de coração dele, então, ficaremos amigos.

Como o cafezinho por aqui é uma fortuna (0,80 centavos), vou até o supermercado Prezunique, onde a moça do café faz o melhor café da região, encorpado, forte, e com pouco açucar. Compro uma coisinha aqui, outr ali, e passo no caixa. Fico esperando a vez, para conseguir pagar na dona Aurora, uma simpática senhora que dá bom dia com um sorriso, e vai trabalhar todo o Carnaval.

A última parada é no mate com leite, porque descobri um preço melhor que a da Voluntários da Pátria (2,60).

Há uma legião de ex-alunos morando aqui. Estou na casa de duas, mas já encontrei Zeca, Daniel, e no supermercado, a Flávia Suzuê, salvo engano, porque vivo me enrolando com nomes. Ex-aluno é a coisa no mundo que mais se multiplica e espalha, e é bom vê-los pelo mundo, ocupando espaços e vivendo novas experiências.

Fora isso, descobri um ferro-velho aqui na região de Botafogo, e encontrei uma máquina de datilografia Lettera, deliciosa, por R$ 30,00. Pechinchei, pechinchei, ficou por R$ 15,00. Azulzinha perfeita, ontem comprei fita. Breve, escreverei minhas crônicas na Lettera.

Há dois bares bem perto de casa, sem perigo de o sujeito se perder, em casos extremos. Um se chama Alf (achei o nome péssimo), mas tem um garçom raçudo e cuidadoso, o Saddam. Na outra esquina, um bar que não localizei o nome, mas com uma mistura de garçons indolentes com simpáticos, isso me confunde muito. Nos dois casos, os cearenses dominaram tudo. São donos, empregados, cozinheiros, se bobear, até os clientes. A cachaça aqui é uma fortuna, uma média de 2,00 a dose mais fuleira. O Rio é um péssimo lugar para meus amigos cachaceiros do Recife. Iriam falir.

Fui ao Maracanã, claro, ver uma vitória do Fluminense contra o escrete do Cardoso Moreira. Choveu, tomei banho de chuva. Adoro banho de chuva em estádio. Lembrei do meu pai, Fluminense desde a infância, que me batizou Samarone por causa de um craque do time de 1969. Minha rebeldia e paixão me fez encontra o Santa Cruz, e o céu se misturou com a terra, no vermelho, branco e preto.

Vou por aqui. Vez por outro, encontro com o amigo Edmundo, da velha guarda. Hoje mesmo, estou na casa dele, batucando esta croniqueta de véspera de Carnaval.

Já sei andar de metrô, começo a ver o sistema de ônibus, e outro dia terminei a noite na quadra da Vila Izabel, num show da Martnália. Encontrei um sebo perto do Largo do Machado que quase me acaba o orçamento. O Clamor estava lá por 15,00.

Nos demais, conheci o Grupillo, o primeiro poeta-filósofo do Rio. Botafoguense de coração, fizemos amizade em cinco minutos, faltam somente 85, para completar a primeira partida. Autor de frases célebres que compartilharei na próxima crônica, Grupillo tem uma coisa a mais no caráter - morou no Recife dez anos.

A Mangueira vai homenagear o frevo em seu desfile. Pensei em assistir, mas desisti na mesma hora. No Carnaval, o sujeito vai com tudo, ou é melhor ficar lendo, vendo filme ou escrevendo, como é meu caso.

Vou por aqui, devagar e sempre. Aceito sugestões de botecos e sebos.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Para quem vai perder o Carnaval de Pernambuco

Foto: Passarinho/Prefeitura de Olinda

Amigo, se você está longe do Carnaval de Pernambuco, e não tem como resolver este drama existencial, há duas opções.

A primeira: Você vai pensar muito, lembrando da manhã de sol do Galo da Madrugada, as farras memoráveis do Acho é Pouco, as milhares de troças, subindo e descendo aquelas ladeiras intermináveis de Olinda, e vai sofrer em excesso. Se você está longe do Recife, e começar a passar na cabeça o filminho do Carnaval do ano passado, ou retrasado, ou daquele Carnaval inesquecível de 2000, quando você conheceu alguma colombina com restos de maquiagem e um sorriso devastador, vai sofrer mais ainda. Cuidado com essa mania de lembrar, porque você vai sofrer.

Outra opção, é fingir que não está acontecendo nada, que você não vai sentir uma pontada no coração, uma fisgada no sentimento, uma luxação na saudade, quando chegar a sexta-feira, e o Lili Nem Sempre Toca Flauta sair por algum descaminho, naquela multidão de sôfregos, enlouquecidos pela festa mais aguardada do ano.

Não faça isso, amigo, esse fingimento provoca mais dor ainda.

Também não venha com aquela conversa de que "Carnaval tem todo ano", porque todo mundo sabe disso, mas o pernambucano tem uma febre a mais, um desespero a mais, uma perturbação na alma. Sabe-se muito bem que ao toque de uma reles orquestra de frevo, a mais raquítica e mal paga, com músicos suicidas que tocam saxofone e trompetes fumando cigarros envenenados, doentes levantam do coma na Restauração e descem pinotando. Retornam na quarta-feira de cinzas, depois do Bacalhau do Batata, como se nada tivesse acontecido, e morrem docemente, felizes. Morrem sorrindo.

Essa desculpa singela e falsa do "Carnaval tem todo ano", é uma ilusão. Não seja patético.

Se você está longe e vai tentar o fenômeno da compensação, cuidado, amigo, o erro pode ser fatal. Você não vai encontrar os Batutas de São José em nenhuma parte do imenso globo terrestre, e nenhum hino vai incendiar seu coração numa nuvem de tempestades e raios, como o hino de Ceroulas. Desconheço povo que prometa, todo ano, ir para a lua, para ver se lá tem Carnaval. O Pernambucano faz isso todo ano, e não se cansa.

Resta a humildade de reconhecer que este ano, não vai dar. Calce as sandálias da humildade, nada de pensar muito ou pensar nada. O coração vai doer, você sabe disso.

Aqui vai o único conselho. Onde você estiver, não procure os pernambucanos, amantes do Carnaval, durante esses dias. O pernambucano, longe de seu estado, em pleno Carnaval, é uma pessoa perigosa e extremada, com as emoções à flor da pele. Pode se embebedar com um copo de cerveja, e chorar se alguém falar, ao acaso, o nome de Capiba. Até a quarta-feira de cinzas, deixe-os quietos. Estarão todos inconsoláveis, saudosos, falando de pastoras, Olinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelom, cadê seus blocos famosos. Todos estarão gemendo de uma saudade impossível de conter, enumerar.

Chama-se Antônio Maria, o poeta que perguntou o fundamental:

"De que adianta se o Recife está longe, a saudade é tão grande, que eu até me embaraço?"

Acho melhor parar por aqui. Estou mexendo com emoções fortes, e será meu primeiro Carnaval fora da minha pátria, nos últimos sete anos.

Sei que ainda faltam alguns dias, mas sei que naquela terra amada, todos já respiram, comem, dormem, sonham, projetam a grande festa.

A todos, um lindo Carnaval.

Foto: Passarinho/Prefeitura de Olinda

domingo, 27 de janeiro de 2008

Gentilezas e desaforos

Esse negócio de não levar desaforo pra casa, ainda vai arruinar a humanidade. Isso tem me ocorrido no Rio de Janeiro, onde estou passando uma temporada. Do nada, há uma discussão, besteiras podem render respostas mal-educadas, e nunca vi tanta gente que trabalha atendendo, seja em boteco, farmácia, supermercado, exalar irritação.

Hoje mesmo, fui pagar um picolé da Maguary Kibom, dei vinte reais, a caixa me olhou como se eu estivesse pagando em peso cubano, moeda nacional, perguntou com uma cara de desdém se eu não tinha trocado, e tive a sensação de que era o que ela precisava, para ganhar a manhã: fazer uma cara irritada para alguém.

A mulher que estava guardando seus pães, numa sacola que levou de casa, ficou irritada com a moça do caixa, disse que era obrigação da padaria ter troco, então o pateta aqui ficou impressionado. Duas mulheres, numa bucólica manhã de domingo, irritadas por causa de uma besteira, que é um troco, de um singelo picolé.

Como minha única obrigação do domingo era mesmo comprar o picolé, o jornal, depois escrever meu livrinho sobre Cuba e encontrar uns amigos num boteco em Laranjeiras, fiquei olhando e cofiando a barba. Minha única preocupação era que o troco não demorasse tanto, porque o picolé iria descongelar, e as duas poderiam acabar numa delegacia, após a troca de sopapos.

Como gosto de remar contra a maré, estou fazendo o seguinte - tenho sido a criatura mais gentil desta cidade. Vou pagar algo no supermercado, dou uma boa tarde no capricho, pergunto se a pessoa está tudo bem, vejo o nome dela no crachá, e a chamo pelo nome. O resultado é simples - de tão acostumadas que estão com essas durezas da vida, de tratar mal e serem maltratadas, as criaturas deixam a casca cair, e ficam mais humanas de novo.

Ontem, no supermercado, uma mulher furou a fila sem perceber, foi perguntar algo e aproveitou para pedir uma mortadelazinha, e foi o suficiente para que a mulher da frente começasse a rosnar feio. Daqui a pouco, a vendedora entrou na história, então, já eram três pessoas irritadas, por causa de um mal entendido simples, que ser resolveria com a bucólica frase "querida, você não viu a fila?" . Peguei meu carrinho e fui para o setor de vinhos, procurar algo bom e barato, coisa que nunca acontece, no caso dos vinhos. Quando voltei, Rosnante ainda estava falando algo, e pensei - essa mulher acaba de ganhar o dia.

Como meu amigo Gustavo adora coisas como "exercícios de estética", estou fazendo este exercício estético diário. Vou sempre com a máxima gentileza, do primeiro ao último contato. Estou mesmo é exagerando, pra ver no que dá. A mulher que faz o meu mate batido com leite, aqui perto, na Voluntários da Pátria, era de uma dureza só, com a cara mais fechada que Seu Vital, quando está invocado. Outro dia, pedi para ela fazer outro mate, porque o que ela tinha feito estava delicioso. A mulher abriu um sorriso que já nem lembrava que tinha. Quando chego lá, prepara meu mate no capricho, abre um sorriso, e me pergunta se ficou bom. É a Sônia, mora em Bangu.

De vez em quando, chegou em casa com meu desaforozinho na algibeira. Alguém precisava desbafar as durezas da vida, me escolheu para não dar uma informação ou responder secamente uma pergunta simples, sobre um lugar para comprar um garrafão de água.

O engraçado é que um poeta famoso do Rio de Janeiro se chamava justamente Gentileza. Tem várias coisas dele escritas nas ruas, e até ímã de geladeira com as frases dele, são vendidos em livrarias.

Falta só as pessoas botarem o Gentileza delas pra fora.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Meu encontro com Rubem Braga

Há coisa de dois dias, num boteco do Rio de Janeiro, encontrei o Rubem Braga. Eu estava sentado, debruçado em meus papéis, tomando uma cerveja densa, quando levantei a cabeça, e esbarrei nele, que estava em uma mesa afastada.

O Rubem era aquele ainda moço, com aquela cara tímida e um pouco erma, de quando ele foi para a II Guerra, cobrir a luta dos pracinhas brasileiros na Itália. Parecia distante e melancólico, mas não era tristeza. Talvez fosse o dia, que não o desceu bem. Usava aquele bigode ainda talhado da juventude, e senti um frio na espinha, por saber que ele estava ali, bem perto. O velho Rubem, o velho Braga, que sempre me encantou por sua simplicidade, especialmente quando não tinha assunto algum, especialmente quando falava de passarinhos e banalidades.

Pensei em me levantar e cumprimentá-lo, mas a timidez não me permitiu. Olhei-o algumas vezes, na esperança de um olhar convidativo, mas nada. Ele fumava absorvendo o cigarro com prazer, e tomava algumas notas.

Voltei a escrever, mas já não sabia o assunto, bebi outra cerveja, e não percebi quando ele foi embora, em silêncio. O Rubem é daqueles homens que sequer fazem barulho, para levantar da cadeira.

À noite, em uma livraria, vi a biografia que acabou de sair, com sua foto na capa. Diz o autor que ele morreu há algum tempo, mas não acreditei. O Rubem está por ai, nesses passarinhos que buscam uma migalha de pão, no vendedor de girassóis que encontrei numa feira do Rio, sábado passado. O Rubem está na saudade, na carta que escreveu para o Vinicius, saudando a chegada de algum verão que passou, e que volta sempre. O velho Braga está na alegria da Angélica, que veio fazer a faxina aqui onde estou, e falou com os olhos brilhando da sua escola, a Beija Flor. O Rubem está em algum boteco de Belford Roxo, onde viveu e morreu meu avô, há tantos anos.

Aqui vai uma confissão aos meus leitores: Há dois dias, encontrei o Rubem Braga, num pequeno boteco do Rio de Janeiro. Eu estava sentado, debruçado em meus papéis, tomando uma cerveja densa, quando levantei a cabeça, e esbarrei nele, que estava em uma mesa afastada.

O resto, vocês já sabem.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

No Rio, com os passarinhos

Estou no Rio de Janeiro, escrevendo um livro sobre o cotidiano do povo cubano. A rotina é a mesma, desde que cheguei. Um caderno grande, canetas, e meus blocos de anotações da viagem. Todos os dias, durante algumas horas, escrevo em um boteco aqui perto, até cansar a mão. Há tempos não escrevo tanto, quase numa vertigem. As histórias que vivi durante um mês em Cuba, estão fresquinhas em minha memória, em meu coração. Estou numa espécie de retiro. Só faço escrever, revisar, passar para o computador. Já tenho 12 capítulos prontos.

Então aconteceu uma surpresa que chega a ser uma inundação. Meses atrás, uma ex-aluna e agora amiga, Andreza Maurício, me mandou um email dizendo que estava reunindo uns atores para adaptar o meu livro “Zé” (1998), para vídeo. Era apenas uma idéia, a de fazer algo criativo, para depois tentar algum apoio, essas coisas. Eu nem tinha idéia de como as coisas estavam caminhando.

Como estou hospedado na casa dela, em Botafogo, comecei a conhecer o projeto nos detalhes, o andamento do roteiro, primeiras filmagens. Ontem, foi acertado um encontro com todo o elenco, em um boteco aqui perto.

Aos poucos, começaram a chegar os atores. Andreza (vai interpretar a Madalena Prata) e Joana Aquino (diretora) foram comigo. Depois, Camila Moreira (Socorro, ou Grauninha), uma moça tão tímida que só pode ser mesmo uma grande atriz. Luís Otávio (Bala Doce), Saulo (Bahia), Calixto Neves (Quincas). Aos poucos, o elenco foi formando uma enorme mesa, todos felizes por conhecer o autor do livro que andam lendo e relendo, para montar personagens, ensaiar, enfim.

Finalmente, o Bruno Ferrari (Zé), Mariana Ribeiro (Fernanda), Adeildo Duarte (um coveiro, participação especial), e Ricardo Barrão (Fleury). Conversávamos em pequenos grupos, em meio à empolgação geral. Nunca vi tanta gente feliz por estar num trabalho ainda sem patrocínio, fazendo locações na base da raça, estudando sobre os personagens, fazendo grupo de estudo. Tudo isso fruto da vontade de levar uma idéia adiante, de transformá-la em algo concreto, em frutos.

Foi uma noite imensamente linda. Lá pelas tantas, chegou uma fotocópia do “Zé”, encadernada. Era o livro da Camila Moreira, que interpretará a Grauninha. Alguém brincou comigo, dizendo que eu era um dos poucos autores que assinava dedicatórias para um livro xerocado. Pois eu fico é feliz, porque livro no Brasil é muito caro, e o “Zé” esgotou faz tempo.

Longas conversas, explicações sobre como escrevi o livro, os personagens. Cada um tirava suas dúvidas, em meio às inevitáveis cervejas e petiscos, que ninguém é de ferro.

Lembrei que “Zé” foi lançado em 1998, teve imensos problemas de distribuição, e a sorte foi que consegui os últimos 40 exemplares. Em 2004, num aniversário da Andreza, dei um livro de presente, embrulhado delicadamente em um jornal, coisa que eu nem lembrava.

Quatro anos depois, estamos em um boteco do Rio, em meio a uma conspiração de jovens atores, para fazer uma adaptação para vídeo. Em outubro, querem botar “Zé” no palco.

Pelo brilho nos olhos de todos, sei que coisas lindas estão a caminho. Há, nessa turma,uma mistura de bondade e garra, um apego íntimo com cada personagem, como se fosse o papel mais importante da vida, o que cria uma força oculta na alma, uma energia vibrante e sutil. Sei poucas coisas da vida, mas tenho sempre uma intuição aguçada, para saber quando algo muito bonito está nascendo.

A Andreza diz que não tenho noção das coisas. Sei que sou um eterno distraído, que demoro a perceber o que acontece ao meu redor, mas às vezes vejo a beleza pulando de galho em galho, feito passarinho.

Diria que ontem, num boteco do Rio, eu estava acompanhado de uma legião de passarinhos.


Para Andreza, que pegou o “Zé” pelas mãos.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Série sobre Cuba

Caros leitores,

Por vários motivos, suspendo provisoriamente minha série de depoimentos e impressões sobre Cuba.

Leiam uma reportagem de oito páginas da revista Época, desta semana, sobre Cuba.

Melhor: leiam o contundente blog de Yoani Sanchez, cubana de 32 anos. Ela fala com mais prioridade sobre as coisas que eu iria postar aqui (www.desdecuba.com/generaciony)

Voltarei às minhas crônicas costumeiras sobre outras coisas da vida, enquanto encho cadernos de histórias sobre Cuba, meu próximo livro.

Samarone Lima, agora falando do Rio de Janeiro.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Relatos cubanos, capitulo 3 - Um taxista louco pelo futebol brasileiro, e que detesta os italianos

Aqui vai uma confissão: tenho uma dificuldade psíquica e existencial com os taxistas, em qualquer parte do mundo. No Recife, sei quando o camarada desvia de cada viela, vejo a malandragem em cada esquina, e sou capaz de matar um taxista com uma simples pergunta:

“Ôxe, e por que tu não vai pela Avenida Norte?”.

Nesta hora, o cara fica sem graça de me enrolar, e vai direto ao lugar que preciso chegar.

Quando estou fora, pergunto sempre ao taxista quanto ele cobra do lugar que estou até tal bairro, ele dá o preço, digo que só tenho a metade, e geralmente é o preço justo. Aí, entro na viagem tranqüilo, sem a tortura de achar que cada esquina estão metendo a mão no meu bolso.

Peguei o táxi no aeroporto com o senhor André, já sabendo que a corrida custaria 20 fulas. Não sei em qual esquina da viagem o sujeito descobriu que eu era do Brasil, o suficiente para que ele abrisse o verbo, elogiando nossos patrícios e esculhambando outras pátrias.

“Mas os italianos não, eles são insuportáveis, arrogantes, criam confusão por tudo. Detesto os italianos”.

Começou a fumar e me ofereceu um cigarro “Criollos”, que aceitei. Quando estou viajando para outro país, geralmente fumo, como uma forma boa de fazer amizades e escutar desabafos. Às vezes, fumar é bom, mas só às vezes.

Dei uma baforada e perguntei ingenuamente se seu André conhecia o Brasil, o suficiente para ele dizer que um cubano comum jamais vai conhecer país algum, até que as coisas mudem. A palavra “Brasil”, foi a porteira aberta para ele começar a falar da seleção canarinha. Falou com rara habilidade de Zico, Sócrates, Cerezo (seleção de 82), Pelé, Tostão e Félix (seleção de 70), e do Ronaldo, sem especificar qual dos dois. Perguntei se ele conhecia o Santa Cruz, meu time de coração em Pernambuco, ele disse que não, mas que tinha uma cidade em Cuba chamada Santa Cruz, e que me pareceu um bom presságio.

Expliquei as glórias e dores do meu clube, que acaba de ser rebaixado para a terceira divisão, ele deu uma baforada forte e me disse algo profundo, um ânimo para o coração:

“Essas grandes desgraças fazem parte dos grandes clubes”.

Dei uma baforada boa também e pensei que estava no lugar certo, na hora certa, e com o taxista certo.

Lembrei do meu amigo Inácio França, mais tricolor que a soma de todas as torcidas, que adoraria estar em Cuba. Lembrei que na minha mochila, estava com três camisas do “Mais Querido”. Por sorte, da mochila rasgada, ninguém as levou.

Cheguei em Vedado para falar com Bárbara, meu único contato em Cuba.

Relatos cubanos, capítulo 2 - A mochila perdida e o primeiro milagre em Havana



Vou logo avisando que sou péssimo com fotos em geral

Um nervoso e preocupado funcionário da Copa Airlines, com cara de camundongo e andar apressadíssimo, anotou meus dados e prometeu encontrar minha mochila.

Sem saber, foi o primeiro dos muitos golpes de sorte que tive em Cuba. Neste caso, quase um milagre. Camundongo avisou à mulher da aduana que iria comigo até o escritório da Copa, registrar o desaparecimento de minha mochila. Devo ter sido o único estrangeiro, este ano, que atravessou aquele mar de policiais, sem que sua bagagem fosse revistada. Quando cheguei à Copa, fui dar umas cutucadas em minha pequena mochila, e percebi que tinha cometido uma grande imprudência – fiz toda a viagem com um baita canivete, amoladíssimo, dentro da minha bolsa. Logo eu, com esta vasta cabeleira e a imensa barba...

“Fique aqui, que o buscarei, logo que aparecer sua bolsa”, prometeu Camundongo.

Esse cara pensa que sou besta, foi o que pensei. Os caras já pegaram tudo e fizeram o racha, isso sim.

Exatos 29 minutos depois, Camundongo chega agitado, dizendo que minha mochila foi encontrada, mas como estava muito pesada, acabou rasgando. Já levaram a metade, foi o que pensei.

Entrei de novo na área de desembarque, e deixei imprudentemente minhas outras duas mochilas do lado de fora, em um carrinho, para a turma da aduana não me perturbar. Foi também uma das muitas loucuras que cometi em Cuba, esse negócio de deixar duas mochilas de bobeira em um carrinho, no saguão do aeroporto, sem ninguém tomando conta.

Pois aconteceu o primeiro milagre. A mochila de fato estava rasgada, mas não faltava um sabonete sequer. Foi mesmo o peso.

“Senhor, confira tudo, mas não foi culpa nossa, a sua mochila estava tão pesada, que não agüentou”, explicou Camundongo, com sua indefectível prancheta. “Está tudo certo, senhor Samarone”.

Nessa hora, lembrei de César Maia, meu amigo recifense, que adora dizer, nas mais diversas situações, mesmo que tenha acabado de passar um furacão pelo Recife:

“Está tudo certo, Samarone, tudo certo”.

Camundongo/Cézar Maia, me levou de novo à Copa e me deu dois imensos sacos de plástico, onde coloquei tudo. Agradeci dando uma caneta Bic para ele. Agora só tinha 199 para dar de agrado ao povo, e depois vi que eles nem têm essa tara toda pela Bic.

Olhei para um lado, para o outro. Tinha acabado de passar por três aeroportos, enfrentado muitas horas de vôo, uma tensão imensa, e estava simplesmente em Havana, num país socialista. Se estivesse viajando com um amigo, daria um abraço, para comemorar, celebrar, festejar. Mas estava só, me restava fazer a troca do dinheiro, para comprar uma cerveja, depois pagar o táxi até Vedado, para encontrar meu contato cubano.

Começou minha luta para entender a economia cubana, que seria explicada somente no segundo dia de viagem: 50 euros se transformaram em 64 “pesos convertibles”, conhecido como CUC, ou popularmente como “fula” (esse negócio do dinheiro, em Cuba, merece um capítulo à parte, tenham paciência, é muita informação.)

Mamei uma “Bucannero”, cerveja fortíssima, sentado no chão do aeroporto, olhando minhas bagagens, que pareciam mais as compras da Cobal.

Procurei um táxi para me levar até meu contato, que depois me levaria ao centro de Havana. Queriam me cobrar 25,00 fula, mas como aprendi com minha mãe a pechinchar até em loja de R$ 1,99, pedi desconto, arenguei, disse que era estudante, que minha bolsa tinha se rasgado, fiz um drama com o cara. Baixaram para 20 mangos.

O taxista rendeu a primeira das dezenas de histórias, mas conto amanhã.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A revolução amarga - Capitulo I - 200 canetas Bic, arroz, feijão e dezenas de sabonetes




Em 2005, estava tudo certo para uma longa viagem a Cuba, quando um episódio doméstico mudou o rumo dos acontecimentos. Meu irmão, dono de um bar no Recife, entrou num processo de falência, e tive que assumir o negócio, para evitar o pior, que seriam dezenas de processos de ex-funcionários na Justiça. O dinheiro que seria para a realização de um sonho, foi usado para evitar um pesadelo. Cuba ficou para depois.

Mas tinha uma obsessão quase doentia de conhecer a ilha. Mais que isso: conhecer antes da morte de Fidel Castro. Acreditava que a revolução iria virar suco, sem o comandante.
Os ventos sopraram a favor a partir da metade de 2007, quando arranjei dois trabalhos e comecei a juntar dinheiro. Cada centavo tinha um destino certo, que era a cidade de Havana. No meu imaginário, tomaria muito rum, fumaria deliciosos charutos, conheceria de perto os avanços da saúde e educação de Cuba, o povo, e mandaria muitas postagens em meu blog, na Internet.

Desta vez, surgiu outro imprevisto. Graças à minha vocação para a perda de documentos de todas as espécies, perdi uma pasta com meu passaporte, e vários outros documentos necessários para tentar a segunda via. Foi num domingo, já perto do final do ano, que encontrei aquele negócio verdinho, com o nome “Passaporte”. Súbito, senti o cheiro da ilha.

Passaporte na mão, dinheiro no banco para a passagem, chegou a hora da compra da passagem, e o temido momento de solicitar o visto para entrar em Cuba. Cacete, o primeiro país socialista que vou conhecer! Na lembrança, as sobras do leste europeu, que conheci em 1995, uma soma de desesperos e indefinições, com a chegada súbita do capitalismo barra-pesada.

Um velho revolucionário brasileiro que viveu em Cuba entre 1969 e 1970, me deu o caminho das pedras. Uma agência de turismo em São Paulo, especializada em viagens para Cuba.

Após muitas ligações e email, esbarrei em uma dificuldade de última hora – a quantidade de brasileiros que estava viajando para Cuba, no final do ano, para passar o reveillon. A muito custo, consegui uma passagem para dia 19 de dezembro. Preço: U$ 1.500,00.

Começou então a tormenta existencial de alguém que nunca se definiu como turista, e que vai para um país querendo interagir com o povo: o que levar para Cuba?

Nas minhas viagens pelo mundo, levo sempre uma mochila surrada, comprada na Argentina, com as infelizes cores do Boca Juniors. Viajo sempre com o mínimo possível, nunca vou a museus, detesto city-tour e acho uma agressão esse negócio de fotografar o povo sem pedir licença. Fora isso, caminho mais que uma mula.

Consultei duas amigas, e tudo virou um inferno. Era para levar tudo. Uma delas me disse que faltava até caneta, os “bolígrafos”, e como fico desesperado sem uma caneta por perto, levei na bagagem 10 caixas de canetas Bic.

A primeira parte da viagem, do Recife a São Paulo, foi tranqüila, doce, comovente. Em território nacional, ninguém fica nervoso ao passar pela Polícia Federal, salvo os traficantes. Embarquei no vôo 3501, fiquei no assento 12-D, no terminal 10.

Cheguei a São Paulo um dia antes da viagem para Cuba, para evitar contratempos e nervosismos. Com a ajuda de uma ex-namorada, fui às compras. Feijão, arroz, carne embalada a vácuo, sabonetes, shampoos, tudo o que eu julgava importante. Depois de passar fome na Casa do Estudante da UFPE, seria triste repetir a dose em um país socialista.

Então começou o primeiro dos muitos nervosismos da viagem. A moça da agência de viagem sugeriu que eu ficasse hospedado por três dias no “Vedado Hotel”, só para constar na imigração cubana. Expliquei que iria ficar na casa de amigos cubanos, mas isso é proibido. Se os caras forem pegos com um estrangeiro em casa, estão fodidos.

Para ficar no Hotel Vedado, eu teria que depositar R$ 390,00. Achei uma cifra astronômica. Meu pão-durismo falou mais forte. Perguntei se tinha algum problema chegar em Cuba sem um hotel definido.

“Se tiver algum problema, você dá um endereço de um hotel”.

Foi o barato que saiu caro. Economizei uma grana, mas comecei a viver uma angústia interminável, que só passou quando atravessei a imigração cubana. E se me pegam no flagra? E se eu disse o nome do hotel e verificarem que não tem nenhuma reserva no meu nome?

O vôo 758, da Copa Airlines, saiu de São Paulo dia 19 de dezembro, às 8h53, mas à meia noite, eu já estava na fila do check-in, para não passar sufoco. . Peguei a cadeira 16A, que fica na janela, e é péssimo para mim, que tenho pernas de girafa. É sempre melhor o corredor, porque posso me esticar e levantar na hora que quero. Além disso, é mais fácil pedir algo extra às aeromoças, que estão cada dia mais chatas.


Minha mochila do Boca Juniors estava parecendo uma compra de supermercado para o mês. Peso exato: 22 quilos. Era a mochila dos mantimentos. Outra, menor, passou sem chamar a atenção, com seus 10 quilinhos. Nas costas, minha velha bolsa com livros, cadernos e uma câmera fotográfica, sempre inútil em todas as viagens. Eu olho, escuto e anoto. Dificilmente me lembro de tirar fotos.

Atravessei a averiguação da Polícia Federal e rezei a todos os meus santos, pedindo proteção.

Primeira parte da viagem – São Paulo/Panamá. Estive na Cidade do Panamá em 1995, e não vi graça nenhuma, a não ser uns ônibus antigos, como motores envenenados, conduzidos por motoristas suicidas em uma velocidade apavorante. Durou duas horas e meia, e descemos, para a troca de aeronave.

Fui ver os Duty Free, aquela besteirada toda, e conheci logo um negão cubano, com o uniforme típico da seleção cubana. O cara era um cinquentão pançudo, sedentário, sorridente, e viajava com dois comparsas, que tinham cara de mafiosos. Lá pelas tantas, puxamos um papo, fiquei sabendo que ele é treinador de atletismo em Cuba e no Brasil, algo como arremesso de dados, coisas do tipo. Bonachão, comprou logo uma máquina digital por U$ 190,00 e disse que estava barata. Era o salário de oito meses de Mana, uma enfermeira que eu conheceria no dia seguinte, em um apartamento no centro de havana.

Perguntei ao Pança se era de bom tom levar uma caixa de Marlboro, para dar de presente aos cubanos, ele disse que sim, e o besta aqui comprou uma caixa por U$ 14,00 uma grana que me manteria em Havana por uma semana. A caixa de Marlboro não fez sucesso nenhum, claro.

Do ponto de vista cultural, era como se eu estivesse indo para a Escócia, com um litro de Natu Nobilis, ou levando uma caixa de incenso para os amigos da Índia.

Como é que o sujeito vai para a terra do tabaco e leva uma caixa de Marlboro?

Então, peguei o vôo 438, da Cidade do Panamá para Havana, gate 25, assento 9D. No jogo do bicho, daria carneiro (o vôo), carneiro de novo (o gate) e burro (o assento).

Cheguei em Havana em alguma hora incerta do dia 19 de dezembro de 2007. Pensei em beijar o solo da nossa pátria amiga, mas me pareceu meio brega. Além disso, estava nervoso pacas. E se o lance do hotel não colasse?

Nunca duas palavras formaram um casal tão perfeito: Vedado + Hotel..

Então veio a alfândega, e comecei a repetir como um mantra: “Vedado Hotel, Vedado Hotel, Vedado Hotel”.

Uma senhora muito séria me recebeu, olhou a foto do passaporte, viu que eu era eu mesmo, então fez a pergunta fatal:

“O senhor vai fica hospedado em que lugar?”

“Vedado Hotel”, respondi, com uma raça incrível, cheio de certeza e força.

Ela mandou eu olhar para alguma lugar incerto, sem óculos, olhei, e julgo que tiraram uma foto minha.
Então aconteceu o milagre – eu estava em Cuba.

Era pegar a mochila cheia de mantimentos, a bolsa com minhas coisas, e correr para o abraço.

Fui esperar as bagagens. O mochilão, cheio de mantimentos, desapareceu. Eu e um casal fomos ao setor de reclamações, desamparados, certos de que a vaca tinha ido para o brejo.

Na verdade, foi a primeira das minhas muitas sortes em Cuba.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Notas para um possível livro nada revolucionário sobre Cuba



Há muitos anos viajando pelo mundo, sonhava em conhecer Cuba. Mais que isso, conhecer Cuba enquanto Fidel Castro estivesse vivo. Acreditava que a morte do líder máximo do país poderia resultar em uma espécie de perestroika cubana, dissolvendo o socialismo que se mantém às duras penas. Um mês perambulando pelo país, conversas com todo tipo de gente, e revi a posição.

Em dezembro de 2007, Cuba chegou à minha vida como uma antiga amante, que tinha desencontrado em uma dessas esquinas descascadas. A viagem, que parecia distante, cheia de exigências de embaixada, o passaporte perdido, foi resolvida com alguns telefonemas e email, para pessoas que tinham passado pela ilha, e sabiam o caminho das pedras. Súbito, em uma caixa velha, o passaporte verdinho do Brasil reapareceu.

Viajei com uma mochila extra, cheia de mantimentos, porque os relatos eram duríssimos sobre produtos de higiene, comida etc. No primeiro dia, descobri que exagerara em algumas coisas, e deixara outras, importantíssimas, de lado. Não fiz nenhuma leitura prévia sobre a realidade do povo cubano. Não busquei livros, informações na Internet, revistas de esquerda, livros de turismo, coisas do tipo. Embarquei apenas com um número de telefone de uma amiga de um velho revolucionário brasileiro, que tinha feito seu curso de guerrilha, naqueles atribulados anos 60. Viajei a Cuba com três intenções: conhecer, escutar, escrever.

Fiquei hospedado inicialmente na casa de um casal homossexual, um pequeno apartamento no centro de Havana. Foi apenas o começo de um intenso e irreversível encontro com o povo cubano.

Vivi em diferentes bairros. Convivi com trabalhadores das mais diversas áreas. Conheci vagabundos, maltrapilhos, prostitutas, médicos, estudantes. Ocupei o primeiro andar pagando 20 dólares por dia. Poucos dias depois, estava na casa de uma mulher generosa, que na primeira vez que me viu, consultou os orixás, para saber se deveria me dar abrigo. Uma mulher que vive com extrema dificuldade, e que nunca me cobrou um dólar pelos muitos dias que fiquei com ela, pelas muitas dádivas que me ofereceu.

Caminhei dezenas, centenas de quilômetros pelas avenidas e vielas de Havana, nos horários os mais diversos, enfrentando os avisos de “é muito perigoso”, “ali só tem bandido”, pela simples aventura de ver o povo. Com minha sandália de couro, comprada no interior de Pernambuco, e uma sacola às costas com um caderno, livro e, de vez em quando uma máquina fotográfica, esquadrinhei, cheirei, arrisquei, me joguei no cotidiano dos cubanos.

Conheci o populacho, a gente comum, que o turismo olha de longe, em ônibus de luxo, com ar-condicionado e segurança, numa mistura de indiferença e soberba. Escutei inúmeras vezes o verbo “luchar”, para explicar uma surreal e penosa batalha pela sobrevivência, a luta pela comida, em primeiro lugar, a maior de todas, uma obsessão diária de milhões de cubanos.

Conversei muito, e escutei sempre mais. Nunca tomei notas do que me diziam os cubanos. Jamais usei gravador. Guardava na memória, e muito mais no coração, tudo o que me diziam as pessoas, em tom de conversa, desabafo, revolta ou desespero. Muitas vezes, palavras que poderiam custar a prisão, se chegassem aos ouvidos de alguém do estado cubano. Guardava e depois anotava tudo em meus cadernos.

Em nenhum momento agendei entrevistas. Não fui em busca das famosas “fontes” do jornalismo clássico. Apenas conheci, conversei, anotei. Estive em festas, paradas de ônibus, utilizei várias vezes o caótico sistema de transporte do país, fui para exposições de arte, tomei dezenas de “guarapo frio”, que é o caldo de cana, comi quase diariamente um “pan com minuta”, um sanduíche com um pedaço de peixe.
Sempre que pude, vi os programas de TV, e até decorei o final de cada reportagem, com os dizeres “sistema informativo de la televisión cubana”. Quase todos os dias, comprava a edição do jornal “Granma”, que é um dos únicos, e o oficial, do Partido Comunista, vendido principalmente pelos velhos. Muitos vendedores de jornal renderam longas conversas.

Sempre me apresentei como professor de literatura, meu último ofício, no Recife, antes de viajar. Dei meu tênis para uma mulher que tinha um filho preso, e passei apuros, com a sandália de couro, na frente fria que durou quatro dias. Escapei de uma tentativa de assalto, liderada por um garoto de uns 14 anos, acompanhado de outros cinco ou seis amigos, após uma partida de beisebol. Assisti três jogos de beisebol no estádio Latinoamericano, para entender um pouco a paixão dos cubanos por esse esporte, e a única coisa que entendi foi que vale um ponto quando o cara acerta em cheio a pelota. Almocei em casas, botecos, “paladares”, restaurantes universitários, viajei usando o nome de um uruguaio, jantei numa faculdade usando o nome de um amigo brasileiro, fui expulso de um alojamento de estudantes de Medicina, dividi a cama com uma gordinha carioca, meio depressiva, que mova no interior do país. Participei de uma sessão forte de Candomblé, recebi informações e orientações sobre minha vida, e aos poucos fui enchendo meus cadernos.

O que mais me impressionou, no entanto, foi o silêncio dos cubanos sobre a revolução e Fidel Castro, a possível morte. Com exceção da TV e do Granma, que citam Fidel diariamente, a população comum não está nem aí. “Amigo, com a gente passando fome, tendo que lutar todo dia para ter o que comer, quem vai estar preocupado com Fidel e a revolução?”, disse uma mulher que já foi do estado cubano, e que “daria a vida por Fidel”, quando era jovem. Com quase 60 anos, ela agora lamenta não ter percebido antes para onde caminhava a revolução.

A grande revolução do cubano, agora, é ter o que comer, vestir, sobreviver. Não importa se Fidel morra agora ou daqui a alguns meses. Raul Castro, seu irmão, já assumiu o poder, a revolução continua, queiram ou não queiram. Não haverá um colapso ou uma Perestroika, como aconteceu na Rússia, chegando ao leste europeu. A transição já foi feita. A morte de Fidel vai ser mais um fato histórico que político. De certa forma, Fidel e a revolução agonizam. Ele certamente morrerá primeiro.

Foi a viagem mais triste e intensa de minha vida.

Os textos que publicarei na sequência serão dolorosos, para os que sonhavam tanto com a revolução, mas o testemunho fiel da minha escuta, do meu olhar e do meu coração.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Informações inúteis

Por falta de acesso à Internet, em Cuba, este Blog continua na moita, à espera de uma chance de atualização.

O autor, em suas andanças por Havana e Camaguey, já passou por várias experiências humanas, como o velho e tradicional banho de cuia, dois jogos de beisebol no Latinoamericano (informo que ele já entende 12% sobre beisebol), conversas com os mais diferentes cubanos, de todas as idades, viagens de trem e ônibus, hospedagem e expulsão de universidade, tentativa de assalto (vítima, não autor), essas coisas.

Ele vem escapando bem, e enchendo seus caderninhos de anotação. O que preocupa o autor é a falta da caneta Bic preta, porque agora já tem cinco, as outras dez foram gastas. Pra variar, tem esquecido de tirar fotos.

Bem, a quem costuma acessar o Blog, digamos que o autor saiu por uns dias, e está demorando a voltar.

Hasta luego, companeros!
Samarone, desde Habana, Cuba