quinta-feira, 29 de junho de 2006

Dois artistas e o fascínio da poesia

Não sei para que serve a poesia, mas cada vez mais tenho uma fé em seu poder de transformação. A poesia pode mudar destino, salvar pessoas, transformar sentimentos, alimentar.


Há pouco, ela, a poesia fez tudo isso, fez uma escola entrar em festa, a festa da emoção. Tudo porque dois artistas-saltimbancos, o Rafa e o Ju, que estão de férias no Recife, aceitaram vir na escola em que ensino (a Kabum!), para apresentar um trabalho simples, modesto, doce, chamado “intervenções”.


Eles chegaram durante o lanche, circularam de mansinho entre os 80 jovens, todos na faixa de 16 a 19 anos. O espetáculo se resume a um ato – recitar poesias no ouvido das pessoas. Fiquei de longe, olhando esses jovens serem “invadidos” pelas palavras poéticas. No final, nos reunimos para conversar um pouco.


É impressionante o que a beleza provoca nas pessoas. Primeiro, o silêncio. A vontade de simplesmente não dizer nada, como se a alma dissesse “quero sentir”. Os olhos se dilatam, ficam brilhantes e mais vivos. Por fim, o sorriso aparece sabe-se lá de onde, como agradecimento pelo milagre da beleza.


Todos ficamos emocionados. Educadores, alunos e os artistas. Conversamos sobre temas que estão fora da pauta nacional ou local. Aqui pertinho, na Rua Velha, um prédio desabou na terça-feira, e sete pessoas morreram. Os ventos da eleição de outubro já começaram a soprar, mas nossa fome, nossa grande fome, era pela poesia, pela emoção e descoberta de mundos. Ao final, todos agradeciam. Os alunos me agradeciam por ter trazido os dois “nômades”, como uma aluna disse; os professores, pelo momento de emoção, em meio às muitas aulas, e os dois saltimbancos, porque se emocionaram muito no contato com os jovens.


Então me veio a idéia de bálsamo. A poesia como bálsamo para a vida, ungüento. Olhando a crônica que escrevi ontem, tão cheia de chateações, tanta falta de cuidado nas relações, uma certa vulgaridade na vida brasileira, me vejo renovado. Que venham outras chateações, tenho aqui uma capa de super-herói, cheia de poetas. Tenho cá o meu escudo de Fernando Pessoa, de Manuel Bandeira, de Gullar. Hoje, a poesia veio, me deu a mão, me puxou para o alto. É preciso agradecer. Vai aqui minha reverência aos dois saltimbancos que vieram nos encher de alegria e beleza.


“Ah, abram-me outra realidade!

Quero ter, como Blake, a contiguidade dos anjos

e ter visões por almoço,

quero encontrar as fadas na rua!

Quero desimaginar-me deste mundo feito com garras,

desta civilização feita com pregos.

Quero viver, como uma bandeira à brisa,

símbolo de qualquer coisa no alto de uma coisa qualquer!”

(Álvaro de Campos)


Para Rafa e Ju, poetas.


quarta-feira, 28 de junho de 2006

Conversas com moças-máquinas e uma lan-house repleta de não-silêncio

Amigos leitores, não desejo a nenhum de vocês o que ando vivendo, no mundo da Internet. Sem meu notebook, estou sendo obrigado a usar as tais "lan-house", em diversos lugares do Recife. Há tempos não convivo com uma gente tão desagradável e barulhenta. A questão é simples: os tarados por jogos fazem uma espécie de competição em grupo, e dos 20 computadores ligados, agora, deve ter uns dois ou três com gente olhando email ou reparando no tal Orkut, o frisson do momento na Internet. O restante é só alucinado, tarado, fissurado e mal-educado. Ao meu lado, um sujeito de uns 30 anos dá berros e uiva, porque perdeu não sei o que, um monstro qualquer parece que devorou uma parte de seu cérebro. Ele grita ao meu lado, e não pensa que eu gostaria só de um pouco de silêncio.

Mas vamos à crônica de hoje, que estou inspiradíssimo, vocês nem imaginam, especialmente das três tentativas que fiz, hoje, para resolver pendências financeiras pelo telefone. Descobri tardiamente que o Brasil está ficando um país burro, e me senti meio burro também.

Primeiro, liguei para a Telemar, para resolver uma e somente uma reles conta atrasada. Por causa desta besteirinha, não estou podendo ligar para os amigos. Descobri que a figura famosa da atendente, aquela que diz, num sotaque paulistano "eu vou estar te mandando uma segunda via da conta", quando poderia dizer "vou te mandar a cópia da conta". Pois bem, agora você liga, uma voz melíflua diz que é a "atendente virtual" da empresa citada, e pede para que eu fale meu problema. Não gosto de conversar com máquinas, muito menos de falar meus problemas para máquinas. Falo meio constrangido meu problema, a moça-máquina responde que não entendeu. Ficamos nessa lenga-lenga, digo o problema, ela diz que tenho uma conta atrasada, e foi justamente por isso que eu liguei. Lá pelas tantas, a moça-máquina desliga o telefone na minha cara.

Depois de 37 minutos conversando com ninguém, fiquei sabendo que vão mandar uma cópia da minha conta atrasada em até 10 dias, e respiro aliviado. Mas, interiormente, me vem uma chateação afetiva - durante muitos minutos, conversei com uma voz gravada, impessoal, distante, cavernosa. Cansado do meu drama espiritual, vou tomar um café e aqui na esquina, quando chega Ricardo, o taxista. Explico meu problema, em 22 atos, ele mata a charada:

"É só tu ir numa farmácia Pague Menos, que a segunda via sai na hora".

Me sinto burro.

Ligo para a Cabo Mais, porque não estou mais usando tanto a Internet, e não preciso mais de banda larga. Mais uma confusão dos diabos. Falo com três atendentes, que pedem meus dados religiosamente, entrego os dados, e no final da ligação, sou informado que a ligação vai ser transferida para a "área de cancelamento". Me avisam que terei que pagar mais um mês de serviço, porque não avisei com um mês de antecedência, aquele caralho todo, para me arrancar uma grana extra.

No final, me informam também que terei que efetuar o pagamento em Setúbal, um bairro muito longe de todas as minhas coisas, do outro lado da cidade, e nesse momento eu dei a gota serena. Reclamei do atendimento, da falta de atenção, lembrei que no futuro eu poderia querer uma empresa de internet, e não usaria a Cabo Mais, que era falta de respeito, a moça escutou com aquela cara de sempre e disse um "tudo bem, senhor". Tudo bem nada, minha filha, cliente precisa ser melhor tratado, eu nunca mais vou querer serviços da Cabo Mais.

Mas pior que isso tudo é mesmo a lan-house aqui de Casa Forte, onde moro. Está lotada até a tampa, e tem gente à beça com aquela carinha de maluco. Poderiam estar jogando uma boa pelada, na calçada. O cara ao lado urrou há pouco: "caralho, que leg da porra!"

É, amigo, é um leg da porra mesmo. Vou sair daqui, correndo, que está me dando dor de cabeça, e vai chegando o entardecer no Recife. Amanhã tentarei escrever algo decente, num lugar qual ermo, qual incessantes sussurros de noites indormidas em hotéis baratos, como dizia o velho T.S.Eliot, que não me deixa mentir.

Quanto à Copa do Mundo, aqui vai um desabafo: essa TV Globo está transformando a competição em um exercício de estupidez. Imploro transmissões dos jogos em silêncio, em respeiro aos nossos ouvidos e corações.

Vamos que vamos.

segunda-feira, 26 de junho de 2006

Um olhar perdido numa tarde chuvosa

Foi semana passada, em meio às muitas viagens que estou fazendo para o Cabo de Santo Agostinho, para a casa de uma tia-avó, que já vai na casa dos 79, bem recuperada de um infortúnio, o tal do derrame.

Estava chovendo, e a avenida Dantas Barreto estava gelada, acreditem. Era tardinha, e um vento forte soprava, a gente tentava se proteger, e o diabo do ônibus Centro do Cabo não chegava nunca. Todos os guarda-chuvas se revelavam inúteis, e os abrigos dos pontos de ônibus do Recife são feitos especialmente para molhar os passageiros.

No meio daquela correria toda, olhei para um senhor, que vendia milho. Um senhor negro, na faixa dos 50 anos, um sujeito bem gasto pelo tempo, com uma barba desgrenhada, meio rala, com fios brancos e duros. Estava escorado na parada do ônibus, o fogo aceso, as brasas sem queimar nada, um vento gelado molhando a gente. Muitos vendedores faziam graça, especialmente quando as saias das mulheres levantavam, eu não sabia nem que as moças do Recife gostavam tanto de saia.

O homem estava quieto, ensimesmado, para dentro. E os olhos dele me doeram. Eram olhos muito tristes. Carregavam uma tristeza profunda, algo que parecia sintetizar a dor e o sofrimento de milhões de outros, como ele, que rangem para garantir esse tão difícil pão de cada dia. Olhei várias vezes para ele, mas aos poucos, fui ficando envergonhado. Quem era eu, diante daquele homem? O que terá passado, para chegar a ter esse olhar? Com que direito eu o olhava insistentemente? Senti o que a Clarice Lispector revelou, em suas crônicas: uma espécie de descompasso com o mundo. Depois o ônibus chegou, entrei, e fui embora. Dificilmente o verei novamente. Posso até ver, mas não sei se haverá o reconhecimento, este fenômeno tão singular, que define tantos caminhos.

Mas isso não vem ao caso. Na verdade, nada vem ao caso. Eu apenas queria falar desse homem, e dessa gente que às vezes vaga pelas ruas, tentando vender um milho, uma pipoca, uma tapioca, um pedaço de qualquer coisa, que possa se transformar em outra coisa, essa outra coisa que chamam, por aí, de esperança.

quarta-feira, 21 de junho de 2006

Caramujos e eleições

Tenho um amigo que não gosta de contrariar ninguém. Se ele estiver andando na rua, passar um conhecido, de carro, e disser “entra aí”, ele entra, mesmo sem saber para onde vai, muito menos quando volta. O que não quer é contrariar os mais chegados, e às vezes se mete em frias antológicas.

Ando meio assim ultimamente. Meu amigo Serjão iria me emprestar uma grana, me deu carona logo cedo, e avisou, de raspão, que iria dar “uma passadinha” no T.R.E, que vem a ser o Tribunal Regional Eleitoral. O Recife estava debaixo d’água, muitos bairros fazendo glub glub, e lá vou eu, com o Serjão, para o Tribunal.

Era uma reunião para mostrar como vai ser a questão das campanhas eleitorais, como prestar contas, como gastar o dinheiro, essas coisas que me interessam profundamente, da mesma forma que me interesso por sânscrito, os trovadores franceses e a fabricação de lajotas no Camboja. Serjão entrou no auditório, a moça do Tribunal, muito educada, ofereceu uma cadeira, e quando o sujeito falou que “se o candidato usar dinheiro de pessoa física, pode ser até 10% do gasto da campanha”, e “a arrecadação deve ser debitada em conta corrente, antes de efetuar o pagamento”, saí de mansinho, fingindo uma contusão no tornozelo esquerdo.

Essa brincadeirinha começou às 9h e terminou perto do meio dia. Como Serjão iria me emprestar uma grana boa, nem fiz cara feia. Chovia canivetes, sentei numa cadeira e puxei minha salvação de sempre, um bom livro. Fiquei lendo, até que reparei no jardim do Tribunal. Estava até razoável, mas olhei os pontinhos pretos. Amigos, os caramujos que combato tenazmente, no meu jardim, estavam devorando tudo. Perguntei ao pessoal da limpeza quem matava os caramujos dali, e veio um sujeito de bigode, um falso magro, disse que ele “derrubava tudinho”. Pegou um pau no banheiro e zapt! zapt! - começou a derrubar os caramujos. Sim, Pedro Bó, só que os caramujos daqui a pouco começavam a se mover (não sei se posso dizer “andar” com caramujos), e se aboletavam de novo nas plantas, flores. O falso magro era um falso matador de caramujos.

Visivelmente contrariado, voltei a ler. Lia dois parágrafos, e os caramujos lá a todo vapor. Lá dentro do auditório, a nova lei de prestação de contas. Daqui a pouco, três pessoas desorientadas me abordam. Ela, uma senhora, parecia ser mãe dos outros dois, igualmente desorientados. Marcaram com uma tal de “Eva”, advogada, para tratar assuntos de herança. Que manhã, amigos! Papo vai, papo vem, as moças da limpeza entraram na onda, descobrimos que o encontro estava marcado, possivelmente, para o Tribunal Regional Federal, o TRF, aquele prédio bilionário, perto da Prefeitura. A moça da limpeza, dona Adriana, explicou o caminho 22 vezes. Na saída, a mulher desorientada, com um guarda chuva absolutamente inútil, disse:

“Obrigado, Márcia”.

“É engraçado, eu dei toda a dica, e ela me chama de Márcia”, resmungou Adriana, contrariada. Nesse momento, os caramujos já estavam na terceira ceia, e o jardim do Tribunal não vai passar do primeiro turno das eleições.


Olho para o lado, está um imenso gato preto. Perguntei o nome e fiz chip chip para o bichano, mas ele nem deu bola.

“É uma gata. Vive aqui mesmo, até ração compram pra ela”, informou Adriana. A gata se chama Preta pelo simples fato de ser preta, dos pés à cabeça.

Teve intervalo, todo mundo bebeu café, todo mundo comeu bolachas de água e sal e todo mundo falou ao celular ao mesmo tempo. Parecia até que um estava falando com o outro. Serjão disse que ia só ver umas besteirinhas finais, e voltava “daqui a pouco”. Voltei às minhas leituras, sabendo, pelo tom da voz, que o negócio seria demorado.

Lá pelas tantas, me arretei, comecei a derrubar os caramujos com a caneta. Zapt! zapt! Fui à copa, perguntei se tinha sal, porque é um santo remédio para esses predadores cruéis. Uma pitadinha de sal, e eles morrem, possivelmente de pressão alta. Informo aos digníssimos leitores, que o Tribunal Regional Eleitoral do Recife não abastece sua copa de sal. Voltei à minha luta. Procurei uma pedra, para uma batalha mais campal, mas cadê as pedras deste país?

Já tinha derrubado inúmeros caramujos, quando a reunião acabou. Eles ficaram lá, no chão molhado, mas todos vivos, os caramujos. Saí derrotado. Fiquei pensando que gato bem que podia comer caramujo, seria perfeito, a Preta salvaria o jardim e ainda economizariam com ração.

Saímos de lá debaixo de um toró. Molhei as sandálias numa poça, Serjão resolveu que almoçaríamos, antes de tirar o dinheiro. Comi uma salada supimpa, no bar central, que o dono quer que escreva com o “c” minúsculo mesmo, e ainda vimos um pedaço da Copa, num telão imenso. Não fui convidado a pagar a conta, e me fiz de desentendido, para não causar maiores problemas. Serjão tirou o dinheiro às 13h43, pela graça divina.

Mas desconfio que o país não pode dar muito certo mesmo, se falta uma reles pitada de sal na copa de um Tribunal Eleitoral, para manter um jardim bonito. Aqui vai minha sugestão: ou comprem sal, ou contratem um jardineiro.

ps. Não sei o que está acontecendo com este Blog, que agora cismou de modificar o tamanho das letras. Hora está grandona, hora minúscula. Segurem firmes, amigos leitores, que estou buscando assessoria bloguiana.

terça-feira, 20 de junho de 2006

A urgência de amigos

Foi no domingo de manhã, após jogar uma pelada razoável com meus amigos do “Caducos Futebol Clube”, no Poço da Panela, que me ocorreu esta saudade repentina, diria que se tratou mesmo de uma urgência de gente. Peguei a agenda e comecei a dar uns telefonemas. Procurei os nomes de pessoas que não venho encontrando, por causa das coisas da vida, até por falta de cuidado mesmo. Liguei para minha amiga Luzilá, mas Luzilá não vale, porque ela é minha vizinha, no Poço da Panela, e de vez em quando estou por lá, para conversarmos sobre literatura e a vida, que são a mesma coisa, no final das contas.

Liguei principalmente para pegar o telefonema de um casal muito querido, o Marcus Galindo e a Stellinha. Meu deus, há quantos meses não troco umas palavras, não tomo com ele sum reles café de padaria! Lembro que no período em que eles moravam na Holanda, fazendo os doutorados da vida, a gente se comunicava bastante, era email para tudo que era lado, tínhamos notícias de como andava a vida, sempre tínhamos umas linhas para dedicar ao outro, parece que a saudade se instala imediatamente, logo que a gente sai da cidade em que vive. Se a gente for para o exterior, então a saudade vira quase uma doença crônica. Nós brasileiros, somos saudosos de tudo. Mas, como estamos no Recife, parece que podemos nos dar ao luxo de um encontro perdido, ocasional, entre um trabalho e outro. Isso às vezes demora meses.

Vou aqui mudando o rumo da prosa: quero mais encontros intencionais, menos ocasionais. Tenho sentido uma urgência de amigos.

Conversei um bom pedaço com o Marquinho, depois com Stella. Se brincarmos, não nos vemos há mais de um ano, o que é um absurdo. Como estou ficando velho rapidamente, e priorizando outras coisas, não vou mais ficar esperando: esta semana, irei à UFPE, ter com os dois. Quero ir num dia sossegado, para botarmos as conversas e saudades em dia.

Depois liguei para o Bruno Fontes, que foi meu aluno de “Técnica de Reportagem” na Católica. O Bruno, que agora é repórter de TV, sempre chega com aquele sorrisão amigo, aquela conversa boa, e nunca mais nos falamos pra valer. A última vez que o vi, foi naquele fatídico, diria trágico dia, em que meu Santinha perdeu o título nos pênaltis, para o adversário rubronegro. Bruno estava trabalhando, em campo, e prometeu uma bela matéria sobre o título, mas não deu. No dia do casamento dele, eu estava em São Paulo, e não pude ir.

Por falar nisso, estou num débito infinito com o meu velho e grande amigo Valdemir Leite, o Valzinho, amigo desde as primeiras aulas do curso de Jornalismo, na Unicap. Ele trabalha muito, tem duas filhotas, a agenda é cheia, eu não trabalho tanto assim, não tenho filhos, então cá entre nós: o que custa a gente almoçar juntos uma vez por semana?

Não sei se foi nostalgia o que me deu, talvez o sentimento de que certas pessoas não podem ficar tão distantes, que a amizade vale muito mais que ouro, num mundo repleto de competições e vaidades. No fundo, me deu uma vontade de compartilhar coisas, saber como andam as vidas, o que andou acontecendo nos últimos tempos. A vida às vezes vai passando, e essas conversas bestas, com gente querida, trazem alento, esperança, renovam o espírito.

Dei sorte na sexta-feira, quando fui à Prefeitura, tirar um documento. Na descida, esbarrei com a Eleonora, minha ex-terapeuta, que agora está morando no interior (desconfio que ela foi para o interior depois de tentar, em vão, durante uns dois anos, consertar meu cabeção). Sentamos por ali mesmo e conversamos um bocado sobre a vida. Não nos encontrávamos desde outubro do ano passado. Depois tomamos um café, na Livraria Cultura. Valeu mais que qualquer terapia.

Aos amigos, vai o aviso: acabou a folga. Cansei de "vamos marcar um café", coisas deste tpio. Aos que moram longe, fiquem sabendo que já comprei um pacote de envelopes. Voltarei a mandar minhas cartas sem futuro, mas cheias de saudades do presente.

Para Stella e Marquinhos, claro, e mais a Suzy, que está morando em Lençóis.

quinta-feira, 15 de junho de 2006

No Recife, nem Jesus está salvando

Aconteceu no domingo, eu já tinha escutado relatos de amigos, mas somente hoje, consegui conversar com a vítima, o senhor João Valadares. Para quem não sabe, João é um sujeito magro, boa gente, meio amarelado, um andar desengonçado, jornalista de primeira linha e boêmio desde as primeiras horas. Pode ser encontrado em botecos os mais diversos da cidade, e nas arquibancadas do Arruda, exercendo seu pessimismo ancestral. Nosso time pode estar metendo um 8 x 0, perto de terminar o jogo, mas ele olha para o lado, assustado, e confessa:

“Estou com medo que eles empatem no finalzinho”.

Pois bem. No sábado, ele exerceu sua boemia até quase o amanhecer, chegou em casa, estacionou seu carro defronte ao prédio e foi dormir.

Vamos ao carro. Um Fusca branco, 1994, todo arrumadinho, que ele apelidou de “Itamar”. Pendurado no retrovisor, pendurado, o colar com as cores do Santa Cruz, que a sua amada, Rita, costuma usar, como amuleto, nos jogos mais sofridos. Um pequeno ventilador dava um ar bucólico ao veículo. No porta-luvas, umas cinqüenta fotos do álbum da Copa do Mundo.

João acordou no domingo, desceu ainda com aquele bafo, curtindo sua ressaca, e foi pegar o carro, para ir à casa de Ritinha. Quando botou a chave na fechadura, a porta abriu sozinha. Tinha um sujeito dentro, tentando botar o carro para pegar.

“Oxente, o que tu estás fazendo aqui dentro?”, perguntou João.

“Ah, esse carro é teu, fera?”, respondeu o sujeito, sem pressa.

“É claro que é meu. E o que é que tu estás fazendo, dentro do meu carro?”

“Ah, velho, eu ía roubar o teu carro agorinha, mas como tu é o dono, não vou roubar mais não. Toma aí”.

O quase-ladrão saiu do veículo, só faltou dizer “foi um prazer”, e saiu caminhando lentamente. É bem provável que tenha ficado um pouco chateado com a presença inoportuna do João, mas o fato é que foi para casa, quase assobiando “la vie em rose”.

Cem metros depois, tinha um posto da Polícia Militar. João correu com o Fusca, chamou o policial, mostrou o ladrão, que caminhava bucolicamente ali, pela Beira-Rio.

“Tas vendo aquele cara ali? É um ladrão, estava tentando roubar meu carro agorinha, peguei ele em flagrante”.

O nome do policial era Jesus. João sentiu que tudo ía dar certo. Como Jesus e João se deram muito bem, na Bíblia, então conseguiriam prender o ladrão.

“Ah, eu não posso sair daqui não, fera. Se eu sair, eu é que vou preso”, respondeu Jesus.

João argumentou, mostrou o cara, eram pouco mais de cem metros. Nada. Nem pensar em sair atrás de ladrão. Quando chegou a viatura, já era tarde (no Recife, as viaturas da Polícia sempre chegam quando não há mais nada a fazer). João ainda circulou com os PMs, mas o cara estava longe. Não dizem que devagar se vai longe? Ladrão é que vai mesmo.

Abatido, chateado, João foi para a casa de Ritinha, em Boa Viagem. Estacionou o carro na Rua dos Navegantes. Na hora que trancou a porta do seu Itamar, sentiu algo estranho. Era um mau-pressentimento forte, semelhante à decisão do Campeonato Estadual, nos pênaltis.

Ficou no apartamento da namorada, e de vez em quando vinha aquele sexto sentido. “E o Fusquinha na rua, João Valadares...”

Já era noite, quando ele não resistiu. Iria descer, para tirar o carro da Navegantes, e botar na Avenida Boa Viagem, bem mais movimentada e defronte à entrada do prédio. Era mais seguro.

“Deixa lá mesmo, João, o perigo já passou”, respondeu Ritinha. Creio que Diogo, irmão de Ritinha, também tentou acalmá-lo, mas como Diogo é rubronegro, é bom ter cuidado.

Ele não resistiu. Desceu com Ritinha, para mudar o lugar do Itamar. Mas a chuva estava pesada. No elevador, foi percebendo que era um exagero. Chegou ao térreo, mas nem desceu. O Fusquinha ficou lá.

Sabe-se que durante a noite, o magro Valadares acordou várias vezes.

“Meu Fusca!”, pensava.

“Itamar!”.

Um suor frio o acompanhou durante toda a longa noite.

Na segunda-feira, descendo no elevador, Diogo soltou uma gracinha que o magro não gostou nada.

“Eita, o teu fusquete... Tanto que falasse, será que ele ainda está lá?”

O magro, com olheiras profundas, pensou em dar uma cotovelada no irmão de Rita, mas deixou para lá. Quando chegou ao local, estava vazio. Na madrugada, tinham roubado seu Fusquinha.

“Gelei na hora”, me confessou ele, há pouco.

Na delegacia, contou detalhadamente o que tinha acontecido. O policial perguntou qual era o ano do carro.

“Noventa e quatro”.

“Ah, pode esquecer. Vai virar bugre ou ultra-leve”, respondeu, quase sorrindo.

Foi um consolo e tanto.

João me confessou também que tinha se apegado ao carrinho. Foi um ano de convivência, entre uma boemia e outra.

“É igual a cachorro, a gente se apega”.

Uma semana antes, em uma farra com o inseparável Marcel Tito, ele disse que o Fusca 94 tinha sido a melhor compra que já tinha feito na vida.

E o toque sentimental, capaz de arrancar lágrimas no mais bruto dos brutos: João passou dois dias indo ao trabalho com as chaves do Fusca no bolso...

**Nota aos leitores: por conta da minha mudança para o Cabo, estou tendo problemas com a Internet. Tem hora que a letra fica maior, que sai minúscula, depois tudo some, esta postagem mesmo me custou um tempo enorme. Segurem firme, que em breve, tudo voltará à normalidade.

segunda-feira, 12 de junho de 2006

Descobertas debaixo de um pé de jambo, num domingo de chuva no mercado da Boa Vista

Aconteceu ontem, e tudo está claro em minhas lembranças afetivas. Estávamos eu e meu amigo Serjão, visitando alguns botecos do Mercado da Boa Vista, para um projeto modesto mas simpático – estamos fazendo um guia dos botecos de mercados do Recife. Aos domingos, temos esta dura, quase estafante tarefa, a de visitar os bares, falar com o dono ou dona do estabelecimento, ver se a cerveja está gelada, provar os petiscos, tudo com o profissionalismo adquirido ao longo de anos de garapa.

O início de tarde estava belo e calmo. Começou a chover, e ficamos debaixo de um pé de jambo, um dos muitos daquele velho e aconchegante mercado. Recebemos explicações detalhadas, da dona Maysa, sobre o surgimento do bar “Escritório”, que completou 30 anos em 2006. Estávamos na terceira cerveja, depois de dominar um miúdo de galinha com lascas de cebola e rodelas de tomate, quando, não sei de onde, surgiu o assunto.

A princípio, estranhei. Meu amigo sabia muitos detalhes sobre derrame, a recuperação dos velhos e dos jovens, falou longamente sobre o assunto que venho acompanhando de perto. Há 15 dias, minha tia-avó sofreu um princípio de derrame, e vem se recuperando de uma forma impressionante.

Fiquei então sabendo que meu amigo perdeu uma filha há dois anos. Ela, “o que fiz de mais belo na vida”, como disse meu amigo, teve um problema neurológico quando tinha seis anos. Como era muito jovem, o impacto foi devastador. Ficou tetraplégica. O restante da vida foi em uma cama.

E súbito, aquele início de tarde teve outro sentido. Serjão me falou sobre aqueles anos, sobre a dor, mas por mais que as palavras terminem iguais, ele falou mesmo foi sobre o amor. E me contou coisas do fundo da alma, que nunca imaginei, porque sempre o vejo sorrindo, animado, tocando projetos, realizando coisas. Quando escuta os relatos de pessoas que julgam estar com “problemas sérios”, ele às vezes acha graça.

“Essas pessoas lá sabem o que é a dor...”

Ele me citou um trecho de um forró muito famoso no Nordeste:

“Pra todo mundo a minha cara é de alegria/ Porque ninguém tem nada a ver com a minha dor”.

Concordei imediatamente.

“Essa dor é minha”, respondeu ele.

Me falou de Daniela com tanto amor, que quase pude vê-la. Melhor que isso, acho que a senti por ali, por entre as mesas de plástico, os bêbados molhados, entre as TVs, que transmitiam mais um jogo da Copa do Mundo, nas goteira de um toldo de plástico, que passou a nos abrigar. Imaginei os seis anos de alegria que ela proporcionou, e tentei imaginar o sofrimento que foram aqueles anos com ela à cama, sem dizer uma palavra, cada dia morrendo um pouco, apesar de toda a infra-estrutura montada em casa.

E Serjão me contou que um dia foi jantar na casa de uns amigos. Era um jantar de natal, e a filha dos amigos não estava à mesa por um motivo: tinha quebrado um jarro caríssimo, de uns R$ 500,00.

“Por que ela não está aqui com a gente?”, perguntou Serjão.

Os pais explicaram o fato do jarro caríssimo, a punição etc. Meu amigo disse o seguinte:

“Eu peço a permissão de vocês para trazê-la à mesa”.

Os pais não entenderam a “intromissão” e perguntaram o motivo.

“Eu daria tudo o que eu tenho na vida para que a minha filha, hoje, quebrasse não só um jarro de quinhentos reais, mas a minha casa inteira. Eu daria a maior festa do Recife se ela tocasse fogo na casa, ficaria com ela, na calçada, olhando o fogo queimar tudo, rindo ao lado dela, até que ficassem só as cinzas”, respondeu meu amigo.

Mas a filha não podia. Estava em casa, na cama, cercada de equipamentos, tubo de oxigênio, enfermeiros. Não podia quebrar nada, muito menos um jarro caríssimo.

Depois que falou isso, Serjão trouxe a menina de volta para a mesa. Talvez tenha mudado muita coisa na vida dela e dos pais, não sei. Sei apenas o que ele transmitiu naquele jantar, e o que me transmitiu, enquanto contava essas lembranças, no domingo de chuva.

Perguntei ao meu amigo porque ele nunca tinha me contado aquela história. Ele respondeu o mesmo:

“Essa dor é minha, Samarone, ninguém tem nada a ver com ele. Só eu posso senti-la”, respondeu.

Concordei em silêncio, ainda com espantado com a intensidade quase serena dos que foram testados pela vida, e sobreviveram.


Para o meu amigo Serjão, com afeto.

sexta-feira, 9 de junho de 2006

A doce vingança*

Finalmente chegou a Copa do Mundo. Nós, os amantes do futebol, que nos desesperamos o ano inteiro, nos campeonatos estaduais, nas batalhas para subir à Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro (e por lá ficar uns bons anos); nós que arrancamos os cabelos em um jogo contra o Centro Limoeirense, na reta final do primeiro turno (em Limoeiro); nós, que saímos caçando um boteco que transmita um jogo do nosso time numa quarta-feira chuvosa, um tal de Malutron, pela Copa do Brasil; nós, que somos acusados de loucos, obcecados, alienados, dependentes, viciados em futebol; enfim, nós que escutamos comentários do tipo "não sei pra que sofrer tanto por causa de um time" ou "não sei qual a graça que vocês vêem no futebol", e coisas do tipo, ou piores.

Aqui vai uma confissão: para nós, amantes do futebol de janeiro a dezembro, nós que passamos pelo céu e inferno com nosso clube de coração, a Copa do Mundo é a nossa redenção.

Ah, que maravilha ver aquela tia ranzinza, que não vê graça nenhuma em "ver um bocado de homens correndo atrás de uma bola", vestida de Brasil, dos pés à cabeça, segurando a mão da filha, com o coração na boca.

Ah, que felicidade do sujeito casado, que escuta gracinhas do tipo "parece que morreu um parente teu", quando o time perde um campeonato, ver a esposa ajoelhada, na hora da cobrança dos pênaltis, fazendo promessas a São Expedito, São Apolinário, São Tomé, e outros santos que desconheço a origem e identidade, pedindo que pelo amor de Deus "essa bola tem que entrar, que o Brasil precisa muito deste título", mooc se nunca tivéssemos ganho uma reles tacinha...

Ah, que gozo supremo, ver aquele Phd em Sociologia e Antropologia, que já ponderou diversas vezes sobre a alienação e mercantilização do futebol, fumando um cigarro atrás do outro, já na hora em que os jogadores ainda estão cantando o hino nacional, fazendo mandingas as mais diversas, acendendo velas e incensos, alertando para começarmos "dando uma pressão total".

Ah, que alegria, amigos, que alegria vê-los inebriados, absortos, obcecados por cada jogo da Seleção Brasileira.

E nesta hora, surge do fundo da alma, de nós apaixonados por futebol, de nós, estádio-dependentes, uma espécie de benevolência. Nossa vingança é quase um ato de emancipação afetiva. Devolvemos com alegria o que nos foi dado em forma de frases contundentes, comentários ácidos, afirmativas dolorosas, quando mais precisávamos de apoio. A cada quatro anos, na Copa do Mundo, nós caneleiros, nós, da segunda divisão da vida, que comemos espetinho à beira dos estádios, que sofremos com os cambistas, que viramos dependentes de uma transmissão pelo rádio de pilha, devolvemos aos nossos detratores uma espécie de cordialidade mística.

Durante os jogos, explicamos vagarosamente o que é um volante. Fazemos verdadeiros tratados filosóficos, com exemplos desenhados na lousa, sobre o impedimento; dissertamos exaustivamente sobre a primeira fase da Copa, avisando que depois vai começar o mata-mata; tentamos, em vão, fundamentar sobre a importância histórica e mística do Zagalo no banco de reservas, ao lado do Parreira; explicamos, com uma ponta de rancor, por que o nosso zagueiro não subiu no cruzamento; relatamos, didaticamente, que Mineiro não é um jogador que veio de Minas...

A Copa do Mundo dá aos amantes cotidianos do futebol, como eu, um raro e estranho sabor de vingança. Diria que se trata de uma doce vingança.

Durante um mês, nos sentimos os mais normais dos seres. Estranhamos aquela prima caladona, quase uma santa, soltar uma coleção de palavrões, numa falta perigosa contra o Brasil. Descobrimos, neste momento, que ela sabe mais palavrões que a torcida inteira do nosso time. Ficamos meio sem jeito quando o moralista da família toma todas e começa a sambar, defronte à TV, ao som de "Voa, canarinho voa", uma música que é da Copa de 82...

Sentimos um orgasmo espiritual quando aquele vizinho rabugento, incapaz de um "bom dia", entra correndo pelo nosso portão, e pula em cima da nossa família, que se abraça entre lágrimas, e começa a gritar "É campeão, porra!"

Ou seja: tudo o que fazemos, durante quatro anos, eles, os normais, fazem em um mês. Então, perdoemos os exageros e admitamos, bem secretamente: a Copa do Mundo é a nossa doce vingança.

* Texto publicado em 5 de junho na coluna "Folha Seca", que mantenho com o amigo Inácio França, no site www.pernambuco.com.

quinta-feira, 8 de junho de 2006

Anotações aleatórias sobre os estados d'alma

Dona Da Luz recebeu alta no domingo, depois de vários dias no ex-Hospital Infantil, que esqueci o nome agora. A vi hoje de manhã, faceira como sempre, com aquele sorriso manso de quem já viveu tudo, e encontrou a seiva da alegria para tocar o barco. Minha tia Flocely, que teve uma "isquemia temporária", como bem disse o médico, está se recuperando do baque de uma forma vertiginosa. Para nosso espanto, brevemente vai estar completamente recuperada. Antes de ontem, assistimos juntos "Sociedade dos Poetas Mortos", e ela chorou muito no final, eu não menos, principalmente quando os alundos sobem na cadeira e dizem "Ó captain, my captain", uma homenagem ao professor, ao Walt Whitman, à poesia, à liberdade.

Ontem, estávamos nos primeiros dez minutos de " Diários de Motocicleta", e chegou uma visita, que falou muito, depois tia ficou cansada e desistiu, então eu fui ler e escrever.

Seu Vital está se preparando para uma cirurgia depois da Copa, e anda contrariadíssimo porque não vai poder beber nos próximos dias. Hoje mesmo acertei de emprestar minha TV 29 polegadas para a turma ver os jogos da Seleção lá em Vital. Fiquei sabendo que o professor Davi contratou Boy como seu funcionário às segundas-feiras. A única exigência é beber com ele até a noite. Naná me contou que ontem, a cachaçada foi grande.

Estou morando no Cabo, a 55 quilômetros do Recife, e não sei se voltarei ao Poço. Minha mesinha fica defronte a uma goiabeira, numa rua sem saída, e a escada tem 16 degraus. Minha vista agora não é mais para o bar de Seu Vital, mas para a Escola Luísa Guerra, onde impera uma gritaria infernal, uma baderna infinita. Prefiro Seu Vital. Hoje de manhã, os alunos soltaram dois rojões de São João. Pensei que o mundo estava caindo em cima da casa, justo agora que tia estava ficando boa. O cachorro da casa se chama Bam Bam, e só come galinha cozida.

Tenho usado o Fiat vermelho de tia, e gosto de ir ao Recife nas horas de menor trânsito, a 60k por hora, curtindo a lentidão e a paisagem, deixando os apressados passarem voando. A Internet no Cabo é uma beleza: descolei um lugar que cobra R$ 0,50 por 20 minutos, e é de lá que mando minhas crônicas de sempre. Ontem, a moçca foi almoçar e me deixou tomando conta do lugar.

Tem chovido muito no Cabo. Eu gosto de chuva. Fico sentado, olhando pela janela e tentando entender as coisas que estão acontecendo, a tristeza que descobri, nos últimos dias. Arregimentei forças no meu próprio espanto, creio. Continuo com esta esperança de tudo se ajeitar, de tirar a lição de cada encontro, de tentar ir ao mais sagrado em mim e nos que me rodeiam. Não sei se tenho conseguido, se os fracassos se acumulam livremente, até que algo maior reverbere.

Tanto arrodeio para confessar tristezas profundas e capitulações, sinceramente...

Melhor buscar o velho Adolfo Montejo, que pergunta onde estão os seus olhos.

"Se a paisagem mudou, que olhar é este que ainda mantenho", pergunta.

Vou aqui, pegar a estrada, com os vidros abertos, para entrar o vento.

segunda-feira, 5 de junho de 2006

Juraci, a "Raínha do Real".

Encontrei-a a semana passada, mas, por força das circunstâncias, só hoje pude escrever sobre esta criatura. Chama-se Juraci, se denomina “Rainha do Real”, e já foi apelidada de “Jura é um real”, porque atende, faz curas, reza, lê cartas, tudo por um real.

“Se quiser dar dois reais, eu aceito”, diz ela, ao lado de uma enorme quantidade de bugingangas, na Praça Maciel Pinheiro, ali no centro do Recife. Apesar de estar entre a rua do Hospício e a Imperatriz, ela briga com quem a chama de doida, e pende mais para o lado da majestade mesmo.

Nosso encontro começou de mal jeito. Eu estava com uma câmera, tirando fotos do povo nas calçadas, e esbarrei na criatura, que já conhecia de ouvido. De longe, tirei uma foto, e ela pegou um guarda-chuva do arco da velha, escondeu-se debaixo de uma barraquinha improvisada. Parecia que estava levando uma saraivada de tiros. Ficou mesmo assustada. Guardei a máquina, me aproximei. Ela estava agoniada mesmo.

“É que fotografia altera minhas energias, meus os raios ultra-violeta são afetados”, disse, olhando para minhas mãos, à procura da máquina.

“Tirei uma foto da praça, de longe, e já guardei a máquina”, disse. Só depois de uns cinco minutos de aproximação e conversa mole, ela baixou a guarda. Melhor: baixou o guarda-chuva.

"Jura é um real" tem os dedos cheios de anéis feitos dos materiais mais diversos, como pedaços de plástico bem grossos, ferros de origem imprecisa, badulaques, usa roupa em cima de roupa, tem uma espécie de cocar inusitado na cabeça, carrega óculos escuros na ponta do nariz, que deve ter custado R$ 0,99 ali por perto, já com a lente, de cor incerta, caindo. Diz que mora num apartamento ali perto, mas durante o dia, toma conta daquele pedaço.

“Sou a responsável pelas pequenas causas daqui”, explica sorrindo, e aproveito para me sentar no banco, ao lado de sua tenda.

Conversa vai, conversa vem, Jura me mostra as cartas, uma mistura de cartões telefônicos velhos, imagens de políticos, santos e santas, cartas de baralho, o escambau. Peço para ela ler minhas cartas, ela vai passando tudo, sem embaralhar, diz que vou ganhar muito dinheiro, diz que sou deveras inteligente, comenta certas coisas da minha vida sentimental que não vem ao caso, penso em perguntar se o Santa Cruz vai permanecer na Primeira Divisão, mas os assuntos vão aparecendo, aos borbotões, e acho que não cai bem misturar futebol com espiritualidade. Coisas que se encaixam se misturam às irrealidades de Jura. Resumindo, eu acredito no que quero, no que é bom, e descarto as viagens transcedentais.

Jura me conta que sou filho de Iemanjá, que terei que fazer oferendas ao mar, na forma de peixe assado. “Sempre peixe, suas oferendas têm que ser peixe”, diz, muito séria. Só nessa hora entendi porque gosto tanto de sardinha. Depois me explica que tem poderes de cura, porque é uma das poucas pessoas no planeta que têm a possibilidade de falar diretamente com Jesus Cristo, uma linha direta mesmo, sem pontes. Jura é tão poderosa, que descobriu um problema sério nas mulheres do Recife, um problema de saúde que me pareceu grave (sem entrar em mais detalhes, por questões éticas, creio), mas antecipou que está curando todas, absolutamente todas, sem que elas saibam. Falou também que está protegendo Lula, e por isso ele vai ficar mais quatro anos.

“Jura é muito poderosa”, me informa, com um sorriso.

Fiquei sabendo que ela também desenvolveu um aparelho de raio laser, capaz de decifrar todos os males de qualquer pessoa. Com o aparelho, uma espécie de binóculo remendado com várias tiras de pano amarrando, Jura faz o diagnóstico e passa o remédio, que você pode comprar em farmácias, ou no Mercado de São José. Essa consulta, que envolve energias especiais, raios infra-vermelhos, matéria cósmica, Jura cobra mais caro, começando com R$ 20,00. É preciso pechinchar bastante, para chegar aos R$ 10,00.

A “consulta” no banco da praça só terminou porque eu tinha uma reunião às 18h, e já eram 17h15. Paguei com gosto os R$ 2,00 e saí pela rua da Imperatriz. Em todas as lojas, os vendedores estavam fantasiados de verde e amarelo, e criavam, às duras penas, uma alegria derradeira, para atrair os últimos clientes. Na frente da C&A, creio, os promotores de venda faziam uma batucada meia-boca, aos gritos “faça o seu cartão agora”. Os pedestres caminhavam apressados e não vi ninguém fazer cartão nenhum, mesmo com a batucada.

Passei na velha Cristal, ali na rua do Imperador, pedi um café e uma coxinha. A senhora que me atendeu perguntou:

“Ainda estás no Diário?”.

Caramba, a mulher do café lembrava de mim, quando eu tomava umas pela Cristal, com o velho Zé Maria e o pilantra do Otávio. Mas isso foi em 1994, há 12 anos...

“Não, saí faz tempo”, respondi.

Atravessei a última ponte num galope manso, pensando na vida e nas besteiras de sempre. Ventava pra dedéu. Fiquei pensando na conversa com Jura. Acho que ela acertou em várias coisas. Mas o que gostei mesmo foi dela, a criatura com seus badulaques, suas coisas, brincos, anéis. No íntimo, ela me pareceu uma figura feliz, com um sorriso aberto, franco. "Sou uma pessoa que cura", disse várias vezes.

Qualquer hora, voltarei lá, e pedirei a utilização dos raios infra-vermelhos, para um diagnóstico completo. Quem sabe me ajude a ver melhor as coisas e a me curar de outras. Eu gosto de gente assim.

Como sou meio pirangueiro, só pagarei R$ 10,00.

sexta-feira, 2 de junho de 2006

Os rios da memória

Volto ao lugar onde morei, entre 1992 e 1994: a casa da tia-avó Flocely, numa rua sem saída, por detrás da igreja. Quando cheguei, vindo de quatro anos de Casa do Estudante Universitário, ela estava com 65 anos, e encerrava sua carreira como diretora de escola, uma mulher comprometida e engajada com o ensino de qualidade. Eu estava com reles 23, e começava minha vida de jornalista. Era um estagiário no caderno de Vida Urbana, do Diário de Pernambuco.


Foram dois anos de uma convivência amorosa. Tia, sem marido ou filhos, eu, sem mulher ou filhos, com a família distante, insistindo em tocar saxofone por várias horas, arruinando certamente seu ouvido e a tranquilidade da vizinhança. Mas um dia, o jornalismo falou mais alto e tive que ir para São Paulo. Nossa despedida, durante o almoço, foi silenciosa, lágrimas escorrendo pelo rosto, se misturando à comida que não tinha gosto.


Agora, tudo se modificou. Na segunda-feira, depois de uma grande chateação, tia sofreu um derrame. Foi atendida a tempo, e não afetou o corpo. Mas o cérebro, sempre tão lúcido, a cabeça sempre antenada com a realidade do país, o humor, as respostas rápidas, foi atingido. Desde a segunda-feira, os tempos e lembranças se misturaram. Presente, passado e talvez até o futuro, dialogam por entre as frases e devaneios.


É como se o rio da memória não fizesse um percurso claro. É como se a cada curva, surgisse outro rio, braços de bar, estuários dentro de estuários, água doce e salgada se misturando. É como se a ampulheta estivesse de pé, depois virada ao avesso, e por momentos permanecesse deitada, com a areia do tempo sem dizer nada, enquanto respiramos o hoje.


Desde a segunda, tia às vezes chama Renato, filho da valorosa Rosa, seu braço direito, de “Zelito”, que é o nome do irmão, morto há alguns anos. Há momentos em que surgem pessoas e se instalam na conversa, enquanto tomamos café e falamos sobre coisas imprecisas, no aprendizado das imperfeições, que espero levar para a vida inteira.


Sim, a memória se tornou um rio. Minto: há vários rios que se misturam, num encontro de vidas. E ontem, enquanto me preparava para dormir, no primeiro andar, descobri que eu também estava dando voltas no tempo, e nadava nas mesmas águas da memória, da saudade, do amor. Vi claramente aquele ano de 1992, quando eu caminhava para o fim do curso de Jornalismo, fazia estágio, chegava no Cabo já bem tarde, cansado e cheio de sonhos, e ainda encontrava uma janta morna, que ela aquecia antes de dormir.


Estou triste, me recompondo, mas sinto que há um certo egoísmo nisso, em querer tudo intacto, como se viver não fosse também deixar uns pedaços pelo caminho. Decido apenas estar mais perto, fazer junto este percurso entre a névoa, a neblina, a penumbra. Quero estar junto, ao lado, rindo com a mistura dos nomes dos parentes, dos fatos, ajudando a relembrar certas coisas da família, permitindo também o esquecimento, quando a saudade não chegar a tempo.


No fundo, talvez seja uma penumbra compartilhada, atravessada pelos rios da memória, o que pode ser traduzido também como amor, esse eterno encontro entre o lembrar e o esquecer.

Nota: Obrigado aos leitores pelos comentários tão cheios de beleza e força. Informo que nos últimos dias, a tia teve uma recuperação fantástica, algo mesmo surpreendente, mas revelador de sua força e amor à vida, aos 79 anos.

Logo mais, coloco outra crônica no ar.

Samarone, 5 de junho de 2006.