Aconteceu no domingo, eu já tinha escutado relatos de amigos, mas somente hoje, consegui conversar com a vítima, o senhor João Valadares. Para quem não sabe, João é um sujeito magro, boa gente, meio amarelado, um andar desengonçado, jornalista de primeira linha e boêmio desde as primeiras horas. Pode ser encontrado em botecos os mais diversos da cidade, e nas arquibancadas do Arruda, exercendo seu pessimismo ancestral. Nosso time pode estar metendo um 8 x 0, perto de terminar o jogo, mas ele olha para o lado, assustado, e confessa:
“Estou com medo que eles empatem no finalzinho”.
Pois bem. No sábado, ele exerceu sua boemia até quase o amanhecer, chegou em casa, estacionou seu carro defronte ao prédio e foi dormir.
Vamos ao carro. Um Fusca branco, 1994, todo arrumadinho, que ele apelidou de “Itamar”. Pendurado no retrovisor, pendurado, o colar com as cores do Santa Cruz, que a sua amada, Rita, costuma usar, como amuleto, nos jogos mais sofridos. Um pequeno ventilador dava um ar bucólico ao veículo. No porta-luvas, umas cinqüenta fotos do álbum da Copa do Mundo.
João acordou no domingo, desceu ainda com aquele bafo, curtindo sua ressaca, e foi pegar o carro, para ir à casa de Ritinha. Quando botou a chave na fechadura, a porta abriu sozinha. Tinha um sujeito dentro, tentando botar o carro para pegar.
“Oxente, o que tu estás fazendo aqui dentro?”, perguntou João.
“Ah, esse carro é teu, fera?”, respondeu o sujeito, sem pressa.
“É claro que é meu. E o que é que tu estás fazendo, dentro do meu carro?”
“Ah, velho, eu ía roubar o teu carro agorinha, mas como tu é o dono, não vou roubar mais não. Toma aí”.
O quase-ladrão saiu do veículo, só faltou dizer “foi um prazer”, e saiu caminhando lentamente. É bem provável que tenha ficado um pouco chateado com a presença inoportuna do João, mas o fato é que foi para casa, quase assobiando “la vie em rose”.
Cem metros depois, tinha um posto da Polícia Militar. João correu com o Fusca, chamou o policial, mostrou o ladrão, que caminhava bucolicamente ali, pela Beira-Rio.
“Tas vendo aquele cara ali? É um ladrão, estava tentando roubar meu carro agorinha, peguei ele em flagrante”.
O nome do policial era Jesus. João sentiu que tudo ía dar certo. Como Jesus e João se deram muito bem, na Bíblia, então conseguiriam prender o ladrão.
“Ah, eu não posso sair daqui não, fera. Se eu sair, eu é que vou preso”, respondeu Jesus.
João argumentou, mostrou o cara, eram pouco mais de cem metros. Nada. Nem pensar em sair atrás de ladrão. Quando chegou a viatura, já era tarde (no Recife, as viaturas da Polícia sempre chegam quando não há mais nada a fazer). João ainda circulou com os PMs, mas o cara estava longe. Não dizem que devagar se vai longe? Ladrão é que vai mesmo.
Abatido, chateado, João foi para a casa de Ritinha, em Boa Viagem. Estacionou o carro na Rua dos Navegantes. Na hora que trancou a porta do seu Itamar, sentiu algo estranho. Era um mau-pressentimento forte, semelhante à decisão do Campeonato Estadual, nos pênaltis.
Ficou no apartamento da namorada, e de vez em quando vinha aquele sexto sentido. “E o Fusquinha na rua, João Valadares...”
Já era noite, quando ele não resistiu. Iria descer, para tirar o carro da Navegantes, e botar na Avenida Boa Viagem, bem mais movimentada e defronte à entrada do prédio. Era mais seguro.
“Deixa lá mesmo, João, o perigo já passou”, respondeu Ritinha. Creio que Diogo, irmão de Ritinha, também tentou acalmá-lo, mas como Diogo é rubronegro, é bom ter cuidado.
Ele não resistiu. Desceu com Ritinha, para mudar o lugar do Itamar. Mas a chuva estava pesada. No elevador, foi percebendo que era um exagero. Chegou ao térreo, mas nem desceu. O Fusquinha ficou lá.
Sabe-se que durante a noite, o magro Valadares acordou várias vezes.
“Meu Fusca!”, pensava.
“Itamar!”.
Um suor frio o acompanhou durante toda a longa noite.
Na segunda-feira, descendo no elevador, Diogo soltou uma gracinha que o magro não gostou nada.
“Eita, o teu fusquete... Tanto que falasse, será que ele ainda está lá?”
O magro, com olheiras profundas, pensou em dar uma cotovelada no irmão de Rita, mas deixou para lá. Quando chegou ao local, estava vazio. Na madrugada, tinham roubado seu Fusquinha.
“Gelei na hora”, me confessou ele, há pouco.
Na delegacia, contou detalhadamente o que tinha acontecido. O policial perguntou qual era o ano do carro.
“Noventa e quatro”.
“Ah, pode esquecer. Vai virar bugre ou ultra-leve”, respondeu, quase sorrindo.
Foi um consolo e tanto.
João me confessou também que tinha se apegado ao carrinho. Foi um ano de convivência, entre uma boemia e outra.
“É igual a cachorro, a gente se apega”.
Uma semana antes, em uma farra com o inseparável Marcel Tito, ele disse que o Fusca 94 tinha sido a melhor compra que já tinha feito na vida.
E o toque sentimental, capaz de arrancar lágrimas no mais bruto dos brutos: João passou dois dias indo ao trabalho com as chaves do Fusca no bolso...
**Nota aos leitores: por conta da minha mudança para o Cabo, estou tendo problemas com a Internet. Tem hora que a letra fica maior, que sai minúscula, depois tudo some, esta postagem mesmo me custou um tempo enorme. Segurem firme, que em breve, tudo voltará à normalidade.