segunda-feira, 31 de março de 2008

Coisa série, gente séria e outras besteiras

Ando com uma certa dificuldade existencial - escrever sobre coisas sérias. Sei lá, deve ser o envelhecimento precoce. Aliás, a figura do "sério" sempre me pareceu desagradável. Nas campanhas eleitorais, basta eu ver um santinho com a foto de um candidato, com a frase "Seriedade e Competência", que tenho apenas uma certeza - jamais votarei nele. Quem disse que a competência não pode vir com a alegria?

"Fulano é uma pessoa séria" não acrescenta nada à biografia de ninguém. Cada vez mais, gosto de gente besta, sem muito futuro, sem grandes pretensões. Geralmente, essas pessoas vão mudando o mundo a partir de coisas menores, pequenas.

Meus companheiros de trabalho, atualmente, fazem parte desta espécie em extinção. Aquele tipo de gente que dá bom dia até para as plantas, e se preocupa não somente com os parentes, mas com a humanidade inteira.

Naná é um gordinho de 120 quilos (ele diz que são 110, mas é mentira) que só anda pelo mundo buscando o lado bom das coisas e pessoas. Um sujeito pode ter 25 defeitos, e só uma qualidade. Naná vai louvar, comentar, ressaltar, somente a a qualidade. Todo dia, às 7h, está com sua Kombi defronte à Igreja do Poço da Panela, levando a criançada para a escola. Faz isso sozinho, sem cobrar nada, há mais de cinco anos.

Iramarai, meu companheiro de caminhadas, é marceneiro. Quando tem tempo, faz esculturas, que são belas e raras. Usa madeira velha, que vai encontrando pelo caminho. É um homem que olha para o lixo de outra forma. Onde vêem sujeira e feiúra, ele vê poesia. De vez em quando, sai daqui da sala, vai lá fora, enrola seu fumo "Saci", comprado em alguma feira do Sertão de Pernammbuco, e fica lá, bestamente, pensando em algo bom.

Ninguém sabe quem é André Santos Feitosa aqui no meu trabalho, mas é só dizer "Boy", que todos conhecem. Não lembro de ter encontrado o Boy reclamando da vida, salvo em caso de derrotas do nosso Santa Cruz - que têm sido cada vez mais constantes. Basta você contar algum problema para Boy, que ele sai para dar uma volta, junta fios com material encalhado, faz planos mirabolantes, define estratégias silenciosas, e resolve o problema em dois movimentos. Se morasse nos Estados Unidos, estaria na NASA ou na Microsoft. Por sorte, está aqui mesmo, com aquele sorrisinho manso.

Nossa turma adora inventar coisas para quebrar a seriedade. Celebramos outro dia o aniversário de seu João, todo mundo veio cantar parabéns, e até ele desfazer nossa invenção, ganhou muitos abraços e sorrisos.

Um dia, eu estava no intervalo da escola, recebi um recado. Era sobre a morte do meu amigo Iramarai, que tinha sido atropelado. Fui para o banheiro, choraminguei um bocado, lembrei do meu amigão, e fui dar o restante das aulas. Meus alunos notaram logo e perguntaram o que eu tinha. Disfarcei bem.

Na hora do almoço, liguei para Naná, que tinha dado a notícia. Liguei todo triste, querendo saber o horário do enterro etc.

"Que enterro? O cara tá bonzinho", respondeu Naná, dando boas gargalhadas.

"Nossa, que brincadeira de mau gosto", comentou a secretária da escola.

Era apenas mais um dos muitos trotes que já recebi dessa turma, e caí de besta.

Vou ficando por aqui. Tentarei encontrar um assunto mais sério para a próxima crônica. Efeito Estufa, Camada de Ozônio, Protocolo de Kyoto, essas coisas.

Sei lá, mas é tudo tão grande. Queria encontrar um dia um homem sério desses, que sabe falar sobre os desastres do planeta, e que levasse crianças de seu bairro para a escola.

Os sérios levam seriamente os próprios filhos para a escola, e discutem seriamente as coisas. Nunca se lembram de comemorar um aniversário fora da data. Jamais dão um trote por telefone. Nunca se lembram de levar um lanche para compartilhar com os amigos do trabalho. Não ligam para jardins, flores, estão sempre apressados.

Prefiro os meus bestões mesmo.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Onde estão os poetas?

Não sei o que há, mas tenho sentido falta dos poetas na cidade. Mais que poetas, falta poesia no Recife. Fala-se muito de violência, e me falta um olhar menos traumático, menos guerreiro. Todos querem saber das notícias do sangue. Não é por acaso que o íconoe midiático seja uma figura tosca poeticamente, chamada Cardinot, tão feliz com a prisão dos jovens com seus baseados.

Lembro que há alguns anos, vindo de São Paulo para um Carnaval, peguei um ônibus e esbarrei em um poema do Carlos Pena Filho, o "Soneto do Desmantelo Azul". Perdi umas duas paradas, mas copiei o poema todo, e é o único que sei decorado.

"Então, pintei de azul os meus sapatos/Por não poder de azul pintar as ruas"

É só o começo.

Ando cada vez mais desinformado, e não sei onde andam os recitais do Recife. Sei que o queridíssimo Miró circula pelos mercados, com sua última pérola, "Onde andará a Norma?"- , mas faz tempo que não esbarro em seus gestos alucinados, recitando poemas que falam das paradas de ônibus, e de uma mulher que ficou toda molhada quando o homem da água mineral passou carregando um garrafão de 20 litros.

O nome do poema? H2love.

Sinto falta dos poemas nos muros das escolas.

Raramente vejo alguém dentro de um ônibus, lendo um Manuel Bandeira, um Mário Quintana, um T.S.Eliot.

Ando sentindo falta de sarau, de encontros de amigos não somente para falar sobre os caminhos e descaminhos da vida, as glórias e desastres do futebol, avanços e recuos da economia. Os jornais só falam de mortes e desvios.

Ah, nada como uma boa conversa sobre os descaminhos de Walt Whitman ("Pois o culto verdadeiro também não precisa de palavras nem de se ajoelhar"), as glórias e desastres de uma Silvia Plath, aquela mansidão perpétua do Mário Quintana.

Neste Recife cheio de injustiças, e nesta noitinha sem eira bem beira, já a caminho de casa, me ocorre uma pequena folha de relva para completar estas poucas palavras:

"A justiça não é aquela feita por legisladores e leis, ela está na alma".

Dêem notícias, poetas. Quero um encontro desmarcado com a próxima alegria.

quarta-feira, 26 de março de 2008

As ciladas da Internet: www.hi5.com

Escrevo para pedir desculpas a muitas pessoas que acabaram, como eu, cadastradas involuntariamente no site de relacionamentos www.hi5.com

Recebi um email de um professor de literatura, um mestre e grande amigo, julguei que era algo simples, uma rede de contatos dele, e acabei me cadastrando nesta rede. Fiz a besteira de mandar uma foto.

Quando fui ver, é um site de relacionamentos. Tentei, durante várias horas, retirar meu nome, minha foto, não consegui.

Pior: pessoas começaram a receber email com meu endereço, com meu convite para que elas também participassem. Muitos amigos caíram nessa.

Uso a Internet para ver a mídia alternativa do mundo, os blogs bacanas, postar minhas coisas e mandar mensagens pessoais para os amigos. Detesto Orkut, e apesar de ter um blog de crônicas, algumas bem pessoais, meu temperamento é mais para o sossego, para encontros com poucos, do que para multidões.

Dois amigos estão tentando tirar meu nome desta droga de Hi5. Se alguém receber o convite, aviso logo - só entre se achar bacana esse negócio de site de relacionamentos.

Maldito Hi5. Até o nome é brega. Se eu encontrar um advogado bacana, vou processar esses caras, que botam você para dentro, e não deixam sair. Por precaução, não vou acessar de jeito nenhum.

Ano que vem, vou tirar um ano sabático: um ano sem Internet.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Ao próximo prefeito



Biblioteca numa rua de Tóquio. Penso numa dessas no Córrego do Jenipapo
(Foto de Carlos Vaz Marquez, pescado no blog www.sintaaez.blogspot.com)

Ontem tive a primeira reunião de base para discutir propostas e planejamentos para a próxima campanha à Prefeitura da Cidade do Recife. Não sei como isso funciona em outras cidades, mas aqui o povo é meio avexado.

Na quarta-feira, no bar de Seu Vital, teremos outra reunião, para detalhar o planejamento, para depois conversar com nosso candidato, o Luciano. Diga-se de passagem: o povo aqui adora reunião.

O tema surgiu no meio do aniversário do meu comparsa de caminhadas, Iramarai, e a discussão pegou fogo. Súbito, todos começamos a sonhar com uma cidade melhor, mais humana, menos violenta, mais bonita.

Eu quero muitas coisas do próximo prefeito, mas lutarei, com as forças possíveis, para que ele se preocupe com bibliotecas, leitores e livros. Quase ninguém fala, há formas mais inteligentes de se vencer a violência.

Que a cidade ganhe de presente lindas bibliotecas, nos bairros mais pobres. Não falo dessas bibliotecas da escola, que funcionam dependendo do temperamento da responsável, muitas vezes com bons livros, mas sem leitores. Falo de bibliotecas lindas, bonitas, amplas, bem iluminadas. Bibliotecas com cadeiras confortáveis, silenciosas. Um lugar que dê vontade de ir, ficar, nem que seja para se envolver com o silêncio, a quietude, a paz.

Um mar de livros. Todos aqueles autores que ajudam a mudar conceitos, a percorrer labirintos, a descobrir mundos.

Penso não num Parque Dona Lindu, que é a grande obra do fim da atual gestão, que vai custar uns 40 milhões, sei lá, um negócio que vai custar milhões, mas não tem uma biblioteca dentro.

Imagino bibliotecas lindas no Coque, na Favela do Detran, Chão de Estrelas, Linha do Tiro, Alto do Pascoal. Lugares que abriguem nossos jovens, para que tenham um refúgio, milhares de amigos em páginas cheias de letras, para desvendar outros caminhos.

Do próximo prefeito, espero uma gestão que gaste menos com o Carnaval, que traga menos artistas consagrados, e que cuide mais de prateleiras, estantes, que contrate pessoas que amem os livros, para tomar conta, orientar, ler, compartilhar belezas.

Na metade do seu mandato, gostaria de escutar um jovem falando com outro:

"Nos encontramos lá na Biblioteca do Coque, no setor de literatura brasileira".

Ou:

"Tás sabendo que hoje tem uma palestra sobre poesia no Alto do Pascoal?"

Ah, como queria uma nova geração de leitores, de apaixonados por livros. Como sonho em passar a roleta do ônibus e esbarrar com várias pessoas lendo poesias, crônicas, romances.

Quando penso nesses jovens, lembro dos meus alunos, todos na faixa dos 17 aos 19 anos, que descobriram Fernando Pessoa, Clarice Lispector, que se encantaram com o Renato Carneiro Campos. Posso ver Suco, Gabriela, Ana Cecília, Danúbia, Herivelton, Windoson, Manuela, tantos outros, que descobriram este mundo encantado, e nunca mais conseguiram sair dele. Ah, como sinto que eles estão protegidos, com o Fernando Pessoa na algibeira, com a Clarice a encantar os sonhos dentro da bolsa...

Nunca consegui fazer com que minhas propostas entrem nos programas de governo. São sempre fora de moda, não contribuem muito, não dão votos. Minhas preocupações são outras.

Modestamente, lutarei para que livros e bibliotecas façam parte do programa de governo do próximo prefeito do Recife. Sonho com uma geração de novos leitores, de apaixonados por histórias, que trocarão, sem perceber, as armas pelas páginas.

Sonho com uma cidade repleta de poetas, cronistas, romancistas, ou pessoas mais sensíveis às belezas do mundo. Nossos jornais poderão noticiar um recital com 300 poetas, ao invés de mais 32 homicídios no feriadão.

Começo a juntar meu pequeno e brancaleônico exército para mais uma batalha.

Invoco o meu querido Leminski para animar meus camaradas:

"Distraídos venceremos".

Para meus ex-maravilhosos alunos da Oficina da Palavra

terça-feira, 18 de março de 2008

Louvação de março: A Paixão de Eli

Com fotos de Antonio Braga, do Escola Aberta

Depois de tantas viagens, nada como Hermilo Borba Filho para encontrar um bom mote para escrever.

“Começo o ano tomando várias providências. Uma delas é louvar, todo mês, aqui nesta coluna, amigo ou conhecido que mereça ser louvado. Nada de esperar sua morte, louvá-lo mesmo em vida; nada de necrológio, mas de reconhecimento público de seu valor; nada de louvor somente porque o cujo morreu mas elogio de corpo presente, corpo vivo e bolinando, que elogio faz bem à alma e à saúde quando quem recebe o elogio merece”.
(Diário de Pernambuco, 3 de janeiro de 1974)


Sim, mas quem eu louvaria, em março de 2008?

Fiquei catando aqui, e como já falo muito de meus amigos, das pessoas que quero bem, acho que louvaria algumas pessoas do Recife, que se espalham por aí, e ajudam a cidade a ficar mais bonita. Vou a uma paixão antiga – os anônimos.

Começaria por esses anônimos abnegados que fazem a Paixão de Cristo dos subúrbios, escolas, igrejinha simples. Hoje, recebi convites para ver a Paixão, em Nova Jerusalém, mas não senti uma nesga de vontade de sair para aquela superprodução, ver o Cristo, Maria e outros personagens, olhando para a cara dos atores globais.

Prefiro louvar o diretor Eli Jonas Machado, de 55 anos, que encontrei um mês atrás, quando se preparava para fazer a primeira leitura da Paixão com um elenco de uma escola pública, a Escola de 1º e 2º Grau Mascarenhas de Morais, ali em Olinda, junto ao 7º R.O.



Lamentei as muitas viagens que tive que fazer, pois iria escrever uma matéria sobre ele, para a Continente Multicultural. Eram 14h45, um sol de matar, e ele, um homem animado, camisa simples, calça jeans, uma criatura desprovida de bunda, recebia os alunos, de todas as idades, em um amplo auditório da escola. “Nem almoçar hoje almocei”, foi a primeira frase que disse, e eu tinha certeza que era verdade.

Eli, um abnegado, iria conversar com os alunos, ver quem poderia aproveitar de outras montagens, “quem dá, quem não dá”, como dizia. “Dificilmente a gente corta alguém, só por indisciplina”.

Ano passado, ele envolveu 184 alunos. Este ano, espera botar 250 jovens nesse mundo de paixões. Quem sabe, desperte outras paixões. Ao final, pretende realizar quatro apresentações, em 12 escolas. Hoje mesmo, deve ter Paixão de Eli em algumas escolas.



“Pedro, vem cá!”, grita ele, e Pedro, humilde, se aproxima. É um rapaz magro, tímido, não sei como ele vai se virar com o Pedro. Mas sei que esses tímidos são um perigo. É cada ator danado.

“Ano passado, gastei R$ 13.500,00”, diz. “Este ano, terei que me virar em mil”. Consegue patrocínios, paga as contas, mas a realização mesmo é quando vê os meninos atuando, interpretando, desenvolvendo potencialidades.

Eli, o meu louvado deste março à beira da Paixão de Cristo, resolveu colocar um Jesus negro.

“Ele começou fazendo um fariseu, dizendo – não batam nele, eu carrego a cruz!”

Caramba, isso é que é uma frase forte.

Converso rapidamente com o ex-fariseu, futuro Jesus. Rodrigo Paiva, um rapaz de bom sorriso, obviamente negro. Não terei muito tempo para conversar, é apenas um contato inicial, anoto seu telefone, diz que é a quarta vez que participa da encenação, está feliz com o novo desafio. Sou informado por Eli, que o menino já fez parte de gangues, era virado na escola, hoje trabalha ensinando teatro nas escolas.



Para quem não sabe, são oito fases de trabalho duro, até a estréia. Primeiro, o contato com as escolas, para divulgar o projeto. Depois, explicação para os candidatos sobre o que é “o espetáculo em si”. O que aconteceu nos últimos dias de Cristo na terra. Para quem não sabe, foram uns dias bem atormentados, ele sofreu muito. Terceira parte: leitura e interpretação dos textos. Neste momento do processo, os alunos terão que saber que foi Judas, Madalena, aquele povo todo. Na quarta parte, terão que ler uma parte do Novo Testamento. Vem então a quinta e preocupante etapa, que é a escolha dos papéis.

“Ano passado, faltando 15 dias para começar, o Cristo desistiu. Como ele era ex-viciado, não ficava bem tirá-lo do trabalho”, explicou Eli, mas não entendi bem. Do nada, surgiram três possíveis Cristos. Um tinha sido o Demônio, outro, Caifás, e outro não lembro, porque foi um dia em que estive péssimo no meu trabalho de campo, e estava certo de que voltaria, para acompanhar todas as etapas.

Na sexta etapa, a compra do material, para a confecção da cidade cenográfica. Penúltima fase: gravação do CD com as vozes, os diálogos da encenação. Por último, os ensaios, sempre às 17h, para não atrapalhar a vida na sala de aula.

“Nos ensaios e na encenação, os atores não devem puxar pelo “x”, como na TV”, explica Eli. Quero saber como eles fazem em Nova Jerusalém, com aquele povo todo vindo do Rio.

Eli, que louvo neste mês de março, foi aluno de escola pública. Deixou de estudar em 1970, para trabalhar. “Capinei mato, fui de serviços gerais, servente, eu era semi-analfabeto”, diz, enquanto ajusta a calça jeans folgada, e acompanha a chegada de mais futuros fariseus, soldados romanos, um eventual Pilatos, candidatas à Maria, fora o Judas, que não localizei na sala. “Voltei a estudar em 2.000, por insistência de minha esposa”.

Fez o supletivo do 1º e 2º grau. Duas semanas depois, fez o vestibular para Matemática. A história prometia ir longe, mas eis que chega Ivanildo Diniz dos Santos, o carpinteiro da encenação toda. É o homem disposto, que vai fazer o milagre de transformar madeiras, cola e tinta, na Jerusalém do subúrbio. Escuto uma beira de diálogo.

“Você tem que cortar a madeira direitinho”, diz Eli.

“Ah, isso vai dar trabalho”.

Anoto o telefone do carpinteiro, de Eli, de Jesus. Pela primeira vez na vida, tenho o celular de Jesus, penso em pedir ajuda ao meu Santa Cruz, que estão querendo acabar, mas ainda é cedo, certos pedidos importantes, só com intimidade. O homem tem que ser crucificado primeiro, para subir ao céu, e depois me atender.

Vamos a um matagal na escola, ao lado da quadra sem rede, onde o futebol corre solto, com o sol ainda fumegando. Os meninos vão chegar em casa com a camisa da escola pingando, mas o que importa é o gol de fora da área, de preferência um sem-pulo na gaveta.

Eli e o carpinteiro entram no matagal, tiram medidas, e sinto que estou em outro mundo. Aqui, a paixão é outra. É a paixão pelo teatro, pelo trabalho em escolas, com jovens. Nem deveria se chamar “ A Paixão de Cristo”, mas “A Paixão de Eli”.



Voltamos, ele me diz que tudo ali vai ser limpo, ali será a cerimônia da condenação, ali vai ser a crucificação. Ele vê o cenário pronto, e eu só consigo ver, por enquanto, mato e dificuldades.

Por conta das viagens para o Sertão, não pude acompanhar o processo todo da encenação. Uma pena. Olhei agora no meu caderninho, teve encenação na escola ontem, com repeteco hoje e amanhã.

Acabei de falar com ele pelo telefone. Ontem, na estréia, houve um imprevisto. Estava tudo pronto, Jesus (Rodrigo Paiva), aquele rapaz negro, estava na boca da cena, quando teve um ataque de epilepsia. A encenação só não naufragou, porque Eli, macaco velho de encenações, já tinha deixado um ator pronto. Era o Reinaldo, que estava todo maquiado. Iria interpretar o demônio. Desfez a maquiagem, vestiu a roupa de Cristo, e deu tudo certo. Que o Bento XVI não saiba dessa.

Hoje, o Cristo negro retorna. É ver para crer.

Eli seja louvado.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Dois vagabundos na estrada (epílogo a contra-gosto)

O carro deslizou suave até Piranhas Nova, onde estava acontecendo a feira semanal. Feira no interior é aquela maravilha. Roupas, sapatos, sandálias de couro, caldo de cana, lamparinas, fora as comidas todas, uma fartura de cores, sabores, fruto de mãos que cuidaram da terra, plantaram, olharam o céu, à espera das chuvas.



Maraí consegue comprar seu fumo, damos uma reparada em tudo, até que chegamos à barraca do caldo de cana. Não digo nada, o dono do negócio, seu Manuel, pergunta se somos do exterior, digo que soy cubano, e Maraí, já sabendo como funciona nossa lógica do brincar com a vida, entra no jogo.

Seu Manuel fica louco de alegria, me estende a mão.

“E como está Fidel?”

“Mal, muy mal, enfermo”.

Maraí faz a tradução.

“Ele disse que Fidel está muito doente”.

O negócio começa a ficar sério quando ele chama sua esposa, Vânia, e o filho, Paulo.

“Ele é cubano. Disse que Fidel está morrendo”.

Olha para mi e completa:

“Eu sempre quis conhecer um cubano”.

Marai faz a tradução. Falo sobre a vida difícil no meu país, acho o Brasil imenso, Beberico o caldo de cana, que está delicioso. Resolvemos tirar uma foto. Seu Manuel está todo orgulhoso, junta a família. Marai fica demorando para tirar a foto, fica fazendo o foco, quase digo para ele deixar de frescura, mas Seu Manuel iria perceber que não sou cubano coisa nenhuma, fico calado.

Saímos dali para Canindé, única cidade da região que tem Banco do Brasil e Bradesco. Damos alguns passos, e vem um sujeito numa motoca, com uma mulher na garupa.

“Vocês são hippies?”

Explicamos que estamos mais para vagabundos que para hippies, e pelo que sei, hippie sempre vende uns badulaquezinhos. O sujeito desce da moto, se chama Carlos, é professor de química, a mulher se chama Carmem. Achou a gente interessante, resolveu conversar. Perguntou o que a gente achava da transposição, e como a maior parte do povo nordestino, não temos opinião formada. Sabemos apenas que há muitos interesses por trás. Carlos diz que era assim também, até apoiava a transposição, mas depois que conheceu uns promotores ligados ao meio-ambiente, mudou radicalmente, e agora faz campanha contra.

“Vi uma apresentação de um promotor, com todos os dados, mapas. Essa obra vai beneficiar justamente os mais ricos, os que têm terras”.

Conversamos um pouco, Marai, que gosta que só do Lula, questionou se um presidente nordestino iria fazer uma mazela com a região, Carlos disse que governantes fazem besteiras e só depois percebem, depois pediu para tirar uma foto com a gente. Decidimos que já bastava do assunto transposição, resolvemos botar o pé na estrada de verdade.

É uma caminhada e tanto, num sol de queimar o couro. Quando percebemos que o caminho é muito mais longo, passa um caminhão, pegamos carona, vamos na boléia, com o vento no focinho, aquela sensação de liberdade completa. Não temos horários, direção exata, o mapa fica geralmente na bolsa, não temos bússola, apenas vamos, ao deus-dará. Se dependesse da gente, o turismo mundial seria uma grande festa, de erros e tentativas, descobertas e espantos, não essa chatice de guias, museus, lugares marcados, mas isso é coisa para outro dia.



Foi uma sorte, a carona. Canindé fica a muitos quilômetros de Piranha, e é uma longa subida, levaríamos horas nesta pisada. Sem perceber, estamos na hidroelétrica de Xingo.

Tiramos dinheiro em Canindé, depois voltamos a Piranhas Nova. Vamos atravessando a rua, um cara me olha e diz:

“Eita, é Moisés, e vai abrir o Mar Vermelho”.

Vamos caminhando para Piranhas, que julgo ser a velha, é outra longa caminhada, mas é uma descida. Pocot, pocot, vamos os dois em silêncio, até que Piranhas aparece, de longe, e já percebemos que a cidade é um pequeno deslumbramento, uma mistura de Olinda com certas ruas do Poço da Panela. Maraí está tão exausto, que me encarrego das fotos, plec, plec, plec.



Atravessamos a cidade, chegamos às margens do Velho Chico, onde funciona uma verdadeira praia. Pegamos uma sombrinha, depois mergulhamos os pés na água, eles fazem chhhhhhh, porque estavam em brasa. Mergulhamos, nadamos, parecemos dois meninos.



Ali, depois de uma conversa fiada, descobrimos que a caminhada tinha chegado ao fim. Estamos exaustos, mas felizes. Terminamos nossa quinta expedição. Descobrimos que a vagabundagem vale a pena. Nadei vários metros no meu clássico craw, depois encontramos a pousada da Vanda, uma pequena jóia, meio abandonada à beira do São Francisco.

Vanda está desgostosa, pensa em vender ou arrendar a pousada, se eu tivesse dinheiro, comprava na hora. O último gerente vivia cheio das garapas, afastava os turistas. As plantas estão secas, há um cachorro sonolento, e duas mulheres na rede. Uma delas é esposa de Júnior, o novo gerente, que ganha R$ 200,00 por mês, mas não paga aluguel, luz, água. O rapaz é diligente, atencioso, providencia pratos, libera a cozinha, mas infelizmente torce pelo Flamengo. Tem uma filha de três meses, que está mamando. Marai faz duas suculentas saladas, que comemos num pátio belíssimo, vendo o rio por ali. Ah, meus amigos, feliz de um povo que tem um rio São Francisco cruzando seu território, abençoando pessoas, animais, plantações, embelezando os olhos, enchendo a vista de abundância, no mormaço da tarde...



Cochilamos. À noite, demos uma volta por Piranhas. Meu deus, que cidade linda, tragicamente abalada pelo som dos forrós, que têm como refrão “e tome! Tome! tome!”, ou pérolas como “beber, cair, levantar”. Paramos num boteco, o Seu Vital de Piranhas, bebemos o café mais aguado do globo terrestre. Conversamos longamente com Besouro e dois amigos. Paulo é o dono da venda, diz que até 64, a cidade era uma maravilha, mas o golpe arrasou tudo, porque tiraram os trens.

“Aqui, filmaram Bye Bye Brasil e Baile Perfumado”.

Ganhamos aulas de história, começando da época de Lampião e seus camaradas.

Seguimos caminhando, esbarramos no mirante, e no meu clássico medo de altura. Resolvemos encarar. São 300 degraus, mas estou decidido a não olhar para trás nem para os lados. Lá em cima, está escrito: “Homenagem do povo do século XIX ao povo do século XX”.

Sentamos nas cadeiras do restaurante, ficamos vendo a lua minguante refletir sua luminosidade no rio, que se torna um imenso contorno prateado.

“Lindo, lindo, lindo”, fica repetindo Marai.

Na volta para a pousada, combinamos de assistir “Bye Bye, Brasil”, e “O Baile Perfumado”.

Teria mais uma postagem sobre os infortúnios do retorno, mas penso que meus 33 leitores estão cansados de tanta caminhada. Aguardemos.

Para Carol Bolinho, caminhante

terça-feira, 11 de março de 2008

Dois vagabundos na estrada, volume 2 (de um total de 3)


Travessia do glorioso rio Moxotó, separando duas nações

Sim, como eu vinha dizendo, chegamos sem muitos problemas ao rio Moxotó, que é bem franzino, nem parece um rio que separa estados. Novo descanso, água. Foram nove quilômetros, e não estamos com essa bola toda. Pegamos fôlego, voltamos a andar, até que descobrimos um povoado com casas organizadas, uma igreja. É uma tribo que vive ali, informam. Resolvemos ver de perto e beber água.

No caminho, uma subida íngreme, num calor dos diabos, esbarramos com um senhor de uns 60 anos, negro, que tenta se levantar. Está mais bêbado que todos os meus amigos, no domingo de Carnaval. Resolvemos ajudar, levantamos o homem, ele solta um bafo que quase nos derruba. Está suado, creio que bebeu uns dois litros de Pitu.

Chegamos à aldeia Jeri-Pankó, de descendentes dos Pankararu, com Pituta à tiracolo, o que facilitou nossa vida. Aliás, não poderia haver melhor nome para aquele homem: Pitu-ta. As quatro primeiras letras mostravam que ele não estava mesmo para brincadeira.

Bebemos água, e os meninos nos cercam, puxando assunto. Bilico, o mais danado, faz logo amizade, diz que vai ter um ritual indígena à noite, e que poderemos participar. Depois chegam, por ordem de entrada, Dantinhas, Emanuel e Teté. Perguntamos onde tem café, eles dizem que é lá em cima, no bar do Manu, vamos com eles.


Manu está cortando os cabelos de Tio Zé, usando aquelas maquininhas elétricas, nos recebe com simpatia. O corte custa R$ 2,50 e Marai diz que vai raspar a cabeça. Acho uma idéia triste, mas nem discuto, ele tem essas manias. Manu diz que não tem café, mas avisa a Bilico para avisar à mulher para fazer um café para a gente. Sentamos, exaustos. O sol está tinindo. Depois chegam Dimara, Ailton, Micaela, Cleomar, Marcelo e Rosildo, fora o Raí, Idemir e Quesimar. Criança adora gente estranha.

Ficamos conversando, Marai descobriu que seu irmão é indígena, porque o Tio Zé é “ingualzinho a ele”. Ele sempre diz assim, “ingual”, porque diz que a palavra vem de “íngua”. Acontece um monólogo, onde Marai conta a vida do seu irmão, e todos acompanham atentamente. É uma história triste pra chuchu. Daqui a pouco, chega uma garrafa térmica cheia de café, novinho em folha.

Pedimos uma cajuína, não tinha no bar, Bilico pegou o dinheiro e foi comprar. Saiu na velocidade do vento, e pouco depois, estava com uma cajuína de dois litros. Repartimos com a criançada. Marai dormiu um pouco, e apareceu o mesmo Bilico uma corda de madeira, para acordá-lo.


Lá pelas tantas, todo mundo vai pra casa, ficamos ali, esperando o sol maneirar para a última parte da jornada. Tiramos fotos, peço para os meninos escreverem algo no meu diário. Wilardy desenhou uma casa e uma criança, e botou a data. Adenildo (11 anos), desenhou um jogo de dominó. Ailton Amilton dos Santos, de dez anos, desenho uma casa e uma árvore. Distribuí caneta para seis meninos. Fiquei apenas com uma, o suficiente. Às vezes, a gente tem coisas demais, e nem sabe. Manu aparece, pergunta se queremos comer um feijãozinho. Explicamos que estamos em jejum, ele insiste, mas acaba se convencendo que era mesmo verdade. Ele diz que vai ter o ritual à noite, varando a madrugada, chegando à metade do domingo. Se quiser, poderemos participar e até dançar. Adoro rituais indígenas, mas achamos melhor seguir.

Nos despedimos de todos, atravessamos a aldeia, que é arrumada e não tem problemas de abastecimento d´água. A cara dos meninos é boa, os dentes branquinhos, tem uma escola na comunidade. Como vieram oferecer feijão, a fome deve estar fora do cardápio.

Chegamos a Pariconha às 15h30. Pelos nossos cálculos, caminhamos 23 quilômetros. Queremos ir para Delmiro Gouveia, mas é distante. Os motoboy informam que todos os carros já saíram. Se a gente der sorte de aparecer um carro...

Sentamos, aguardamos. Passa um gordinho com um baita cigarro de palha na boca, parecendo mais um charuto. Usa dois relógios, um em cada braço. Marai pergunta a hora. Ele olha o braço esquerdo.

“Três e trinta”.

“E no braço esquerdo?”

“Três e trinta e um”.

A diferença nos impressiona, o gordinho aproveita a deixa e comenta:

“Cortaram a minha aposentadoria, vocês acreditam. É muita safadeza”.

Ficamos indignados. Como é que se corta a aposentadoria de um camarada de uns 40 anos, gordinho, só porque usa dois relógios, um em cada pulso? Olhamos a igrejinha, achamos esse nome da cidade muito esquisito mesmo, Pariconha. Vinte minutos depois, estaciona uma D-20. Nos avisam de longe que vai para Delmiro. Custa R$ 2,00 por cabeça.


Pegamos o carro. Na frente, o motorista e uma mulher. Atrás, eu e Maraí. Vai entardecendo, esticamos as pernas, olhamos a paisagem. Uff, com é bom viajar sem rumo, descobrindo esse Brasil das brenhas.

São 17h05, quando chegamos ao centro de Delmiro. Batemos em duas pousadas, nos olham de cima abaixo, dizem que não têm vaga. Andamos mais 40 minutos, até chegarmos à Pousada das Pedras, que tem vaga. Tomamos banho, trocamos de roupa, e vem de novo aquela exaustão ancestral. Levantamos somente para comprar verduras, uma sardinha. Maraí faz uma salada deliciosa, usando a mesinha do hotel. Conseguimos dois pratos, saboreamos folhas as mais diversas, tomate, cenoura. Fim do jejum.

Iríamos sair para conhecer Delmiro, à noite, mas fomos vencidos. Dormimos sem muriçocas. Vi na TV uma reportagem sobre alimentação. Dizia que o brasileiro desperdiça 39 milhões de quilos de alimentos, um terço do que se produz em todo o território, isso é uma tristeza. Caro leitor, se não for comer tudo, bote um prato menor. Tenho horror a quem deixa comida no prato.

Às 7h55 do dia seguinte, após um bom café no hotel, fomos para o centro, buscar um carro até Piranhas. Passamos pela Lourenço Tecidos, que tem uma marca forte:

“Lourenço Tecidos – diz o que tem, porque tem o que diz”.


São 8h25, e a D-20 sai de Delmiro, rumo a Piranhas. Somos cinco pessoas de cada lado do banco de madeira. A passagem custa R$ 5,00 per capita. No centro do carro, estão as bagagens.

Dez minutos depois, a D-20 para, tem uma multidão querendo entrar. O velho que toma conta do veículo desce, manda botar todas as bolsas no telhado do carro, providencia um banco extra, e daqui a pouco, somos 19 criaturas, espremidas, cada uma com sua história, rumo a Piranhas. O carro voa. Qualquer acidente, não vai sobrar um vivo.

Mas começam os diálogos, as conversas, e a gente na hora esquece a velocidade.

Amanhã, boto o resto da viagem e encerro mais uma trilogia da vagabundagem.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Dois vagabundos na estrada (Volume I)

Lá vamos, eu e Iramarai, para mais uma jornada a pé. Queremos simplesmente andar. Sair da correnteza, da cidade grande, dos carros. Longas jornadas, com os pés no chão, nossas mochilas, pouca coisa, nossos cantis, nossos olhos.

É nossa quinta expedição. Relembramos isso no meio da viagem, enquanto ele descansava em cima de uma Quixabeira, que se tornou a árvore-símbolo da viagem. Fomos informados de seus poderes medicinais, então arrancamos lascas e colocamos em nossos cantis. Durante toda a viagem, bebemos água com gosto de barro, e nos sentimos estranhamente forte, como se fosse nossa kriptonita.


Como sempre, escolhemos na base da intuição. Terminamos nossas atividades pela Secretaria Estadual de Saúde, quatro dias de muito trabalho no sertão, e voltamos com o motorista Belém. Num determinado ponto, resolvemos ficar. Belém toda vez fica desesperado. Diz que vai estar com o celular ligado, para o caso de acontecer alguma coisa, se a gente precisar. Pergunta mil vezes o que vamos fazer, a pé, naquele meio de mundo, tão longe do Recife. Vamos andar. Simplesmente andar. Vamos ao vento, ao sabor do destino, colhendo o que chega, compartilhando o que podemos, contando e escutando histórias, vendo o povo.

Levo um pequeno bloco no bolso, onde anoto religiosamente os horários de partida e chegada, nome dos lugares, vilarejos e pessoas que conhecemos. Saímos de Tacaratu, perto de Jatobá, à 16h24 da sexta-feira. O primeiro objetivo é chegar a Caraibeiras, mas nunca sabemos se vamos conseguir. Precisamos de um mapa que tenha indicações de estradas, veredas, sempre dizemos isso, e toda viagem usamos meu surrado mapa, que vai caindo aos pedaços, a cada viagem que faço.

Iniciamos nosso jejum, que vai durar 24 horas, e será concluído no dia seguinte, com uma farta e deliciosa salada de verduras, no quarto de um hotel, em outra cidade.


São duas horas e meia de jornada, amparados por uma luminosa lua cheia. Acertamos em cheio no horário, porque o clima está ameno, não pegamos o sol no lombo, como em viagens anteriores. Aos poucos, a cada caminhada, vamos descobrindo as manhas. Não exagerar com o corpo, ter alguns cuidados. Nos identificamos muito com os vagabundos, mas às vezes, somos mais desleixados que eles.

Chegamos em Caraibeiras exaustos, porque tomamos o café da manhã em Ouricuri, e rodamos 619 quilômetros, até seguirmos a pé. Buscamos algum lugar para dormir. Maraí queria o de sempre: encontrar uma árvore boa, limpar o chão, fazer um foguinho e dormir. Sim, mas trabalhamos a semana inteira, estamos exaustos, é o primeiro dia da caminhada, e não temos sequer um colchonete, apenas um lençol para os dois. Além disso, acabamos de caminhar nove quilômetros. Vence, por empate técnico, a proposta de dormirmos em uma pousadinha simples, para recuperar as energias. No sábado, teremos muito chão pela frente.

Procuramos um lugar. Somos informados por um gordinho simpático que Dona Lourdes tem lugar para dormir, fica ao lado da igreja, pegando à esquerda. Encontramos a igreja, pegamos à esquerda, mas dona Lourdes não está. Sua funcionária, Dina, informa que a diária custa R$ 7,00 e dá direito a café da manhã. O quarto é limpo, miúdo, tem três camas e um ventilador. Ao lado, um banheiro decente, com água corrente, porque quando falta na cidade, dona Lourdes manda encher uma cisterna. Paga R$60,00 ao caminhão-pipa.

O silêncio é formidável, e o calor começa a nos assombrar. Dina, uma negra simpática e jovem, diz que seu irmão vai chegar mais tarde da escola, e vai dormir na rede, que está pendurada no pátio. O cachorro, simpaticíssimo e velho, se chama “Amiguinho”, e fazemos amizade rápido.


O banho nos renova, mas estamos quebrados. Descobrimos que a semana foi mais cansativa que pensávamos, ou já não temos mais o mesmo pique de outras caminhadas. Contra nós, pesa o efeito do “Fator Gildázio”. Ficamos hospedados a semana inteira no mesmo quarto com Gildázio, com seu ronco capaz de acordar uma cidade inteira. Foram alguns dias dormindo mal e trabalhando muito. Meu amigo deita, cai exausto e dorme. Vou para a mesa, anotar minhas coisas, ler. Dina providenciou uma garrafa de café, que vou consumindo devagar.

As muriçocas não demoram a atacar. Pouco depois, Marai levanta. O ventilador não segura o calor, nem as muriçocas. Saímos para uma caminhada na cidade, mas não avançamos muito. Meu amigo sente uma fisgada em sua famosa “verruga plantada”. Descobrimos que estamos ao lado na funerária São Francisco, que tem o “Plano São Francisco”, e atende 24 horas. O responsável é Chico, mas não estamos precisando de seus serviços, pelo menos por enquanto.

Sentamos no banco da praça, ele faz dois cigarros de palha, e fumamos, muito quietos. Ah, esses instantes fundamentais de nossas viagens, quando estamos exaustos e algo de júbilo nos envolve. Estamos longe de tudo, sem internet, celular, e não sabemos para onde vamos, nem o que fazer. Olhamos o céu, ele fala de umas constelações, mas sou cego de nascença. Ele vê desenhos no céu, só vejo estrelas mesmo. São as burrices de cada um. Às vezes, acho que ele inventa constelação. Vou criar as minhas também. Aquela ali é a Elegíaca, veja ali a Polinésia, ao lado da Arcaica. Sim, sim, vou reagir.

Damos as primeiras tragadas, e passa o gordinho informante. Pergunta se encontramos Dona Lourdes, respondemos que sim, agradecemos, ele segue.


Voltamos para Dona Lourdes. Maraí vai tentar dormir. Pergunto a Dina se posso assistir a minisérie “Queridos amigos”, ela diz que sim, pego uma cadeira de balanço, fico reparando os últimos instantes do Big Brother. Ela e o marido sabem o nome de todos os personagens, as tramóias, quem vai sair, quem vai ficar, enfim.

Maraí chega. Acordou, com as muriçocas. Ficamos os quatro na sala, e começa o seriado.

“O que é que a gente faz com as muriçocas?”, pergunta Marai.

“É só não ligar para elas”, responde ela, sem desgrudar da TV.

Termina o episódio do dia, voltamos para o quarto. Ele deita, volto para a mesa, vou ler e escrever até cansar. Daqui a pouco, chega o irmão de Dina, que não sei o nome. É um sujeito calado, com gestos precisos e econômicos. Toma um banho, janta, volta, deita na rede e dorme. Lá pelas tantas, solta uns bons peidos, e segue firme.

Já é madrugada, quando resolvo dormir. Olho as estrelas, estão lá: Elegíaca, Polinésia, Arcaica. Sim, minhas constelações. Maraí se mexe de um lado para o outro. Não consegue dormir direito.

Nosso plano era acordar às cinco horas do sábado, para às seis estar na estrada.

A muito custo, saímos de Caraibeiras às 7h55. Vamos olhando as empresas da cidade, e um modelo próprio de divulgação.

“Sorveteria Sabores. Organização: Negão”.

“Funilaria Futura. Organização: Chico”.

“Auto escola Regismar. Organização: Chico”.

“Trevo Madeiras”.

Essa empresa não botou a organização.

À saída, descobrimos que estamos na “Cidade das redes”. Há pequenas e médias fábricas em toda a cidade. A rede mais em conta, custa R$ 12,00. O som dos teares industriais se espalham por várias ruas. Paramos defronte à casa de dona Carminha, que usa um tear manual, para fazer o “cadi”, uma parte que sustenta a rede. É um trabalho complicado, o troço exige uma mão de obra danada. Ela ganha R$ 0,40 por peça. Tiramos foto dela, os três filhos são bonitos como o quê.

A população de Caraibeiras: 4.328 almas.

Caminhamos por uma estrada de terra, com pouquíssimos carros. Alguns quilômetros depois, paramos numa sombra, porque o calo de Maraí está fazendo estragos. Ficamos debaixo de uma quixabeira, bebemos água, nos recuperamos. O sol está rasgando tudo.

Faltam nove quilômetros para chegarmos ao rio Moxotó, que separa Pernambuco de Alagoas.

Daqui a pouco, passa um vaqueiro, num jumento. Conversamos um pouco. Não sei de onde saiu esse assunto, mas ele disse que o jumento é como o papagaio, “vive até caducar”.

Se o distinto leitor não sabe, vai uma informação essencial, que nem o Google deve ter. Um jumento chega a viver 32 anos, e trabalhando duro, que não conheço jumento que viva no bem bom.


Maraí fuma um cachimbo, equilibrado num tronco de quixabeira. O vaqueiro diz que a casca da quixabeira é boa para o estômagos, rim e pancadas. Botamos pedaços em nossos cantis. Maraí resolve tirar os tênis e usar as havaianas. Voltamos à estrada. Resolvemos seguir num galope firme, até o rio Moxotó. Descansaremos em outra pátria: Alagoas.

terça-feira, 4 de março de 2008

Para quem ainda lê a Veja

Durante longos oito meses, em 1999, trabalhei na redação da revista Veja. Vi de perto como funciona uma máquina poderosa, capaz de devastar reputações, arruinar vidas, caluniar, mudar informações, na prática do pior jornalismo.

Saí para fazer o mestrado, e desde esta época, nunca mais comprei um exemplar. Olho quando vou a um dentista, para saber como anda a linguagem, e sinto repulsa.

Um grande jornalista teve o peito de desvendar os bastidores dessa máquina, que se orgulha de vender um milhão de exemplares por semana.

Deixo minhas crônicas de lado até amanhã, e convido meus leitores para embarcar nesta série de reportagens do Luis Nassif, desvendando uma das grandes fraudes do jornalismo brasileiro.

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