sábado, 29 de abril de 2006

Se é para falar de pequenos delitos...

Bem, fui tocar no assunto dos "pequenos delitos", na crônica passada, e choveu de gente fazendo pequenas confissões. Agora vamos e convenhamos: roubar o "Aurélio" é algo meio descarado demais.

Então, como é manhã de sábado -melhor, manhã de sol depois de uma chuva, fiquei aqui a revolver meus miolos, pensando nos pequenos delitos, indo bastante contra o politicamente correto dos tempos atuais. Encontrei alguns pequenos delitos que não considero de todo ruins.

Ter roubado a Livro 7 parece que já é crime prescrito, pois a livraria fechou há alguns anos, e desconfio que vários larápios do mesmo tipo andaram por lá.

Quando fiquei hospedado em um albergue, em Buenos Aires, conheci uma sueca chatíssima, que só queria ser a dona da cocada preta. Em tudo ela queria levar vantagem. Pois bem. À noite, eu ficava lendo até tarde, e quando o albergue dormia, eu ía à geladeira e atacava a cestinha da sueca. Como um bom rato, dei umas roídas no seu queijo, acompanhado do azeite de oliva maravilhoso.

Já entrei várias vezes no estádio com a cachaçinha escondida por baixo do bermudão. Como apertaram a fiscalização, o produto agora vai debaixo do pandeiro de Josimar.

Na adolescência, pegava escondido a Playboy debaixo do colchão do meu pai, e uma vez botei a culpa no meu irmão, o Tonho.

Na quinta-série, levei um saca-rolha para a escola e comecei a furar uma carteira. Depois, passei para os colegas. Quando já íamos na oitava carteira furada, o crime foi descoberto. Desconfio que não assumi a autoria do delito, e ficou por isso mesmo.

Uma vez eu disse para minha terapeuta que tinha amadurecido como pessoa.

Dizem que joguei o rádio de pilha, que Seu Vital sempre me emprestava, nos jogos do Santa Cruz, num bandeirinha ladrão. Não lembro se é verdade, mas o rádio desapareceu.

Roubei fotos esporádicas de amigos e amigas.

Já disse que estava liso, em divisão de contas, mas era lorota. É que eu tinha achado a conta cara demais.

Gatunei alguns livros de Gustavo, mas ele fez o mesmo com alguns meus, então tudo bem.

Quando tem visita aqui em casa, uso o shampoo da visita, que é sempre melhor.

Pedi o celular de Sóstenes, um dia, para uma "rápida ligação". Passei mais de quinze minutos na linha, e nunca o comuniquei do fato.

Já escondi as chaves do carro da namorada, para ela não ir embora, e perdi as chaves. Bem, eu já tinha tomado umas garapas.

Bem, são todos delitos prescritos. Diante do que a turma tem feito em Brasília, minha ficha criminal poderia ir para o setor dos anjinhos.

Ah, ía esquecendo: afanei um Verlaine e um Rimbaud de Luzilá. Vou devolver logo hoje, porque estou lendo cada vez pior em português, quanto mais em francês. Além disso, é muito feio roubar a vizinha, enquanto ela está viajando.

Vou parar por aqui, enquanto não lembro de coisas piores.

ps. voltei a atualizar o blog de poemas:

www.quemerospoemas.blogspot.com

quinta-feira, 27 de abril de 2006

Confissões de um leitor e um pequeno agradecimento

Lembro quando tudo começou, e talvez tenha mudado o rumo da minha vida. Bisbilhotei uma biblioteca meia boca que tinha lá em casa, eu acho que estava ali pelos 12, 13 anos. Encontrei um livro grosso, intitulado "Papillon", e comecei a ler. Fiquei impressionado com aquilo: como podia caber tanta história, tanta vida, dentro de um objeto quadrado, cheio de folhas? Foi minha inauguração. Só hoje fiz uma relação - "papillon" quer dizer "borboleta". Foi meu primeiro vôo, creio.

Depois, cutuquei uma coleção de capa dura e me dei bem. Estava lá "Justine", do Lawrence Durrel. Aí eu me apaixonei pela Justine e pela literatura, tanto que até hoje compro qualquer edição do "Quarteto de Alexandria" que encontrar. Já reli este livrinho, de capa azul, uma dezena de vezes.

Como eu tinha um irmão muito politizado, o Paulinho, pude ler "Batismo de Sangue", do Frei Betto, antes mesmo da adolescência. Foi uma pancada saber dos sofrimentos dos dominicanos e do Frei Tito de Alencar, mas agüentei bem, e guardei as sementes para meus livros.

Quando cheguei ao Recife, em 1987, a minha maior bagagem, além da esperança, era uma caixa de livros. Sonhava em ter uma biblioteca, um dia.

Na minha pobreza de Casa do Estudante e Restaurante Universitário, ataquei várias livrarias, sempre de forma moderada, naquela velha tática de esconder o livro no meio dos cadernos, numa tensão de roer os nervos. Quando saía da livraria com algo bacana, dava vontade de dar aqueles socos no ar do Jairzinho, na Copa de 70. Já pedi desculpas ao Tarcisio outro dia, e fiquei até aliviado, quando uma leitora disse que roubou o "Aurélio"! Me senti até meio santo.

Não sei quando o Fernando Pessoa entrou na minha vida. Sei que li um livro com os poemas do Álvaro de Campos, em uma noite de sexta-feira na Casa do Estudante, o melhor dia de um ser humano, porque todo mundo ia para as farras, e o quarto ficava vazio. Fiquei absolutamente "tomado" pela poesia, como bem diz o meu amigo Gustavo, que está quietinho, lá em Brasilia, preparando algo de muito bom. Atravessei a noite lendo aquelas odes todas, e como estudava teatro, fiquei encenando os poemas, feito um maluco. Fui dormir exausto.

Quando fiz trinta anos, em São Paulo, ganhei o "Livro do Desassossego" da Érika, com uma linda dedicatória. Li e reli o livro vária vezes, ele tinha mais rabisco meu do que do poeta. Até que na quarta-feira de cinzas, dois ladrões patéticos me assaltaram, de arma em punho, e levaram meu livro. Choraminguei aqui no Estuário e Deus escutou minhas preces.

Na segunda-feira, saindo de casa, recebi um chamado de Seu Vital (sempre ele). Tinha chegado uma encomenda para mim. Duas caixas lindas, com laço e tudo o mais. Ele arregalou os olhos. Abri a primeira caixa, eram flores lindas. Abri a outra, era um absurdo de norte a sul. O "Livro do Desassossego", a bela edição da Companhia das Letras, acompanhado de uma edição portuguesa, em dois volumes. Os livros estavam acomodados em um papel muito macio, cor de abóbora, essas coisas de gente delicada.

Os presentes vieram de uma pessoa apaixonada pelas palavras, e que gosta do que escrevo. Diz que não é um presente, apenas "uma retribuição" ao que tenho dado. Mas eu insisto, é um presente sim, e de uma beleza comovente.

Saí com a caixa, fui à casa de Luzilá, mostrar o presente, depois caminhei para a casa de Emilia. Criança não tem isso, de mostrar o presente que ganhou aos amigos? Lucila achou tudo muito delicado. Emilia estava meio de mau humor.

Na volta, lá pelas dez da noite, temi voltar sozinho.

"E se me roubam novamente, com Fernando Pessoa e tudo?"- pensei.

Lucila me deu carona. Vim alisando a caixa.

Vinha pensando em escrever algo muito bonito, para agradecer o presente, mas só me chega o reles, magérrimo, óbvio "muito obrigado". O que eu disser, será pouco para agradecer tanta generosidade dessa leitora.

Ps. informo que em 2.000 pendurei minha carreira de ladrão de livros, e não tive mais recaídas.

quarta-feira, 26 de abril de 2006

A cidade e suas feridas

Se você é recifense como infelizmente eu não sou, evite ir ao centro da cidade. Evite ir ao núcleo intenso, onde a cidade poderia respirar esplêndida, em meio às pontes, atravessadas pelo eterno Capibaribe, o nosso rio. Não sei o que há, mas tudo está murchando, tudo está feio e maltratado. É como um imenso jardim, sem jardineiro, sem adubo, sem flores.

O lendário Diário de Pernambuco não está mais lá. Tudo em seu entorno, os bares, os mata-fome, os pega-bêbados, já não existem. Acabou aquela movimentação de jornalistas, fotógrafos, carros, acabou uma vida que se respira ao lado de um jornal. O Jornal do Commercio também deixou o centro da cidade, e está próximo ao Diário, ali pela rua do Lima. Os jornais não estão mais no centro, nem na periferia, então não entendo nada.

Os botecos, os velhos e deliciosos botecos, estão sendo engolidos por essa máfia intensa, a do "crédito pessoal", ou do "empréstimo consignado", para os velhos, os nossos velhos, que estão cheios de dívidas. Triste de um país que tem mais empresas de empréstimo consignado para seus velhos, do que botecos ou livrarias. Algo vai mal, muito mal, quando os velhinhos vão caminhando, e há bandos de rapazes e moças oferecendo dinheiro na hora. Para mim, são como urubus, em cima de quem mal tem algo para sobreviver. Emprestam dinheiro fácil, com os juros mordendo o pescoço, em prestações fixas, com o dinheiro descontado em folha. Assim é fácil emprestar dinheiro. E nem me venham com essa de terceira idade, porque velho é uma palavra linda, forte, e que define tempos.

Há muitas farmácias no centro, para as doenças do nosso povo. Há dezenas de lojas de jogo do bicho, no centro do Recife. Há milhares de camelôs, vendendo pipoca, guarda-chuva e óculos escuros. Todas as mulheres do Recife agora querem usar imensos óculos escuros, escondendo o rosto e alguma tristeza, creio.

Não há uma livraria no centro do Recife. Pode rodar por todas as ruas, que a mendicância cultural é imensa. Me sinto como aquele cego, oferecendo o chapéu em busca de trocados. "Uma livraria para o ceguinho, pelo amor de deus!" Mas nem chapéu tenho. O Bndes tem bilhões e bilhões em seus cofres, financiou agricultores, produtores de vinho, fábricas as mais diversas, tinha a obrigação de chamar Tarcisio Pereira, o nosso "Livro 7" e dizer:

"Vamos te dar um dinheiro para tu fazer novamente uma grande e deliciosa livraria no centro do Recife, com café e espaço para lançamento de livros".

O Savoy já era. A Cristal já era. O Dom Pedro eu não sei, fui muito pouco.

Passo nos sebos. Há somente livros de primeiro e segundo grau à venda. Nunca vi sebo que não tem sequer um Henry Miller gasto, largado num canto, por cinco contos. Olho o "Camelódromo", inaugurado com pompa e circunstância outro dia, por algum prefeito que não lembro. Está lá, um resto de sobra de obra que rendeu muita grana a alguém. Carcaças urbanas e uns pobres diabos jogando dominó, debaixo de um calor infernal. Ó ceus.

Nem vou falar do Bairro do Recife. A parte mais linda do Recife está ao deus-dará. Era para ser o centro de uma vasta produção cultural, mas é o arremedo de algo que não vingou.

A melhor parte desta visita melancólica, foi quando peguei o Alto Santa Isabel e voltei para casa.

Deixemos de louvar tanto o Recife. A cidade está cheia de feridas.

Ps. Renilde, recebi o presente. Obrigado. Não sei ainda como agradecer.

sábado, 22 de abril de 2006

Amanheceres

O dia sempre começa. Pode ser bom, ruim, doce, pode trazer o mel ou fel, mas é uma lei cósmica: sempre amanhece. Diria que estamos num eterno amanhecer.

O dia começa com um telefonema, um despertador, um toque no corpo, de alguém que se ama muito, e que dormiu ao lado. O pequeno contato íntimo, que diz "estamos juntos". Ou simplesmente amanhece, sem nenhum gesto brusco, na solidão apaziguada, somente os olhos abrindo para a claridade do mundo.

O dia começa com uma lembrança, uma saudade, um desejo. O que aconteceu ontem, um sentimento que atravessou a noite, o desejo instalado, nos primeiros instantes, de que algo aconteça hoje, algo melhor que ontem, não tão bom quanto o amanhã, onde costumamos depositar nossa melhor esperança.

Há dias que nascem sonolentos, em que os olhos pesam, bocejos intermináveis. Há dias apressados. Há dias que nascem já sepultados pela pressa, quando queremos chegar ao dia seguinte. Há dias que nascem já cansados, diante de uma agenda repleta de obrigações. Há dias em que pedimos mais do que o corpo pode dar. Dias em que damos à alma menos do que ela merece.

O dia começa com aberturas. De olhos, de cortinas, janelas, portas, armários, guarda-roupas. Começa com a palavra “bom”, de bom-dia. O dia começa com a proximidade dos que nasceram juntos ou se encontraram, na sinfonia da vida. O pai, arrastando sua sandália, os barulhos do banheiro, a água despertando corpos, o chacoalhar das escovas em dentes amarelados pelo cigarro, e a promessa de parar de fumar se renovando no espelho.

O dia começa com um olhar amoroso da mãe, que desperta mansamente a filha para a escola. Felizes os que despertam com um beijo, seja da mãe, do pai, de quem se ama. Ser despertado com um beijo é ter o dia abençoado.

O dia começa com uma canção na rádio, uma melodia cantada por alguém ao longe, um assovio do porteiro. Começa com a imagem de um animal de estimação, um pássaro ocasional, que se aboleta nos fios. Antes de fazermos algo de concreto, antes de aumentarmos o PIB do Brasil, nós simplesmente amanhecemos, tiramos a noite de nossos ombros, e recomeçamos.

Despertamos com a esperança de chegarmos inteiros ao final do dia, de não sermos atingidos por nada que entre tão fundo, pedindo que as palavras duras não magoem tanto, que saibamos calar quando tivermos apenas pedras na língua.

Muitos despertam com suas orações, pedidos. Alguns despertam apenas agradecendo. O obrigado por mais um dia concedido. Muitos, hoje, terão somente este dia. Amanhã, serão apenas lembrança e saudade.

O dia amanhece com café, pão e esperanças. Para muitos, resta apenas a esperança, embrenhada na fome tão imensa, fome de comida, que gera todas as outras fomes. Para outros tantos, o dia amanhece com fome de afeto, que torna toda a fartura mínima, pálida, insuficiente.

Alguns, açoitados pelo mau-humor antigo, vão deixar as horas chegarem, para o apaziguamento. Gente que não dá bom-dia nem para si mesmo. Gente que detesta acordar.

O dia amanhece, sempre amanhece. No dia em que não mais amanhecemos, junto com o dia, é porque veio a noite da vida.

A morte, que é um anoitecer.

Sim, porque os seres, como os dias, anoitecem.

quinta-feira, 20 de abril de 2006

Um ano perfeito para a vadiagem, ou "anotações sobre a Copa do Mundo".

Amigos leitores, amanhã já tem outro feriado, o dia de Tiradentes, e vamos todos render homenagens ao célebre inconfidente. Semana passada, já teve feriado por conta da Páscoa e o Recife ficou uma beleza, porque quase todo munto resolveu cair fora. Resultado: poucos carros, ausência de buzinas (vi até motoristas fazendo gentilezas com pedestres e ciclistas), aquela maravilha da cidade mais silenciosa, quieta, na ausência generalizada de filas e chatices.

Maio já vai começar com o feriado do Dia Mundial do Trabalho. Para nossa turma, aqui do Poço da Panela, o primeiro de maio é o dia do aniversário de Seu Vital e Dona Severina, e fim de papo. Vamos fazer a tradicional "festa surpresa". Fingimos, de ambos os lados, que nada vai acontecer, mas tudo acontece.

Junho está na boquinha, e no dia 13, o Brasil joga contra a Croácia, dando início ao mais longo feriado nacional: a Copa do Mundo.

Se tudo der certo, no dia 9 de julho estaremos jogando a final, em Berlim. Durante um mês, seremos aquela massa uniforme, milhões de roedores de unhas e suadores frios profissionais, a cada toque de bola do selecionado. Durante um mês, tudo vai funcionar de forma ainda mais precária em tudo que é de repartição, empresa, escritório, galpão. Perdão, amigos, mas eu sou louco por futebol, e a Copa do Mundo é a Copa do Mundo.

No meu caso particular, tenho uma obsessão que me prejudica terivelmente. Gosto de torcer pelo mais fraco, nem que seja numa partida de dominó. Dia 10 de junho, por exemplo, estarei perfilado diante da TV, com a mão no peito esquerdo, cantando o hino do Paraguai, que enfrentará a Inglaterra. Dia 12, vestirei a camisa do selecionado de Gana e farei mandingas as mais diversas, no jogo contra a Itália. Acenderei velas, incensos, farei promessas para Gana virar o jogo no finalzinho. Viverei dilemas existenciais, como no jogo México x Angola (dia 16), mas até os 12 minutos do primeiro tempo, terei escolhido o time.

Togo x França? Claro que sou toguense desde a mais tenra infância, nos arrebaldes do Crato e Brejo Santo, no Ceará. A bandeira da República Popular do Togo será desfraldada pouco antes do início da peleja, aqui na Visconde de Araguaya. Já estou decorando o hino dos toguenses, que fala de amor à pátria, mas todo hino fala de amor à pátria.

Lembro que na Copa de 98 eu estava em São Paulo, em um boteco, assistindo França x Paraguai. Os paraguaios seguraram um empate heróico no jogo normal, se fecharam até o final da prorrogação, se fossem para os pênaltis, ganhariam a partida e eliminariam os franceses, era uma certeza profunda e irreversível que eu tinha. No finalzinho da prorrogação, um francês, acredito que o maldito Blanc, fez o gol, e os paraguaios foram eliminados. Dei um murro no balcão que estremeceu o bar, paguei a conta e voltei para casa, arrasado, depressivo, triste, solitário e final, como diz o velho e bom argentino. Ali, eu era o mais triste dos paraguaios de todo o globo terrestre. Faltou pouco para eu abrir o gás e ir dormir.

Eu iria escrever sobre a vadiagem que está sendo este ano, que ainda vai ter as eleições no segundo semestre, mas me empolguei com a Copa e me desviei do assunto. Minto. Na verdade, eu tinha escrito um texto bem grandinho, esqueci de salvar, acabei perdendo tudo. Ora, tem gente que perde tudo na vida, eu lá vou reclamar porque perdi uma reles crônica?

E por mais que adore a literatura argentina, por mais que tenha amigos de montão por lá, por mais que sempre queira voltar a Buenos Aires, não tem jeito. No jogo Argentina x Costa do Marfim, serei costa-marfiniano desde o útero da dona Ermira. Argentina x Sérvia e Montenegro, serei servo-montenegrense de coração. Holanda x Argentina? Ora, eu tenho todos os motivos para ser Holanda até os nervos, porque o conde Maurício de Nassau construiu umas belas pontes aqui no Recife. Até onde eu sei, o conde era holandês, e nunca vi um argentino dar um prego numa barra de sabão pelo Brasil.

Vou parar por aqui. Esse assunto, Copa do Mundo, faltando reles 50 dias para o início do torneio, me deixa com os nervos à flor da pele, suando frio e sem dormir direito. Só mesmo a seleção canarinha e o Santinha me deixam assim.

quarta-feira, 19 de abril de 2006

Das vantagens de ser pidão

Chego ao lançamento de "Zarattini: a paixão revolucionária", na Livraria Cultura. Fico por ali, perambulando, tomo um cafezinho, espio os livros, vejo os convidados chegarem, até que vejo Lucila, minha amiga, toda sorridente. Esteve no Rio de Janeiro, reencontrou o filhote Zeca, que agora vive por lá. Me leva até Vanja Campos, que me entrega, assim de sopetão, o livro "Sempre aos domingos", que comentei outro dia aqui neste espaço. Comentei não, pedi mesmo um exemplar a alguém, porque sou meio pidão mesmo. O livro é uma coletânea das crônicas publicadas por Renato Carneiro Campos, aos domingos, no Diário de Pernambuco.

Pronto, ganhei a noite. Fiquei lambendo o presente, olhando, cheirando as páginas. É uma linda edição da Editora Bagaço, de capa dura e tudo o mais. Fiquei pensando comigo sobre as inúmeras vantagens de ser pidão, tema para crônica futura.

Coordenei o debate sobre o livro de Zarattini, tudo correu bem, muita gente foi ao lançamento, Zarattini autografou uns 200 livros, mas por dentro eu já estava com aquela psicanálise: mais tarde, vou ler coisas lindas. Esperei como um menino que recebe um presente no Natal, mas tem que esperar o dia amanhecer, para abri-lo.

Cheguei em casa, fiz um chá, liguei o ventilador no três e comecei a ler. Dormi em cima da página 99.

É um livro que os amantes da crônica deveriam obrigatoriamente ler, e que os recifenses não podem deixar de ter em casa, num lugar privilegiado da estante. Vamos a alguns trechos:

"Acontece que alguns dias atrás, aqui na minha rua de subúrbio, voltando do trabalho, descobri, de repente, que as mangueiras estão carregadíssimas de frutos. Que os balaieiros já começam a perfumar as ruas de caju. À noite, vi cadeiras nas calçadas, um grupo de jovens tocando violão na esquina, a noite estrelada como no poema de Pablo Neruda. Valia a pena o meu amigo vir. Eu próprio, estando no Recife, tive a sensação de haver voltado".
(In "Vitrine de verão")
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"Foi um homem de muito sangue e muita alma: do bom comer, do bom beber e do bom amar. Comia, bebia, e amava, com fé, os bons pratos, as bebidas e as mulheres. Estava mergulhado na vida até a raiz dos cabelos. Deve ter ssaído dela sem querer, como um penetra que se põe para fora de uma grande festa. O aviso rude da morte, porém, não o atemorizou, compareceu ao encontro marcado sem xaropes, pílulas e barbitúricos, procurando testar o coração chumbado da dor da angina e da mágoa da saudade".
(Numa crônica sobre Antônio Maria)
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"A fraternidade e o espírito boêmio, no melhor sentido da exporessão, eram os denominadores comuns, os requisitos necessários para se ingressar em tais reuniões. Os maledicentes, os censores da vida alheia, os caçadores de defeitos, os abstêmios sentenciosos, os sectários, todos esses não tinham vez. Gente assim desonera uísque e esquenta cerveja".
(In "Sempre aos sábados", em que fala de um gruo de amigos que se encontrava todos os sábados, para uma salutar farra.)
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"Andersen, minha boa e delicada Andersen, onde você estiver, bordando os seus paninhos ou lendo poemas de amor, escrevendo cartas em papel de linho ou pagando promessas, bebendo chá com bolacha Maria ou assistindo a novelas, conferindo a dieta ou regulando as doses de barbitúrico de mulher mal-amada, acredite que você foi o toque mais ameno desta cidade no ano que corre".
(In "Um Zorro da Cultura")
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"E a vida para quem não tem coragem de morrer ou de ser ridículo, de se renovar, é pior do que uma prisão, não vale grande coisa".
(In "Tristeza do carnaval")
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"A notícia está em todos os jornais: Joaquim Cardozo foi denunciado pelo promotor da Sétima Vara Criminal de Belo Horizonte, Francisco Raposo Lima, como um dos responsáveis pelo desabamento do Pavilhão Parque da Gameleira.
(...) Creio que, para qualquer advogado, nada mais fácil do que fazer a defesa de Joaquim Cardozo. Basta ler uma de suas poesias, fazer o rol do que ele já ajudou a construir no Brasil".
(In "Uma injustiça de doer")
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Só me resta perguntar a Vanja, filha do Renato Carneiro Campos, onde o livro está sendo vendido, bem como o preço. Ontem, o busquei na Livraria Cultura e não estava nem catalogado para venda. Se eu fosse dono ou gerente de vendas da citada livraria, colocaria "Sempre aos domingos" bem na entrada, para concorrer com um monte de livros recém-lançados que não dizem muita coisa. Aliás, não dizem coisa nenhuma mesmo. Geralmente, são os mais vendidos.

Vou terminando por aqui, porque terei um dia longo. Tenho ainda 320 páginas pela frente. Acabei de olhar para a rede. Não contem comigo para reuniões, trabalhos, lançamento de livros, aniversários, eventuais noivados ou a reles farra. Passarei o dia com o Renato Carneiro Campos, este pássaro pernambucano de canto raro.

Obrigado, Vanja.

terça-feira, 18 de abril de 2006

Homenagem aos que pedalaram naqueles anos

"Muito já se falou sobre o heroísmo dos que tentaram assaltar os céus, pegando em armas para enfrentar a ditadura. As homenagens são merecidas, especialmente porque muitos, generosamente, deram suas vidas ou enfrentaram provações terríveis para que o Brasil fosse um dia melhor. Mas pouco se falou sobre o trabalho miúdo e anônimo dos que mantiveram acesa a chama da resistência nos anos de pesadelo de 1973 e 1974, quando a ditadura se pavoneava de haver aniquilado toda e qualquer oposição e parecia inútil enfrentar os donos do poder. Naquelas circunstâncias, os que teimavam em lutar sequer tinham o estímulo da crença numa vitória próxima. Seu objetivo, bem mais modesto, era simplesmente não deixar a peteca cair e impedir, de alguma forma, que a ditadura se consolidasse e o dia de amanhã fosse pior que o de hoje. Manter a bicicleta pedalando, ocupando os claros deixados pelos que estavam nos cemitérios, nas prisões e no exílio - isso era o essencial. Aos que pedalaram naqueles anos de terror, mesmo que por pouco tempo e por curtas distâncias, o país deve mais do que se imagina".

Trecho do prefácio do livro que Franklin Martins escreveu para o livro "Zarattini: a paixão revolucionária", do jornalista José Luiz Del Royo.

O lançamento do livro será hoje (18/04), às 19h, na Livraria Cultura, no Recife.

segunda-feira, 17 de abril de 2006

As muitas vidas de um revolucionário

Conheci Ricardo Zarattini Filho em 1993, quando eu tinha 23 anos e começava a suar naquelas velhas escadas de madeira do Diário de Pernambuco, em busca de uma boa reportagem. De tarde, estágio na redação, de noite, curso de Jornalismo na Católica, com escalas obrigatórias na lendária Cristal, ali na rua do Imperador, com Otávio de Souza, Toscano, o velho Zé Maria etc. Bons tempos aqueles.

Eu penava para concluir o curso, e escolhi como pauta para a série de reportagens, o famoso "projeto experimental", o mistério que sempre envolveu o atentado a bomba no Aeroporto dos Guararapes, em 1966. Dois engenheiros foram presos em 1968 e acusados de terem planejado e colocado a bomba, que resultou em duas mortes e muitos feridos: Edinaldo Miranda de Oliveira e Ricardo Zarattini Filho. Os dois sempre negaram a autoria da ação, mas quem fez mesmo o atentado, uma turma da Ação Popular (AP), que jamais assumiu publicamente a autoria, mesmo com a democratização do País.

O fato é que somente agora, 13 anos depois, estou conseguindo terminar aquela pesquisa, no formato de um livro. Neste intervalo, a Cristal virou uma lanchonete moderna e horrível, o saudoso Edinaldo morreu, Zarattini se elegeu Deputado Federal (PT-SP), venceu um câncer e fomos nos tornando amigos. Em 1995, o Jornal do Commercio publicou uma série de reportagens, mostrando que os dois engenheiros eram realmente inocentes, e finalmente foi feita uma pequena justiça sobre o episódio. Falo “pequena justiça", porque o que eles sofreram nas mãos da repressão, é impagável.

Consegui às duras penas uma entrevista com Zarattini, quando eu morava em São Paulo. Foi aquela conversa meio truncada, em meio ao aniversário de uma das netas. Zarattini, com toda a razão, nunca simpatizou muito com nossa raça. Grande parte das matérias publicadas sobre ele, citavam indevidamente a história do Guararapes. Desconfio que ele também me achava moço demais para escrever sobre a vida dele. Concordo.

Outro dia, fiquei sabendo por Amparo, do Movimento Tortura Nunca Mais, que o velho combatente estava dando uma série de entrevistas a um jornalista, que vive há muito tempo na Itália. Me bateu uma dor de cotovelo dos diabos, mas a vida é assim mesmo, é preciso aceitar.

Zarattini me ligou recentemente, para falar do livro que vai ser lançado hoje, na Livraria Cultura. Sábado, fui correndo comprar a jóia, que se chama “Zarattini: a paixão revolucionária”, do jornalista José Luiz Del Roio (Editora Ícone).

Foi a leitura do sábado à tarde, entrando pela noite. Ao final da leitura, a impressão que me deu foi na verdade uma certeza que tenho há muitos anos – há pessoas que vivem demais, que têm várias vidas dentro de uma mesma vida. Uma delas é o Ricardo Zarattini.

Desde a campanha do “Petróleo é Nosso”, com 17 anos, ele já estava lutando por suas idéias, quando foi preso a primeira vez. Outras prisões vieram, após o golpe de 1964. Vieram também as torturas, morte de amigos e outros arrebentamentos, até que foi incluído na lista dos presos que foram trocados pelo embaixador norte-americano, em 1969. Esteve no México, mas queria mesmo era derrubar a ditadura. Foi para Cuba, depois saiu pela Coréia, China, Moscou, enfim.

Estava no Chile quando chegou outro golpe, o de Pinochet, e tratou de ajudar a salvar algumas vidas, encaminhando-as para embaixadas. Por último, salvou a própria pela e foi para o exílio.

Retornou ao Brasil em maio de 1974, com passaporte falso de nacionalidade italiana. Como bem diz o livro, “todos estavam mais velhos e profundamente marcados no corpo e no espírito e, sobretudo, faltavam aqueles que haviam caído na luta”. A última prisão foi em maio de 1978, quando já se pronunciava a palavra Anistia, para permitir a volta do irmão do Henfil, e tanta gente que partiu, como disseram os poetas...

Em 28 de agosto de 1979, foi finalmente sancionada a Anistia. Os exilados voltaram e os presos políticos foram finalmente libertados. Um deles era Zarattini. “Como seus companheiros, tinha os cabelos enbranquecidos e o rosto marcado de rugas”.

Ao sair da prisão, encontrou a filha Mônica, que estava com 17 anos, junto com familiares, amigos e companheiros. Apoiou-se na filha e mancando, disse:

“Dói, filha, dói esta perna. Mas vamos lá, ainda há tanto o que fazer!”

Essa frase é a cara dele.

O incansável Zarattini estará na Livraria Cultura, a partir das 19h de hoje, falando sobre sua paixão revolucionária. Por arte do destino, fui convidado para participar da mesa-redonda. Neste caso, usarei uma pequena dose de prudência. Falarei pouco e escutarei muito. Há muitas vidas dentro daquela alma, que vergou muitas vezes mas nunca quebrou. É preciso escutar com reverência.

O autor do livro estará presente.

Na ocasião, falarei diretamente da minha profunda inveja.

**
Serviço
Lançamento do livro “Zarattini: a paixão revolucionária”
Local: Livraria Cultura
Data: 18/04
Horário: 19h
Preço do livro: R$ 27,00

sexta-feira, 14 de abril de 2006

Anotações aleatórias numa sexta-feira santa

Constatações:

Agora ninguém mais chama a empregada doméstica de empregada doméstica. É a "minha secretária" pra cá, "minha secretária" pra lá e por ai vai. Agora, se o sujeito tem uma empresa com 150 pessoas trabalhando, ele diz que tem 150 empregados. Deve ser a história do politicamente correto, mas eu confesso que ainda estranho.

Acho a frase "Minha empregada está de folga hoje" muito mais bonita do que "Minha secretária está de folga hoje". É besteira minha, eu sei, mas o que seria de mim sem minhas besteiras?
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Nós brasileiros somos um povo esquisito. Temos negro pra caralho em tudo que é canto, salvo alguns estados que são mais branquinhos, lá pelas bandas do sul, mas temos também uma dificuldade imensa, filosófica, existencial, de chamar um sujeito de "negro", isso do topo ao pé da famosa pirâmide social. Você pergunta como era o sujeito que acabou de passar, pode ser um negão mesmo, e o sujeito ao lado diz:

"Ah, era um bem moreno..."

Todo negro é moreno e em todo documento, o brasileiro é um "pardo". Fiz centenas de reportagens em delegacias, e todo criminoso, seja meio branco, amarelo, negão meso, era registrado como pardo. Fui olhar no pai dos burros, o velho Aurélio, e encontrei:

"Pardo: 1. De cor entre o branco e o preto; quase escuro. 2. De um branco sujo, duvidoso. 3. De cor pouco brilhante, entre o amarelo e o castanho. 5. Mulato".

Sinceramente, acho muito mais bonito o sujeito ser chamado de "mulato" do que "pardo".

O professor Davi mesmo, um grande amigo meu, um sujeito formidável, negão dos pés ao cocoruto, muitíssimo admirado pela ternura e capacidade boêmia. Numa conversa com um amigo, aqui no Poço, ele me diz que o professor Davi é um sujeito gente boa demais. Bebe um copo e solta a frase:

"O Moreno se garante".

Então eu não entendo nada.
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Vi ontem que já somos o oitavo país do mundo em quantidade de velhos. Querem que a gente use esse negócio de "terceira idade", mas acho que um sujeito, quando envelhece, fica é velho mesmo. Se eu chegar lá, quero ser chamado de velho, nem venham com esse papo de "Samarone Lima, o cronista da terceira idade". Melhor mesmo "Samarone, o cara que escreve sobre velhos".

Inventaram de criar um espaço na parte dianteira dos ônibus, só para os velhinhos. Ali eles não pagam. Eles ficam lá se espremendo, em poucas cadeiras, todo mundo vai entrando e olhando, às vezes reclamando, eu acho isso uma safadeza bem brasileira. O velho deveria ter uma carteira e passar pela roleta, sentar onde quiser, como todo mundo.
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Aqui onde eu moro, no Poço da Panela, é impossivel alguém citar uma pessoa já morta sem dizer "o falecido Marco", "o finado Barrabás", e por aí vai. É como se a conversa tivesse que separar o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Dizem que o nome disso é cultura. Não sei se na Inglaterra é assim, a Fabiana bem que poderia explicar. Ou seja: será que os ingleses são capazes de fazer a crueldade de falar de uma pessoa, sem informar que ela já morreu? Creio que sim.
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Estou curiosíssimo para ler "Sempre aos domingos", livro de crônicas de Renato Carneiro Campos, que morreu aos 44 anos, em 1977. O lançamento foi na quinta-feira, na editora Bagaço, da saudosa Elita, mas o liseu particular não permitiu ir ao evento - apesar de ser a 500 metros da minha casa. Vou chegar no lançamento e ficar de fulozôsô, comendo os petiscos e bebericando o vinho? Não, lançamento de livro, o camarada tem que sair com um exemplar debaixo do sovaco. É uma desvantagem esse troço de estar muito liso.

O livro é uma coletânea das crônicas que ele escreveu no Diário de Pernambuco, entre 1969 e 1977. Dizem que tem coisas lindas, e pelos trechos publicados na matéria do José Teles (Jornal do Commercio, 12 de abril de 2006), o Campos se garantia no ofício.

"Há pessoas que trabalham como se fizessem strip-tease. É uma exibição. Carrascos de horas, carcereiros de qualquer tempo livre", diz ele, em uma de suas crônicas.

O melhor é saber que ele escreveu sobre um período glorioso do Recife, quando o Savoy era o ponto de encontro da boemia, quando a Livro 7 era "a" livraria do Recife, quando o Mustang agregava a galera da esquerda e todo mundo sonhava em tirar os milicos do poder. Hoje, o Savoy é uma melancólica lembrança, a Livro 7 acabou, o Mustang não tem o velho charme, mas pelo menos os milicos voltaram para os quartéis, pela graça de Deus.
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Tudo bem, eu confesso: se alguém quiser me dar o livro de presente, eu aceito na hora, e pago duas cervejas em Seu Vital!
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Informo que ganhei a primeira rifa na minha vida, feita pela comunidade aqui do Poço. Comprei duas cartelas (R$ 1,00 cada) e ganhei uma toalha grande, outra pequena. Ontem, Marquinho veio me trazer o pacote, embrulhado em papel de presente. Tinha um agradecimento, numa letra bem bonita:

"Obrigado por você ter colaborado para a nossa festinha ficar mais alegre. As crianças do reforço".

Claro que vou dar as toalhas de presente a Dona Da Luz.

Haverá algum país em que uma senhora velha, muito linda, se chame "Dona Da Luz"?
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"Celebrar lo que no existe
?hay otro camino para celebrar lo que existe?
Celebrar lo imposible.
?Hay otro modo de celebrar lo posible?"
(Roberto Juarroz, poeta argentino)

quarta-feira, 12 de abril de 2006

Paixão de Cristo - versão Poço da Panela

O pernambucano é um sujeito obcecado. Quando vai chegando o Carnaval, tudo se torna festa, o ar se torna carnavalesco, não se fala em outra coisa, o comércio se transfigura, para você comprar uma fantasia, precisa enfrentar uma multidão, em lojinhas abarrotadas e calorentas, ali no centro, nas ruazinhas ao lado do Mercado de Sào José. Os músicos, que passam o ano na magra, tocando aqui e ali, tocam feito uns desesperados (tem saxofonista que termina a festa quase sem beiço), mal têm tempo de comer um queijo com mortadela.

Passado o Carnaval, o pernambucano olha para o lado e busca sua nova obsessão - a Semana Santa, que falarei logo em seguida.

Na época do São João, não se escuta outra coisa, a não ser o velho, obsessivo, fundamental, insuperável forró. Todos os sanfoneiros vivos, semi-vivos e mortos são evocados, relembrados, recuperados, tem sanfoneiro que toca três vezes na mesma noite, o mês inteiro, os dedos tudo inchados, o “arraial” é obrigatório em cada esquina, as cidades ardem em fogueira ancestrais, parece que a vida seria uma marcha patética e triste, rumo ano nada, uma melancolia profunda e celeste, sem um bom forró pé-de-serra e a espiga de milho cozida no barrigão.

Entre o Carnaval e o São João, tem outra obsessão pernambucana: a Páscoa, ou, melhor dito, a Semana Santa.

Tudo na vida de uma pessoa é a Paixão de Cristo, Nova Jerusalém, o eterno Cristo, José Pimentel, a Via-Sacra. Só hoje (vi agora há pouco no jornal), teremos sete apresentações da Paixão de Cristo, em diferentes bairros e cidade, com diferentes Cristos e Marias, apóstolos os mais diversos, interpretados das formas mais intensas. Me interessa muito a Paixão de Cristo no Morro do Peludo, em Ouro Preto, Olinda, de graça.

Os mercados ficam empanturrados de gente, em busca de peixe, todos descobrem que não podem viver sem bacalhau, o vinho sai comendo no centro, do Concha y Toro ao Carreteiro, ou galões imensos de Sangue de Boi, que Deus o tenha.

Sobre a Paixão de Cristo, tenho algo a lhes contar.

Há alguns anos, foi realizada uma encenação muito caprichada, aqui no Poço da Panela, com arquibancada e tudo o mais. Aconteceram alguns fatos que fugiram ao controle da organização, e por conta dos tais fatos inesperados, foi a última vez que a Paixão do Poço foi realizada. Após um exaustivo trabalho de reportagem, consegui descobrir o motivo do fim do evento em nossa comunidade. Vamos a eles.

Primeiro, tivemos problemas com o burrinho que trazia Jesus. Não se sabe ainda o motivo, mas o fato é que o dito animal vinha num passo lento, diria manco, com Jesus acenando, acho que com uma oliveira nas mãos, eu sempre confundo os episódios, mas pouco importa, o que importa é que na Paixão, Jesus chega num bucólico burrinho de algum canto. Lá pelas tantas, o jumentinho daqui arretou-se e saiu em disparada, atravessou a multidão e mudou os rumos da histórica cena. Muitas ruas depois, Jesus foi resgatado com vida, assustado e pálido, mas conseguiu retornar à encenação, após muita adulação com nosso jerico.

Tivemos problemas com Marco Careca, que foi escalado para ser um soldado romano. Marco é um sujeito simples daqui, um negro careca e com poucos dentes, vive de bicos, sempre passa de bicicleta com um sorrisão, mas não se enganem - é o pior jogador de futebol que já tive oportunidade de ver em campo. Pois bem, ele recebeu a roupa do soldado e incorporou mesmo o personagem. Com um chicote na mão, começou a fustigar Jesus (infelizmente não consegui descobrir quem interpretava Jesus).

“Calma, Marco, que isso é uma encenação. Tá doendo, visse?”, sussurrou Jesus, já bastante avariado e com as costas ardendo.

O sol estava de rachar e Marco, numa pose de soldado romano recém-contratado, não quis saber de acordo.

“Encenação o caralho, comigo é na vera”, respondeu, descendo mais uma chibatada no lombo do nosso Jesus.

A platéia achou lindo aquele realismo.

Sabe-se que Jesus apanhou pra caramba, até chegar à cruz, que estava aqui, defronte à Igreja do Poço. Amarraram Jesus. Novamente, Marcos Romano entrou em ação. Amarrou os pulsos de Jesus com toda a força que tinha, e a mão do camarada começou a ficar preta.

“Marco, tá doendo, cara”.

“Eu tô dizendo mesmo...", respondeu o soldado Marco. "Jesus levou foi prego nas màos, e tu não quer sofrer...”

A situação estava complicada, quando uma galera de outro bairro chegou, e começou uma confusão com a moçada do Poço. Sei apenas que era uma rixa antiga. Daqui a pouco, o cacete estava comendo no centro, soldados romanos brigando com inimigos do outro bairro, os apóstolos dando pedradas, Maria parece que se escondeu, foi cacete até umas horas, até que a cruz, onde estava pendurado Jesus, começou a cair, e ninguém percebeu.

“Minha mão, minha mão”, gritava Jesus.

Alguém acudiu Jesus, não sei se foi Maria, deve ter sido, Maria é piedosa e boa.

Foi a última Paixão de Cristo por aqui. Depois dessa, ainda tentamos organizar uma Via-Sacra, mas a definição dos personagens foi uma confusão, acabou não dando certo, e somos muito preguiçosos para decorar as falas.

Outro dia, conversando com Marco Careca, aqui em Biu Coió, perguntei se era verdade as lapadas que ele tinha dado em Cristo.

“Ôx, e apois. Eu vou ficar alisando, é?”.

Tomou mais uma lapada de cana e completou, orgulhoso:

“Botei foi quente em Jesus”.

terça-feira, 11 de abril de 2006

Para quem partiu muito jovem

Tenho aqui um livro com o título "Ler e escrever, muito prazer!", de 1998, junto com uma dedicatória:

"Para Nilza, com afecto".

Gosto de escrever afeto com "c", fica mais bonito, creio.

Não sei por qual motivo, não coloquei a data, mas julgo que é final de 1999, quando fiz uma longa viagem de ônibus, de São Paulo a Natal. Estava separado e triste, ela também vivia seus processos. Lembro que fomos, com mais amigos, para uma casa de praia, não lembro o nome da praia, mas sei que tinha um farol, e todo dia eu saía com meu caderno para um boteco e ficava escrevendo minhas besteiras por várias horas, sentindo aquela brisa. Como a casa estava juntinho do farol, começaram a me chamar de "o homem do farol". Prometi voltar lá, um dia, quando estivesse curado, mas nunca fiz isso. Certos retornos são apenas pálidas lembranças de tempos que já passaram. É preciso cuidado com os retornos.

Tive longas conversas com Nilza sobre as coisas da vida, foi quando estivemos mais próximos. A casa estava cheia de crianças, e uma noite houve uma apresentação de teatro tão bonita, que até esqueci que estava sofrendo dores lancinantes de amor. O filho dela, Emanuel, é meu afilhado, e se divertiu muito.

Há tempos, soube que ela teve câncer, mas venceu a batalha. Respirei aliviado. Por essas coisas estranhas da vida, perdemos o contato. Soube apenas que ela estava bem, que foi morar em Brasília, com o filho, sempre trabalhando com Direitos Humanos, sua prioridade.

Há alguns dias, soube que a doença voltou, arrasadora, e ela morreu. Recebi a notícia assim, de sopetão, e tudo já havia terminado. Lembrei de um álbum com muitas fotos destes dias na praia, dias divertidos, com muitas crianças, cervejas, sorrisos. Está em algum lugar daqui de casa, mas outro dia olho.

Acabei de encontrar o livro com a dedicatória para ela, o livro que nunca entreguei. Mas não faz mal, está cheio de afecto, essa coisa que nem a distância nem o silêncio apagam, vou usá-lo na minha "Oficina da Palavra", com os jovens da periferia do Recife.

Ela iria gostar disso, eu sei.

segunda-feira, 10 de abril de 2006

Vitórias e derrotas em um domingo recifense

No domingo, 6h20 da manhã, chego à pelada. Ainda chove, mas já estão todos, os loucos por peladas. O jogo começa, nosso time está desarrumado, vamos levando um vareio de bola. Lá pelas tantas do primeiro tempo, já vamos levando um 5 x 1 inacreditável.

Então acontece o impossível. Lando é expulso, por esculhambar o juiz, que é Moura (o cara é chato pra caramba quando está bicado). Daqui a pouco, levamos o sexto gol, e estamos com um a menos em campo.

Então, acontece um mistério. O time é tomado por uma força misteriosa. Eu na zaga, Peitão no gol, Egildo Vôvô na lateral direita, Cacá na esquerda e Dai pelo meio. Fazemos 6 x 2, 6 x3, 6 x4, e acontece um fenômeno. Estamos todos alucinados pelo empate. Corremos feito cães furiosos, marcamos, tocamos, gritamos a cada bola. depois fazemos o 6 x 5 e no final do jogo, acontece o impossível: 6 x 6 e o gol de Dai, já no finzinho.

Daqui a pouco, Moura acaba o jogo. Estamos exaustos, mas felizes. Quem assiste ao jogo vem comentar. Nos cumprimentamos. Fizemos o impossível.

Mais tarde, depois de banhado, vou à Liga de Dominó, aqui em Vital. Todo mundo sabe que não sei nem pegar nas pedras do dominó, e detesto que olhem meu jogo. Sento com Duda a Milhão e pegamos, logo de frente, Seu Vital e Seu Paulo, dois mestres do dominó. Pedra vai, pedra vem, enfiamos um 5 x 0 e depois ganhamos de carroça. Resultado: 7 x 0 e o nome da dupla adversária vai para o famoso "caderno das buchudas". Jogamos mais três partidas e ganhamos de todo mundo. Na última, estamos levando de 5 x 0, mas os deuses do dominó brincam, e damos uma "buchuda de ré", como dizem por aqui. Ganhamos de 7 x 6, numa estranha combinação de pedras.

Saio com meus amigos para a decisão do Estadual. Meu time, o Santa, faz um gol aos 45 do segundo tempo, e tenho um surto psicodélico, fico louco, saio pulando e gritando na arquibancada da Ilha do Retiro.

Nos pênaltis, perdemos o título, o sonhado bicampeonato.

Volto pra casa abatido, desencantado da vida, daria a vitória milagrosa da pelada e as vitórias incríveis do dominó pela vitória do Santinha nos pênaltis. Hoje acordei com aquele sentimento da profunda tristeza futebolística.

Mas, como dizia Seu Biu, um dia a gente ganha, outro a gente perde. No meu caso, foram vitórias e derrotas no mesmo dia, e me parece que assim é a vida.

Um pequeno texto antigo

Esse texto estava datilografado, em uma pequena e finíssima folha azul, dentro de um caderno meu, de 2002. Achei que seria bom compartilhar.
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Minha voz intransigente descia a escada da vida, desamarrando meu queixo duro, dentes que roçavam um no outro, arrancando a alvura amarelada. Meu corpo aquietava sua febre , sua fome, seu último desvendar que me assustava.

Sempre quis chegar a este ponto, ao movimento de uma prece sem mãos, de uma dança sem chão. Mas esse querer, mais antigo que a fabricação da minha infância, me roubou as horas dadas pela vida, essas horas que nada pedem, a não ser o vagar pelas ruas recém-descobertas.

Fiquei mudo, em respeito à escada da vida, adormecida no chão avermelhado, aceitando meu queixo despreparado para o embate.

Senti que meus dentes agora somente mordiam frutas, sem conseguir feri-las como minha fome.

Então percebi que minha fome já não mais me feria.

sexta-feira, 7 de abril de 2006

Anotaçõs dos velhos cadernos, em dia sem inspiração

Hoje a inspiração não veio, parte também por conta da preguiça, e preguiça eu respeito muito. Como adoro escrever nos meus cadernos trechos de livros, conversas, diálogos e observações inúteis as mais diversas, vai uma pequena seleção de coisa que andei anotando, no meu diário de fevereiro de 2002.

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“A inércia é meu ato principal” (Manoel de Barros, poeta)
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“Ser poeta é perder”(Eduardo Milan, poeta uruguaio)
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“Soy um tipo com una tendência desarraigada muy fuerte. Y esos tipos son los peores porque son los que sobreviven”(Ibdem).
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“A árvore já não está, mas sua sombra continua em mim”(frase que pretendo usar num poema)
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“Toda ruína sobrevive”(Juan Gelman, poeta argentino)
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“Eu, como os cães, sinto a necessidade do infinito”(Lautreamont)
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“Muitas vezes, perguntei-me que coisa era mais fácil de reconhecer: a profundeza do oceano ou a profundeza do coração humano!”(Ibdem)
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“Minha alma é um graveto que ainda não partiu.
Quando partir, será árvore”.(mini-poema)
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“Aptidão à metamorfose de si mesmo e de estar presente em cada coisa”. (Lou-Salomé)
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“Creo que son los males del alma, el alma. Porque el alma que se cura de sus males, muere”(Antonio Porchia, argentino)
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“Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio”(Ricardo Reis).
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“É preciso dar graças ao amor”. (Lourival, professor da UFPE, no lançamento de “Voltar a Palermo”, de Luzilá).
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“O amor é uma carência e uma querência”. (Ibdem)
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“É sempre oblíquo o ângulo da estrada do amor na nossa vida”(Ibdem)
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“Dharma é o contrário de Karma. Karma é débito, Dharma é crédito”.
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“Fundei cidades em tua doçura”(Juan Gelman, sempre)
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“Em geral, as posses são definidas pela posse”(Nietzsche, in “A Gaia Ciência”)
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“E a verdade é que a beleza está à nossa espreita. Se tivéssemos sensibilidade, poderíamos captar sua presença na poesia de todos os idiomas”. (Jorge Luís Borges)
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“O conselho é saudável mas difícil de ser praticado, pois se geralmente sabemos o que perdemos, nunca sabemos o que vamos ganhar. Temos uma imagem muito precisa e, às vezes, dilacerada do que perdemos; mas ignoramos o que pode vir em seu lugar”.(Ibdem)
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“A felicidade não precisa de transformações. A felicidade é seu próprio fim”. (Ibdem)
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“Lembrei disso num poema, onde falo do antigo alimento dos heróis: a humilhação, a infelicidade, a contradição. Essas coisas nos foram dadas para serem transformadas: fazer com que as circunstâncias miseráveis de nossa vida se tornem coisas eternas ou em vias de eternidade”.
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“Não me deixo para depois”(Ericson Luna, poeta recifense)
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“É isso, meu amor, mas se calhar a solidão é não sabermos estar conosco, com o patrimônio da nossa própria história, com a memória honrada do que vamos vivendo. Talvez por isso entramos no amor por causa das nossas ruínas e nem todos querem trabalhar na construção civil”. (Antonio Alçada Baptista, escritor porruguês)
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“Pense mi hogar apagado. Me queme las manos”. (algo do tipo: “pensei que meu fogo tinha apagado, e queimei as mãos, trecho de um poeta equatoriano, que não lembro o nome).
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Há também os agiotas do espírito (está anotado assim, numa página em branco)
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“Somente o tempo, o tempo só
dirá se irei luz ou se permanecerei pó
se encontrarei Deus ou procurarei só
se ainda hei de abraçar minha avó”.
(Versão de “Time will tell” de Bob Marley, por Gilberto Gil)
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“Eu queria ter sido uma multidão”(De um amigo, ao ser perguntado sobre quem gostaria de ter nascido)
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“Ciertas luces apagadas iluminan más que las luces encendidas”. (Antonio Porchia)

quarta-feira, 5 de abril de 2006

Mini-confissões aleatórias

Já fiz Yoga uns dois anos, três meses de box, duas aulas de Tai-Chi. Já viajei num teco-teco lotado, na Amazônia, e tive certeza que iria morrer. Já distribuí cigarros para os presos do Carandiru. Já passei um mês no meio de uma tribo indígena. Aos treze anos, queria ser maratonista. Nesta época, parei de comer carne por quase dois anos. Esperava meu pai sair para o trabalho e pegava a Playboy, debaixo da cama dele. Já acordei numa calçada de Olinda, numa quarta-feira de cinzas, sem óculos e liso. Já saí do estádio do Arruda dentro de camburão. Vi o Carandiru sem implodido e festejei. Já assisti uma peça com ex-presos políticos, no DOPS de São Paulo, e me emocionei. Já fui a única pessoa a assistir uma peça, em São Paulo. Já entrevistei dom Paulo Evaristo. Sonhei que entrevistava Ernesto Sábato. Já roubei livros em várias livrarias, até da Livro 7 (Tarcísio que me perdoe). Adoro roubar canetas dos amigos. Sou um pidão de marca maior, mas adoro dar presente. Já sofri muito por amor. Recusei inúmeras vezes experimentar cocaína. Já enterrei meu cachorro mais querido no quintal de casa. Já fui dono de bar duas vezes (toc!toc!toc!). Tenho o costume de beber água da torneira. Adoro canto gregoriano e os bregas dos anos 70. Ainda lamento ter perdido o vinil com a narração dos gols da Copa de 70, que escutei muitas vezes na infância. Acho o jogador Tostão, com a camisa da Seleção, uma pintura de Deus. Sempre piso nos óculos, quando estou muito liso. Já fui sonâmbulo na adolescência, fiz um monte de eletroencefalogramas, infelizmente nunca descobriram nada. Tenho um medo ancestral e irreversível de altura e da estupidez humana. Achei a Monalisa, no Louvre, uma bobagem. Posso me alimentar uma semana somente de fruta-pão e café. Detesto gente que acorda de mau-humor. Não suporto o hábito de aplaudir qualquer besteira de pé. Acabo uma amizade se a criatura não responder um bom-dia. Tenho saudades das camisas do Santa Cruz dos anos 70. Gosto de longas conversas com crianças. Fico fodido quando perco a pelada dos Caducos, no domingo. Adoro tomar chimarrão de manhã. Estraguei meu paladar no Restaurante Universitário. Qualquer comida me agrada. Detesto whisky de qualquer marca. Já usei Kichute e Conga. Já usei tamancos. Perdi o ânimo por discussões fortes sobre qualquer assunto. Guardo um pedaço da sardinha na lata, para o dia seguinte. Pior que isso, como o restante no dia seguinte achando ótimo. Adoro conversas pontuadas por longos silêncios. Penso em fazer um doutorado sobre Juan Gelman. O sorriso de Lulu é um presente de Deus. Nunca aprendi a jogar dominó. Acho Truco mais difícil que o cateto da hipotenusa. Não moraria nos Estados Unidos nem que me pagassem uma bolada. Adoro conhecer, antes de tudo, a biblioteca de qualquer casa. Gente séria me deixa empulhado. Mexo na geladeira dos outros sem parcimônia. Sou péssimo para decorar nomes. Só consigo ler riscando o livro inteiro. Tenho diários há quase 20 anos. Adoro varrer minha casa. Adoro os olhos das pessoas. Só peço alguma coisa antes de saber o preço. Já tive um lindo Fusca 68, e o acabei num Honda. Adoro pedir demissão dos lugares. Adorava me mudar de casa, até chegar no Poço da Panela. Gosto de rezar no terço que foi da minha avó. Acredito em todos os orixás. Acho “Educador” uma palavra linda. Acho a Gisele Bünchen uma magra sem graça. Não suporto taxista calado. Se tivesse muito dinheiro, daria bolsa de estudo para meus amigos tocarem seus projetos. Já fiz terapia, até que minha terapeuta foi morar no Sertão, e tudo voltou à normalidade. Concordo com Lourival em duas coisas: 1) toda memória é atravessada por uma aleluia; 2) o afeto é uma pátria.

terça-feira, 4 de abril de 2006

Pequena homenagem a um cidadão comum

Desde que vim morar aqui no Poço da Panela, sítio histórico às margens do Capibaribe, encontrei um sujeito baixinho, gordinho, voz estridente e sempre sorrindo de tudo. É certamente o nome mais repetido no Poço: Naná. Desde o primeiro encontro, nos tornamos amigos e chegamos àquela fase especial na amizade, quando um fala exatamente o que o outro estava pensando em dizer. Eu só o chamo de “Montanha”, porque ele parece mesmo com uma montanha.

Ele mora aqui ao lado, e sobrevive da sua Kombi, que roda sem parar, todos os dias da semana. Trabalha para um buffet, levando e trazendo material para festas, mas faz de tudo um bocado: mudança de gente que separou, retorno da mudança de gente que fez as pazes, andaimes para obras de restauração, leva os amigos tricolores para os jogos do Santa Cruz, carrega doentes para hospital, sem cobrar nada, transporta os jogadores de futebol do Poço, quando vão jogar fora, enfim.

E Naná leva, voluntariamente, 32 crianças para a Escola Municipal Nilo Pereira, de segunda a sexta-feira. Faz o trabalho sem cobrar nada, em duas viagens, logo de manhã. A primeira viagem sai às 7h, a segunda vai às 7h15. É um negócio simples, mas que está conseguindo mobilizar a comunidade para instalar uma escola na própria comunidade. Na última eleição do Orçamento Participativo, da Prefeitura, o Poço colocou, pela primeira vez, o ítem "Educação" em primeiro lugar.

Ele faz esse trabalho há três anos, faça sol, faça chuva, tendo trabalhando de madrugada ou não. Só não faz as viagens com as crianças, se a Kombi estiver quebrada. É o único momento em que ele fica aperreado, o sorriso some. É seu ganha-pão. Cada dia com o carro quebrado, deixa de “gerar na alta”, como ele diz, e vai tomando prejuízos. Depois, trabalha em dobro para recuperar.

Acompanho Naná neste projeto, e é sagrado nos encontrarmos todo dia, ali pelas 7h. Depois da segunda viagem, é sagrado também um pequeno café em Seu Vital, para o tradicional bom-dia, e rumamos para sua casa, onde Teresa, a esposa magérrima, faz um sagrado café forte, um “café de soldado”, como ela diz, e comemos algo.

Nos encontramos umas três, quatro vezes por dia. Não é raro, no final da manhã, ele chegar com um prato de comida, algo suculento, e colocar em cima da minha mesa, sem avisar nada. Outro dia, ganhei um pirex com uma delícia de abacaxi, presente da namorada, e o primeiro pedaço foi para o gordinho, depois para Seu Vital.

Trata-se da pessoa mais generosa que já conheci na vida, uma espécie de gente que tem muito no Brasil, apesar de não percebermos bem. Não fossem essas pessoas, a vaca já teria ido para o brejo. Você vai pedir algo a Naná, e ele tem um sim na ponta da língua.

Andréa Ferraz, uma grande amiga, está fazendo um documentário sobre ele. Muitas imagens já foram gravadas, tem depoimento de muita gente do Poço, cenas engraçadíssimas. Em certo momento, ela perguntou o que o deixava mais triste.

Naná ficou longos minutos procurando, entre os seus miolos, o que o deixava triste. Pensou, pensou. Um longo silêncio se instalou na filmagem.

Foi a única pergunta que ele não conseguiu responder.

Hoje ele completa 39 anos, e resolvi fazer esta pequena saudação a um camarada que sobrevive na raça, com sua Kombi pelas ruas do Recife, mas separa, todos os dias, um pedacinho do seu tempo para levar crianças da comunidade para a escola.

O nome disso, para mim, não é solidariedade nem trabalho voluntário. É amor mesmo.

nota aos leitores: Continuo tentando arrumar a bagunça que fiz no Blog. Há pouco, fui tentar organizar os links, mas consegui mesmo foi aumentar o tamanho da letra dos textos, o que não é de todo ruim. Faltou pouco para excluir o Blog de vez. Aguardo ajuda de qualquer parte do planeta, já que minha professora, Macksandra, está de greve por tempo indeterminado.

segunda-feira, 3 de abril de 2006

Essa chatice do astronauta brasileiro...

Amigos leitores, aqui vai uma confissão: eu não agüento mais essa ladainha da mídia brasileira envolvendo o senhor Marcos Pontes.

O sujeito parece ser boa gente, tem cara de bom moço, bom pai, bom marido, bom vizinho, bom cunhado, bom sogro, bom sócio do Rotary, não freqüenta os Alcoólatras Anônimos, não tem cara de quem toma umas garapas com os amigos até ficar mole, não acompanha os jogos do seu clube, não dá cotoco no trânsito, não bate na esposa, mas resolveu encher a minha paciência quando decidiu ser astronauta. Pior: quando foi aceito pelos norte-americanos para ir ao espaço sideral, como se isso fosse a descoberta da vacina contra a malária.

Vou confessar uma coisa: uma matéria com ele, antes do embarque, para saber se ele tem medo de altura, se está com frio na barriga, depois as imagens dele no céu, e estava ótimo, já poderiam trocar de assunto, falar de outros temas mais pungentes (estava louco para usar essa palavra hoje, “pungente”).

Mas esse senhor Marcos Pontes está na TV de manhã, de tarde, de noite, de madrugada, na hora do almoço, da janta, do lanche, pelo simples e comovente motivo de ser o “primeiro astronauta brasileiro” que está no espaço sideral. Os jornais e revistas já não têm mais nem o que falar do sujeito, sabem até o tamanho da cueca dele e o nome da primeira namorada, ali no ginásio. Faltou pouco para botarem a musiquinha do Senna, quando o foguete decolou, e não papocou todo.

Li não sei aonde que o Brasil gastou U$ 10 milhões nessa brincadeirinha, eu nem vou falar nada, porque essa grana, em Educação, deixaria nossas universidades e escolas numa boa. Bom, ele vai fazer 12 experimentos no ar, então pode sair, da estratosfera, alguma coisa brilhante, para ajudar a melhorar a vidinha por aqui, porque o negócio não está fácil. Um pobre de um aposentado, para ser atendido pelo INSS, tem que virar a noite em uma fila, ao relento.

A única certeza que vou tendo, com o passar dos anos, é que a mídia brasileira está cheia de obsessivos-compulsivos. Escolhem um assunto para martelar, e tome pau no cabeção da gente. Quando o jogador Ronaldo foi casar com aquele modelo, eu tive vontade de morar na Malásia, porque não agüentava nem ver mais os dois - e olha que a menina é até mais ou menos! Foi tanta frescura por causa de um casório, que a história não durou nem três meses. Agora vai uma confissão, por favor não espalhem: foi uma praga que joguei.

Estou louco que essa viagem termine logo, que ele desça são e salvo e o assunto termine.

Acho que vai ser é pior. O homem vai virar herói nacional, vai chegar de avião, agitando a bandeira brasileira, será recebido no Palácio da Alvorada, pelo digníssimo senhor Lula, e finalmente vai desfilar em carro do Corpo de Bombeiros, uma tara tipicamente brasileira. As imagens de sua mãe chorando, dizendo que ele é a melhor pessoa do mundo, ajudarão a completar o espetáculo.

Depois, o assunto vai cair no esquecimento e outra obsessão entrará em cena, talvez a Copa do Mundo, ou uma calamidade nacional, de proporções bíblicas, que seria uma contusão grave do nosso Ronaldinho Gaúcho (acabei de bater três vezes na madeira).

O digníssimo leitor vai me perguntar:

“E sobre essa viagem, que custou dez milhões de dólares?”

Tenho um amigo muito prático, que gosta de resolver as coisas sem enroladas, que é o digníssimo Serjão. Quando chega alguém com uma conversa muito empolada, cheia das mil etapas e prosopopéias, para falar de algo que nunca vai sair do papel, é mais meio de vida e muita pose, ele escuta tudo como se estivesse achando a coisa mais importante do mundo, e saca do coldre a pergunta:

“Sim, mas e daí?”

Boa pergunta.

Até amanhã.


ps. mudei a cara do Blog e gostaria de saber se está melhor ou pior.

sábado, 1 de abril de 2006

Como infernizar uma cidade

Recebi dinheiro ontem, almocei com o velho Inácio e meus olhos brilharam. “Vou à livraria Cultura”, buscar meu exemplar do Robert Arlt, o maior dos argentinos (“Os sete loucos” e “Os lança-chamas”, reunidos na mesma edição, a R$ 69,00). Compro o livro, chegou ao ponto de ônibus parecendo um menino, que ganhou sua primeira Monareta, lambendo os beiços. Ah, nada como um bom livro...

Então começa o inferno. Às 16h, estou na parada. O Alto Santa Isabel não passa nunca, penso em ligar para Lucimério, o dono da empresa, que bebe aqui em Seu Vital, mas, pensando bem, deixa o cara em paz. Às 16h50, chega o ônibus, lotado. Um calor derretendo tudo. Tudo no centro está um caos. Meia hora depois, andamos um quilômetro. Velhos exaustos, mães segurando filhos, é sexta-feira, todo mundo só o bagaço, o calor arrancando suspiros. Motivo do caos no trânsito: a transmissão do cargo do atual governador, Jarbas Vasconcelos, para o vice, Mendonça Filho. Jarbas é candidato ao Senado. Tudo mudou no trânsito desde a manhã, ruas foram fechadas, a patuléia, o povo, a rafaméia, que se vire, é o recado. Estou no meio.

Só ontem, pela graça de Deus, ele perdeu milhares de votos, dos desgraçados (eu no meio), que sofriam dentro de ônibus lotados. Olho no Jornal do Commercio, edição de 13.12.2005: só no ano passado, 394 pessoas podem ter morrido, em sete hospitais públicos, por falta de vaga em UTI.

Às 18h, o ônibus está na Agamenom Magalhães, parado há meia hora. Não há um vento para sacolejar uma folha. Estou suado, exausto, triste com essa miséria toda que fazem com o povo brasileiro. Ao meu lado, uma senhora solta longos suspiros e repete "ô, meu Deus..."

Desço e vou caminhando, melhor que cozinhar dentro de um ônibus. Chegou à Rosa e Silva: tudo parado. Sigo a pé, tentando entender o caos. Perto da sede do Náutico, um boçal de um policial da CTTU fecha o trânsito. Um simples, reles e boçal policial, que deve ter passado o dia aplicando multas, fecha a avenida com uma motoca. Então, já é o caos completo mesmo, a Rosa e Silva fechada às 18h de uma sexta-feira.

Vejo uma aglomeração. Ôx, mas o jogo não é domingo à tarde, contra o meu Santinha? Já vi jogos decisivos, milhares de pessoas nas ruas ao redor, e sempre há espaço na Rosa e Silva. Penso em algum acidente grave, uma ambulância tinha passado agoniada. Vou me aproximando e vejo o motivo daquele caos: duas centenas de adolescentes do lado de fora, no meio da rua. Dentro, no clube, um show rolando.

“É o ensaio do Saia Rodada, a festa de um colégio”, me explica um cambista, que vende ingresso.

Então é isso. Milhares de pessoas estão arrasadas, dentro dos ônibus, esperando a hora de chegar em casa, para ver se os filhos jantaram, muitos levando um pedaço de alguma coisa, o dinheiro do pão, depois de uma semana inteira se fodendo, oito horas por dia, muitos deles trabalhando em pé, no calor, doidos por um banho e um descanso, e a Rosa e Silva, uma das avenidas mais movimentadas do Recife, está fechada por causa de uma festa de adolescentes, de um colégio particular. Me perdoem o palavrão, leitores, mas puta que o pariu!

Do lado de fora, muitos já estão bêbados, porque a bebida rola solta. Duas senhoras caminham à minha frente e comentam:

“É porque são ricos, podem tudo”.

A frase parece definir um país, que é o Brasil. Quem tem, pode tudo.

Me pergunto com que direito essa classe média fecha uma rua para uma festinha, como se a cidade fosse um bem particular, não um bem comum, atrapalhando, humilhando, lascando a vida de milhares de pessoas, durante algumas horas.

Caminho, caminho, caminho, estou exausto, suado, já puto com o Robert Arlt, esse porra, quem mandou escrever tão bem. Já são 19h, há três horas entrei nesse inferno. Por sorte, não estou tão fodido de grana, não tem ônibus passando na Rosa e Silva por conta da festinha da burguesia, resolvo pegar um táxi. O cara, o taxista, está fodido, cansado, puto da vida, diz que a cidade está um caos completo.

Um governador que vai ser possivelmente senador da República e uma festinha de adolescentes, e a cidade vira um inferno. Não, eu não deixo pra lá coisa nenhuma. Isso é uma merda, a CTTU nos deve explicações, esse colégio nos deve explicações, o agora ex-governador nos deve explicações, mas sei que ninguém vai dizer nada.

Eu fico puto, lembro do Contardo Calligaris, que adoro, que fala sobre o “dever de lutar por coisas pequenas”, a necessidade da intransigência, que é muito diferente da intolerância, sobre as coisas pequenas. Deixo de lado minhas besteiras de sempre aqui no Blog e dou meu pequeno alerta – ou vocês, que ainda têm alguma grana, se aprumam, ou isso aqui vai virar um inferno.

Estava terminando minha crônica de hoje, quando vi a manchete no JC On Line de hoje:

“Briga de adolescentes causa tumulto nos Aflitos”.

"Uma briga de adolescentes, nessa sexta-feira à noite, tumultuou o trânsito e provocou uma grande confusão na Avenida Rosa e Silva, na frente da sede do Náutico, no bairro dos Aflitos. No clube estava havendo uma festa organizada por alunos de um colégio particular do Recife para arrecadar dinheiro para a formatura da turma e centenas de adolescentes ficaram apavorados”.

Sem comentários.