quinta-feira, 24 de abril de 2008

Mudei

Pessoas que lêem este velho cronista, informo que estou em novo espaço:


http://www.estuario.com.br/


é até mais fácil de memorizar, né?

E apois.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Mudanças no Estuário

Lembro que abri o blog Estuário após uma caminhada com Iramarai, depois de sair do JC On Line.

De lá pra cá, escrevi centenas de textos, sempre no mundo das crônicas. Viagens, coisas do Recife, da vida, enfim.

Agora, vou dando um passinho a mais. Com a ajuda de meu amigo Dimas Lins, recebo de presente a página www.estuario.com.br

Amanhã, o novo espaço entra no ar, substituindo o blog.

Nos encontraremos por lá.

Samarone Lima

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Acasos, circunstâncias e cartas

Esses acasos e circunstâncias são grandes presentes da vida, e acolho como um abraço de um velho amigo, que não vejo há tempos.

Por esses dias, arrumando as muitas caixas de livros e fotografias, esbarrei em um lote imenso de papeis amarelados. Parei a arrumação, o objetivo de deixar as estantes no ponto, e fui revê-las. Foi um mergulho em mim mesmo, que durou o restante da tarde, entrou pela noite, e os livros ficaram na desordem de sempre.

Descobri que até 2002, recebi cartas com rara frequência, e sempre respondi. Como saí de casa em 1987, e desde esta época escrevia para amigos e família, tive na minha vida uns 15 anos de correspondências, com pessoas as mais diversas. São memórias pungentes, que chegavam em diversos tipos de envelopes, cores. Tê-las por perto é quase um segundo diário.

Por onde andará o velho e impagável Guilherme Salgado Rocha, meu companheiro de redação no jornal "O São Paulo", da Cúria Metropolitana de São Paulo? É um sujeito grande como um urso, feroz em suas paixões, capaz de falar duas horas initerruptas sobre o Botafogo, sua grande paixão, com lágrimas nos olhos. Olhei algumas de suas cartas, divertidíssimas, longas. Certa vez, eu estava na França, ele me mandou uma enorme carta. Metade falava do desempenho do Botafogo no Campeonato Brasileiro de 1995.

Ao final da carta, ele mando a pergunta fatal:

"Você tem dado vexame aí, meu?"

Não lembro se dei vexame, creio que sim, Luzilá é quem pode responder melhor, porque foi a santa amiga que me acolheu, ali no quinziéme.

Ah, a carta é uma preciosidade que ainda teimo em manter. Alguns poucos amigos ainda sustentam esta paixão, devorada pela febre dos email, Orkut, enfim.

Mexo os papéis, encontro uma carta de Betânia Santana, minha adorável amiga dos bons tempos do Diário de Pernambuco, entre 1992 e 1994. Quando me mandei para Sampa, ela mandou algumas cartas que estava quietinhas, adormecidas.

Vejo uma de 29 de junho de 1994. É uma preciosidade. Está escrita a máquina mesmo, de datilografia, no papel timbrado do Diário, onde escrevíamos as matérias. É a famosa "lauda" jornalística, com 20 linhas contadas. Meu Deus, quantas matérias escrevi, utilizando aquelas folhas amarronzadas! Na época, a Luiza, filha da Andréia, fez um ano. Uma frase me chamou atenção: "O inesquecível não precisa ser muito longo".

Ao final da carta, um PS:

"Carta feita ás vésperas do Dia dos Namorados, durante plantão no Diário, ouvindo Altemar Dutra, no gravador de Zé Maria, que manda um grande abraço".

Então, lembro imediatamente do velho e bom Zé Maria Garcia, com sua eterna cabeça branca, os dedos amarelados de cigarro, que me apresentou ao mundo boêmio da Cristal, o ponto de encontro dos malandros do Diário e do Jornal do Commercio.

No amontoado das cartas, há coisas engraçadas. Enconteri uma carta que escrevi para Marquinhos e Stella, duas adoráveis criaturas, que moravam na Holanda. Separei duas longar reportagens publicadas no Jornal do Brasil, em fevereiro de 1999. Numa delas, o tradutor Pedro Sussekind falava da nova tradução do Hans Staden, o relato do soldado alemão que percorreu a costa brasileira, entre 1548 e 1555. "O Brasil de Staden foi inspiração para o movimento modernista e até hoje não recebe a devida atenção nos curriculos escolares", diz o texto.

Ontem mesmo, arrependido por não ter mandado a carta, fui à agência do Cabo e postei a carta, com um bilhetinho. Foi mal, amigos, desculpem o atraso de quase dez anos para mandar a cartinha. Ando meio lento ultimamente.

Tenho um bom lote de cartas do Gustavo, meu dileto amigo. Por elas, dá para ver a sustentação perpétua da verdadeira amizade. Quando ele estava ruim das pernas, minhas poucas linhas ajudavam em algo. Muitas vezes, recebi um "força, irmão", que ajudou muito, sempre utilizando a "Carta Social", que custa 1 centavo (R$ 0,01).

Leio, em janeiro de 2001, um informe importante:

"Acabo de comprar a trinta contos esta Olivetti semi nova, com ela tentarei pelo menos ser mais claro, já que aquela minha letra miúda fazia-te mais cego".

Um trecho certamente me deu alguma esperança a mais, naquele 2001 tão cheio de coisas boas e ruins:

"Tenho pensado bastante no que temos feito para modificar este mundo. Novamente me vem a mesma resposta: existirmos do jeito que existimos. Pacíficos, amorosos, abismos".

Há uma carta da Camila Vinhas, amiga e vizinha em São Paulo. A carta foi entregue pessoalmente, sem os serviços dos Correios. Nunca mais reencontrei Camila, e espero que ela tenha mergulhado de vez no mundo da dança, deixando o jornalismo para segundo plano. Precisamos mais de artistas que de jornalistas.

Ah, termino por aqui. Comecei a tomar notas, reler coisas, e fui vendo filmes de minha vida. Poderia escrever muitos textos sobre este tesouro que tenho comigo comigo. Melhor mesmo ir lendo aos poucos, me deliciando, relembrando.

Cartas, para mim, representam um pequeno pedaço da humanidade que deixa a pressa de lado, busca um papel, uma caneta, uma máquina de datilografia, e escreve. É como uma meditação para um amigo, para alguém que se quer bem. Uma pequena oração.

Nada mais amoroso do que chegar em casa, e ver uma cartinha por debaixo da porta.

Lembra um bom abraço. Um abraço de rodoviária, às vésperas da chegada de uma pessoa que vem de muito longe, ou na hora fatal do embarque.

Nessa hora, nossos braços ficam imensos e acolhedores.

Para Betânia Santana, com saudades.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

A mãe da estrelinha

Acompanho à distância este massacre midiático por conta de menina que morreu. Não tenho muito o que dizer. É um crime terrível, uma dor que não posso sequer imaginar, a da mãe.
Me chegou por email um texto delicadamente belo, de Fábio Lucas. Não o conheço, mas ele autorizou a publicação neste blog. Compartilho com meus leitores.
Por hoje, fiquemos com a ternura da mãe da menina que morreu.
A ternura, creio, ainda salva a humanidade.
Abraços,
Samarone
***
A Mãe da estrelinha
Fábio Lucas

"As tragédias familiares raramente provocam comoções coletivas. A comoção depende de quanto se propaga a onda trágica original, mas nem mesmo a mídia sabe como e por que um caso merece maior atenção que outro. A emotividade do público que vê a notícia repetida diariamente não é diferente da emoção sentida pelas famílias atingidas - o que varia é o grau com que o choque provocado pela mudança abrupta de realidade se dá.

Para os espectadores de uma barbaridade dissecada pela sociedade do espetáculo, trata-se de um abalo a distância - o que não diminui o caráter do abalo, embora eleve a noção comum de espetáculo, e portanto de algo que logo será consumido pela voracidade do olhar coletivo.

Seja qual for a escala social em que é transmitida a dor aguda da perda, e em que se atravessa o calvário do luto, sempre é surpreendente descobrir a força das pessoas mais próximas, quando o natural seria a rendição à fraqueza e ao esgotamento. Pois a perturbação que chega ao imaginário dos outros não é sequer comparável à ruína existencial dos que choram aquela perda dentro de si.

Ana Carolina Oliveira, mãe da menininha Isabella, em poucos dias de exposição na vitrine da emoção ampliada, conseguiu conquistar milhões de brasileiros pela serenidade diante da própria ruína. Como se a solidariedade gigantesca que recebeu - somente pela internet, centenas de milhares de mensagens - fosse robustecida ao seu encontro, proporcionando a formação de uma fantástica corrente de sentimento compartilhado.

Na energia impressionante de um sorriso que por todos os motivos não deveria estar ali, a voz macia de palavras de conforto para quem chorava com ela sem duvidar que a reconfortada devesse ser ela, e não o contrário, a lágrima da mãe fluía por olhos alheios, e o grito desesperado irrompia por outras gargantas.

A mãe de Isabella foi protagonista de gestos de lucidez absurda na condução do caos que sucedeu a tragédia, no meio da cacofonia vigente se ela estava ausente. Em nenhum momento apontou culpados, apesar de pedir justiça. O clamor popular que chegou às raias de incitar o linchamento dos suspeitos esbarrou em sua figura exemplarmente contida.

Em suas aparições, cada vez mais solicitadas, Ana Carolina Oliveira foi responsável pelo impacto de uma ternura de fonte improvável sobre olhos estupefatos e embrutecidos. Sem saber, sem desejar, derramava esperança sobre o mundo que não teria como retribuir aquilo que seria antes mais justo o mundo lhe dar. E o mundo pareceu mais digno por aquele deslocado merecimento.

A placidez estarrecedora, a extraordinária dedicação ao presente - como se não fosse um fardo permanecer, quase milagroso sorrir depois, como se o pior não estivesse sempre por vir - faz de pessoas como essa mãe, e tantas outras mães, pais, irmãos, esposos e esposas subitamente amputados em seu ser, verdadeiros segredos indevassáveis sobre a misteriosa graça de viver.

Graça que não se abate sequer diante do fato raso da morte, da mais odiosa e precoce subtração da vida. Para os coleguinhas de colégio, Isabella virou uma estrelinha. Para todos que se comoveram com a sua tragédia, que a luz da mãe da estrelinha não esmoreça, e possa seguir, apesar de tudo, na trilha de novos caminhos".

*Jornalista e mestre em filosofia.
fabiolucas@uol.com.br


sexta-feira, 11 de abril de 2008

Capito?

Sigo meu périplo em Salvador. Estamos bem longe de casa (eu e meu compadre Gustavo), quando ele resolve pegar um táxi, idéia que me deixa deveras preocupado, em cidades que desconheço a geografia e manhas.

Um camarada de cara boa nos recebe. Lá pelas tantas, Gustavo pergunta se ele, o taxista, sabe de uma casa para 15 pessoas, para passar uma semana em Salvador, nos idos de maio.

A simples pergunta tira nosso piloto do eixo. Ele pega o celular, liga para alguem, esquecendo completamente de que está no caótico trânsito da capital. O cara do outro lado antende, nosso amigo dá um berro:

"Liga pra mim, que estou sem crédito!"

Segundos depois, liga alguém. É seu amigo Paolo, dono de uma pousada em Salvador. Sinais vermelhos, velhinhas atravessando as ruas, faixas de pedestre são esquecidos. Antes que alguém morra, o telefone é passado para Gustavo, que acerta inicialmente algo por R$ 30,00. Adolfo, o taxista, diz que a pousada é maravilhosa, dá para ver a Baia de Todos os Santos, essas coisas.

Daqui a pouco, o telefone de Adolfo toca. Estou com dupla sorte. Gustavo vai pagar o táxi, e o taxista é o personagem do dia.

"Capito!", diz, falando bem alto.

Silêncio.

"Va bene. Espeto tu lá no aeroporto".

Silêncio.

"Capito! Ma tu número es confidencial, capito?"

Silêncio.

"Capito. Mañana espeto tu lá no aeroporto, a las três de la tarde".

Depois de mais uns três capito, barbeiragens de todo tipo. Adolfo desliga o telefone.

"Esse italiano está é bêbado. É a terceira vez que me liga".

"E tu aprendesse a falar italiano fluente onde?", pergunto.

"Por ai, levando a turistada. Aqui em Salvador, o que não falta é italiano. Também pudera. Tem sol, comida é farta, mulher bonita, todo dia tem festa..."

Faço a pergunta básica de qualquer aproximação entre homens do planeta.

"O amigo torce por qual time?"

"Pelo Bahêa, claro", responde, estufando peito.

O time dele enfrenta os mesmos problemas existenciais que o meu. Uma série de gestões desastradas, que levaram os respectivos times ao fundo do poço. A diferença é que aqui, o presidente é o mesmo, há muitos anos.

"E aqueles desgraçados que estavam na diretoria, já saíram?"

"É difícil, mas aquele Paulo Maracajá um dia morre. O ACM não morreu? Um dia ele morre, e o time volta a ser da torcida."

Súbito, uma mulher faz uma puta barbeirada.

"Parece que é sergipana!", esbraveja nosso taxista.

Ele olha para os lados e pergunta se algum de nós é sergipano.

"Sou de Aracaju, amigo, mas não tem problema. Lá, quando alguém faz uma merda no trânsito, dizemos que a pessoa fez uma baianada".

Nós damos umas boas gargalhadas.

"Não fumei nada hoje", diz Gustavo, se referindo ao seu inconfundível cachimbo.

O taxista pega o mote e emenda, de primeira.

"Olhe, tenho um fininho aqui, um fininho de presídio, mas dá para o gasto".

Puxa um baseado de algum lugar secreto.

"Faz parte do pacote?", pergunto.

"Não, não", responde agoniado, temendo perder metade do baseado com aquelas duas figuras esquisitas.

"Ainda bem que vocês me lembraram. Vou fumar esse daqui a pouco, antes de pegar um cliente chato pra caralho".

Estamos chegando ao nosso destino.

"O cara é muito chato, e para suportar aquele chatice, só fumando um baseado".

Descemos, Gustavo paga a conta e vamos caminhando, para tomar uma cerveja na Ondina, ou Pituba, ou Rio Vermelho.

A vida segue.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Resolvendo os problemas do mundo

Após intensas e profundas discussões, na noite de Salvador, eu e meu dileto amigo Gustavo de Castro e Silva conseguimos fechar uma série de pendências sobre o globo terrestre. Não foi fácil, mas resolvemos vários problemas da humanidade, e nos próximos dias tomaremos as medidas cabíveis. Governos e populações serão avisadas de nossas resoluções. Vamos a algumas.

A questão da China contra o Tibete

Consideramos que a China perdeu a noção das coisas, ao massacrar nossos amigos do Tibete. Aqui em Salvador, fomos para uma sessão de Acupuntura com o senhor Ma To Shi, que é exilado do Tibete, mas demos com os burros n´água. Ele, no domingo, viajou para seu pequeno torrão natal, possivelmente para lutar contra o exército Chinês. Roberto Mato Chi nos atendeu, botou as agulhas, explicou algumas coisas, mas faltou aquele relato em primeira pessoa, aquela fleuma. Ma To Shi vai ficar um mês fora, então perdemos o que se chama "tempo histórico".

Saímos para um café, acompanhado de charutos baianos, e discutimos apaixonadamente sobre a importância de apagar a tocha olímpica, a cada vilarejo percorrido. Compramos extintores de incêndio aqui na 7 de Setembro e contratamos um amigo colombiano, que vai fazer a "Trilha da Tocha", com o patrocínio da Kichute. Nossa idéia é levantar a famosa marca de sapatos, que acompanhou os pés de milhares de brasileiros. Na fase final, passaremos ao poético "Caminhos do Conga". A Kichute vai nos dar um retorno até sexta-feira. Perdemos o contato com a Conga Ltda. Agradeço quem puder me ajudar.

Mal tomamos nossa decisão, e hoje cedo fomos informados que os franceses conseguiram empulhar os chinas, mandando a tocha se recolher. Desconfiamos que vazou informação.

O problema dos palestinos com os israelenses

Cada vez que assistimos aquelas maldades dos israelenses com os palestinos, vamos às lágrimas. Sobre este assunto, nós decidimos que é preciso chamar um país mais simpático para aproximar os dois povos, sem passar pela Casa Branca. Pensamos no Brasil, mas ocorreu algo mais específico. Um encontro em Juazeiro do Norte, à beira da estátua do Padre Cícero.

Lá, acompanhados por Seu Vital, seria selado o acordo final de respeito mútuo, devolução de territórios confiscados, promessas de não haver mais retaliações de lado nenhum. O Lula não poderia participar, porque ele iria querer lançar um "PAC do Oriente Médio", e diriam que ele está em campanha para outro mandato.

A questão das Farc e os sequestros

Escrevemos há pouco a versão da final de uma carta que estamos endereçando às FARC e ao governo colombiano, assinada a duas mãos. Nunca entendi aquele negócio de "escrita a quatro mãos", se só escrevo com uma delas, a mão direita. Haverá um acordo, que será assinado no mercado da Madalena, sem ranços ou rancores.

Os dois lados vão fazer um balanço sincero, e admitir que do jeito que está, as coisas vão ficar sempre piores. Depois disso, ex-guerrilheiros e governo serão convidados a passar o próximo Carnaval no Recife e Olinda, com direito a um camarote.

A questão da dengue no Rio de Janeiro

Estamos afobadíssimos com a questão da Dengue no Rio de Janeiro, e tememos que os mosquitos comecem a pegar o beco rumo a Pernambuco e Brasilia, onde vivo e vive meu amigo, respectivamente.

Decidimos que é fundamental iniciar a distribuição imediata de milhares de mosqueteiros para a população, sob o patrocínio das Casas Bahia. Não sabemos bem o motivo das Casas Bahia, mas parece que é uma empresa que ganha muito dinheiro.

Também pensamos em criar um "Disque Mosquito", onde a pessoa ligaria para um telefone, informando o lugar que tem larvas do mosquito. Seu nome seria cadastrado, e ele participaria de um sorteio para participar do Big Brother 2009. Caso sua denúncia seja inútil, será obrigado a passar todo o Big Brother acompanhando o Pedro Bial, em sua casa, e anotar todos os comentários geniais sobre o perfil de cada concorrente.

O problema do Santa Cruz

Botei na pauta a situação do meu amado clube, que anda numa de amargar, mas Gustavo considerou que era um problema que ultrapassava nossas condições, e concordei plenamente.

Demos por lavrada a ata e encerramos nosso colóquio. À noite, na Ondina ou na Pituba, discutiremos questões mais locais. Aceitamos sugestões.

domingo, 6 de abril de 2008

Na estrada

Já estou em Salvador, para participar do projeto Lanterninha, uma bela iniciativa envolvendo alunos da escola pública.

A cada viagem, descubro que sou feito de estradas. Me recomponho, me reorganizo, me refaço mesmo é andando pelo mundo. Sou apaixonado pelo processo todo. Chegar à rodoviária, embarcar, ver a cadeira, quem vai ao meu lado. Desta vez, viajei ao lado de um jovem inglês, que não falava português e usava fones de ouvido.

Viajo bem menos de avião, acho as aeromoças muito chatinhas e as cadeiras mais apertadas, além de ser muito longe do chão, o lugar da viagem. Não fosse a criminosa destruição de nossa malha de trens, viveria entre uma estação e outra, com o focinho do lado de fora, sentindo os cheiros do mundo. Chamava-se "Sonho Azul" o trem que fazia a linha Crato-Fortaleza, a viagem mais linda do globo terrestre. Já fiz grandes e inesquecíveis viagens a pé, com meu amigo Iramarai.

Não sei quantos mil quilômetros percorri, cidades que conheci, e nem importa, porque não quero ser do Guiness. Lembro que uma época, em São Paulo, eu chegava ao terminal do Tietê, e escolhia uma cidade, aleatoriamente. Viajava, passava o sábado e domingo, e voltava na segunda. Lembro de viagens maravilhosas por chapadas, com meu amigo de sempre, o Gustavo.

Há pouco tempo, descobri que esta vocação está no sangue, no meu mais remoto. Meu avô fazia o mesmo, era um andarilho por natureza. Morreu no Rio de Janeiro, aos 51 anos, de forma misteriosa.

Meu pai todo ano saía de Imperatriz, no Maranhão, rumo ao nosso torrão natal, o Crato. A viagem no raçudo Fusca era minha alegria anual. Não importava muito chegar, o que eu queria mesmo era ir. Agradeço muito a ele por ter me iniciado nesta aventura de descobrir o Brasil, em suas entranhas.

Outro dia, um amigo falou sobre coisas da felicidade, e como as pessoas querem obcecadamente o final feliz, deixando o caminho de lado, que é onde tudo acontece, inclusive a felicidade.

Com as viagens, aprendo a ir, aberto para as surpresas, impasses, os incômodos. Sei que seria muitíssimo mais triste, se não pudesse ter viajado desde a infância. Viajar me salva.

Fernando Pessoa sugere que nossas dores, sofrimentos, tristezas, sejam tratadas como "incômodos de viagem".

Eu concordo sempre com os poetas, mas não sugiro nada. Só viajo, olho, vivo e escrevo. É minha oração em movimento.

Salvador, domingo de uma chuvinha besta.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Lembranças de um estudante mediano

Só estudei bem, que eu me lembre, da 5a à 8a série. O resto foi inútil, apenas ocupei a cadeira da sala, porque não lembro de nada interessante. Na 5a e na 8a, fui reprovado em Matemática, e só prossegui a vida de estudante, porque inventaram uma coisa maravilhosa, a dependência, que você pagava no ano seguinte. Mas psicologicamente, é muito ruim a palavra dependente. Até hoje, não sei como se calcula a raiz quadrada, nem a função existencial do cateto da hipotenusa.

Apesar de muito curioso, não sei para que os turcos tomaram Constantinopla (lembro somente da frase). Arranco lágrimas de sangue, para entender o que significa objeto direto e indireto, fora os adjuntos adnominais, pronome oblíquo e outras regras. Oblíquo, na minha modesta concepção, é torto e vesgo mesmo, como Jorge Bandeira, meu dileto amigo, quando está muito mamado. Mas há gente oblíqua mesmo sem beber.

Meu ano de ouro mesmo foi a oitava série, no 7 de Setembro, em Fortaleza. A diretora entregava pessoalmente o boletim para quem tirasse todas as notas acima de 7. Os vencedores, famosos CDF, eram chamados nominalmente, se dirigiam ao púlpito, e recebiam o boletim daquela senhora velha, séria e rigorosa. Uma salva de palmas era o grande momento do mês, um troço acessível somente a quem vivia em cima dos livros, sem tempo para jogar pelada e futebol de botão com o irmão.

Um mês, fiz um esforço fenomenal, tire a lasca do cateto, acertei as artimanhas da Física, decorei pedaços inúteis da tabela periódica, descobri algum adjunto adnominal, e consegui passar pela sabatina. A menor nota foi 7,3.

Quando a diretora chamou meu nome, houve um levante na turma, porque sempre fiz parte da malandragem. A diretora levou um susto, o marcapasso deve ter descontrolado, ela me estendeu a mão e virei o assunto do dia. Em casa, meu pai não deu muita bola, aquela conversa inútil de que o cara não fez mais que a obrigação, que é uma ducha de água fria.

Só descobri que tinha alguma inteligência mesmo num dia dramático da turma, quando a Dona Socorro anunciou a arguição oral. Iria dar um complemento da aula anterior, e no final, chamaria as vítimas para o matadouro das perguntas ao vivo, na frente de toda a turma. Neste momento, quem era sabido gemia, e quem era tímido queria tomar doses cavalares de chumbinho, o meu caso. Nunca encontrei chumbinho lá em casa.

Ela explicou toda aquela coisa dos holandeses, as malandragens do Brasil-Colônia, e todos já estávamos tremendo, olhando para o relógio, que praticamente tinha congelado.

Lá pelas tantas, Dona Socorro nos olhou com aquela frieza e perguntou:

"Alguma pergunta, meninos?"

Eram 50 criaturas sem conseguir respirar, salvo algum CDF que sabia falar até holandês, se fosse o caso. Neste momento, algum espírito superior me soprou algo no ouvido direito, e criei a coragem para levantar este meu imenso braço, que certamente tremia como um bambu.

Perguntei o motivo de os holandeses não se importarem tanto com o Pau-Brasil, se aquilo era uma obsessão de Portugal. Não, eu não usei a palavra "obsessão" na época, porque tinha pouca leitura e era meio fracote das idéias. Mas fica assim mesmo, que a frase fica ótima, e também faz tempo pacas.

Dona Socorro disse que a pergunta era muito boa, e teve que ir ao Parque da Jaqueira, passar pelo Poço da Panela, chegar ao Marco Zero, e parar no Palácio do Campo das Princesas, onde estava a resposta. Isso tudo a pé. Teve que falar dos holandeses, dos portugas, e de nós, num labirinto de povos e fatos que nos deixou tontos.

Pouco importava o Pau-Brasil e aquela esculhambação do período em que fomos impiedosamente saqueados, o negócio era demorar muito. Cada frase a mais, dez segundos longe da arguição.

A resposta foi mais longa que a batalha do Peloponeso (outra que nunca entendi direito). Quando ela terminou, já com a garganta seca, a sineta do recreio tocou, ela passou a arguição para a aula seguinte, na semana seguinte. Foi como um chute de fora da área, na gaveta, aos 49 do segundo tempo, o gol do título. Ganhei abraços, parabéns, mas nem com isso, consegui abrir espaço no coração da Siu-Lan, a japonesinha mais linda que a humanidade conheceu.

Mas fiquei muito bem com a turma, surgiram novos amigos, e me disseram até que eu era inteligente. Algumas vezes, cheguei a acreditar, mas a realidade costuma me dar respostas mais contundentes.

Lembro que meu número era o 45, e o da Samara era 44.

No ano seguinte, mudei para o Rui Barbosa, que nem mais existe. Terminei o 2o grau às duras penas, sofrendo com Física, Química, Biologia, Matemática, os genes x e y, as ervilhas de um camarada que não lembro o nome. O que me salvou a vida foi mesmo ter encontrado um professor maravilhoso de Português e outro de Redação, fora a pequena biblioteca lá de casa.

Comecei com "Papillon, o homem que fugiu do inferno", e nunca mais larguei. Depois, esbarrei nos poetas, e um dia meu pai me levou na casa de José de Alencar. Achei o máximo conhecer a casa de um escritor. Lembro que ele comprou Iracema e mais uns três livros do José, mas não sei se li, porque nunca gostei muito do meu conterrâneo.

Aos 39, continuo sem saber o motivo da tomada de Constantinopla pelos turcos. Se tiver algum especialista em turcologia, entre meus diletos leitores, agradeço.

O tempo passa, mas oblíquo, em minha prosopopéia, continua sendo torto e vesgo.


Para o Halley, Titu, Geovânia, Sérgio, Sâmia, Samara, Siu-Lan e toda a turma do 7 de Setembro