quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Diversos e dispersos

Vou ao encontro do Abel Menezes, na livraria Cultura, já que a Livro 7 fechou e café em shopping center é fogo. O Abel está indo para São Paulo, fazer um doutorado sobre os xamãs urbanos, sob orientação do Edgard de Assis Carvalho, o mesmo que orientou Gustavo. Está bem na fita.

Abel escreveu o novo prefácio de “Zé”, que, reza a lenda, será reeditado pela Massangana, se o Mário Hélio ainda se lembrar. O prefácio atual é uma coisa incrível, um fenômeno editorial. Um dos prefácios mais terríveis da nossa gloriosa língua. O leitor tem que atravessar o prefácio, se esgueirar, pular, fazer acrobacias, até chegar ao primeiro capítulo. Abel conheceu o Zé. A história não vou contar, para criar mais suspense.

Leio o texto, é muito bom. Fala da geração que caminhou com armas nas mãos, mas também dos que passaram pelo pelo zen, tantra, meditação, linguagem binária, amor livre, era de Aquarius etc. Fala de tudo um pouco, e acaba falando do amor, que é o grande barato. Com esse prefácio, o Paulo Coelho que se cuide.

Lá pelas tantas, surge uma frase adorável:

“Neste momento não podemos aceitar a provocação dos desalmados nem sermos tragados pelos deprimidos”.

Conversa vai, conversa vem, colocamos nossos noves fora em dia, até que Abel me solta essa:

“É preciso a gente transformar o dia em uma obra de arte”.

E depois, a mudança em um conceito arraigado no juízo da gente:

“Tempo é arte”.

Vai, Abel, ser artista da vida...

***

Estou num bar no centro do Recife. Peço uma cerveja e fico ali, com aquela cara de quem não quer nada, já querendo. Ao lado, meu bloquinho de notas e a caneta, com a ponta afiadíssima. Fico somente à espera.

“A sobrinha da minha mulher foi deportada dos Estados Unidos. Tava tirando onda e voltou com uma mão na frente, outra atrás”, disse um camarada, fumando seu Hollywood e tomando umas.

“As mulheres americanas são muito feias. Ôs mulher feia”, completou o outro, usando assim mesmo, o “ô”, no plural.

“Ô sheike, cadê minha macaxeira?”

O sheike não deu muita bola.

“Esse negócio de direitos iguais, não é assim não. Cada um com seu direito. Já visse água se misturar com óleo?”.

Antes que me mandem email me esculhambando, informo que a frase é de um camarada, no balcão. O portador não merece pancada, já diz o velho Vital.

“Tive três maridos. O primeiro morreu, o segundo está vivo e o terceiro morreu agora. Estou viúva do meu segundo marido”, diz uma negona imensa.

Ante de sair, ela diz assim, na cara dura:

“Vou ali, dar uma”.

**

“Me dá aí um galfo, menino”.

“Galfo não tem não, tem garfo”.

“Ele é o melhor professor de português daqui”.

**

“Sabia que o Marcus Tamandaré vai para o Corinthians ganhando sessenta mil reais por mês?”, informa um camarada.

“E eu, o que tenho a ver com isso?”, responde o outro, com um pedaço de galinha boca afora.

**

Vou almoçar com meu amigo Peste, ali no Bairro do Recife. Lá pelas tantas, ele me informa o seguinte:

“Às vezes, o coração engana feito um moleque”.

**

Descobri que minha mãe pede descontos até em loja de R$ 1,99.

**

E um amigo me confessou o seguinte, após tomar uma decisão importante na vida:

“Eu nunca fui macho, mas agora quero ser homem”.


Voilá.

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

De tudo ficou um muito

Não sei quem me mandou este comentário-poema.
O fato é que ele resume um pouco a vida e o momento, o tudo e o muito pouco que vejo e sinto.
Mais tarde boto uma crônica nova.
Fiquemos com Drummond, creio, que até os 32 anos, achava que não tinha feito nada certo na vida, e que tudo estava dando errado.
Quem sabe, na verdade, quando está certando ou errando?
Outro dia recebi um texto de uma amiga, falando dos 23 anos, quando declarou amor perpétuo ao camarada que amava. Isso faz muito tempo. O tempo fez outras promessas.
Estou falando demais. Vamos ao poema.

Samarone.
***


De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Conciliação

De repente, a memória é uma esfera cintilante, que percorre corpos e terras, e dela não temos domínio. Somos anfíbios repletos de tristezas, contradanças, alfabetos remendados, colados ao vidro da sala. O menor sol desliza para as estrelas, no movimento contrário. A lua sai do mar enrugada e cansada.

Olho nos olhos de minha mãe, vejo os de minha avó. Estão aqui, estão ali, nas fotografias que vou contrabandeando, pegando emprestado para sempre, para colocar em minhas entranhas.

Volto à pedagogia das perguntas. Não sei a hora em que nasci, prejudicando terrivelmente o possível mapa astral, que me diria o ascendente e pedaços do rumo. Soube que houve muita perda de sangue, como se eu já começasse brigando, rangendo, esperneando, sem ter ainda a minha ração de palavras para prover.

Dos meus antepassados, vou garimpando os meus pedaços. Uma cômoda cheia de gavetas era meu labirinto. Aos três anos, vi a porta da casa aberta, e fui embora, pensando que era assim mesmo, a vida, uma porta aberta pronta para seguir. Ora, não é assim que fazem os cães? Mas perdi meu faro e fui encontrado muito longe, num espeço que já nem me lembro.

Ouço conselhos melhores que os livros de auto-ajuda, mas eles escapam sempre, então peço ajuda ao alto.

Mas no fundo, não há respostas, simplificações. Só a memória habita, pondera, refaz. Não sei nada. O que havia me prometido agora me escapa.

Lembro do dia em que prometi nunca voltar. Caminhei assim, como um irreversível, até que meus exércitos nem mais sangravam, de tantos combates perdidos.

Então parei. A esperança não tinha escapado com os fiapos de luz - estava apenas fora do lugar.

Descobri, e quase me acalmei. De derrota em derrota, até a cambalhota.

Testando....

O blogger está cheio de frescuras, estou gastando mais tempo tentando postar as coisas do que escrevendo.

Recebi há pouco a assistência técnica do Anizio, e parece que deu certo.

Segue o teste, para ver se deu tudo certinho. Vou tentar usar fotos, de vez em quando.

Samarone Lima

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Aos oitenta, dando dribles nas doenças e chupando balinha de menta

Não há alívio maior que este.

Hoje de manhã, após olhar os exames, a tal “cintilografia óssea de corpo inteiro” e a “ressonância magnética da coluna lombar”, o médico, o ortopedista André Flávio, balançou positivamente a cabeça e descartou uma palavra muito feia, chamada “metástase” ou câncer, na brava tia Flocely, que completa 80 anos nesta quarta, salve salve. As duas vértebras quebradas são fruto da osteosporose mesmo, aliadas a duas quedas.

Depois, o nefrologista Rafael Pacífico, um dos médicos mais atenciosos que já tive a oportunidade de conhecer, olhou os exames, as taxas, a tal creatinina (nunca pensei que fosse me preocupar tanto com a taxa de creatinina), e nem citou a palavra “hemodiálise”. A pressão estava alta, ele refez a programação dos remédios, perguntou como estava a vida da tia, que ele só chama de Maria (de fato é Maria Flocely, mas todos só chamam mesmo de Flocely). Hemodiálise, por enquanto, não entra nas estratégias para manter o único rim supimpa. Ula-la...

Voltamos para casa aliviados. Rosa, que é o braço direito e esquerdo de tia, comprou umas balinhas de menta, para o caso de tia tossir muito, na viagem de volta. No CD, Tom Jobim cantava “Águas de Março”, que ela gosta muito. Lá pelas tantas, na Imbiribeira, tia me deu um pedaço de sua barra de cereais.

Quarta-feira, a tia completa 80 anos. Maria Floceli Ulisses da Silva avisou aos quatro ventos que não quer festa, mas o doutor Rafael lembrou que não é todo mundo que completa 80 anos, uma data tão bacana. Tia sorriu.

Acho que só três ventos escutaram.

Prometemos que não vamos fazer festa, mas tratei de alardear secretamente aos vizinhos, que prometem vir, a passo lento, meio adágio, trazendo algo, além da presença. Aquele negócio básico de nordestino, de cada um levar um pedacinho de alguma coisa, que no final dá uma coisa linda. Neide perguntou se era bom a gente fazer uma pequena cerimônia religiosa, eu disse que sim, porque no domingo, tia fica defronte à TV e reza, acompanhando a missa. Além disso, tem um pequeno altar, com vários santos. Ela tem fé.

Tratei de escanear várias fotos delaa, em momentos distintos de sua vida, com a ajuda de Renato. Vou imprimir e dar um álbum de presente. Acho que ela vai gostar.

Amanhã, chegam de Fortaleza dona Ermira, que vem a ser minha mãe, e Beta, irmã da dona Ermira, logo, minha tia. Tia Antonieta vem de Caruaru, mas já avisou que vai passar somente o dia, pois está cuidando da neta. A mãe de Rosa ficou de fazer uma torta especial, de presente. Das Neves vai trazer, tenho certeza, um bolo de rolo. É o melhor bolo de rolo do Brasil, garanto.

Já falei da amadíssima tia Flocely, neste pequeno espaço da Internet, muitos leitores vão até dizer que sou meio repetitivo, mas eu nem ligo (na verdade, tem leitor que está ficando repetitivo).

Não é todo dia que uma criatura linda, aos 80 anos, dá um pontapé no câncer, um drible na hemodiálise e volta para casa chupando balinha de menta. Isso sim, é uma celebração da vida.

Almoçamos no restaurante Kancela, com “k” mesmo, aqui no Cabo. O calor estava de rachar tudo, mas a galinha estava meio salgadinha, tia adorou sair do cardápio sem sal que Rosa agora comanda.

Rosa, por sua vez, achou a melhor comida do ano. Não foi ela quem cozinhou, né?

Para a tia Flocely, com amor.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Dois picolés

Estou no ônibus Centro do Cabo, que saiu do Cais de santa Rita. O calor derrete tudo. Um passageiro leva um cachorro pequeno dentro de uma caixa. O cachorro começa a latir na metade da viagem. Lá em Pontezinha, começa o engarrafamento de sempre, e a letargia dos passageiros acaba com a entrada fulminante de um vendedor de picolés. Ele fala muito, diz duzentos sabores, frutas inclusive não catalogadas pela ciência, mas registradas em sua luta pela sobrevivência. Para sobreviver, o brasileiro cria mundos.

Vários passageiros compram picolés. Peço um da graviola. Vem embaladinho num saco de papel. O vendedor conversa alto com o cobrador, faz uma análise profunda sobre a decisão da Copa de 2006. O Zidane deu uma cabeçada no italiano porque o cara queria subornar ele, em plena decisão da Copa.

"Se o Brasil fosse para a final, se vendia. Tchau para o louro do Brasil".

Essa parte não entendi.

Lá pelas tantas, o chachorro começa a ganir.

"Ele está com calor", diz o vendedor.

O motorista se vira, olha, repara, o trânsito está parado, ele parece ser um bom criador de cães.

"Que raça é essa?"

Ninguém arrisca um palpite.

"É raça de cachorro mesmo", responde o vendedor.

"Abre a caixa, para entrar um arzinho", diz.

"Se abrir mais a caixa, ele rasga", responde um velho, dono do animal.

O ônibus inteiro fica por conta do cachorro.

Latidos e ganidos à parte, ficamos todos, bovinamente, lambendo nossos picolés. O Cabo às vezes parece mais distante que Calcutá.

Então reparei em dois meninos, negrinhos, na faixa dos 7 a 9 anos, irmãos certamente. A mãe, uma senhora pançuda, estava de pé, ao lado deles. Também era negra.

Os meninos olhavam para mim. Pensei em oferecer um picolé a cada um, mas fiquei pensando. E se a mãe achar ruim? E se eles acharem que estou tratando eles como pedintes ou algo assim? Esse "e se" idiota, que não leva a gente para canto nenhum.

Botei minha viola no saco e fiquei mamando minha graviola.

Um sujeito gordo, de óculos, que estava sentado ao lado dos meninos, olha para picolezeiro. Faz um gesto com a cabeça, apontando com o queixo para os garotos. O rapaz do picolé vai lá no fundo e traz dois picolés de morango.

Os meninos abrem um sorriso, mas olham para a mãe. Ela faz que sim com a cabeça, olha para o senhor e agradece. Olha para os meninos e fala:

"Não vão agradecer não, é?"

Os meninos se viram para o senhor, muito sério, e dizem, quase num coral:

"Obrigado".

O homem não responde. É, como já disse, um homem sério demais para responder coisas como "obrigado".

É a mãe quem abre o saco do picolé. Os meninos são muito tímidos e bonitos.

O homem come o restinho do seu picolé. Tem a sabedoria de não ter pudores.

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Começar de novo (memórias do inesquecível)

Há dois meses estou morando no Cabo de Santo Agostinho. Deixei para trás a minha pátria espiritual, que é o Poço da Panela, no Recife, tema recorrente de muitas de minhas crônicas. Lá no Poço era amigos dos reis, membro-fundador da Troça Carnavalesca Mista “Os Barba” e estava conquistando uma vaga de titular na zaga dos Caducos Futebol Clube (assumindo a vaga do Mudo, que vinha jogando mal pacas), tinha conta em seu Vital e podia voltar cheio dos canecos para casa, sem correr o risco de ser atropelado – o bar de Seu Vital ficava a 53 metros da minha casa.

Além disso, no bar de Seu Vital, eu tinha um pendura histórico, de cinco anos, e conseguia colocar meus livros para vender numa boa, dando apenas um pequeno percentual ao dono do estabelecimento, a “taxa-prateleira”. Isso sem falar em Luísa, a adorável Lulu, que eu via sempre de manhã. Foi lá em casa que ela aprendeu a dizer “água”.

Uma leitora, a Dulce, sugeriu até que eu escrevesse sobre essa mudança, como deve ter sido difícil, porque é uma mudança brusca. Depois de cinco anos de Poço, a tarefa não é fácil, mas vamos lá, Dulce, vamos lá.

Primeiro, está tudo bem. Não fico aqui da janela do primeiro andar procurando o boteco de Seu Vital. Eu, com esta alma de cigano, me adapto bem a qualquer situação, com exceção de uma penitenciária, que deve ser um espaço bastante desagradável para viver, por causa do excesso de companhias. Antes, morava sozinho, numa casinha azul, número 51, que parecia uma capela. Tinha quintal e um primeiro andar com vista para o bar, que é ótimo, mas tinha um contratempo: os amigos ficavam telefonando, perguntando se eu não ia tomar “só uma”, uma mentira gigantesca, porque no Poço, ninguém toma “só uma”. Muitas vezes caí nessa conversa fiada.

Agora, moro num primeiro andar da casa da tia-avó, dona Flocely, que daqui a uns dias chega aos 80 anos. No térreo, moram a tia e Renato (filho de Rosa), que tem 16 anos e também torce pelo Santa Cruz Futebol Clube, a exemplo deste que escreve e da tia. Rosa trabalha com tia há vários anos e é a mãe de Renato, como acabei de dizer. Nunca queira levar um carão de Rosa. Ela é brava. Ela, ao contrário de tia, eu e Renato, torce pelo time que ganhar. Na Copa, ela torcia contra o Brasil, só para se ter uma idéia.

“Bambam”, um pequeno e charmoso vira-lata, é o reizinho da casa e tem um latido estridente. Ele usa sua voz potente, até que você coçe a cabeça dele. Semana passada, chegou “Pedrita”, mais vira-lata ainda, encontrada na rua por uns camaradas que fazem entrega num depósito ao lado. Bambam anda enciumado, mas eu já disse a ele que isso é besteira, ciúme não leva a nada. Ele não tem me escutado. Há outros animais na casa: um galo e duas galinhas, que nunca irão virar um guisado (criados pelo Renato há uns dois anos) e dois passarinhos, de idade incerta, que, se não me falha a memória, são canários. Guico, o pai de Renato (e ex-marido de Rosa), vem dar de comer aos pássaros todo dia à tarde. Guico trabalha na Prefeitura do Cabo há vários anos, e só o chamo de “Camarada Guico”, apesar de ele não ser comunista. É que tenho umas manias.

O dia começa às 5h03 da manhã, quando o galo de Renato solta gritos lancinantes e absolutamente desnecessários. Renato nem se mexe, porque tem um sono pesadíssimo. Eu me mexo e acordo, mas acho bom, apesar de achar o galo repetitivo e, em certo momento, muito do exibido.

Ao contrário da minha casa no Poço, que não tinha horário para nada, aqui as coisas tem hora e algumas regras, que tento seguir. Geralmente não tomo café, porque sou um ser estranhíssimo – só tomo café decente mesmo quando fico hospedado em hotel. Acho o máximo aquele negócio de comer frutas, depois pão, queijo assado, café, ovo etc. Mas só tenho esta fome matinal em hotel. Em casa, eu tomo um cafezinho e fico por ali, vendo o que rola. O almoço é perto de meio dia e sempre almoço com tia, Rosa e Renato. À tarde, eu trabalho no primeiro andar, onde moro. Na janta, Rosa já não está (vai para casa lá pelas 15h33) e jantamos eu, tia e Renato. Renato tem a mania de fazer o prato e comer vendo TV, o que não é muito bom para a saúde, dizem os especialistas, mas ele nem liga. Renato detesta os norte-americanos e copia CDs para mim no computador que ganhou de tia.

Depois da janta, eu e tia ficamos conversando um bocado sobre as coisas da vida. Ela só encerra o papo para ver a novela “Bicho do Mato”, que por sinal é bem ruinzinha. “Cidadão Brasileiro” era muito melhor. Aqui, só dá a TV Record, não sei nem quem apresenta mais o Jornal Nacional, o que é ótimo para a saúde psíquica. Eu lavo os pratos da janta, para facilitar a vida de Rosa no dia seguinte, e dou uma molhada nas plantas. Aqui também tem jardim, mas Lulu não conhece ainda.

Encontrei um barzinho aqui perto, o “Caldinho do Mário”, daqueles com tamborete alto, o cara tem que beber no balcão. O bar tem de tudo um pouco, menos caldinho, mas são coisas da vida, melhor não pensar muito para não endoidar. Ele é gente boa, apesar de torcer pelo Náutico, mas sou mais Seu Vital mesmo. A dose de enraizada aqui custa R$ 0,50 e um pedaço de charque, para tira-gosto, é R$ 0,20. Um ovo cozido é R$ 0,30. O atendente, que já me conhece, avisa quando o ovo é do dia anterior, e mesmo assim eu como.

Dia de terça e quinta de manhã dou aulas no Recife. Pego o Fiat de tia emprestado de vez em quando, mas não abuso. De vez em quando, vou no ônibus Centro do Cabo, que me deixa no Cais de Santa Rita. Uma viagem otimista tem durado uma hora. A pessimista dura uma hora e meia. Vou lendo, olhando a paisagem e cochilando, em doses absolutamente iguais. Volto fazendo a mesma coisa. A passagem custa R$ 2,45. Gasto quase R$ 40,00 por mês só de passagens, vou encaminhar um pedido de aumento ao Ricardo Mello e Michela, meus chefes na escola.

Aqui escuta-se muito a Rádio Calhetas FM (98,5). “Marcos Pereira é enfermeiro, perdeu a identidade, CPF e uma camisa. Favor entregar na rua X, número x, Calhetas, ou aqui na Rádio”. Não consegui anotar o nome da rua, nem o número. Se alguém encontrar, favor avisar ao pessoal da rádio.

A vida vai seguindo. Acho que estou começando de novo. Está tudo bem. Quando sinto saudades do Poço, é uma coisa boa, umas lembranças lindas, muito vivas.

Acho que é o que chamam por aí de inesquecível...

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Aos meus leitores

Escrevo crônicas desde 2004, no JC On Line. Geralmente são três crônicas por semana, quando tenho inspiração, duas quando não tenho. Mas não fico preso às quimeras da imaginação. Muitas vezes sentei diante do computador sem inspiração nenhuma, e consegui fazer algo.

As crônicas publicadas no JC tinham uma audiência danada. Sempre comentavam. Eu sempre escrevo sobre tudo, e engraçado que as crônicas sentimentais, mais amorosas, com um olhar mais delicado para a vida, geravam comentários engraçados, como se a delicadeza estivesse ligada ao meu lado feminino. Já me chamaram de "fresco" algumas vezes aqui.

Saí do JC e abri este Blog. As crônicas do JC viraramo livro "Estuário", que um bocado de gente comprou.

Como escrevo três crônicas por semana, o cálculo simples é o seguinte: nos últimos três anois, publiquei uns 430 textos. Não sei quantas pessoas leram. Não sei quantos textos foram reenviados para outros, nesse fenômeno louco da Internet. O marcador do meu blog diz que 58.733 pessoas andaram por aqui, lendo minhas coisas. Pelo que sei, as pessoas não ficam acessando a Internet para ler porcarias e coisas preconceituosas.

Escrevo sobre tudo. Sobre as jardinagens da vida, sobre os olhos das pessoas nas ruas, sobre o cotidiano no Recife, sobre minhas viagens para fora e para dentro, sobre os anônimos adoráveis que circulam pelas praças e ônibus. Os textos mais poéticos e sentimentais rendem alguns comentários, de gente que se emociona. Uns cinco ou seis, no máximo. As mais engraçadas, falando das minhas presepadas, esquecimentos ou aventuras, rendem dez, doze comentários.

Outro dia, escrevi sobre uma farra numa boate gay em Salvador. É de longe um dos textos mais superficiais que já escrevi, e agora há pouco, reli. É somente umas poucas linhas sobre uma noite divertida, uma pequena comédia de costumes. O extintor de incêndio que citei, sequer existe. Eu achei tudo ótimo e bom. O texto já vai com 35 comentários. Nos dois últimos textos, a coisa rendeu, e 108 pessoas já entraram em cena, para dizer me esculhambar ou me defender.

Um leitor há pouco disse que deve ter um heterônimo escrevendo para mim, como quem diz que uma pessoa sensível (como ele imagina que sou), não pode escrever algo que ele não gosta. Ou seja: "escreva as coisas que me fazem bem, mas nunca me desagrade, darling". Quase todos os comentários são anônimos, o que é uma pena, porque escrevo assinando meu nome, seja onde for. Outro disse que lamenta, mas onde eu estiver, meu nome estará associado ao que escrevi. Pois eu digo: graças a Deus!

Ontem, num aniversário, três camaradas vieram falar comigo sobre a confusão toda da crônica. Rimos muito sobre o "meu preconceito". Logo eu, que tenho amigos gays adoráveis, maravilhosos, inesquecíveis.

Do lado de cá, vai a confissão. Assim como o autor, tem leitor chato à beça. Gente que não tem senso de humor, que prefere sempre encontrar uma polêmica para soltar seu verbo de mal gosto. Não é só um comentário irritado, é coisa maldosa mesmo, querendo ferir, questionando um trabalho, uma visão de mundo, um comprometimento com o mundo. Basta ler umas cinco, seis crônicas, para saber o que penso e o que sinto. Estou com os palestinos, jogando pedras no exército de Israel; estou dando voltas na Praça de Mayo, com as madres dos desaparecidos; estou debaixo das lonas dos Sem-Terra; estou fazendo campanhas para meus candidatos de esquerda; estou nas livrarias, futucando prateleiras, à procura de um bom poeta. Eu estou.

Tem leitor que escreve besteiras imensas, sob o estatuto do anonimato, dizendo coisas que não combinam comigo, nem com as coisas que escrevo há três anos.

A conclusão que cheguei, após a "repercussão" do texto sobre a boate gay, é que a beleza não encanta muito, não mobiliza tanto, não desperta conversas e reflexões.

Me senti meio que numa mesa de boteco, com aquela discussão exaltada sobre algum tema que não é o mais importante.

A farra na boate gay não é o centro da crônica nem da vida.

O ponto essencial do texo é o seguinte: foi uma noite linda, onde vi nascer um amor entre duas pessoas que eu queria que se encontrassem. E se encontraram.

O resto é chateação. Aos leitores que querem ser chatos, pelo menos sejam mais delicados.

Eu sou.

sábado, 13 de janeiro de 2007

Pequenos anúncios gratuitos

Caros leitores:

Pequenos anúncios gratuitos:

Um novo lote do livro "Estuário: crônicas do Recife", publicado pela Editora Bagaço, no apagar das luzes de 2006, acaba de chegar à venda de Seu Vital, no Poço da Panela, Recife. Custa R$ 25,00 (já incluindo o percentual de seu Vital).

Um lote extra do livro "Clamor - a vitória de uma conspiração brasileira", publicado pela Editora Objetiva, em 2003, acaba de chegar à venda de seu Vital, no Poço da Panela, na cidade já citada anteriormente. Custa R$ 25,00 (já incluindo o citado percentual do citado comerciante).

O livro "Zé - José Carlos Novas da Mata Machado, reportagem biográfica", publicado em 1998 pela Mazza Edições, continua esgotado, mas parece que vai ter uma chance pela Massangana, até a metade deste ano. Deus é pai.

A venda de Vital fica defronte à Igreja do Poço da Panela, onde parte da população recifense se casa e outra parte bebe, celebrando os noivos, os jogos de dominó ou qualquer coisa em movimento.

Informo também que Seu Vital foi eleito o "Rei Barba 2007" da Troça Carnavalesca Mista "Os Barba", que continua se reunindo muito e mantendo o mesmo nível de desorganização. Somente ontem, após uma imensa investigação em diversas casas, foi localizado o estandarte de 2006, que, como sempre, andava desaparecido. Estava na casa de Gugu, para alívio geral da nação pocense.

Dona Severina, lógico, será a rainha da Troça.

Samarone

ps. estudo mudanças em Estuário para outro espaço na Internet, porque o blogspot está uma chateação completa, uma mudança para a "versão beta", que não entendo patavinas. Minha tia Beta e até eu somos menos complicados. Aceito sugestões.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Memórias da errância (anotações de um homem em rodoviárias)

Fui inventar de escrever minhas peripécias em uma boate gay em Salvador, uma noite divertidissima e animada, mas levei uma sova dos leitores. Depois fui a um terreiro de candomblé, mas não tinha nada funcionando, o máximo que vi foi uma oferenda junto a uma árvore centenária. Anotei os dados sobre o terreiro e esqueci o papelzinho em algum lugar, fica para a próxima.
Para não gerar mais polêmicas, coloco no ar anotações sobre minhas errâncias nas rodoviárias do Brasil.
E me desculpem a demora. É que o blogspot está fazendo modificações que estão me deixando louco.

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Memórias da errância (anotações de um homem em rodoviárias)

O auto-falante da rodoviária de Salvador toca Whitney Hilston (não sei se escreve assim), um negócio arrastado que não entendo bem, mas sei que ela diz que está amando alguém para sempre. Agora, o Lionel Richie canta "Say you/Say me". As tvs, em todas as lanchonetes, estão no mesmo canal. O programa de agora não me interessa. Aliás, geralmente não me interessa nunca.

É preciso tomar um café, aguardar a hora do ônibus. Nas cadeiras de plástico duro, há gentes a dormir. Uma senhora sonha, enrolada em seu lençol. Não há aquele aviso com a voz impessoal e monótona dos aeroportos. Não há ar-condicionado, escada rolante. Definitivamente, rodoviária é lugar de remediados.

Rodoviária, lugar de bocejos, cansaços, grandes pacotes. Lugar de banheiro ruim. Rodoviária, lugar de revistas de fofoca e jornais, raramente de livros.

Rodoviária, e só nelas, se pode tomar uma sopa a R$ 1,99, com direito ao pão e molho de pimenta. Lugar de pobres, remediados, desolados, dos que vão e vêm, levando suas bolsas remendadas. Lugar de homens com velhas camisas do clube preferido, pouco importando se caiu para a terceira divisão campeonato nacional, como é o caso do Bahia.

Não sei, nunca saberei e já não me interessa saber, quantas rodoviárias já passei. São centenas, de todo o Brasil, fora uns 16 países que já conheci. No TIP, a distante e improvável rodoviária do Recife, duas escadas rolantes estão paradas há muitos meses. Tudo ali parece que está parado. Temos uma das rodoviárias mais abandonadas do país. É feia, suja, mal iluminada. A rodoviária de Fortaleza, meu deus, é tão clara, elegante, perto do centro, com um monte de lojas. Dá uma alegria chegar em certas rodoviárias, apesar da sanha dos taxistas de sempre.

A de Maceió tem mesinhas espalhadas e até café expresso. E tem vento, muito vento. Lá, se você pedir um cinzeiro, o garçom vai informar que a faxineira quebrou todas as xícara e vai providenciar um copo de plástico com água até a metade. É o cinzeiro. Tem sopa também, mas não consultei os preços.

Na rodoviária de Salvador, podemos comprar algo no "Pé a Pé Calçados". Mas uma latinha de Nova Schin sai por R$ 2,20. Não sei por que cargas d'água, o rapaz da limpeza usa um possante apito, na rodoviária baiana. Lá pelas tantas, ele solta um logo apito, que deve ser para a turma apressar o serviço. A pressão psicológica funciona. Pelo menos comigo.

Cada rodoviária tem seu temperamento. Em algumas, o embarque é vigiado e o motorista exige ver seu documento. No Rio, já fui impedido de viajar porque estava sem a identidade, tive que ir em uma delegacia, dizer que tinha sido roubado. Em João Pessoa, o sujeito nem olha para sua cara, mas não lembra de dizer "boa viagem", só quer todo mundo embarcado.

Muitas e muitas vezes estive nas rodoviárias paulistanas do Tietê e Bresser. Lugar de nordestino chegando e saindo a todo momento. Lugar de encontros, lágrimas, saudades.

Rodoviária, lugar dos diálogos familiares.

"Se eu fosse vocês, vendia aquela casa e vinha morar na Federação Garcia".

"Como é que ela gasta nove mil reais para o Fernando comprar uma moto?"

"É dinheiro, né?"

"Ah, menino, esse nosso ônibus nem se preocupe, vai vazio, vazio, vazio".

"Entendeu? Você vende aquela casa e compra outra. Mora naquela longidade..."

Foi "longidade" mesmo e achei lindo.

"É, padrinho..."

"Vocês são novinhos agora. Daqui a mais alguns anos, o drama vai chegar. Vai ser dureza ficar ali".

"Não vou lá porque é longe. Para a Milene, tudo é fácil. Ela fala umas coisas e faz outras. E ela é mais nova que eu!"

Rodoviária, lugar de diálogos intermináveis, de conselhos dos mais velhos, que escuto bem, tentando aproveitar para meu desregramento clássico.

"Mas fique calmo. Não fique nervoso não, que tudo é providência de Deus".

Ora, mas isso eu também já sei.

Rodoviária. Lugar das errâncias brasileiras. Lugar que não se deve chegar em cima da hora, correndo para entrar no ônibus com destino certo.

Lugar para se chegar mais cedo, pedir um café ou uma cerveja gelada e olhar o povo brasileiro em movimento. É onde se pode escutar um derradeiro diálogo, antes de voltar ao Recife, que é exatamente a faceta de nossa gente:

"Tu trabalha em que mesmo?"

"Auxiliar de serviços gerais".

Silêncio.

"É limpeza, né?"

"É limpeza".

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Anotações em uma boate gay em Salvador

Não sei de onde vem este gosto meu por aventuras. O fato é que apareceu uma viagem de última hora para Salvador, onde está meu afamado amigo Gustavo e meu afilhado, Emanuel. Vim de sopetão, quase sem bagagens.

No sábado, saímos com amigos, e lá pelas tantas, percebi que meu amigo andava olhando minha amiga com aquele jeito manso de quem quer algo. Por sorte, ficamos os três por último, quando a Gabi sugeriu irmos a uma boate. Eu detesto boate, mas estava dando uma de cupido, fui dirigindo.

Na portaria, homem batendo na canela. Cada segurança parecendo armário das Casas Bahia.

Quando entramos, o que tinha de homem beijando homem, não estava no gibi. Pois bem, neste momento fui informado que era uma boate gay. Gustavo e Gabi começaram a dançar já bem próximos, e pensei que algo iria acontecer.

Amigo, o que tinha de frango na boate, era um negócio espetacular. Frango alto, médio, baixo. Frango amarelo, preto, vermelho, asiático, francês.

Lá pelas tantas, tocou uma sirene e a luz ficou bem fraquinha. Eu não sabia que era o toque para o beijo geral. Todo mundo se agarrou. Fiquei estrategicamente ao lado do extintor de incêndio e fingi que beijava o objeto.

Tinha uns dançarinos marrudos com aquelas sunguinhas, igualzinho ao cinema. Os caras se achavam o máximo, mas eu prefiro a Gretchen mesmo, apesar de cansada de guerra.

Lá pelas tantas, a Gabi me deu sua bolsinha para segurar. É uma bolsa bem afeminada, dessas de levar pendurada no ombro. Fiquei com a bolsinha. Nesse momento, ela e meu amigo já estavam naquele enrosco que você não sabe quem é quem.

Resolvi ir ao banheiro. Lá dentro, mais frango. Um segurança com cara de malvado olhava tudo, para evitar sexo selvagem. Dei uma mijada temerosa e rápida. Na saída, com aquela bolsinha pendurada ao ombro, percebi o olhar atravessado do segurança, como quem diz:

"Mais fresco!"

Outra sirene tocou. Todo mundo se beijou até cansar a língua. Voltei para o meu querido extintor de incêncio.

A essa altura do campeonato, eu já estava me divertindo. Fui comprar uma cerveja. A latinha custava R$ 5,50. Roubo do caralho!

A sirene tocou mais umas três vezes, antes de sairmos. A turma gosta de se beijar mesmo, e não precisa ser com a mesma pessoa sempre.

Não fiz sucesso nenhum com os camarada da boate, deve ser por causa da barba grande e desgrenhada.

E graças a Deus, quem pagou a entrada foi o Gustavo. Custou quinze contos por cabeça.

Vou nessa. Tenho que ir a um terreiro de umbanda, a mais tarde.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

Sobre as idades para algumas coisas ou todas as coisas

Há quase um ano, neste Blog, escrevi um texto sobre esta frase: "Não tenho mais idade para isso".

Então vi que mudei meu jeito de pensar algumas coisas, o que para mim é uma bênção.

Hoje eu penso assim que o sujeito diz "Não tenho mais idade para isso”, quando deixou de ser criança, e definiu os tempos por etapas, na lógica de adulto, e geralmente adulto chato. Há idade para tudo, e idade para não ter mais idade. Melhor é a idade insuperável, eterna, aquela de começar um projeto louco, adormecido no fundo das gavetas, no meio da tarde ou no meio da vida, ou no meio de nada.

Tenho uma mãe que passou 25 anos casada, creio, tomando conta dos filhos e da casa e de tantas outras coisas. Depois que separou, já uma quarentona meio cansada, não descansou. Fez um curso de auxiliar de enfermagem, encarou um concurso público, e hoje trabalha no maior hospital público de Fortaleza, aos 63 anos. Está longe, muito longe de se aposentar, e quando esse benefício estatal chegar, vai ter idade para muitas outras coisas. É voluntária de um casa que abriga portadores de HIV. Uma vez por semana está lá, com seu sorriso generoso, com idade para tudo. Ultimamente descobriu que tem idade para começar a estudar inglês, e está lá, no seu "to be or not to be" da vida.

Gosto de gente que brinca com a idade, que faz o tempo virar ao avesso. Gente que zomba do calendário, que desdenha dos relógios, da areia das ampulhetas. Gosto de gente que vende as coisas e viaja para o outro lado do mundo, para realizar o sonho de vender as coisas e viajar para o outro lado do mundo. Gosto de gente volta do outro lado do mundo com outro mundo nos olhos. Gosto de gente que cansa de esperar e dá um cheque no contracheque. Gente que não espera adoecer para se rebelar com certas formas de vida. Gosto de gente que adoece e não se rebela com a doença, mas com a vida que levava, e se renova sem pressa.

“Não tenho mais idade para isso” é uma espécie de desistência, de cansaço. É um hino às definições e classificações. A alma tem idade para tudo. Gosto de gente que deixa o último semestre de um curso universitário para começar outro curso, mesmo que não seja universitário. Gosto de gente que cansou de competir e resolveu curtir com o clima de competição na empresa.

Tenho um irmão da vida que fez um concurso numa dessas universidades famosas, que arrota ser “a terceira maior do Brasil”, foi sacaneado na seleção, e quando estava com um formulário para recorrer do tal concurso, páginas de esclarecimentos e questionamentos, olhou o entardecer.

Então ele se perguntou: “para que isso tudo?” - e foi lá, olhar o poente, cheio de redenção.

Já tive muitas idades, e carrego-as todas em mim. Coloco meus autores prediletos em destaque, nas prateleiras das livrarias, tentando encobrir os best-sellers. Continuo tentando dar trote nos amigos ao telefone, mas nunca consigo. Um dia terei idade para conseguir dar trote nos amigos e mais ainda nos inimigos.

Cada vez mais acredito na força dos que brincam. Os sérios carregam fardos de verdade. Outro dia, esqueci um livro numa livraria e quando fui buscar, veio o vigilante com uma prancheta. Brinquei com o esquecimento-do-livro-em-uma-livraria e ele me respondeu o seguinte:

“Por favor, assine aqui”.

Uff, a dureza dos homens sérios. A insuportável casca de pedra dos homens que dizem cumprir ordens. A grosseria dos que não têm uma pitada de humor. Os histéricos de buzinas potentes. Os doentes da falta de licença.

Estava andando hoje com um amigo, após um almoço semanal que é nosso presente, quando surgiu uma moça linda, caminhando à nossa frente.

“Isso não é um andar, é uma promessa”, disse ele, e ficamos apreciando. Logo descobrimos que ela tinha saído da rua das Pernambucanas.

“Nada mais apropriado”, completou, e rimos feito crianças.

Eu quero sempre ter idade para isso. Para fazer o adulto rir como criança. Para recomeçar por alguma estrada nova, ou velha mesmo. Para ir ao outro lado do mundo, nem que seja para descobrir que o barato mesmo era aquela velha rua do Recife com uma praça coadjuvante. Ou para ficar do outro lado do mundo plantando sonhos, feliz por ter vivido tantas coisas lindas no Recife ou qualquer cidade do mundo, porque nossa paisagem é o que levamos por dentro.

Quero sempre ter idade para fazer como o meu amigo Marquinhos, hoje no trânsito. Ele me viu na parada do ônibus e me chamou, de dentro do seu carro. Eu, lógico, obedeci. Ele não sabia para onde eu ia, nem eu sabia para onde ele ia. Mas fomos. Começamos a conversar, o celular dele tocou e lembrei de algum filme antigo.

“Tu tás lembrado Rin Tin Tim?”, perguntou, com um sorriso.

Não sei onde o sujeito arranja um toque de celular para relembrar de um cachorro veloz de década passadas, mas é por ai que eu gosto de caminhar.

De preferência, bem devagar.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

Mansamente

O Gustavo veio para cá, com seu filho, Emanuel, que trata-se do meu afilhado. Ficamos por aqui, no Cabo de Santo Agostinho, em nossas longas conversas. À tarde fiquei na rede, lendo o velho Antonio Porchia que o Gustavo conseguiu e vi a final da São Silvestre. Minha tia aplaudiu a vitória do brasileiro, um camarada que corre pra chuchu.

Às 19h03 a tia Flocely chamou para a janta. Ela, eu, Gustavo, Emanuel e Renato. Depois Gustavo ficou lendo e fui ao parque de diversões, com Emanuel. Ele acertou duas barras de chocolate e uma caixinha de chicletes no tiro ao alvo, com seus quatro chumbinhos. Eu acertei um chocolate fuleiro que um menino do parque recusou. O chocolate está aqui. Se chama Grand Prix. Depois demos um rolé em uma mini roda gigante, mas fiquei suando frio, porque tenho medo de altura. Tirei várias fotos do Emanuel. Comprei uma pulseirinha com as cores da Jamaica para ele. Emanuel tem 11 anos.

Voltamos. Fiquei conversando com a tia, na sala. Aproveitei para ver se Bambam, seu cachorrinho de estimação, tinha alguma pulga. Localizei dois pequenos carrapatos, imediatamente exterminados. Lá pelas tantas, ela resolveu dormir. Bambam já estava cochilando, sem carrapatos.

Recebi dois telefonemas, liguei para a família, estão todos vivos e passam bem. Ficamos então escutando música. Depois Gustavo me mostrou como funciona o Orkut, é gente até umas horas, todos com umas fotos bacanas. Rolaram uns fogos na rua, mas nada exagerado, menos de três minutos e o silêncio voltou.

Lá pelas tantas, vi que já estávamos com 36 minutos do ano de 2007.

E só quero que 2007 seja como foi este meu reveillon: manso.

Um ano manso para mim e para os meus, é o que desejo.


"Às vezes necessito a luz de un fósforo para iluminar as estrelas".
(Antônio Porchia)