sexta-feira, 30 de março de 2007

Estou escapando por um fio

Amigos leitores, pela leitura dos jornais de Pernambuco, cada dia descubro que estou vivo por um fio, um acidente, um descuido ou excesso de atuação do meu anjo da guarda.

Na terça-feira, lendo o Diário de Pernambuco, descobri que foram assaltados 1.822 ônibus, na Região Metropolitana do Recife (dados da EMTU). Eu, que sou um passageiro contumaz, fiquei de cabelos em pé, o que chega a ser uma redundância. Então escapei mesmo fedendo, porque não estava em nenhum desses coletivos.

A coisa começou a ficar complicada mesmo quando olhei a lista das dez linhas mais assaltadas. A lendária "Centro do Cabo", que utilizo umas três vezes por semana, abocanhou o segundo lugar (a EMTU não revelou quantas vezes os passageiros foram vítimas de assaltos). Novamente, eu não estava. A minha bucólica linha de ônibus, que percorre estafantes 35 quilômetros, só perdeu em assaltos para a linha "Zumbi do Pacheco/Barro".

Fui olhar o restante das linhas, e quase choro. A linha "Cabo/Cohab" pegou o quinto lugar, e a linha "Cabo/Aeroporto", que utilizo quando chego de viagem, ficou em nono lugar. Rapaz, estou metido numa baita fria!

Como sou muito curioso, fui ver as dez vias com maior frequência de assalto. Em primeiro lugar, a BR-101 Sul, que é o caminho para ir ao Cabo, onde estou morando. Já acendi minhas velas e fiz as primeiras orações, pedindo proteção extra.

A matéria diz que vão gastar um dinheirão com câmeras nos veículos. Hoje, 383 ônibus já têm câmeras. Até o final do ano, vão instalar outras 617 e mais 300 rastreadores. Até o final do ano, querem botar câmeras na frota toda, 2.700 veículos. Ou seja, aquela lenga-lenga de sempre, esse negócio de botar equipamentos, para tapar o sol com a peneira, de termos certamente uma das mais violentas e piores polícias do Brasil.

De formas que se você, caro leitor, estiver em seu possante carro na BR 101-Sul, e passar pelo ônibus Centro do Cabo, saiba que pode estar passando por um camarada em apuros, tentando esconder seus trocados para os ladrões não levarem tudo.

Mas pelo menos estou sendo filmado, uma coisa inútil, mas eu adoro coisas inúteis, o Manoel de Barros aproveita coisas inúteis para a poesia.

"Ao nascer eu não estava acordado, de forma que
não vi a hora.
Isso faz tempo.
Foi na beira de um rio.
Depois eu já morri 14 vezes.
Só falta a última".
(Manuel de Barros)

quinta-feira, 29 de março de 2007

Lembranças do início de uma guerra sem fim

Ando assistindo muito o Chaves, e vejo que eles reprisam muito os programas. Nesses dias corridos em que luto para sobreviver, dar aulas e pagar as contas, recorro ao método-chaves para não ficar escrevendo bobagens, pela absoluta falta de tempo.
Vai uma crônica que escrevi quando começou a guerra do Busch contra o povo do Iraque.
Não lembro a data. Sei que morreram milhares de pessoas, e isso é imperdoável.
Samarone
***
A guerra e a escuridão

Por Samarone Lima


Era uma noitinha bucólica, com os pais trazendo filhos das escolas em bicicletas e cães vagando à procura de algo. Na mercearia de seu Vital, as vendas de sempre – pão, big-big, geladinho, vassoura, pedaço de charque, queijo, os primeiros pedidos de cerveja ou os “quartinhos” alvissareiros. Encontrei os amigos para um cafezinho, e começamos a conversar nossas besteiras de sempre, quando alguém lembrou que em duas horas, no máximo, iria começar a guerra de Bush contra o Iraque, era preciso buscar uma TV.

Ficamos a imaginar como seria uma cidade sendo bombardeada. Trouxemos isso para nossa realidade. Aviões norte-americanos soltando bombas poderosas em cima da Igreja de Nossa Senhora da Saúde, destruindo casarões, vilas, a venda de seu Vital, nosso campinho de futebol. Pensamos nos amigos e crianças que morreriam e deu até uma tristeza, mesmo que momentânea, imaginar essas criaturas - que são quase nossos filhos também, de tanta ternura nos abraços, de tantos sorrisos – mortas inocentemente.

Começou a chover e nossa filosofia do anoitecer foi interrompida por uma explosão que veio dos céus. Corremos todos para dentro da mercearia de Vital e súbito, a escuridão chegou ao Poço da Panela. Houve um curto-circuito e a fiação elétrica começou a estourar, fazendo um barulho enorme. Enormes clarões manchavam a noite, e ficamos parecendo uns patetas desarmados na trincheira de Vital, tentando encontrar uma saída. Dona Beata, que estava na rua, estremeceu. Marcos Careca saiu à procura de fios no chão, para vender mais tarde.

Muitas horas depois, descobrimos que uma árvore tinha encostado nos fios, provocando aquela onda de estouros, que se alastrou pelo quarteirão inteiro. Seu Vital disse, com os olhos arregalados, nunca ter visto aquilo em 33 anos no Poço. Ficamos na escuridão completa, e para relaxar, sentamos e pedimos um “Detergente” (bebida produzida por vital, com cachaça, mel e limão). Acendemos velas e fomos relembrar tudo, exagerando um pouco a cada minuto.

Acho que foi neste momento, enquanto estávamos rindo à luz de velas e tomando uma aguardente com cajá, que começou o bombardeio ao Iraque. Alguém lembrou novamente, e nossa impotência permitiu pouca coisa, além de um brinde à paz e votos de que os norte-americanos entrassem pelo cano. A guerra nos encontrou com a pouca mas suficiente luz das velas.

Horas depois, quando a Celpe começou a reparar o estrago, ficamos na calçada tomando um vinho e ralhando com preço de nossas contas de eletricidade. Renata providenciou um colchão para Lucas e peguei minha cadeira de balanço. Grão de Bico começou a recitar seus belos poemas.

Era era uma noite de lua cheia, e ali no Poço, a paz estava em cada olhar, cada gesto, no sono inocente de Luquinha, em nosso impotente desejo de que as bombas sobre o Iraque fossem apenas um sonho ruim, que a guerra tão desejada pelos norte-americanos, por algum milagre, não passasse de um curto-circuito, uma falta de luz.

Foi pouco, mas foi tudo o que desejamos.

domingo, 25 de março de 2007

Bruno, o filho de uma pequena história de amor

Em dezembro de 2004, publiquei na coluna "Estuário", do JC On Line, a crônica "Pequenas histórias de amor - volume I". Fez um sucesso danado, porque é daquelas histórias que atravessam o tempo, sem perder a essência. Não citei os nomes, porque tudo estava ainda muito delicado, e o mais importante não era propriamente os nomes, mas o que estava por trás de tudo, que era o amor.

Neste sábado, fui ver o Bruno, filho de Inácio e Geórgia, fruto dessa pequena história de amor. O garoto, mesmo puxando ao Inácio, é lindo. A mãe estava zen, totalmente zen, para não dizer feliz, totalmente feliz. Bebi três cervejas, comemos costela no bafo com os avós e depois fui embora.

Repito a crônica, numa pequena homenagem ao Inácio, à Geórgia e ao Bruno.

E continuo chamando de pequena história de amor. É parte do meu encanto permanente com as coisas miúdas, do tamanho de uma semente.
***

Pequenas histórias de amor – Volume I

Recife, 24 de dezembro de 2004.


Ele descobriu que a amava quando tinha 15 anos, em 1984. Ela estudava na mesma turma, e quando entrava na sala de aula, ele cantarolava intimamente “pela luz dos olhos teus”, porque havia algo de encantador nos seus olhos, no que eles diziam, uma ternura que cativava aquele coração tão moço. Ele lembra, vinte anos depois, do dia em que ela fez circular um caderninho para os amigos deixarem mensagens, e atravessando a fronteira da timidez, escreveu “você é meu único e definitivo poema”. Depois disso, eles desencontraram.

Ele entrou na faculdade e, como me disse há poucos dias, se distraiu das coisas do amor. Conheceu outras mulheres, se encantou com algumas, mas nenhuma tinha aqueles olhos. Se reencontraram anos depois, quando ela terminou a faculdade. A última cena deste novo contato foi ela se beijando com um sujeito, no baile de formatura. Como queria estar naquele lugar!

Os dois casaram e não se viram mais. Aqui e ali, nos encontros com os amigos da turma, uma notícia esporádica. Somente em 2001 voltaram a se ver, num encontro dos velhos amigos, para cativar lembranças. Na primeira vez que o viu, depois de tantos anos, ela comentou com uma amiga– “o menino virou homem”. A resposta da amiga acendeu alguma chama que ela nunca percebera – “o teu apaixonado chegou”. Surpresa em saber daquele amor silencioso, ela ficou em silêncio, achando-o mais belo.
“Aquela frase da amiga foi um sopro divino”, me disse ele, repassando os detalhes da história, enquanto tomávamos uma cerveja.

Mas a vida seguia outros cursos. Tinham compromissos, casamento, filhos. Em 2002, voltaram a se encontrar. Pare ele, já não era tão fácil olhá-la nos olhos. E a turma, sem perceber que alimentava um sentimento que parecia perdido, colaborou para que voltassem a se ver. Um novo encontro, em 2003, serviu para que ele confirmasse que aquele menino estava vivo, dentro de sua alma, querendo amar plenamente.

Em 2004, por uma desculpa qualquer que sempre encontramos, quando queremos algo de verdade, almoçaram juntos. Ao final da longa e cativante conversa, ela perguntou:

“Você sentia alguma coisa por mim naquela época?”

“Eu era muito apaixonado por tu”, respondeu ele.

Algo rompera na timidez dele. Ela agora sabia de algo secreto, que ele trazia há muitos anos. Voltaram a falar de literatura, cinema, dos caminhos profissionais, mas algo já tinha sido dito, e era irreversível. Pronunciaram, timidamente, o nome do amor.

Quando se encontraram novamente, nada mais poderia ser feito. Os dois se queriam tanto, que quando ele a abraçou, sentiu que estava protegido, acolhido, que aquele era o melhor lugar do mundo para estar.

Os mundos que viviam exigiam outras respostas. Sim, os compromissos, outros laços haviam sido firmados em duas décadas. Ela foi mais incisiva. “A partir de hoje, morreu”, disse, na despedida. “Essa história acaba por aqui”, repetia, muito séria.
“Como vou te tirar de dentro de mim?”, perguntou ele.

Nas longas semanas de silêncio, ele também fazia o esforço. Ao final do dia, se perguntava – “será que pensei nela hoje?”. Sim, era a resposta. Sua dúvida era saber se, em algum momento do dia, ela tinha pensado nele, para que os pensamentos se encontrassem, em algum ponto da cidade.

No último encontro dos amigos, ele bebeu para chegar ao bar com o coração entorpecido, para que a alma não o traísse. Escolheu um ponto da mesa em que não pudesse vê-la. Decidiu que não a olharia, em hipótese alguma, durante toda a noite. O cumprimento formal, gelado, era a tentativa dos dois de administrar algo que era quente, muito quente, por dentro. Ela confessaria, dias depois, que quando o viu, suas pernas tremeram. Agradeceu a Deus por estar sentada. Na despedida, ele a olhou de longe e acenou. Viu aqueles mesmos olhos e desejou cantar “pela luz dos olhos teus”.

Naquele fração de segundos, o sentimento desvendou os dois. Nada mais poderia ser feito. No dia seguinte, se falaram. Era preciso fazer algo. “Não consigo te tirar de dentro de mim”, confessou ele.

Sim, eles fizeram as escolhas e tomaram decisões. Não podiam abrir mão do sagrado, da calma que sentiam estando juntos, da plenitude que encontravam em cada palavra. Num dos encontros, ele falou ao seu ouvido o poema “Teresa”, de Manuel Bandeira. “Os céus se misturaram com a terra/E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas”, diz o final do poema, que parecia ser o que viviam. Céus e terras se misturavam.

Vinte anos depois, eles decidiram assumir o amor.

E quando estava a terminar esta crônica, me chegou um email de um amigo, com o pequeno trecho de um poema do Drummond:

“Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?”

quinta-feira, 22 de março de 2007

Anotações finais no Planalto Central

De Taguatinga-DF

Pequenas anotações aleatórias ao final do périplo por Brasília, Taguatinga e adjacências:

*O Governo do do Distrito Federal gastava R$ 120 milhões por mês com gasolina, outros tantos milhões com carros alugados. O novo governador cortou esse gasto e pagou os salários atrasados e décimo terceiro dos professores.

*Em Taguatinga, você coloca o pé na pista, e os carros vão parando, quase como um freio automático ligado no seu pé de pedestre. É uma emoção profunda, para quem é recifense, e só consegue atravessar uma avenida com a ajuda de um semáforo ou algum guarda. Vejam a ironia: quase fui atropelado no estacionamento de um shopping.

*Um amigo disse que a comida típica de Brasília é o pastel da rodoviária.

*Há quatro semanas, em um shopping do Distrito Federal, teve um "campeonato de arremesso de chinelas", no terraço de um shopping. Não sei o nome do vencedor, estou tentando localizar no Google, colocando as palavras "chinelas+arremesso+Brasília". Aguardemos.

*Sou informado que anualmente a cidade organiza uma "Corrida de bonecos Gigantes". Para minha felicidade, fui informado que "O Homem da Meia Noite" ganhou o tri-campeonato. Dá-lhe Olinda!

*Um amigo dá aulas em um curso para jornalistas que vão concorrer a uma vaga na Câmara. São duas aulas semanais. Salário: R$ 6 mil.

*Irênio Alves Ramos, de 25 anos, foi preso na tarde do dia 20 de março, enquanto assistia a uma audiência pública no Congresso Nacional sobre "milho transgênico". Era procurado desde 2005 por roubo, e condenado a seis anos e meio de prisão. Além dele, outras nove pessoas que repondem a algum tipo de inquérito, estavam na audiência.

*A cidade dos concursos tem um jornal só com os concursos do mês. Dei uma olhadinha. Há vagas para o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) para programador e técnico admnistrativo. Salários de R$ 3,5 mil e 2,5 mil.

*Uma amiga de um amigo meu paga R$ 3 mil por mês em uma Universidade.

*O ingresso para o show da Marisa Monte custou R$ 200,00.

*No jornal "Aqui", fiquei sabendo que a primeira ambulância foi projetada em 1792 pelo barão Dominique Jean Larrey, médico de Napoleão Bonaparte. Foi criada para retirar os soldados do campo de batalha, sem aumentar seus ferimentos. Deve ter nascido aí o SAMU.

*Há algo maravilhoso em Brasília: os flamboyants que surgem do nada, e enchem os olhos de beleza.

*Bem, vou tratar de arrumar a mochila. Chega de vagabundagem.

segunda-feira, 19 de março de 2007

Anotações sobre dois vagabundos numa mansão do Lago Norte, em Brasília

De Taguatinga, DF.

Já fui a um templo de Umbanda, onde o caboclo me olhou e falou tudo sobre minha vida, já colocaram tarô e acertaram coisas sobre meu passado, presente e previsões para o futuro, já fui ao Parlamento das Religiões, um espaço imenso, para todos os credos. O Distrito Federal é um dos lugares mais espiritualizados do Brasil. Tirei uns dias para resolver umas coisas por aqui e encontrar amigos do coração, e a viagem enveredou pela sendas do misticismo. Saravá!

Ontem, fui convidado com meu amigo Gustavo para um sarau, numa das mansões do Lago Norte. A promessa era de um sarau-concerto com músicas do Astor Piazolla. Aceitamos de imediato, principalmente por conta do bandoneon do argentino.

Duas horas de carro, errando os caminhos, trocando quadras e setores, até que chegamos. O garagista, José Carlos, um sujeito negro de olhos baixos como os faróis de um Fusca 73, abriu o portão sem pressa. Ele tinha a lista dos convidados numa prancheta. Nossa amiga, que nos convidou, deu os nomes. O José Carlos perguntou se eu era Antônio Carlos, respondi que sim, entramos. Gustavo estacionou seu Ford K fechando a passagem para outros carros. Não vamos demorar, não vai atrapalhar ninguém, foi o que pensamos. Fizemos xixi no jardim mesmo.

O sarau era no primeiro piso da mansão. Já foram numa mansão? É mansão mesmo, amigos, com o "m" maiúsculo e uns três caseiros. Não cheguei a ver os cães e outros animais de toda mansão.

Quando chegamos lá, ao primeiro andar, descobri que éramos, disparado, o menor PIB da festa. Um menino tocava piano, acompanhado pela professora. Polkas, mazurkas, sonatas etc. Ele, o rapaz, tocava afetado. Aplausos frios, gelados, o que não é bom para um início de carreira.

Olhamos a vista. À frente, o famoso Lago Norte. Do outro lado, o Congresso Nacional. Fizemos logo amizade com os músicos que iriam tocar Piazolla, tão lisos quanto a gente. Músicos, vagabundos e poetas sempre se dão bem. Fizemos nosso boteco num canto mais afastado e ficamos reparando o movimento.

"É Krieg que ele está tocando", comentou Gustavo, se exibindo.

O violinista concordou. Se os dois estivessem mentindo, eu não saberia. Fiquei na minha.

Ao final de uma sonata, creio, veio uma mulher chateada.

"De quem é o Ford K, que está atrapalhado a saída do meu carro?"

"Mal cheguei, já estou atrapalhando", sussurrou Gustavo.

"Vai ter comida legal aqui", lembrou o camarada do violoncelo. "Tudo na vida tem seu preço, ja diz o Orson Wells", completou.

Não sei se foi Orson Wells ou Oscar Wilde, não anotei direito. Foi um deles, pode ter certeza. Se não foi, deve ter sido algum avô, quando a gente era pequeno.

Olho a casa. Está aqui, reunida, uma pequena parcela da elite do Distrito Federal. O lustre da casa é mais caro que meu orçameto para 2007. O mais pobre aqui vai para a Europa de mês em mês. A mesa está sendo entupida de comida. Tem vinho já dentro daqueles baldes de prata.

Eis que surge o personagem mais importante da noite, o garçom. Esbarra na mesa, quase acaba o concerto. Adoro garçom desastrado, contanto que não derube a sopa em cima de mim. Caramba, que papo de pobre esse negócio de sopa!

No intervalo, informam que está sendo servido um "pequeno lanche". Imaginem se fosse grande. Fartura total. Bacalhau era o prato mais barato. O guardanapo era chiquérrimo, dava medo até de pegar. O vinho surge com aquela cara boa, de vinho importado. Mais que isso, de graça. Pego uma taça, estendo para uma senhora, peço um gole.

"O copo de vinho não é esse, filho", diz ela, reconhecendo de longe um vagabundo.

"Mas não faz mal", respondo.

Ela me serve a contra-gosto.

Gustavo dá os parabés à professora de piano pelo concerto.

"Obrigada, mas a professora é minha irmã".

Não damos uma dentro.

O garçom reconhece os seus. Se aproxima com mais vinho. Chama-se Aristides, veio do Maranhão para Brasília em 1977. Falo que já morei em Imperatriz, também no Maranhão, ficamos amigos de infância, ele já vai no segundo casamento, "primeiro com uma potiguar, agora com uma mineira". Até o final da festa, não faltou nada para os vagabundos.

Voltamos para nosso boteco, na varanda. O amigo violinista vem com seu instrumento, pedimos para ele tocar "Carinhoso", ele manda ver. A noite vai ficando bonita, fazemos nossa festinha à parte, dá uma emoção danada escutar Carinhoso assim, no meio da frieza da festa. Pergunto se ele sabe tocar o hino do Santa Cruz no violino, mas ninguém é perfeito, fica para a próxima.

Nosso amigo do Violoncelo começa a segunda parte do sarau baixo-astral, acompanhando um pianista recem-chegado. O pianista explica o seguinte, antes de começar a tocar:

"O violoncelo, alegoricamente, é como se estivesse fazendo o Canto dos Cisnes, e o piano é a água".

Ele começa a tocar "O Lago dos Cisnes", creio, ou é o "Canto do Cisne Negro", do Villa-Lobos, estou ficado péssimo de memória. Aristides me oferece mais vinho. Desconfio que ele quer me embebedar. Uma senhora meio obesa passa com a tatuagem dos dois filhos nas costas, que dizem ser a última moda em Brasília.

"Estou levado meus filhos nas costas", diz.

Espero que não cobre a fatura depois.

É hora de escapar. Descubro que o José Carlos é filho de uma baiana com uma mineira.

Na volta para Taguatinga, Gustavo me explica que Brasíia e a cidade que tem mais árvores por habitante do Brasil. Acho que ele deixou o Xingu fora dessa.

Faz um vento bom, aquela brisa. Paramos num posto de gasolina, copramos duas cervejas e voltamos para casa, conversando besteiras e coisas da vida.

Para mim, a figura da noite foi o Aristides, que é de Bacabau.

Bacabau, para quem não sabe, fica perto de Santa Inês. Em Santa Inês eu fui muito, quando era pequeno, e morava em Imperatriz, no Maranhão. Agora me deu uma dúvida: será que visitei Bacabau e não lembro?

Aristides iria gostar de saber disso.


Para Pedro, recifense vagabundo e poeta, que está no Planalto Central disfarçado de jornalista.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Pequenas metáforas

Essa é uma crônica antiga, de 13 de maio de 2005, quando eu escrevia para o JC On Line. Foi incluída no livro "Estuário", que ando vendendo a conta-gotas. Acho que serve para o momento, enquanto arrumo as malas para ir a Brasília.
***

Aprendi a andar de bicicleta numa Monareta roxa, quando morávamos em Imperatriz, no Maranhão. Lembro com uma riqueza de detalhes o dia da compra da bicicleta, e até hoje o nome “Monareta”, significa algo que transita entre o presente e o aprendizado. Porque bicicleta, para criança, é festa, mas é lição. Tem que aprender a se equilibrar, começar a seguir devagar e depois pedalar. Num instante, aquelas mãos importantes que davam segurança, ajudavam a sustentar, já não estão. É a hora de pedalar sozinho, cabelo ao vento, sentindo a liberdade da viagem solitária. Minha filosofia de sandália havaiana e bermudão informa – bicicleta foi a primeira metáfora que aprendi na vida. Não conheço ninguém saudável que não tenha levado suas quedas, antes de seguir sozinho.

Nesta mesma época, fomos informados (eu e os dois irmãos mais velhos), que faríamos uma viagem para um lugar muito longe e bonito. Passamos uma madrugada inteira surtados, separando brinquedos, objetos, separando roupas, não lembro se discutimos ou se brigamos, e amanhecemos exaustos mas eufóricos. As nossas bagagens estavam prontinhas. Parecia que estávamos a caminho do Everest, dado o volume de roupas e brinquedos. Estávamos tomando nosso cafezinho básico, quando fomos informados que a viagem fora cancelada por algum motivo que também não lembro. Depois disso, eu só acredito numa coisa quando ela acontece. Não sei se isso tem alguma metáfora, pode ser só trauma mesmo.

Lá pelos 11 anos, já morando em Fortaleza, tinha uma viagem de trem rumo ao Crato, meu torrão natal. O trem era azul, e por isso, foi batizado popularmente de “Sonho azul”. Caramba, quando eu recebia a informação que viajaríamos no “Sonho Azul”, a vida ficava imediatamente azul. Eu ficava um menino azul. Acho que não tem metáfora nenhuma aí, só beleza e saudade.

Não lembro bem a idade, mas a cena me deixou paralisado. Era uma guerra na Nicarágua, creio, e um repórter vem se arrastando pela rua. Ele está com uma bandeirinha branca na mão, uma frágil bandeirinha branca, que significa paz, vem se arrastando e está desarmado. Estou vendo a cena, tenho uns 12 anos, talvez, sei lá. Vem um soldado, se aproxima e dá um tiro à queima-roupa na cabeça do jornalista. Fiquei muito chocado com a cena. Não entendia como o soldado podia fazer aquilo com alguém indefeso. Metáfora da maldade humana, talvez, mas acho também que não era o momento de ver aquilo. Eu também era muito indefeso.

Isso foi aos 18, quando tinha acabado de chegar ao Recife. O dono da empresa onde eu trabalhava sabia que eu gostava de escrever poesias nas horas vagas. Certo dia, terminando de montar umas prateleiras numa farmácia, todo sujo, fodido, cansado, fedido, vi o camarada chegar com sua maleta de couro. Ele se aproximou, deu um sorriso e falou, olhando de cima pra baixo:

“Tás vendo o que é poesia?”

Foi só sacanagem mesmo, acho que não tem metáfora. Mas informo que ainda escrevo poesia sim.

Estava com 24 anos, feliz da vida no meu primeiro jornal, quando meu chefe resolveu botar pra quebrar em mim. A solada foi tão grande, que só me restava pedir demissão ou aceitar que uns fodem e outros serão sempre fodidos, como bezerrinhos, ou como as focas, que batem palma por tudo. No dia em que fui saindo de casa, quando morava com minha tia-avó, Flocely, ela me sorriu e disse:

“Quem se abaixa muito, as calças aparecem”.

Ao invés de ir para a redação, fui direto ao departamento de pessoal e pedi demissão. No dia seguinte, chegou uma proposta para trabalhar em São Paulo. Tem metáfora ai? Tem sim. A palavra amorosa, dita no momento certo, fica grudada na alma.

Trabalhava num jornal em São Paulo, e uma amiga estava com o avô, muito querido, na UTI, ela sofrendo muito. Até que um dia, cheguei à redação e recebi a informação:

“O avô de Camila morreu”.

Nunca sei o que dizer na hora da morte. Geralmente fico mudo, dou um abraço, porque detesto dizer “meus pêsames”. No outro dia, encontrei Camila de repente, e falei, sem perceber:

“Deu zebra, né, Camis?”

Pensei logo “que merda eu falei”. Ela falou do avô, relembrou coisas dele, a conversa foi mansa e triste. Mais mansa que triste, penso. No dia seguinte, ela chegou à redação com uma camisa que tinha uma zebra. Disse que lembrou de mim, porque tinha tratado a morte do avô com leveza. A metáfora da morte como “zebra”, que parecia fora de propósito, acabou nos tornando mais próximos.

Então vou fazer o seguinte – vou aqui fechar os olhos, rever aquela monareta roxa, me ver dentro daquele “Sonho Azul”, seguindo para o Crato, e fazendo aquela viagem com os manos, para o lugar distante e bonito. Depois, vou rever Camila, tia Flocely, e colocar todas as pessoas queridas dentro do mesmo vagão. E quando algo der errado em minha vida, algo muito triste e doloroso, vou dizer:

“Deu zebra”.

Tentando ser mais manso que triste, mas lembrando do sonho, que é sempre azul.

segunda-feira, 12 de março de 2007

Cuidado com a lua minguante, amigos

Ando seriamente preocupado com as questões mitológicas e da existência, passando por questões do crescimento pessoal, desenvolvimento interior, essas coisas. Acabei de reparar que aos cinco minutos de hoje, entramos na lua minguante. A informação me chegou pelo site www.gaiastral.com.br. Espero que a turma por lá não esquente com a gente, mas gaia, no Recife, tem um significado bem menos nobre, mas são coisas da cultura, como dizem os sociólogos e antropólogos os mais conceituados. Não vou falar aqui o significado, para não pegar mal.

Mas, voltando ao assunto, a lua se encontra, hoje, a 90º em relação ao sol, “formando uma quadratura”, que não entendi direito. Não entendi direito nem a quadratura, nem a questão dos noventa graus, aceito explicações. Vou consultar minha astróloga predileta, a Cacá Travassos. A próxima fase da lua, informa o site, será a nova. Aguardemos.

Segundo os astrólogos, nesses sete dias (contando com hoje) tudo estará favorecido para o planejamento de atividades e empreendimentos, conclusão de trabalhos inacabados, solução criativa de problemas ligados ao passado, relacionamento com jovens, adolescentes e crianças. O período é bom também para o início de tratamento da saúde. Vamos lá, pessoal, terminar a dissertação do mestrado, aquele relatório chatíssimo, fazer as pazes com o tio, a prima, bater um papo com o filho adolescente, tomar os remédios na hora certa.

Coisas muito boas para fazer na lua minguante: cirurgias, dietas de emagrecimento (lógico, né, Pedro Bó), cortar despesas, cortar o cabelo (para conservar o corte), encerrar dívidas e pendências, tarefas inacabadas, arrumação de papéis, depilação (e limpeza de pele), iniciar eventos que exijam estudos e concentração, parar com hábitos e vícios, resolver assuntos do passado, iniciar tratamentos de desintoxicação. Apesar de não ter muita experiência no assunto, vai a sugestão: nada de mais de uma cirurgia nesses sete dias, para não forçar o organismo.

Como minha consultoria é completa, aproveitei para olhar o que devemos evitar neste período. Tome nota: você deve evitar atividades que requeiram divulgação, abrir negócios, fazer lançamentos e exposições, bem como começar qualquer atividade que requeira crescimento ou extroversão. Ou seja, é melhor ficar em casa mesmo, numa rede, repetindo "passa logo, lua minguante, passa logo".

Esse último item (o da extroversão) eu não entendi. Quer dizer que na lua minguante a criatura não pode crescer? E como vai ficar a vida dos extrovertidos?

Decidi dar uma olhadinha de raspão no meu signo.

Touro: “Nada de ficar desanimado, Touro. O momento exige toda sua atenção e ânimo. Mesmo que se sinta somente conduzido pelo destino e levado por tudo e todos, saiba que há pessoas que contam com sua força e determinação”.

A dica veio do senhor Robson Papaleo, que deve ser astrólogo.

Segundo o site, “é difícil fazer um Touro sair do sério, mas se você insistir, e conseguir, é melhor correr. Quando o Touro fica bravo ele fica muito bravo”.

Nessa parte eu concordei integralmente.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Pequenas contribuições para combater o efeito estufa

Agora que o mundo está derretendo e os esquimós têm que ir a um posto de gasolina comprar gelo para tomar seu whisquizinho, fiquei preocupadíssimo. Descobri que tenho que ajudar a salvar o mundo, antes que a vaca vá para o brejo, apesar de não ter nada contra o brejo, porque morei em Brejo Santo, uma cidade jóia.

Tomei algumas iniciativas para evitar que cidades como o Rio de Janeiro e Havana fiquem debaixo d´água, e que as florestas sejam tão devastadas, que não sobre nem madeira para fazer palitinho de dentes. Sim, amigos, apesar de ser contra a norma culta, eu adoro palitar os dentes depois do almoço.Só não fico tapando a boca com a mão, como mandam os manuais, porque faz mesmo é chamar a atenção.

Tomei iniciativas importante, que passo a compartilhar, esperançoso de garantirmos a vida por aqui pelo menos até o centenário do Santa Cruz, em 2017.

Consumo de água

Como vai faltar água geral, estou bebendo mais café, suco e derivados. Água mesmo, estou deixando para esse pessoal sem consciência, que não percebe que só temos 1% de água potável no mundo.

Só dou descarga depois de três xixis (não sei como se escreve xixi no plural, desculpem se estiver errado). Cada vez que faço xixi, sinto aquela fleuma, aquela alegria. No meu íntimo, vem a certeza: estou ajudando a salvar o planeta.

Estou também gastando 34% menos de água no banho, graças a uma solução doméstica, localizada no Alto José do Pinho. Cortei 34% dos cabelos. Além disso, passo sabonete mais rápido, para não gastar água.


Consumo de combustíveis fósseis

Vou do Cabo ao Recife duas vezes por semana, utilizando o Fiat Uno da minha tia Flocely. Para gastar menos, dou uma calibrada nos quatro pneus. Nunca entendi essa trapaça dos pneus, mas como naquele documentário sobre o fim do planeta dizem que é bom calibrar os pneus, não vou arranjar confusão para o meu lado.

No restante da semana, encaro o Centro do Cabo, uma viagem que me deixa exausto e mau-humorado, mas vocês devem entender que para salvar o planeta, a pessoa tem que se esforçar e contribuir.

Consumo de combustíveis não-fósseis

Para economizar gás, estou fritando ovo mal passado mesmo. Num mês, economizei 27% do gás daqui de casa. O microondas só uso na escola, para o café ficar mais quente. Só uso o ar-condicionado porque é desagradável dar aulas numa sala que fica parecendo uma sauna, com os alunos querendo esfolar vivo o professor, por causa de sua contribuição ao efeito-desestufa.

Já tem um bom tempo que só uso açúcar mascavo. Não tem nada a ver, mas fica registrado em ata. Aquele açúcar cristal é uma bomba. Cada colheradinha, abre-se uma cratera ali na Antártida, os pingüins são putos com aquele açúcar Estrela.

No próximo São João, vou cancelar minha tradicional fogueira, porque aquela lenha toda vai para o céu e acaba com as geleiras todas.

Estou em plena campanha junto aos amigos, para evitarem churrasquinhos nos finais de semana, batizados ou aniversário dos filhos. Aquele inocente carvão, vendido no posto de gasolina, é fruto de trabalho escravo e causou a devastação de 77 hectares na Amazônia. Cada espetinho assado no carvão, você está mordendo duas árvores.

Bem, tenho várias outras iniciativas, que gostaria de compartilhar, mas está escurecendo aqui no Cabo, e não quero utilizar a luz agora, para não aumentar o consumo. É horrível escrever no escuro.

Vou ali, tomar um banho rapidíssimo. Se a coisa continuar esquentando, terei que voltar aos primórdios, o famoso banho de balde.

Peço aos leitores que ajudem. O planeta está parecendo um sorvete nas mãos de uma criança, ao meio-dia, na Conde da Boa Vista.

quinta-feira, 8 de março de 2007

Cronista sem inspiração pede ajuda aos 57 leitores

Amados leitores, iria escrever sobre a questão da maioridade penal, tema que sempre retorna, como a salvação para o clima de insegurança no País, mas desisti por causa de um cansaço recente;

Pensei em escrever sobre o Dia Internacional da Mulher, mas não tem nada a ver;

Andei cogitando falar sobre futebol, mas o meu clube, o Santa, está na marca do pênalty, levando sovas a mil;

Rabisquei uma história sobre minhas pesquisas do período da Ditadura, mas não me pareceu adequado;

Estava coletando dados sobre o calor insuportável do Recife, e as paradas de ônibus, que nunca oferecem uma sombrinha sequer, mas estou no ar-condicionado da escola em que ensino, e um tema desses o camarada só pode escrever mesmo no mormaço;

Iria falar sobre uma recente visita ao Poço da Panela, mas comemorei algo com os amigos, me excedi um pouco e faltou o registro no momento correto;

Depois me ocorreu um texto sobre bolsa de mulher, que tem tudo e não tem nada, mas não desenvolvi o tema de forma coerente;

Tentei fazer um levantamento dos amigos que estão indo morar fora do Recife, mas como agora moro no Cabo, não tenho como me meter nas coisas da cidade vizinha;

Por último, falaria sobre Eliete, do Alto José do Pinho, que está de namorado novo (em fase de teste, segundo ela), mas não cheguei a algo concreto;

Então, mergulhado nesta falta de inspiração completa, suplico aos leitores algum tema pungente para uma crônica interessante.

Ou seja: aceito sugestões para a crônica de hoje.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Sonhos de pipoqueiros, horóscopo da cobradora e esmolas não dadas

Avenida Dantas Barreto, parada do ônibus Centro do Cabo. Final da manhã, calor infernal. Dois vendedores de pipoca começam a conversar.

"Ah, meu chuveiro do quintal agora..."

"E uma Coca Cola de dois litros e meio".

Silêncio. Os dois continuam.

"E um churrasco, heim?"

"Gelo e limão".

Pausa.

"Ôx, e pipoqueiro faz churrasco, é?"

Um deles olha pra mim.

"E pipoqueiro não é gente não, heim fera?"

Fera sou eu.

"E apois".

O ônibus chega. Entro, sento junto à cobradora. Abro o jornal. Ela me olha com insistência. É loiríssima, de óculos pretos e muitas miçangas nos pulsos e pescoço.

"Posso olhar o horóscopo?"

"Pode, claro. Qual é o signo?"

"Câncer".

"Tomara que seja bom".

Ela fica olhando o caderno de Cultura, vou ler o restante, as notícias sobre mortes e tragédias do Recife. Depois de um tempo, ela me devolve o horóscopo, fica com outra parte.

"Foi bom o horóscopo?", pergunto.

"Razoável", responde ela, com um sorriso aguado.

Seguimos lendo. Daqui a pouco ela me devolve o restante do jornal.

"Está dando sono".

"Hum hum".

"Sabia que 99% dos passageiros dormem no ônibus? É porque o ônibus balança, é como ninar as pessoas".

Entra um garoto de uns dez anos. Entrega uns papéis xerocados, dizendo que o pai e a mãe estão desempregados. Começa a cantar algo triste e desafinado. Logo chegam as primeiras moedas. Não, eu nunca dou moedas a crianças. Pode cantar até o Cabo, que não dou um centavo, de tão puto que fico com quem está por trás disso tudo, dessa máquina das esmolas. Devolvo o papel.

Fico lendo, lendo, sem dormir, até que o ônibus chega ao Centro do Cabo.

"Ave, só vai dar tempo fumar um cigarrinho e ir no banheiro", diz a cobradora.

Desço do ônibus, saio caminhando devagar para casa.

sexta-feira, 2 de março de 2007

Pequenas coisas pequenas

Pequenas intimidades

Avisar que tem um pedaço de comida entre os dentes; tirar o farelo de pão da barba; usar o banheiro com a porta aberta; dizer sem meias palavras “o texto não ficou bom”; entregar uma cópia da chave da casa; ligar a cobrar no meio da noite, cheio de aperitivos; pegar o controle remoto como se a TV fosse sua; reclamar que está faltando algo na geladeira que não é sua; encher a garrafa d’água sem a pessoa pedir; avisar que o café está frio (e não beber, fingindo que ainda está quente); sussurrar coisas bonitas, em lugares improváveis; levar um pedaço do bolo de chocolate do aniversário da tia para aquela pessoa; ajudar a lavar as louças; não ficar preocupado com o chulé; oferecer o primeiro pedaço de algo delicioso; são tantas pequenas intimidades...

Pequena grosserias

Fechar o vidro do carro justamente no sinal; não olhar para a cara do sujeito que pede algo, em qualquer lugar; interromper uma conversa importante para atender as inúmeras chamadas do celular; ficar repassando email com “gracinhas” para um monte de amigos que não estão interessados em gracinhas; poesia ruim em papel bom; o mau-humor só porque alguém ligou errado para o seu número; falar alto em bibliotecas e livrarias; não respeitar o sofrimento de quem torce muito por um time (no dia em que o time perdeu); dizer “isso é besteira”, quando algo muito besta é importante para alguém; não saber escutar; não parar de falar; a ausência do “bom dia”, “boa tarde”, “obrigado”, “com licença”, “perdão”; não brigar pelo disco do Pixinguinha, em caso de separação; são tantas pequenas e grandes grosserias...


Pequenos mistérios

Uma vela acesa, em qualquer lugar cheio de silêncio; o barulho da reza de qualquer religião; a alegria do cão, antes da chegada do dono; uma senhora velha que chama para mostrar seu pé de jasmim florindo; o momento da criação, em qualquer artista; o silêncio que se segue ao arrebatamento, na arte; o silêncio dos que aprenderam a calar; um moleque com uma bola de futebol; pessoas que sabem agradecer; o perdão; uma mulher grávida de 9 meses; os poemas do Fernando Pessoa; o momento do brinde; a lua cheia de hoje, redonda como uma mulher grávida; uma mulher amamentando; são tantos pequenos mistérios...

Pequenas saudades

Saudades da língua portuguesa, quando a gente está longe do Brasil; do primeiro beijo; da farinha, quando chega o feijão; saudades de alguma turma especial, entre a 5a e a 8a série; do primeiro ou do último semestre na universidade; de quando usava o cabelo bem grande; de uma camisa muito antiga, do clube de coração; saudades do Recife, estando no Recife; do Recife, estando na Patagônia; das viagens com a família; daquele porre com o melhor amigo; do bar predileto que fechou; daquela viagem com a mochila nas costas e o espírito de aventura...

Aceita-se pequenos complementos.