segunda-feira, 5 de março de 2007

Sonhos de pipoqueiros, horóscopo da cobradora e esmolas não dadas

Avenida Dantas Barreto, parada do ônibus Centro do Cabo. Final da manhã, calor infernal. Dois vendedores de pipoca começam a conversar.

"Ah, meu chuveiro do quintal agora..."

"E uma Coca Cola de dois litros e meio".

Silêncio. Os dois continuam.

"E um churrasco, heim?"

"Gelo e limão".

Pausa.

"Ôx, e pipoqueiro faz churrasco, é?"

Um deles olha pra mim.

"E pipoqueiro não é gente não, heim fera?"

Fera sou eu.

"E apois".

O ônibus chega. Entro, sento junto à cobradora. Abro o jornal. Ela me olha com insistência. É loiríssima, de óculos pretos e muitas miçangas nos pulsos e pescoço.

"Posso olhar o horóscopo?"

"Pode, claro. Qual é o signo?"

"Câncer".

"Tomara que seja bom".

Ela fica olhando o caderno de Cultura, vou ler o restante, as notícias sobre mortes e tragédias do Recife. Depois de um tempo, ela me devolve o horóscopo, fica com outra parte.

"Foi bom o horóscopo?", pergunto.

"Razoável", responde ela, com um sorriso aguado.

Seguimos lendo. Daqui a pouco ela me devolve o restante do jornal.

"Está dando sono".

"Hum hum".

"Sabia que 99% dos passageiros dormem no ônibus? É porque o ônibus balança, é como ninar as pessoas".

Entra um garoto de uns dez anos. Entrega uns papéis xerocados, dizendo que o pai e a mãe estão desempregados. Começa a cantar algo triste e desafinado. Logo chegam as primeiras moedas. Não, eu nunca dou moedas a crianças. Pode cantar até o Cabo, que não dou um centavo, de tão puto que fico com quem está por trás disso tudo, dessa máquina das esmolas. Devolvo o papel.

Fico lendo, lendo, sem dormir, até que o ônibus chega ao Centro do Cabo.

"Ave, só vai dar tempo fumar um cigarrinho e ir no banheiro", diz a cobradora.

Desço do ônibus, saio caminhando devagar para casa.

8 comentários:

Anônimo disse...

adorei

Anônimo disse...

legal ! tb fui com vc para sua casa

naire valadares disse...

Sama,
Só agora li Pequenas coisas pequenas, deixei um coment para vc, meu querido.
Beijo
Naire

Anônimo disse...

é cada doidice
nesse mundo de imundice.

caminhar disse...

estou quase pegando um onibus para o Cabo. Só assim conversaremos sobre crianças, índios e mil caminhos para a saúde.
beijão
bebeth

Anônimo disse...

INFÂNCIA (2)

Eu matei minha saudade mas depois
veio outra.

Cacaso

Anônimo disse...

Samarone,
eu fico admirado como você consegue viver o momento, o cotidiano, a rotina mesmo, de uma forma presente. Geralmente nos desligamos durante o nosso dia-a-dia e deixamos de viver o momento, que seja agradável ou não, é o que nós temos.
Eduardo

Anônimo disse...

Também costumo olhar o horóscopo no caderno C, e de câncer.