quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Quase um bom-dia

Pelo mapa, são 35 quilômetros entre o Cabo de Santo Agostinho, onde vivo, e o centro do Recife. Para mim, no meu ponto de vista psicológico, são pelo menos 45, porque conto também o cansaço. Toda distância tem que levar em conta a carga de cansaço, principalmente se o camarada for usuário de transporte coletivo, como é meu caso, com raras gatunagens no Fiat da tia, um raçudo Uno vermelho, ano provável 1993.

Entre as duas cidades, há uma multidão sonolenta e cansada, aguardando de pé nas centenas de paradas de ônibus. É uma gente embrenhada nesta dura, ranhenta, obsessiva e obrigatória luta pela sobrevivência. Para estar no Recife às 7h33, por exemplo, é preciso estar às 6h em ponto no terminal do Cabo de Santo Agostinho. Não, amigos, não é nada saudável perder um lugar sentado nesta longa e maçante viagem, neste sol escandaloso das manhãs recifenses. Chega-se cêdo para conseguir um lugar ao sol, literalmente.

O motivo é simples, pelo menos no meu caso. Não há nada pior do que tentar ler algo de pé, em um ônibus lotado. Nessas longas jornadas, consigo um lugar sentado para ler algo delicioso, tomar notas, observar o povo, a paisagem etc. Como o Aquiles me alertou outro dia, em tom muito severo, que o sujeito pode descolar a retina, lendo dentro de ônibus, uso uma estratégia inovadora: leio uma página, olho a paisagem, o rosto das pessoas, sinto o cheiro do dia e só depois, quando sinto a retina voltando ao lugar, retomo. A bola da vez é "Justine", do meu amigo Lawrence Durrell.

A categoria dos motoristas de ônibus, a exemplo dos jornalistas, advogados, marceneiros, açougueiros e pais-de-santo, é estranha, complexa e desigual. Alguns começam o dia rindo e dão bom-dia até para as borboletas. Outros têm foto nas ventas e dão partida no veículo como se levassem uma carrada da Master Boi. Há os marcha-lenta, que não sei como escreve no plural, que são criticadíssimos pela população em geral, porque ninguém quer chegar atrasado ao trabalho. Andam bucolicamente, esses 35 quilômetros, enquanto os ponteiros do relógio voam. O expediente, no Recife, geralmente começa às 8h, não sei como está sendo no restante do Brasil, com esta confusão dos aeroportos.

As coisas ficariam mais fáceis se entre o Cabo e o Recife não existisse uma cidade que não acaba nunca, chamada Jaboatão dos Guararapes. Na entrada de Jabotão informam que "a pátria nasceu aqui", certamente por causa da "Batalha dos Guararapes", onde deram uns tapas nas orelhas dos holandeses, mas fica por isso mesmo. Se for confirmado cientificamente que a pátria nasceu em Jaboatão, eu atesto: eita pátria esculhambada!

Se você consegui atravessar Jaboatão, imediatamente se torna uma pessoa exausta e aliviada. Mas agradeça, que o pior já passou. Falta somente a Imbiribeira, uma avenida que lembra muito a Transamazônica. Existem 1.246 semáforos ao longo da Imbiribeira, todos no amarelo, caminhando para o vermelho, na sua vez de passar.

Para chegar ao centro do Recife, desça no Cais de Santa Rita. Ali, às margens do Capibaribe, alguns barcos vagabundos, recém-chegados de algum lugar que ainda tem peixe, abrem espaço para o comércio matinal do referido animal. São vendidas umas espécies que não reconheço nem de longe, nem de perto. A espécie é tratada ali mesmo, para o agrado matinal de nossas narinas.

Neste exato momento, às 7h23, todos os rostos ainda estão sonolentos. As moças com as camisas do "crédito consignado" já estão a caminho dos aposentados e pensionistas. Na Conde da Boa Vista, que atravessa o centro, vendedores enfadados aguardam, sentados, por alguém da loja que vai chegar com a chave. Esse alguém, por coincidência, é sempre o último a chegar. Enquanto isso, fuma-se e fala-se da loucura que foi o Natal, e especula-se sobre quem vai ser aproveitado para o quadro fixo. Ao lado, tem gente comendo cachorro-quente com carne de soja e suco a R$ 1,00.

Chego à avenida Agamenom Magalhães após pegar o Setúbal Conde da Boa Vista. Venho pegar restos de bagagem, antes da próxima viagem. Então, as coisas começam a se complicar. Na Agamenom, a criatura descobre que o Recife cresceu demais, que tem carro demais e outros muitos bocados demais que não levam a nada, pelo menos nestas minhas poucas linhas.

É preciso descer no Derby para ver ônibus de tudo que é cor, nome, jeito, velocidade. Perambulo um pouco, e chego à barraca do "Moreno" (aqui no Recife, todo negão é chamado de "Moreno"), onde bebo meu suquinho de maracujá, para acalmar os nervos. Chega um camarada e diz, animadíssimo:

" Fala, peixe!"

O negão, digo, o moreno, sorri e solta um muxôxo.

"Tu sabe que tu é meu peixe, né?"

O moreno-negão solta uma resposta comovente:

"Esse Dênys Oliveira tá é fodido".

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Murmúrios - I

(anotações aleatórias ao deus-dará, ao longo das estradas)

**
Fiel depositário
Ser fiel depoítário dos meus próprios desmantelos

Projeto literário - I
Contos da carrocinha, para cães suicidas.

Projeto literário - II
Contos de fraldas, para crianças (durante a amamentação)

Discussão
Nada compensa a energia gasta para vencer uma discussão. No final, o silêncio é sempre o grande derrotado.

Constatação
No infinito, todas as lembranças se encontram

Aviso
Nenhum destino fica de sobreaviso.

Inspirado em Giba
As reverberações policinésicas da antropogênese geram cinestesias sobressaltadas.

Solo
Para o solitário de si, um é demais.

Sonso
Concordo com o Sérgio, ladrão de gatos do centro do Recife. O gato é um animal sonso.

Função da vida
Esfregar o nariz na alma do mundo.

Psicanalítico
Na psicologia (ou será a psicanálise), há uma expressão muito rica: "equilíbrio enfermo". Gostaria de postular, modestamente, o desequilíbrio são.

Descoberta
Há, sim, olhos que sussurram luz.

Pergunta
Onde se escondem os vaga-lumes, durante o dia?

Místico azarado
No dia em que começou seu jejum, esbarrou em uma suculenta feijoada.

Alcooólicas
Peso 78 litros, me disse ele, com aquele bafo de cana e cerveja.

Limpeza interna
Está certo o sábio Iramarai, quando afirma que o melhor lugar para limpar catota é no trânsito, com os vidros fechados.

Diferença
Sim, mágicos temos aos montes, mas os que têm magia são raros.

Aparências
E o falso boa gente, heim?

Canina
Há cães que ladram tanto, que nunca vêem as caravanas passarem.

Diferença
Há mãos que aquecem e mãos que esquecem.

Focado
E aqueles, que para mudar, pensam somente no caminhão?

Ôps
O dinheiro do bêbado sempre fica no bolso da outra calça.

Jumentinho
Tenho um amigo que não é lá essas simpatias. Batizei-o de jumento amável.

Crime
A bufa, este crime sem cadáver.

Volta por cima
De derrota em derrota, até a cambalhota.

Sorte
Sorte, este pedacinho de nada brincando com a vida.

Cabo de Santo Agostinho, nos finalmente de 2006.

sábado, 23 de dezembro de 2006

Esse tal de Natal...

Recebi muitas mensagens desejando Feliz Natal, e retribuo com todo o carinho, mas com uma ponderação: é um período do ano que considero esquizofrênico.

Desde pequeno achava esquisito, na adolescência confirmei e depois, já adulto, nunca entendi o Natal. Aceito explicações as mais diversas.

Pode ser mesmo um trauma. Teve um Natal que meu pai se arretou com alguma coisa, e quebrou minha carreta que seria presente de Natal. Pisou a carreta e todos os carros, uma frota deliciosa vinda diretamente da Wolkswagem, creio.

Depois ele se arrependeu e resolveu me levar para comprar outra carreta. Ganhei uma maçã e fui com ele, na garupa da bicicleta. No caminho, a maçã caiu, e doeu mais que a carreta. Os psicólogos explicam essas coisas direitinho, e os psicanalistas vão mais longe, com acusações de complexos os mais diversos.

Estou em Petrolina, terra do saudoso Marcel "Despedida em Las Vegas" Tito. São 10h53 e o comércio está à beira de uma guerra civil. Olhei no jornal de hoje. Vai ter shopping no Recife funcionando de 9h às 23.

Fico olhando essa confusão toda e lembro que minha avó Zeneuda fazia um presépio, todo ano. O lago era um espelhinho, com areia ao redor. Tinha um menino Jesus lá em casa, num lugar bacana. É uma lembrança boa, porque depois do Natal, ela guardava o presépio embulhado em jornal, e no ano que vem tinha mais.

Depois que minha avó morreu, não teve mais presépio, pelo menos que eu saiba.

Meu irmão Paulinho não vai passar o Natal em Fortaleza, ao lado de sua mãe, que também é a minha, porque a TAM empombou tudo na reta final.

Me surgiu uma dúvida existencial de máxima grandeza: que diabos eu fiz, naquele Natal de muitos anos atrás, para meu pai pisotear a minha carreta e todos os carrinhos?

Vamos que vamos. Não vejo a hora de chegar ao Recife, cidade lendária.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Lembranças do Armazém Paraíba, dinheiro para o aluguel de Marcos Pioleiro, Orkut e outras histórias

Estou em Patos, a 305 quilômetros de João Pessoa, no Semi-Árido da Paraiba. São 3h57 da manhã e cheguei há meia hora, numa viagem pela Viação Progresso, que fez a gentileza de reajustar as passagens justamente no final do ano. Devem ter se inspirado em nossos deputados federais, que se presentearam com quase 100% de reajusta.

Pois bem. À minha frente está o famoso "Armazém Paraíba", com sua contundente marca em preto e amarelo, imagem que acompanhou as cidades da minha infância. Ao lado, o Banco Cruzeiro do Sul (empréstimos para aposentados e pensionistas do INSS e servidores públicos). Ao lado do banco, a loja "Realce" e depois a "Narciso". Para o lado da esquerda (contando do Armazém Paraíba), tem uma unidade odontológica, parceria do município com o Governo Federal. Mais à esquerda, a casa lotérica Esperança (o nome de quase toda casa lotérica) e a "Farmácia dos Municípios". Na esquina, uma casa toda pintada de amarelo, a cor oficial do PFL, que julgo ter sido outrora (estava louco para usar esta palavra hoje) o comitê de algum candidato na eleição passada.

Reparo o nome dos febrentos: Cássio-45; Antônio Mineral- 45.444; Gilvan Freire - 1234 (esse só não se elegeu se for mesmo ruim de voto).

Uma simpática, bucólica, singela e típica árvore de natal ilumina a pequena praça. Não deve ter custado nem dez reais, mas é mil vezes mais linda que a patética decoração-mulambo que a prefeitura do Recife reservou para este período do ano.

Eu estava assim, tomando minhas notinhas neste velho caderno de viagens, quando fui cutucado por um sujeito moreno, de uns 43 anos, meio sambado pela vida, cabelos indescritíveis, vestido de forma mais ou menos. Veio com uma conversa inacreditável, quase cinco horas da manhã, de que faltava somente dois reais para pagar o aluguel. Sinceramente, o sujeito que sai de bar em bar, em plena madrugada, com uma conversa dessa, deveria estar era escrevendo para o cinema.

"Dois reais para o aluguel? Ah, velho, tenho não. Se fosse para tu tomar uma dose, eu dava um jeito", respondi.

"Não, velho, estou falando na real", insistiu.

Diante do meu desdém, ele apelou:

"Dia 26 de dezembro, completo dois anos sem beber".

Aí pegou de jeito. Lembrei que meu tio Ademar outro dia completou um ano sem beber, com a ajuda do AA. Súbito, me veio uma ternura com todos os que pararam de beber e ficaram mais felizes, centrados e calmos. Sim, porque tem uma amiga minha que parou de beber que mudou do vinho para a água. Parece outra pessoa. Quando ela bebia, era mais interessante.

"Tu escreve poesias?", perguntou ele.

"Só quando tenho saudades de alguma coisa que não lembro", respondi, e não sei de onde veio esta resposta.

"Pois eu escrevo poesias", disse meu amigo.

Depois de um breve silêncio, ele mudou o pedido. Dispensou o vale-aluguel e pediu para que eu anotasse um poema dele.

"Vamos lá, mande brasa". Então ele começou a recitar, em tom emotivo mas pausado:

"Terra seca, pobre e nua
falta água, falta pão
falta tudo nessa vida
só não falta coração".

Era um poema longo, que anotei em meu caderninho, mas agora não dá tempo transcrever por inteiro. Ele recitou mais dois poemas, que anotei. Queria mais um, mas aí eu me arretei, porque não iria transcrever o livro do sujeito.

"Tá bom por hoje, né?", eu disse.

"Sabia que eu tenho uma comunidade no Orkut?", comentou o poeta.

Lembrei de meus 80 alunos, entre 16 e 19 anos: 79 têm Orkut.

"Anota aí para tu dar uma olhada: www.orkutcomunidademarcospioleiro.com.br"

Houve um silêncio repentino. Ele falou de peito estufado:

"Tem muita gente na minha comunidade. Até dos Estados Unidos".

Então ele esqueceu do dinheiro do aluguel e foi embora.

Na TV, aqui na lanchonete "Pão Quente" (padaria, lanchonete e conveniência 24 horas) começa a rolar Gasparzinho. As primeiras Toyotas e Rurais começam a passar. São 4h27 da manhã. Na mesa ao lado, quatro camaradas discutem meio exaltados sobre cheques, falcatruas, notas fiscais frias, acertos sobre cargas com material paraguaio, um disse que só ele mesmo "teve coragem de resolver aquela bronca com o João". Ficou liso no interior do Maranhão, e arrematou:

"Bota os pneus em cima do caminhão dele e toma dois mil conto!"

Não entendi nada, mas tudo bem. A viagem segue, a vida segue.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Cronista segue sua peregrinação pelo semi-árido nordestino

Ah, amigos leitores, vou chegar ao final do ano com alguns débitos neste blog. Estou em uma caravana que vai percorrer mais de cinco mil quilômetros, até 23 de dezembro. Até agora, vamos com uns reles 2.300. Ufa la lá. Hoje consigo escrever algumas coisas em Arcoverde, numa lan house defronte à praça principal da cidade, que o sujeito me informou o nome, mas esqueci. Sei que aqui mora a Teresa, minha ex-aluna, mas não sei onde está o telefone de Teresa, que agora é mamãe e tudo o mais. O motoboy que me trouxe do Max Hotel, na BR, até a lan house, é muitíssimo desinformado. Perguntei a população da cidade, ele ficou em silêncio. Insisti e ele respondeu:

"Rapaz, é muita gente, visse!"

Oquei, garotão, meus leitores ficarão sem saber da população arco-verdense.

De manhã toma-se café, seguimos para alguma cidade, os palhaços e pernas-de-pau fazem uma apresentação, encerra-se a cerimônia, voltamos para a estrada, almoçamos, vamos para outra cidade, repete-se a dose, e à noite, pela graça divina, dormimos em algum hotel. Durmo ao lado de um palhaço e de um cara que cuida do som, o Valentim.

Vamos percorrendo a paisagem do Semi-Árido brasileiro. Antes de ontem, em Palmeira dos Índios, surgiram uns flamboyants que eu vou dizer. O vento quente é constante, mas à noite, em algumas cidades, passa aquele ventinho bom, sossegando a gente, uns ventinhos que levantam as cortinas da alma.

Tenho feito o meu exercício diário de olhar o povo. Em cada cidade, uma multidão de crianças e adolescentes aguarda a tal "Caravana do Unicef". Vejo uns sorrisos para lá de esperançosos, misturados com aquele jeito inocente de quem vive longe dos grandes centro urbanos. Enquanto os artistas se apresentam, vou entrevistando professores, agentes de saúde, diretores de escola, crianças.

Informo que tem, sim, muita coisa boa acontecendo neste país, que muitos projetos estão sendo tocados com seriedade e persistência. Em Traipú, a secretária de Educação conversou comigo e quando falamos de livros, seus olhos vazavam luz. A Dulcinéia (sim, como em Dom Quixote) me levou ao prédio onde funciona a biblioteca e vi o "cantinho da leitura". É ali que ela começa a fisgar as crianças para o mundo da leitura.

Converso muito com as crianças, evitando fazer aquela estúpida pergunta "o que você quer ser quando crescer?" Tenho perguntado coisas mais simples, que fazem parte do hoje: se na escola tem merenda, e se a professora é boa. Sim, amigos, a meninada está comendo na escola, e tem muita professora comprometida com educação. Em muitas prefeituras, os livros para 2007 já chegaram. A palavra compromisso ainda viceja em muitos grotões do Brasil.

Por conta da correria, não tenho lido jornais ou assistido TV, o que parece ser muito saudável para a saúde psíquica. Tive que trazer minha cota de livros, pois livraria é algo que não existe no interior do Nordeste.

Em meio a esse vendaval de cidades e gentes, já vou perdendo as primeiras confraternizações deste final de ano. Domingo é o aniversário de Emília, ela já sabe como sou, nem esquenta. Domingo é também o dia da confraternização da nossa torcida desorganizada "Sanfona Coral". Pelo andar da carruagem, parece que até a confraternização do Poço da Panela, minha eterna pátria espiritual, vou perder. Será a primeira vez, em cinco anos. Mas eu não me incomodo com essas coisas. Uma hora chego lá, puxo o banquinho, tomo umas com os amigos, e fica tudo certo.

Vou terminando o ano com as pata no mundo. Isso me deixa novinho em folha. É como se o cansaço físico devolvesse à alma o regozijo das vivências, dos olhares, dos sorrisos encantados das crianças, com os palhaços da Caravana. Vejo o povo brasileiro em sua infância. Queria tempo e espaço para relatar tudo o que tenho visto, escutado, presenciado. Vai ficar para janeiro, já que o Unicef pretende publicar minhas anotações de viagem.

Quando a poeira baixar um pouco, vou contar umas duas ou três histórias de crianças que andei encontrando, conversando e fotografando.

Fico por aqui. Vou ali, ver o ensaio do Côco Raízes de Arcoverde. Fiquem bem. Ou, como disse uma uruguaia ao velho amigo Gustavo, à saída de uma livraria, em Montevidéu:

"Merece-te!"

ps.não deixem de ler o blog do poeta Gustavo de Castro: www.razaopoesia.zip.net

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Os dois ladrões-meninos e o poeta

Chama-se Gustavo o irmão que ganhei da vida, quando morava em São Paulo, no final dos anos 90. Dividimos apartamentos, fizemos viagens, varamos madrugadas em conversas intermináveis, deciframos as ruelas daquela Buenos Aires distante e tão próxima. Descobrimos novos poetas, tomamos porres homéricos, choramos nossas dores-de-cotovelo, e depois começamos a viajar pelo mundo. Eu pela América Latina, ele pela Itália, em busca do seu Ítalo Vida Calvino.

Um dia, fomos fazer o supermercado, em plena avenida Angélica, Higienópolis, ali onde moram os Fernando Henrique da vida. Enchemos um carrinho miúdo, certamente utilizado para colocar coisas de crianças, e depois saimos, como se algum carro estivesse à nossa espera.

Fomos descendo a avenida de mansinho, sem combinar nada, fomos descendo, certos de que escutaríamos aquele famoso "ei, rapaz, para onde você vai com esse carrinho!", mas não perceberam nossa fuga sorrateira. A partir do segundo quarteirão, éramos duas crianças descendo uma das principais avenidas de São Paulo com seu novo brinquedo. Cada um que estava mais feliz, se pendurando no carrinho e dando gritos de iurrruuuu....

O carrinho ficou na cozinha durante muito tempo. Era um sucesso colocar coisas neles, contar a história e rir muito.

Houve também um episódio bem menos sucedido, uma tentativa tosca, de minha parte, de afanar um exemplar de "A dama e o cachorrinho", de Tchekov. Não contava com a infelicidade, o rude golpe do destino, de ter apenas um exemplar na livraria, coisa notada rapidamente por um astuto vendedor. À saída da livraria, recebemos aquele "ei, rapaz!", de um vendedor exaltado, louco por briga. Tchekov quase nos custou uns sopapos, ali vizinho à PUC, onde Gustavo tocava seu doutorado.

No albergue de San Telmo, em Buenos Aires, passávamos o dia conversando sobre a vida, olhando os turistas e seus mapas.Eu, Gustavo e Daniel Raton, uma das figuras mais incríveis que conheci nesta vida. Eram horas sem pressa, sem rumo e sem turismo, falando de livros, pessoas, sentimentos, relembrando nossas coisas. Formávamos, junto com a Érika e a Cláudia o que ele, Daniel, denominava o "Petit Group", que enchia de felicidade o velho argentino, acostumado a ficar recolhido em seu quarto, lendo e fumando sem parar. Nunca mais vimos Daniel, aquele velho pilantra, que me lembra muito um personagem do Lawrence Durrell, em "O Quarteto de Alexandria".

Escrevo essas notas soltas, entre uma cidade e outra do semi-árido alagoano, porque hoje me deu uma saudade imensa do meu velho amigo, que está morando em Brasília. Justamente hoje fiquei sabendo que ele finalmente abriu seu blog de poesias.

Então fui ler. E descobri que meu irmão virou um poeta.

Quero somente compartilhar com vocês:

www.razaopoesia.zip.net

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Quem levará flores para Pinochet?

Recebi o telefonema de Daniel Buarque, que foi meu aluno da Católica, sobreviveu bem ao trauma, e está agora no site da Globo, fazendo suas matérias. Me informou que o general Augusto Pinochet tinha finalmente morrido. Eu estava ocupado demais, desfazendo uma mala e arrumando outra, para seguir viagem. Ele queria uns contatos chilenos, porque entrevistei muita gente que lutou contra a ditadura do tirano de lá, mas como estou terminando uma mudança, todos os cadernos de pesquisa sobre o Chile estavam em alguma caixa. Foi mal, Daniel, na próxima ajudo.

Depois, o camarada Amaury me entrevistou, para saber o que eu achava da morte do ditador. Conversamos um bocado, e o filminho passou de novo em minha cabeça. Era o final de 1999, e cheguei a Santiago para um curso de uma semana num lugar espetacular, chamado Cajon del Maipo. Éramos uns 15 pesquisadores de toda a América Latina. No final das contas, passei mais de 45 dias perambulando, com minha mochila nas costas. Passei um final de ano em Chiu Chiu, um vilarejo com 250 habitantes, e o reveillon foi em meio a um ritual indígena que mexeu com tudo por dentro.

Um dia, fui visitar o túmulo de Salvador Allende, o presidente morto no Palácio La Moneda, naquele maldito 11 de setembro de 1973. É um túmulo enorme, uma grande homenagem do povo chileno, e sempre tem flores novas, gente fazendo alguma homenagem.

Saí caminhando no meu galope manso, até que cheguei a uma pequena tumba, uma daquelas gavetas minúsculas, que chamava atenção por ser mais colorida e ter muitas, mas muitas flores. Então me aproximei e vi o nome do morto: Victor Jara. Foi morto logo depois do golpe, no Estádio Nacional. Morto não, ele foi massacrado.

Fiquei sentado, fiz minhas orações e na cabeça, ele cantarolava "Te recuerdo amanda", "Cigarrito", entre tantas canções que fizeram parte da história do povo chileno. Lembrei das tantas pessoas que eu tinha entrevistado, para meus livros, e que tinham sido presas, logo após o golpe. Todos eram sobreviventes. Ali, bem perto, estava a lista dos desaparecidos, gravadas em uma enorme pedra. Uma pedra de lembrança, saudade e dor.

Poucos dias depois, acompanhei o comício do candidato socialista, Ricardo Lagos. Ele disputava com um tal Lavin, ligado ao grupo de Pinochet. Estava quase dando um empate técnico, e todos temiam a volta por cima da turma do general. Na alameda principal de Santiago, umas duzentas mil pessoas. Lá pelas tantas, a multidão começou a saltar. Todos cantavam:

"Y va saltar/y va saltar
y quién no salta/es Pinochet".

Uma maré humana começou a saltar. Crianças, velhos, grávidas. Quem não saltasse era Pinochet. Eu dei uns pinotes que vou dizer.

Ricardo Lagos ganhou a eleição. Estava em São Paulo, e liguei para uns amigos chilenos. Era uma festa completa no país. Era o fim de um ciclo.Numa tradução fajuta, a frase mais gritada por um dos amigos foi a seguinte:

"Mandamos o puto embora".

Após o telefonema de Daniel, a conversa com o jornalista, fiquei um bom tempo lembrando daquela tarde, escutando Victor Jara, no cemitério de Santiago.

Não sei quem vai colocar flores no túmulo de Pinochet, mas cá entre nós... coitadas das flores.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

O dia em que cheguei a Esperança

Já são vários dias na estrada, acompanhando uma Caravana do Unicef. Chegamos, a troupe de artistas faz uma festa imensa com a criançada, palhaços e pernas-de-pau arrancam sorrisos generosos, vou tomando nota de tudo, entrevistando gente. Após a festa, o prefeito recebe um selo de "Município Aprovado", e seguimos para outro canto. Já fomos para Bananeiras, Picuí, Araruna, voltamos para Bananeiras, hoje chegamos em Esperança. Isso só na Paraíba. Depois vem Pernambuco e Alagoas, que conheço bem. Escrevo de Picuí, porque as lan house de Esperança e Bananeiras são lentas, e não dá para postar nada.

O fato é que eu estava louco para chegar a Esperança. Só o nome da cidade valia a pena. Já imaginaram a pergunta:

"Você é de onde?"

"Esperancense".

Eu faria uma licença poética e responderia:

"Sou esperançoso".

Chegamos a cidade hoje, às 9h04 e pensem num sol do Semi-Árido paraibano. Num lugar simples, o prefeito João Delfino e quase todos os vereadores. Um carro de som foi designado para acompanhar a Caravana. Tocava o "Tema da Vitória", aquela música quando o Ayrton Sena ganhava, o que atrapalhou deveras o trabalho musical da Banda Sinfônica Prefeito Luís Martins de Oliveira, fundada a 1 de dezembro de 1973, atualmente com 24 músicos. Passamos pelo Supermercado Esperança, Sapataria Esperança, Esperança Temperos, e finalmente o Educandário Santa Catarina de Alexandria, uma santa que inclusive eu desconhecia por completo.

Alguém foi designado para ir soltando fogos, o que me preocupou intensamente, porque tinha muita criança no caminho. Chegamos ao Ginásio Vovozão. Parecia dia de clássico. Estava lotado até a tampa. Os palhaços e pernas de pau fizeram a alegria da criançada. Fiquei anotando tudo. Fiquei sabendo que em 2001, apenas 89,01% das mulheres faziam pré-natal. Ano passado, o número passou para 97,35%.

São muitos dados bacanas que o Unicef acompanhou e cobrou, antes de fornecer o afamado Selo, que dá um cartaz danado para a cidade.

Mas o meu negócio é gente. Conversei com o senhor Thierry Walquer, aluno da terceira série. Antes que me perguntem, o nome dele é esse mesmo, igual ao francês que lascou a gente na Copa. Ele resolveu, por conta própria, fazer uma rádio na Escola Municipal Professora Maria Lopes, e conseguiu o apoio da diretora. Todo dia, na hora do recreio, que aqui é 15h30, tem o programa dele, do Thierry, que tem um sorrisão imenso de bom. O camarada, um gordinho simpaticíssimo e voz de locutor, coloca músicas, dá recados, avisos sobre a coleta seletiva de lixo. E não tem esse negócio de construtivismo , piagetismo, nada, é na raça mesmo.

"Meus colegas estão adorando", diz.

Das 27 escolas do município (5.100 alunos), 17 já têm conselhos escolares registrados. Recebem verba diretamente do MEC, sem passar pela mão do Prefeito, um tal Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), do Governo Federal, que eu nem sabia existir. Aliás, cada vez mais que viajo pelo interior do Nordeste, especialmente o Semi-Árido, concorco mais com meu amigo Inácio França, jornalista da maior estirpe. Há brasis que não se encontram e nem sabem um do outro. Tem ricaço no Recife que gasta R$ 3 mil num almoço naquele restaurante Leite, e tem escola, por aqui, que faria uma revolução na cidade com metade desse dinheiro.

Foi uma manhã inteira de apresentações. Vi o Corpo de Danças Xique-Xique, um aluno de uma escola tocou flauta doce (a insuperável Asa Branca, música predileta de qualquer tocador de flauta doce), vi os alunos de uma creche dançarem, vi os alunos da APAE se apresentarem, vi a Capoeira de sempre, vi o coral "Cantando Esperança".

Vi mais que isso. Vi professores com os olhos brilhando com seus alunos, vi gente simples bem vestida, vi mães contentes porque os filhos estão sabendo ler, vi uma escola entupida de livros já para o ano que vem.

Saímos do Vovozão depois do meio dia, o sol nos cascos. O negócio é cansativo, não dá tempo nem chegar, fazer amizades, que o ônibus do Unicef já está saindo para outra cidade. Até dia 23, serão mais 28 cidades, creio, que andam se enchendo de esperança.

Vou correndo, que a Caravana está saindo. Perdão pelos erros, é que estou escrevendo às pressas, nem deu tempo falar do agente de saúde de Picuí que quase me fez chorar, mas isso é coisa para outro dia, quando a poeira baixar.

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Peripécias de um eterno viajante

Essa minha paixão por mapas e viagens não termina nunca. O objetivo era chegar em Bananeiras, no interior da Paraíba, algumas dezenas de quilômetros depois de Campina Grande, para mais um trabalho de campo - acompanhar a caravana "Selo Município Aprovado", um projeto do Unicef.

Para começar, perdi o último carro para Campina Grande. Fiquei no TIP a ver navios. Vendedor de passagem, no Brasil, só sabe dizer duas coisas: "O último carro saiu agorinha", seguido do famoso "sei não".

É preciso ir a uma banca de revistas para comprar um mapa. O vendedor diz que não tem mapa do Nordeste. Fuça-se as revistas, e lá está, um belo mapa do Nordeste. É fundamental não falar nada, porque ele está certo. Não tinha mapa nenhum, eu é que encontrei.

É preciso retornar com o mapa, mostrar a gloriosa cidade de Bananeiras. Marca-se a cidade com um círculo, de caneta preta.

"Amigo, preciso ir para esta cidade. Não posso passar a noite no TIP" (para não recifenses: Terminal Integrado de Passageiros, e fica no inferno da pedra).

O camarada lembra de um ônibus para Caruaru, depois um para Campina Grande, saindo uma da madrugada. O ônibus sai 21h30, dá tempo tomar uma sopa bem quente, com pão, a R$ 2,50.

Embarca-se. Todos os relógios do TIP estão quebrados. O terminal é sujo e abandonado. Ao lado, é importantíssimo viajar um jovem com seu filho pequeno, de até um ano. O menino me olha e começa a chorar. Lembro que preciso aparar a barba. O pai mal sabe o que é uma chupeta. Daqui a pouco, o menino está soltando berros. Antes de Caruaru, já quero saltar com o carro em movimento.

Enfim, na segunda rodoviária, busca-se o ônibus para Campina Grande. Só duas horas da manhã. Às 4h estarei em Campina Grande. Com sorte, toma-se um café com a turma da viagem. Perambula-se pela rodoviária. Compra-se uma revista. É meia noite, e de madrugada, o ônibus demora vinte dias para chegar.

Banheiro a R$ 0,50, café, leitura. Depois, um Todinho, outro café. Aparece uma lan house. Em todo canto do Nordeste agora tem lan house. Postagem no Blog. Ao meu lado, dois computadores ligados, todos no Orkut.

Algumas mulheres dormem no cimento, esperando algum ônibus. Duas lanchonetes estão abertas, com aquela conversa sem rumo das madrugadas em rodoviária. Estava escrevendo umas besteiras no velho caderno, um bebinho quis moeda. Ah, amigo, você já bebeu demais, penso em dizer, mas dou uma moeda. Que bafo!

Descubro que tenho uma tia e duas primas em Caruaru, mas é o fim da picada ligar tarde da noite para ficar só um pedacinho. A TV está ligada, num volume altíssimo. O Jô Soares ainda acha que tem alguma graça.

É preciso seguir. Bananeiras, me aguarde. Acabei de olhar no mapa. A cidade fica entre Solânea, Pirpirituba, Cacimba de Dentro e Belém.

Lembrei agora que meu pai costumava usar mapas, nas muitas viagens familiares. O cérebro da gente é um mistério. Faz associações malucas. Ontem mesmo, lembrei de uma sova que levei no Natal, onde minha carreta foi quebrada sem pena. Agora estou lembrando dos mapas das viagens da minha infância. Ah, acabo de lembrar que meu pai tinha um mapa do Campeonato Brasileiro. A cada rodada, marcava religiosamente os pontos dos times. Eu achava aquilo o máximo.

Deve ser associação livre, o que às vezes ocorre com o ser humano, e até com o ser desumano.

Ou é só lembrança mesmo, e a gente inventa de complicar. Mas a imagem do mapa é mais bonita que a da carreta. Fico com o mapa e vou por aqui, tangendo meu destino.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Na estrada, mais uma vez

Estimados leitores,

Estou de novo na estrada, para acompanhar a "Caravana Selo da Cidadania", promovido pelo Unicef/Escritório do Recife.

Tão logo apareça uma lan house na região de Bananeiras ou Ararunas, na Paraíba, mandarei minhas notinhas habituais. Depois seguiremos para Esperança, e acho que é o melhor lugar do mundo para se escrever crônicas de viagem. "Estou aqui em Esperança, com meu grau de esperança um palmo acima da média", pode ser o início do próximo texto. Vamos ver. Tudo vai depender das paisagens e das caras que vou encontrar, das histórias, das palavras e dos silêncios, fora o cheiro na venta.

Enquanto isso, informo que o famoso evento do "Amigo Secreto", típico e obrigatório do mês de dezembro, está ajudando muito o autor a alavancar as vendas de "Estuário". Só na semana passada, vendi 13 exemplares. Seu Vital, no Poço da Panela, vai vendendo bem também. Não esqueça do seu amigo secreto, heim?

Frase da minha coleção:

"Quando alguém diz "eu tenho alma", é como se o rio dissesse: "eu tenho água".
(Bert Hellinger - anotado no mural de um consultório)