quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Viagem ao interior, inauguração de uma sala de leitura, os bêbados de sempre, violeiros etc (final da história em dois capítulos)

(Continuação da crônica de ontem, favor ler para entender)

Pois bem, chegou a hora da inauguração. Seu Paulino, muito cuidadoso, fez ata, organizou tudo. Fui chamado para a mesa sob a alcunha de "jornalista e escritor", o que me dá duas profissões na vida, e me exclui da de professor, ou educador, como queiram. Como sempre, fiquei suando frio, especialmente com o tema a ser falado. Rabisquei no meu caderninho algumas coisas para falar, inclusive a pérola "com um livro, você nunca está sozinho", que li não sei onde. Iria falar que cheguei ao Recife em 1987, apenas com uma caixa de livros e hoje tenho uma biblioteca, mas desisti de imediato. Alguém iria sussurrar no ouvido do outro:

"Esse camarada veio foi de longe para falar besteira, né?"

De formas que falei sobre a importância a leitura e lembrei que algo importante na Sala de Leitura, era a homenagem que estavam fazendo às antigas professoras. Três delas estavam presentes, e ganhei sorrisos. No final, aplausos tímidos e fiquei livre para curtir a noite.

Seu Virgulino Pereira da Silva, o aluno mais velho da escola, pediu para falar, e falou. Não anotei nada e agora não lembro o que ele disse. Perdão. Depois, Seu Paulino foi lendo o nome do Conselho Gestor. Dizia o nome e o apelido da pessoa. "Tué", "Mema", "Pitó" e Edmilson "Mimoso" eram alguns dos novos conselheiros. Louvados sejam.

Após a cerimonia, com "Cheiroso" passando para cá e para lá, chegaram os violeiros Edwaldo Zuzu e Severino Diniz. Também apareceu outro bebinho exaltado, que não me ocorre o nome. Este camarada daria muito trabalho, ao final da noite.

A cantoria rasgou a noite, que tinha uma lua no princípio de minguante. Anotei alguns trechos, no calor da hora:

"É pelo olho do livro que se lê o mundo" (Diniz).

"Paulino não é Paulo Freire, mas é seu sucessor" (Zuzu).

"Quem bota um livro na alma leva o mundo na mente" (Diniz).

"Escreve com duas coisas, o lápis e o coração". (Não anotei o autor".

Apareceu dona Nazinha, juiza perpétua da festa de Cachoeira, que ocorre dia 12 de dezembro, pela graça divina. O filho, Luís Antônio, era o que já estava fazendo concorrência com "Cheiroso". Pediu para os violeiros puxarem um mote sobre sua mãe. Aí foram outros quinhentos.

Após a cerimônia, ficamos jogando um dominó cheio de blefes, com Cabeção roubando feito o cão. A cachaça de cabeça comia no centro, acompanhada de queijo e bolacha cream cracker. Lá pelas tantas, Luís Antônio estava virado pelo avesso, quando resolvemos que ele só iria embora se acabássemos o dominó. Dito e feito. Após uma imensa peleja, ele entrou no carro de Seu Paulino. Como gosto de aventura, fui com eles, levar nosso camarada em casa. No caminho, ele disse que criava cinquenta perús, e eu caí na besteira de dizer que ele era um "Perucultor". O cara ficou brabo, me esculhambou até a nona geração. Sobrou até para Seu Paulino, um santo homem.

Voltamos com noite alta. Deu somente para traçar outra dose e entrar debaixo do cobertor. O friozinho do Agreste é um ar-condicionado no três. Dorme-se bem por ali, em Cachoeira do Taepe. Antes de cochilar, ainda lembrei dos violeiros. Concordei com eles:

"Isso aqui não é o céu, mas passa tirando um fino".

terça-feira, 28 de novembro de 2006

Viagem ao interior, inauguração de uma sala de leitura, livros, um bêbado chamado cheiroso e outras histórias - Parte I

Cachoeira do Taépe fica 13 quilômetros a Noroeste de Surubim. Não sei se é Noroeste, mas fica sendo, porque quando a gente lê algo dizendo "a Noroeste de", já se sente imediatamente bem localizado. Para chegar lá, é preciso ir até a avenida Caxangá e pegar uma vaga numa daquelas Toyota imensas, que cabe umas trinta pessoas, graças às mágicas diversas. A viagem custa R$ 7,00.

Na viagem acontece de tudo. No meu caso, peguei uma família que vinha de um casamento, na noite anterior. Era gente pra dédéu. Lá pelas tantas, descobriram que uma "bolsa preta" tinha ficado na Kômbi, e foi um deus nos acuda. Depois de muita discussão, tive que intervir. Sugeri parar a Toyota, ligar para o proprietário da Kômby, um amigo da família, e saber se a tal bolsa tinha ficado mesmo. Paramos em Carpina, creio, o rapaz desceu e confirmou. A bolsa estava mesmo na Kômbi. Respiramos aliviados, eu mesmo fiquei muito mais leve. Ele voltou para o Recife, a Toyota ciscou para frente. Mais na frente, fiquei sabendo que a família era toda de cerarenses, e que moram num bairro vizinho ao da minnha mãe. O senhor ao meu lado apresentava fortes dores na coluna vertebral.

A gente passa por Paudalho (à direita, Chã de ALegria e Glória do Goitá; à esquerda, Vitória de Santo Antão, se não anotei errado). Perto de Carpina, tem o Museu da Cachaça, vale a pena dar uma olhada e uma provada. Fica em Lagoa do Carro. O camarada ao meu lado teve um colóquio comigo, insistindo que era "Lagoa do Carmo", mas ele confundiu uma santa com um objeto. Ficou provado cientificamente, pelo dono da Toyota, que a cidade se chama Lagoa do Carro. Com dono de Toyota não se discute.


Mais à frente, você pode pegar à direita para Arassoiaba (estava escrito assim, na placa), Nazaré da Mata ou Timbaúba. No caminho, pode-se ler placas as mais diversas, como "vende-se galinha caipira"; "Manteiga da terra"; "Cachaça de cabeça" etc. Viajando de carro, minha sugestão é dar paradas homeopáticas e saborear tudo, além de comprar coisas para os amigos. Lá pela frente, algo tranquilizador, que é uma placa gigantesca:

"Fique tranqüilo: Limoeiro tem Unimeds".

Nada como ficar tranqüilo com uma simples frase.

As fazendas estão cheias de mensagem á turma dos Sem Terra. "Fazenda Sonho Meu"; "Fazenda "Meu refúgio", "Fazenda Meu Sossego", e por aí vai. Tudo é "meu".

De Surubim, você pode ir para Machado ou Timbaúba. À esquerda, você vai chegar em João Alfredo. No meu caso, fiquei na rodoviária, esperando o Thiago vir me buscar. Achei caríssimo ir de moto até Cachoeira do Taepe: R$ 6,00 - quase o preço da viagem de Toyota. Pechinchei por cinco pratas, mas o sujeito não quis acordo, deixei de lado.

Como ninguém é de ferro, pedi uma cerveja e comecei a anotar minhas bobagens. Lá pelas tantas, começou a tocar um brega clássico, "Sara/onde é que você se esconde", e lembrei imediatamente do tio Paulo, irmão da tia Flocely. Nos últimos tempos de vida, gravei Sara numa fitinha cassete, e ele ficava escutando várias vezes. Eu tinha que voltar a fita muitas vezes. Grande tio Paulo, o maior contador de histórias que já vi.

À noite, aconteceria o grande evento: a inauguração da Sala de Leitura José Sebastião, de Cachoeira do Taepe. Fui convidado para falar em cima de um mote invocadíssimo: "A lavra da palavra e o livro como fruto". Eu me meto em cada fria, que vou dizer.

Os preparativos foram imensos, mas destaco aqui o jantar. Amigos, que rango! Galinha de capoeira, cuscuz, ovo estrelado, etc. Destaco a presença do seu Virgilio Pereira da Silva, de 97 anos, o aluno mais antigo da escola local, que agora se transformava em sala de leitura. Forte como um touro, vigoroso, conversador, ele disse que as comidas de antes eram saudáveis, hoje comem muita porcaria. Pela cara, ele não precisa de Viagra.

Depois de alimentados, descemos as escadas, passamos pelo descampado e chegamos ao local da inauguração. Uma mesa na calçada alta, cadeirinhas brancas para os convidados, gambiarras iluminando o terreiro. Do outro lado, a igreja. Do lado de cá, a Sala de Leitura. os vira-latas brincavam o tempo todo, e quando me descobriram (outro vira-lata), fizeram a festa. Brincamos um bocado. Ao lado, um boteco bastante movimentado. Um camarada se movimentava muito, muito mais bicado que todos os meus amigos no Carnaval. Estava sendo sempre empurrado por um vento forte que não existia, e parecia querer cair por qualquer motivo.

"Já tomasse alguma hoje?", perguntei, provocando.

"Cheiroso já tomou muitas, desde cêdo".

Pois bem, daqui a pouco, falo sobre a inauguração, propriamente dita, e o final da festa, quando fomos levar outro bêbado em casa. Foi um trabalho dos diabos. Ele cria perús, e fui inventar de dizer que o cara era "Perucultor". Amigos, quase apanho.

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Conversinhas sobre pessoas ocupadas e o amor aos livros, antes de mais uma viagem

Uma leitora mandou um comentário, reclamando que estou demorando a atualizar o Blog, pois gosta de ler logo de manhã etc. Não deixou o nome, de formas que nem posso responder diretamente. Mas aqui vai uma informação, minha cara leitora: a vida de professor, numa escola de Arte e Tecnologia, não é lá essas tranqüilidades todas não. Tem o planejamento da disciplina, a avaliação (a cada três meses), os planos de aula, as reuniões semanais, enfim. Ah, tem o principal, que são as aulas. E vejam bem onde me colocaram: a disciplina que leciono se chama “Oficina da Palavra”. É uma responsabilidade e tanto. Palavra para mim tem algo de sagrado, e me esforço para ser um educador decente.

Some-se isso ao fato de estar me mudando (hoje, mais uma viagem) do Poço para o Cabo, a uns 40 quilômetros do Recife, o que é uma trabalheira danada. Informo que não tenho carro. Fora isso, tenho um trabalho jornalístico-esportivo com meu amigo Inácio França, algo da maior responsabilidade cívica e espiritual, que é um Blog sobre o nosso glorioso Santa Cruz Futebol Clube, que precisa ser atualizado diariamente (aos curiosos: www.blogdosantinha.com). O clube vai mal, mas nosso Blog está bem, com uns 500 acessos por dia, vocês nem imaginam como tem gente maluca no mundo, apaixonada por um clube de futebol, o que é meu caso e o do Inácio.

De formas que estou sendo, como dizem por aí, uma pessoa ocupada.

Cá estou, sexta-feira à noite, escrevendo estas poucas linhas para informar que gostaria de escrever muito mais, de preferência todo dia, mas para escrever algo decente, e publicar no Blog, é preciso tempo. Mais que isso, é preciso alguma idéia razoável e um texto que tenha algo a acrescentar. Não dá para ficar postando bobagem, porque a turma pega a parte dos comentários e desce a lenha. Lembro que todos os comentários vêm diretamente para minha caixa de email, de formas que é muito ruim o camarada abrir o email de manhã e receber uma sova ou uma vaia. Os leitores têm sido muito bacanas comigo, mas é preciso ficar esperto. Nada pior que um texto ruim, burocrático, só para constar. O leitor é sabido, vai procurar outras coisas na Internet.

Fora a escola, as aulas, o Blog do Santinha e a mudança em curso, tenho atividades paralelas. Aqui-ali, uma palestrinha sobre Jornalismo e Literaruta, uma oficina de alguma coisa, um seminário, um debate, um free-lancer para ganhar uns trocados a mais, e por aí vamos. Amanhã mesmo, estarei viajando à gloriosa cidade de Cachoeira do Taepe, perto de Surubim, para a inauguração de uma Sala de Leitura, projeto encabeçado pelo glorioso José Paulino, pai do Thiago, que foi meu aluno de Jornalismo. Ele, o pai, quer que eu fale, na inauguração da Sala, sobre a questão da leitura, dos livros etc. Depois, vai ter cantoria, o forró vai comer no centro e desconfio que a turma vai beber bem. Vai ser a melhor parte.

Esse universo dos livros é algo encantador. Entrar numa livraria me acalma. Entrar em um sebo me faz perder a noção do tempo. Fico horas em pé, acocorado, de lado, subo em banquinhos, escadas, vou descobrindo, colocando meu focinho para funcionar. Sou bom para fuçar e encontrar coisas boas. Foi por conta própria que descobri “O homem sem qualidades”, do Robert Musil. Foi pelo meu instinto literário que comecei a ler o velho Juan Carlos Onetti, há muitos anos, quando era vendido a R$ 3,00 em uma daquelas livrarias safadas de São Paulo. Agora o Onetti está saindo em edições de luxo, mas o conheci quando amargava um purgatório básico, ali na rua Augusta.

Quando vou à casa de algum novo amigo ou quando tenho que entrevistar alguém, faço a pergunta em poucos minutos: posso ver tua biblioteca? Ali, na biblioteca, está um pedaço da alma da pessoa.

Costumo dizer que tenho poucas coisas de bens materiais, mas tenho um bem que fui juntando aos poucos, entre compras em sebos, livrarias, presentes – uma boa biblioteca. Boa não, Samarone, deixemos de modéstia, é ótima mesmo. Estão todos lá, os amadíssimos, aqueles que fizeram a humanidade sorrir, sofrer, que mostraram os abismos da alma e o céu sem limites da criação. Há, o velho Guimarães, Porchia, Juarroz, Sábato, Soriano, Píglia, Rilke. Ah, sem nomes, por favor...trata-se mesmo de uma legião de anjos.

Sim, cometi algumas gatunagens literárias, mas são folhas passadas. Não fui um larápio contumaz. Livreiros de todo o Brasil e de alguns países latino-americanos: perdoem meus atos de apropriação indevida de produtos destinados à venda!

Não sei ainda o que vou falar na inauguração da sala. Sei apenas que não consigo me imaginar sem livros por perto. Sempre li, sempre lerei, apaixonadamente. Lembro do sentimento de deslumbramento que me tomou, quando li “Papillon”, ali pelos 12 ou 13 anos. Desde então, virei um leitor. Depois esbarrei em “Justine”, do Lawrence Durrell, e por acaso, nesta biblioteca meia boca, da minha casa, tinha todo o “Quarteto de Alexandria”. Até hoje, compro edições de “Justine” e releio como quem toma um bom vinho. É misterioso e belo o momento em que você descobre que é, de fato, um leitor.

Lembro que cheguei ao Recife com 18 anos, algumas roupas, muitos sonhos, e uma caixa de livros. Estou agora com 37, e tenho uma biblioteca. Na escola em que ensino, estou ajudando a montar uma biblioteca. Vou escolhendo pacientemente cada um, pensando nos jovens. Este sim, este não, este compraremos mais tarde, este tal aluno vai adorar, enfim. Então vejo que já li um bocado, e fez muito bem para minha alma.

Não tem aquele negócio chatíssimo e petulante do “vim, vi e venci”?

Eu acho melhor assim: “vim, li e reli”.


ps. Quem quiser doar livros para a Sala de Leitura de Cachoeira do Taepe "José Sebastião", pode entregá-los no Box Sertanejo, que fica no Mercado da Madalena. Diga que é para a Sala de Leitura do professor Paulino.

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

O retorno terno

Ah, nada como uma nova casa e a nova vizinhança! No meu caso, é um reencontro com uma vizinhança que deixei para trás em 1994, naquele rumoroso dia em que viajei para São Paulo, onde fiquei por seis bons anos.

À esquerda, um depósito de material de construção, nada a declarar. Um depósito de material de construção é um depósito e ponto final. À direita, pasmem, infelizmente, uma escola. Nunca pensei que fosse dizer isso: como é horrível morar ao lado da Escola Estadual Luisa Guerra, Deus do céu!

Tem aulas os três turnos. Daqui escuto uivos, gritos, e parece que na escola tem tudo, menos aula. Daqui da janela, posso ver as aulas no primeiro andar. Olho, reparo, busco um lenço para enxugar as lágrimas. Os jovens não estão nem ai, a falta de professores é constante. Os que dão aulas, dedicam um bom tempo a escrever coisas intermináveis, no quadro branco, aquele negócio que é um tédio completo para quem está na cadeira. Outro dia, vi uma professora de Português explicar o que era um verbo "intransitível".

Um amigo disse que tem um termo na Medicina que se chama “poliesculhambose”. Essa escola é um exemplo. A cena mais normal do mundo é as turmas serem liberadas lá pelas 10h da manhã. Outro dia, soltaram uma bomba de São João numa sala. A providência da diretora foi de uma pedagogia incrível: liberou todo mundo, e foi a maior festa.

Pela graça divina, a escola vai embora no próximo ano. Volta ao seu lugar de origem, após uma interminável reforma. Voltaremos a ter silêncio. Minha tia, que foi a primeira diretora, há muitos anos, acompanha meio desolada o rumo que sua escola tomou. Essa escola me parece ser uma pequena metáfora do que estão fazendo com a Educação no Brasil, mas isso não é tema para minha cronicazinha de hoje.

Mais adiante, a casa de Luizinho e Neide, depois da de Jorge, filho de Biliu, que morreu quando eu morava aqui, em 1993, creio. Tem uma bandeira do Sport pendurada na janela, objeto perfeitamente desnecessário em logradouro público. Do lado de cá, depois do depósito, a casa de Detinha, as filhas e agora um bocado de netos e netas. Virando à esquerda, o glorioso Centro das Mulheres do Cabo, uma ONG conhecida e muito atuante. Daqui a uns dias, vou levar meu curriculum, para ver se descolo alguma oficina de literatura ou coisa parecida. Virando à direita, temos uma pequena jóia que é o Fernando, o sujeito que conserta coisas diversas. Mais que isso: ele conserta máquina de datilografia. Conserta máquinas e bebe uma garapa incrível.

Foi lá que encontrei esta maravilha, chamada Olivetti Lettera 25, não sei o ano. Ele começou me pedindo oitenta reais, e tivemos uma seqüência de 12 assaltos e julgo que ganhei por pontos. Lá pelo terceiro round ele baixou para setenta mangos. Fui de esquerda, de direita, apliquei-lhe uns jabs, me esquivei várias vezes, mandei uns cruzados de esquerda (meu forte, Joãozinho Peruca sabe disso), até que o negócio ficou em R$ 60,00. No último segundo, baixou para R$ 50,00 e o gongo tocou.

Ela está aqui, e belezoca. Estou passando todos os poemas a limpo nela, graças à pressão psicológica do Gustavo, e batucando outras besteirinhas. Fico no primeiro andar escutando aqueles plec plec plec e lembro do curso de Datilografia, que fiz em Fortaleza, há muitos anos. A primeira aula eu lembro bem: asd asd asd asd, até encher umas folhas. Então, eu nunca mais na vida parei de encher folhas.

Eu adoro o som da máquina de escrever. Faz bem para a alma. Quando comecei a estagiar no Diário de Pernambuco, a redação ainda era movida a máquina de datilografia. Eu gostava daquela confusão, aquele ruído das máquinas. Redação sempre foi uma coisa barulhenta, animada, divertidíssima. Os computadores chegaram acompanhados de uma nova ordem – as coisas ficaram mais silenciosas. Acostumado com as máquinas de ferro, eu batuco com uma certa força no teclado. Acho que é uma tentativa inconsciente de escutar a música dos primórdios. Vou perguntar a Ana e Wal, psicólogas da minha escola, se uma coisa tem a ver com outra.

Na última vez que estive em Fortaleza, encontrei a minha velha Remington, aquela mesma que usei durante todo o curso de Jornalismo e Educação Artística. Ela torrou a paciência de muitos colegas de quarto, na Casa do Estudante Universitário (CEU). Fiz o contrabando para cá, sem que minha mãe percebesse.

Lembro que uma certa feita eu tinha que entregar um trabalho no dia seguinte, os colegas de quarto estavam dormindo, não tive dúvidas. Fui ao banheiro da CEU, levei a cadeira, a máquina, fechei a porta e fiz o trabalho todinho, madrugada adentro. Tem hora na vida que não adianta – ou o sujeito tem raça, esfrega a venta na vida, ou fica.

O Fernando cobrou R$ 25,00 para consertar, limpar, botar óleo, deixá-la tinindo. Tivemos uma nova guerra civil, que só terminou quando ele baixou para R$ 15,00. Isso é uma forte herança materna. Minha mãe pechincha até em loja de R$ 1,99.

À noite, passam uns vigilantes com uns apitos. Eu não gosto de escutar apito três horas da manhã, porque acordo e lembro que o Santa Cruz caiu para a Segunda Divisão. Minha tia disse que é para eles, os vigilantes, mostrarem que estão trabalhando. Sim, podem trabalhar meus amigos, mas precisa apitar às três da madruga?

Será que estou vivendo aquele negócio do Eterno Retorno? Volto a viver com a tia que me acolheu, quando saí da Casa do Estudante. Eu estava começando no Jornalismo, minha bagagem só tinha mesmo livros, ela tinha acabado de se aposentar, estava morando sozinha, fazia caminhadas e nadava.

Aqui, neste primeiro andar, vou trabalhar pra valer, nos próximos meses, para terminar meu terceiro livro-reportagem. É o último, fruto das minhas pesquisas sobre as ditaduras e outras coisas. Adoro esse negócio de "Trilogia". Mas esse tem também uma história de amor no meio, talvez outras coisas, vamos ver, é surpresa, tomara que eu consiga costurar bem as muitas histórias que se cruzam.

É fascinante saber que foi aqui, em 1993, que comecei as pesquisas para este livro. Lembro que eu voltava das entrevistas apaixonadamente encantado com as histórias de vida de uma geração que lutou contra a Ditadura, e mostrava alguns trechos das gravações para a tia. Ela se emocionava e compartilhava tudo, dando suas opiniões.

Não, não é eterno retorno o que estou vivendo. É o retorno terno, como bem diz o querido Rubem Alves.

domingo, 19 de novembro de 2006

Alguns motivos para comprar a segunda edição de “Estuário”



1. Livro é um ótimo presente de amigo secreto. Como os livros estão custando uma nota preta (nunca entendi essa expressão “Custando uma nota preta”, mas tudo bem, isso não vem ao caso agora), você dá um presente razoável e gasta apenas R$ 25,00;

2. Se você é leitor novo do Blog, vai poder ler uma coletânea dos textos publicados no JC On Line, em 2004 e 2005;

3. Se você é leitor velho das crônicas deste que vos escreve, vai se lembrar de algumas coisas que gostou e outras que achou horríveis;

4. A edição do livro, a cargo dos amigos do Ateliê, ficou supimpa e foi bastante elogiada;

5. A apresentação, feita pelo senhor João Valadares, ficou tão boa, tão empolgante, que ele comentou crônicas que não apareciam no livro, o que não deixa de ser um fato inédito no mercado editorial brasileiro;

6. O autor ganha um percentualzinho, que dá para ir juntando e pagar à Editora Bagaço, que fez a loucura de colocar a edição quase inteira nas minhas mãos. Resultado: já vendi um bocado de livros e gastei tudo com diversões;

7. Como diz o Monteiro Lobato, “um país se faz com homens e livros”. Sim, mas... e as mulheres, onde ficam nessa?

Mais tarde, depois do merchandising, boto crônica nova no ar.

Ah, “Estuário” está sendo vendido na mercearia de Seu Vital, defronte à Igreja do Poço da Panela, e na Livraria Imperatriz (qualquer uma). Se não encontrarem na Imperatriz, me avisem, que tomo as providências cabíveis e necessárias.

O autor também vende avulsamente o livro, basta mandar um comentário neste Blog, informando do interesse, acompanhado de email, que entrarei em contato.

Quem for de outro estado, melhor eu mandar o livro como encomenda, porque o Sedex está os olhos da cara (outra expressão que não entendo) - mais caro que o próprio livro.

Ps. a capa do livro foi escaneada pelo Renato, a quem agradeço muito.

O autor.

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Tocando em frente

Vou tocando em frente, levando as coisas como um boiadeiro leva sua boiada. Vou aqui, ruminando bovinamente alguns sentimentos, tentando simplesmente viver, sem querer tanto a experiência de tudo. Essa de amadurecimento também cansa. Quero esverdear, pronto.

Um leitor comentou que estou ficando melancólico, como se isso fosse um problema. Não foi um comentário, foi quase uma denúncia. Meu amigo, obrigado pelo comentário, mas cada dia que posto uma nova crônica, estou vivendo algo distinto. O último texto deste Blog, postei de uma casinha de fim de rua no Cabo. Não achei melancólico, porque tinha um certo lirismo. Era a tal melancolírica, que fala meu amigo Gustavo. Agora, escrevo de uma escola de Arte e Tecnologia, no Recife Antigo. De lá pra cá, muita água passou debaixo da ponte. Ao meu lado, alunos escrevem redações e esperam minhas correções. Tudo se entrelaçando. Pensando bem... qual o problema com a melancolia?

Vou aprendendo outras coisas que pareciam não ter importância. Já sei aferir pressão, graças à ajuda da amada Bebete, médica do Posto de Saúde do Poço da Panela. Comprei um tensiômetro e um estetoscópio, e estou com ares de médico. Aprendo a ler histórias para minha tia. Na manhã do feriado, li para a amada Flocely, "As três maçãs", uma das muitas coisas lindas de "As mil e uma noites". Ler histórias não é fácil, acreditem, estou tentando.

Outro dia aprendi a calar mais. Certas coisas não precisam ser repetidas para os amigos. Eles também cansam, enchem a paciência.

Primário, secundário, Universidade, essas coisas são fáceis. Difícil mesmo é este tocar em frente, saber a hora de algumas coisas, não alimentar tanto as angústias da vida, e saber que nem tudo é esta alegria. Há dias, sim, em que tudo vai mal, mas há dias que descem como dádivas. Há dias como o de hoje, em que tudo está por ali, a ponto de chegar - ou não.

Não sei quando uma coisa cicatriza. Apenas vem aquele sentimento de que estamos sarados, e não dói mais. Deve ser o aprendizado da cura. Não sei também quando a gente perdoa. Outro dia, perdoei meu pai por algumas coisas, e acho que o perdão veio para mim mesmo, de forma redobrada.

Logo que comecei a escrever crônicas, algumas pessoas me abordavam e diziam que liam, acompanhavam, gostavam do meu trabalho. Eu geralmente ficava sem graça, vermelho, até que um dia aprendi algo simples: a receber um agradecimento. Depois, tudo ficou mais simples.

Vou por aqui. Hoje não me ocorreu uma inspiração maior, nem menor.

Há mesmo os dias em que apenas empatamos com a vida, mas há um grande truque nisso tudo: a vida continua sendo vida.

domingo, 12 de novembro de 2006

De volta para um aconchego

Rua Hercilia Cavalcante, 65, no centro do Cabo de Santo Agostinho. A casa onde passo a viver fecha a rua, de sorte que não corro o risco de ser atropelado. Moro no primeiro andar, após subir uma escada com degraus finos. Sempre acho que vou tropeçar, mas não aconteceu ainda. Da janela lá de cima, posso ver e escutar o barulho imenso dos alunos do colégio estadual Luisa Guerra. Caramba, a escola é uma zona!

Moro com a amadíssima tia Flocely, com seus 79 anos e cabelos branquinhos, Renato, o filho de Rosa, que é o braço direito de tia. Uma figura de imenso destaque neste novo lar é um camarada chamado Bambam, um vira-latas de quatro anos, o reizinho da casa. Não tenho medo nenhum da saúde de tia. Tenho um pavor existencial de uma eventual fuga do animalzinho, ou de uma morte precoce. Tia sofreria demais.

Esta semana, aproveitando a troca do portão, o camarada fugiu. Cheguei em casa e a notícia chegou aos ouvidos de tia, que ficou arrasada. Ele foi localizado por mim e Elton (marido de Rosa) numa rua aqui próximo. Não esboçou reação e voltou para casa balançando o rabo.

Estou fazendo o reconhecimento do terreno aos poucos. Ontem dei uma boa caminhada, vi a academia "Sinta-se bem", alguns mercadinhos, o açougue, barracas diversas, e já localizei o meu boteco, que é o do Mário. O nome dele é Amaro, mas ele acha o nome horrível, prefere ser chamado de Mário.

"Como é que um pai bota o nome do filho de Amaro?", pergunta. Eu nem acho essas feiudices todas.

Adapto-me às rotinas da nova casa. O café da manhã eu não ligo muito, porque sou um cearense esquisito, que gosta muito de chimarrão logo cedo (as ervas que vendem por aqui, infelizmente, são o que de pior se produz no Sul, mas meus amigos vivem prometendo mandar um pacotinho, e nunca mandam). O almoço é ao meio-dia, e me esforço para estar com fome ao meio-dia, para não atrapalhar a rotina. Na sexta-feira, o almoço é peixe. Quando não estou trabalhando no Recife, passo a tarde lá em cima, escrevendo minhas besteiras, até que às 19h, tia chega ao pé da escada e diz:

"Sama... vamos jantar?"

Eu geralmente vou.

Jantamos eu, tia e Renato. Rosa faz tudo, cuida de tia, e vai embora à tardinha. Rosa adora dizer que meu cabelo está cada vez pior. Depois de jantar, Renato sai, e ficamos papeando, eu e a tia. Ontem fiquei sabendo que ela foi uma leitora voraz, mas agora anda cansada da vista. Falei que estou lendo "As mil e uma noites" e ela lembrou que já leu também. Amanhã vou ler uns trechos para ela. Antes, vamos a um frenologista. Descobri esta semana que frenologista é um médico dos rins.

Enquanto meu notebook não sai do conserto, uso o computador de Renato, que fica aqui no térreo. De vez em quando, Bambam vem, fica ao meu pé, aguardando um carinho. Passo a mão na cabeça, ele fica contente, depois vai embora. Sempre me dou bem com cachorros, especialmente os vira-latas. Acho que nas vidas passadas fui um deles.

Renato sabe copiar um bocado de coisas no computador, e está copiando alguns cds. Ele não cobra nada. Ontem, me ensinou a escanear fotos. Na hora aprendi, mas desaprendi logo. Decidi escanear as fotos antigas da família, que estou contrabandeando de Fortaleza, aos poucos.

O motivo da mudança é simples. Quero estar mais perto da tia, e as viagens Poço da Panela-Cabo estavam me consumindo a resistência. Continuo adorando o Poço, mas eu gosto dessas andanças. Daqui a pouco, arrumo as malas de novo. Por mim, eu teria casas espalhadas pelo mundo. Sonho em morar um tempo no exterior. Penso na África ou América Central.

É um reencontro também, o que estou vivendo aqui. Morei nesta casa entre 1992 e 1994, quando estava lá com meus vinte e pouquíssimos anos, e começava no jornalismo. A casa é a mesma, a rua é a mesma. Só Biliu e Zezé que morreram. Biliu era maravilhosa, aquelas velhinhas que contam piadas safadas. Tia levou duas quedas, teve um início de derrame, mas está bem, e daqui a pouco comemora 80 anos. Arali, que vi pequeníssima, está uma moça. Outro dia, morreu o Netinho, filho da vizinha, com 27 anos. Fui à missa de corpo presente com tia, e foi uma coisa muito triste. O padre também mudou. Sou mais o antigo. O quarto que morei, agora é ocupado por tia. Onde ela morava, agora vivo eu. São as reocupações geográficas, coisa que o mano Paulinho entende bem.

A casa fica ao lado do Centro das Mulheres do Cabo. Na época em que trabalhei para o Diário de Pernambuco, fiz matéria mostrando o trabalho das mulheres. O jardim é espaçoso, já comecei a dar umas arrumadas, vai caber todas as minhas plantas. Só não sei ainda como vou fazer com meus inúmeros livros, porque o primeiro andar não é tão grande assim.

Com calma vou me arrumando. Ainda sinto falta de acordar e tomar logo aquele café bem doce de Seu Vital, com o sol da manã do Recife, papear umas besteirinhas, ver ele botar a comida para os louros. Mas não faz parte da minha natureza estes apegos. Eu lembro, e é bom, a vida segue.

Estou mesmo de volta para um aconchego. Vou nessa, que Renato quer dar uma olhada no computador.



ôps: levei a tia a um nefrologista, não a um frenologista, que são coisas diferentes, como bem me alertaram.Ontem aprendi a tirar a pressão arterial.

Estuário está agora também no instigado site www.mutuca.com

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Mudanças

Não sei exatamente quando chega a hora da mudança. Em algum momento, a pessoa vai de uma casa para outra, ou vai de um apartamento para um sítio, de uma cidade para outra. Em algum momento, os filhos já não estão, a casa fica imensa, aqueles quartos, antes plenos de aleluias, se enchem de vazio, é preciso sair. Em algum momento, saiu a aprovação para o Mestrado, e é urgente começar de novo. Uma determinada hora, a dona do apartamento pede de volta, ou a família cresceu, é preciso novos espaços.

Chega o momento de buscar outras paredes, pendurar fotos em outros lugares, entregar as plantas queridas para o vizinho cuidadoso. Deixar para trás aquele quintal com uma mangueira, botar os livros dentro de caixas, pensar pela milésima vez que está guardando cacarecos demais, e esquecer disso pouco depois.


Surgem os aprendizados. A geografia da nova casa precisa ser percorrida sem pressa, de preferência com o espaço vazio. É preciso sentir o cheiro, apalpar alguma brisa, olhar onde o sol bate. Percorrer descalço o quarto novo, o corredor, inaugurar janelas. Sim, é preciso muito cuidado com a inauguração das janelas. Imaginar onde ficará aquela moldura de algum Carnaval passado, quando todos estavam felizes, no tumulto do frevo. É preciso acender um incenso e começar a chegar mansamente.


Não, amigos, não concordo com essas mudanças que chegam com o caminhão brusco e os homens que mal falam, suados e apressados. Eles carregam caixas, nunca as nossas coisas. Levam, esbaforidos, uma caixa de livros, nunca "a" caixa, com nossos poetas prediletos. É preciso um contato íntimo, uma celebração. Ver a cozinha, tomar um café inaugural, dar uma espiada no quintal, ver onde bate a sombra, onde cresce o sol, obseravar quais as plantas poderão ser levadas. Usar o sanitário, em silêncio, lembrando que durante algum tempo, este será o novo trono. Observar quietamente os azulejos, se estão nos conformes. Nunca, mas nunca, ficar no impasse das comparações.


Só depois, quando algumas ternuras estiverem vingando, passar para a transferência dos móveis, livros, discos, essas coisas que vamos juntando durante a vida. O fenômeno da ocupação. Redesenhar a geografia, repovoar os vãos, encher de vida o silêncio e a quietude. Colocar, na entrada, aquele singelo, esperançoso e por vezes patético "Nesta casa mora gente feliz". Por último, chamar os amigos, os parentes, e celebrar. Aqui recomeço minha jornada pelo mundo. Aqui descansarei. Aqui me recolherei do tumulto do mundo. Que os deuses nos permitam bons vizinhos, e que o cachorro do lado não seja daqueles que latem o dia inteiro.


Mudança é parte do meu caráter, das minhas células, é uma herança genética, espiritual, familiar. Minha família se mudou muitas vezes. Morei em várias cidades, em muitas casas diferentes, em geografias as mais diversas. Sou de mundos. De uma casa sentimental no Crato da minha avó, a uma residência bem mais ampla, em Imperatriz, no Maranhão. De umas repúblicas bolorentas, no centro do Recife, à uma bucólica casa, no Poço. Alguns apartamentos em São Paulo, uma casa numa rua sem saída no Cabo. São muitas as moradas do ser.


Aprendi, desde cedo, a me despedir sem dores, sem saudosismo, aceitando o novo destino. Outro dia, descobri que meu avô era um andarilho, e morreu no Rio de Janeiro, sabe-se lá como, após mudar mais uma vez.


Às vezes tenho uma inveja sentimental distante de quem nasceu e morou no mesmo lugar, criou a tal raiz, não consegue se ver em outro lugar, bate no peito dizendo "aqui é minha terra". Cinco minutos depois, a inveja já passou e fico lembrando das aventuras, dos lugares que já vivi. Minha terra é o planeta, que leva o mesmo nome.


Algo se perde, em cada mudança. Algo se quebra. Algo não encaixa mais na nova casa, e parece não se encaixar na própria vida. O espelho do antigo banheiro não cabe no novo. A estante imensa fica fora de ordem na nova biblioteca. Mas é preciso deixar, aceitar. Algo também parece compensar, de alguma forma. Uma vista maravilhosa às vezes não existe no novo lugar, mas tem um vento formidável, que antes não estava. O jardim imenso de outrora é trocado pelo silêncio profundo e inspirador, em plena tarde. Essas compensações da vida, que são muitas, o tempo todo, e às vezes nos falta um olhar mais acolhedor.


Para o lugar que fica para trás, é preciso somente uma cerimônia: a do agradecimento. O incenso derradeiro. Percorrer os espaços lentamente, caiando todas as paredes com a precariedade da memória. Aqui amei. Aqui escrevi meu trabalho da faculdade. Aqui fizemos muitas farras. Aqui vimos os jogos da Copa. Aqui recebi aquele telefonema tão triste. Aqui a Lulu aprendeu a dizer “água”, enquanto aguávamos as plantas. Aqui, nesta rede, li pela primeira vez o Guimarães Rosa. Ah, a memória, esta criatura vertical e imperecível...


Vou aqui, pacientemente, embalando minhas caixinhas...

ps. a partir de hoje, este blog passa a ser publicado também no belíssimo www.mutuca.com


sábado, 4 de novembro de 2006

Perambulações pelo Agreste (final)

Como eu vinha dizendo numa crônica anterior (antes das eleições), estava hospedado no Convento da Ordem Carmelita, em Camocim de São Félix, fazendo minhas tradicionais perambulações espirituais, quando o espaço religioso foi invadido pelo conhecido fenômeno da "excursão da terceira idade". Eu detesto essa definição "terceira idade", e prefiro velho mesmo, que é uma palavra muito mais forte e bonita. "É um homem velho" não tem maquiagem, enrolação, tem história, verrugas, história de vida, força. "Está na terceira idade" não me diz nada.

Pois bem, no final da manhã, a turma da excursão estava uma arara com a coordenação do convento, porque a piscina não estava liberada para o banho. O sujeito que conserta piscina (piscineiro?) teve que ir a Caruaru. A água estava marrom.

"A gente toma banho assim mesmo", disse uma velhinha. Não teve acordo.

Depois fiquei meditando. Convento com piscina? Se o Bento XVI souber disso, manda tapar tudo e construir um mausoléu.

Uma das velhinhas me olhava atentamente. À noite, no café, ela não resistiu. Passei com meu pedaço de bolo e um copo de café, e ela comentou:

"Esse aqui esqueceu de crescer".

Como tenho quase um metro e noventa, dei uma risadinha. Sentei na mesa ao lado. Ela ficou em silêncio, depois recomeçou.

"E essa barba, heim? És algum missionário?"

"Da Ordem dos Franciscanos Menores", respondi.

Ela arregalou os olhos.

"Eu sabia".

Veio diretamente para minha mesa. Fiz uma cara muito séria. Me animei com a brincadeira.

"Eu tinha certeza que você era missionário. Faz tempo que você está aqui, no convento?"

Como já morei com o ex-frade Gustavo e conheço a rotina das ordens religiosas, fora as hospedagens em diferentes mosteiros, tinha muito o que falar.

"Não senhora. O convento aqui é da Ordem Carmelita, e sou da Ordem dos Franciscanos. Não posso ficar em duas ordems ao mesmo tempo. Mistura o entendimento pessoal".

Não sei de onde tirei esse "mistura o entendimento pessoal", mas caiu bem. Ficaria melhor "entendimento espiritual".

"É como jogar no Santa Cruz no primeiro tempo, e no Central de Caruaru no segundo", continuei. Eu jamais iria comparar com nosso arqui-inimigo rubronegro.

"Sei, sei", dizia ela, muito atenta.

"Estou num pequeno retiro, repensando meus caminhos. Serão sete dias de muito silêncio e recolhimento".

"Sei, sei".

Fiz aquele silêncio grave. Comi o bolo lentamente, cheio de metafísica, como quem está com uma hóstia na boca.

"Mas você vive mesmo em qual convento?"

Lembrei do Gustavo e resolvi fazer uma pequena homenagem.

"Já morei em vários, seguindo as orientações do nosso superior, Dom Castro. Comecei em Caruaru, onde os franciscanos estão bem assentados, depois segui meu périplo, onde não posso escolher. Estive em muitos lugares, passei um período na África, vi muito sofrimento, mas agora devo retornar às minhas origens. Semana que vem, retorno a Caruaru, para um novo ciclo".

"Você gosta mesmo dessa vida? Não sente falta das coisas da mocidade? ", seguiu minha inquisidora.

"Já não sou tão moço assim, caminho para os 40 anos. Mas é um caminho sem volta. A gente sente a mesma alegria, só que de outra forma. Com o tempo, os valores mudam. Não me vejo num boteco, jogando dominó e conversando bobagens com os amigos".

Olhei-a atentamente.

"A senhora já pensou quanta energia uma pessoa gasta numa arquibancada de um estádio, torcendo por um time de futebol?".

Lembrei das temporadas de 2005 e 2006, acompanhando o Santa Cruz no Estadual, Série B, Copa do Brasil, Série A etc.

A conversa se estendeu e ela ficou muito feliz em conhecer um missionário franciscano. Inventei mais algumas histórias, improvisei uns dois ou três milagres menores, ressaltei o caráter inabalável de Dom Castro, que andava escrevendo sobre as formas elementares do ser humano, amparadas na espiritualidade do novo milênio e a poesia do cotidiano, e a velhinha ganhou a noite.

Mais tarde, informei que precisava "me recolher" mais cedo.

No dia seguinte, no café da manhã, ela foi a primeira a vir falar comigo. Trazia uma amiga pela mão.

"Frade, frade, preciso de um favorzinho".

"Pois não".

"É que minha amiga está com alguns problemas familiares e precisa de uns conselhos espirituais..."

Senti a barra pesar.

"Olhe, quando estamos em retiro, em outro convento, não podemos desenvolver nenhuma atividade de aconselhamento espiritual. Espero que me entenda, são as regras da Igreja, agora bem mais severas com o nosso novo Papa, Bento XVI".

"Mas era só uma conversazinha..."

"Não é possível. Além disso, Dom Gustavo de Castro é muito severo".

Ela sorriu, sem graça, e bati em retirada.

À tardinha, pela graça divina, era o momento de retornar ao Recife, terminando a peregrinação pelo Agreste.

Só lamento ter esquecido de perguntar o nome da velhinha, dom Gustavo.