sexta-feira, 31 de março de 2006

Deu zebra na mudança do Blog!

Amados leitores,

Fui inventar de mudar o modelo do Blog, e fiz um monte de besteiras. Resultado: todos os textos perderam a forma original, estão batidões, como se eu escrevesse parágrafos imensos e intermináveis, a la Proust, quem me dera.

A confusão aumentou, porque os dados sobre este Blog e sobre o autor, ficaram lá no final, com um espaço vazio em cima.

Terei que chamar minha professora de Blog, Macksandra, para me ajudar a reorganizar as coisas. Mas vai uma confissão: até que este modelo ficou bonitinho.

Bem, como já dizia o velho e bom Leminsky, "distraídos venceremos".

ps. após uma madrugada cutucando espaços, olhando "definições do Blog", "editar postagens" e coisas piores, consegui reorganizar os textos, mas o resto continua esculhambado. Se o troço sair do ar, não se incomodem, eu devo ter apertado algum "excluir Blog" sem perceber, o ruim é que vou perder todos os arquivos.

quinta-feira, 30 de março de 2006

Conversas no Alto José do Pinho e uma análise sobre a Lei Seca

Estou no salão Belo Visual, no Alto José do Pinho, Zona Norte do Recife. Eliete, minha cabeleireira, passa uns cremes na minha vasta cabeleira e comenta:

"Professor, está bom de dar uma cortadinha, né?”

Só Eliete, e mais ninguém, enfia uma tesoura na minha cabeleira. Ela só me chama de “professor”, porque quando a conheci, eu era professor da Universidade Católica, e fiz um trabalho com os alunos no Alto. Não tem jeito: todo mundo no Alto me chama de “professor”. Eu adoro isso, acho mais bonito ser professor que jornalista. A filha de Eliete faz um alisamento no cabelo de uma criatura, que está sentada ao meu lado. O cabelo dela é cor de jambo, e o secador, junto com a escova, vai alisando tudo, o cabelo vai ficando uma peruca, de tão lisinho. Daqui a pouco, o assunto em pauta é a morte de uma atriz, que não sei o nome, só sei que era uma setentona, e caiu de um edifício, acho que foi no Rio de Janeiro.

“Foi suicídio. Deu no noticiário. Isso é depressão”, diz a mulher-do-cabelo-sendo-alisado.

O salão inteiro entra no assunto. Fico calado, para não cometer nenhuma gafe, porque outro dia saiu o ator global Kadu Moliterno com a família, na revista Caras, e era tudo lindo e maravilhoso, uma família "unida, completa e feliz", como sempre queria minha avó Zeneuda. A mulher dele apareceu recentemente na capa de uma revista, toda detonada, com o olho inchado, dizendo que apanhava direto do camarada, o mundo está mesmo uma grande esquizofrenia.

A mulher ao lado conta a história de uma amiga que ficou doida, por causa de um grande amor, hoje vive girando o braço esquerdo o tempo inteiro e comeu parte dos cabelos. Eu fico impressionado com esse negócio de comer parte dos cabelos.

“Lá vou morrer por causa de homem! Eu, em cada separação, vou é para a farra, tomo todas e volto pra casa cheia dos quequéus”.

Eliete escuta. Perdeu um grande amor, ano retrasado, vítima de um acidente, e só faz o comentário:

“Primeiro, a pessoa tem que se amar”.

A morte da atriz é o mote para uma longa discussão sobre solidão, depressão, relacionamentos, separações, sofrimento, culpa, amor, enfim, essas coisas que rendem muito num salão de beleza, num boteco e numa sessão de psicanálise.

Eliete me pergunta se conheço um lugarzinho para ela alugar um salão, em Casa Forte. Anda meio desgostosa, quer mudar de ares, conhecer novas pessoas, “escutar outras conversar”. Fico de procurar um lugar, ela pede meu telefone. Dá uma aparada na minha juba e vou comemorar no bar de Seu Biu, que fica defronte.

É quase uma hora da tarde. Flávio me serve um “Ele & Ela”, depois como um pratinho de jabá (a R$ 2,00) e tudo fica mais bonito. Flávio me fala da com sua voz de locutor da “Lei Seca”, que está vigorando em vários bairros, inclusive no Alto José do Pinho. A partir das 23h, segundo determinação da Secretaria de Defesa Social, os bares de vários bairros não podem mais vender bebida alcoólica. Flávio acha que não vai dar em nada, porque o bar fecha, e todo mundo vai atrás de bares abertos. Só valeria mesmo se fosse para a cidade inteira, avalia.

“É um problema. Quando dá onze horas, todo mundo começa a pedir saideiras”, lamenta Flávio, que está se organizando para voltar a estudar para concursos. Pergunto qual concurso, ele responde que qualquer um serve.

Lembrei de Castanha, o homem que mais pede saideiras no Brasil. No mínimo dez, antes de pedir a conta. Seu Vital adora essa brincadeirinha.

“O governo tinha que fazer propaganda na televisão, explicando se está dando resultado e informando como funciona. Ficou tudo nas costas da gente, que trabalha no ramo”, explica Flávio. Concordo.

Ele me olha assim bem sério e diz:

“Sabe de uma coisa, Marone (ele só me chama de Marone mesmo, desde a primeira vez que falou comigo, já me acostumei). Com essa Lei Seca, a turma está bebendo é mais. Como sabem que o bar vai fechar de 11 horas, empurram o pau. Bebem com mais pressa. O freezer que esvaziava lá pela uma da manhã, agora fica vazio antes das onze".

Imagino. O cara beber olhando para o relógio deve ser um inferno.

Na parede, os avisos diversos.

“Não vendemos mais fiado”.

“Evite ressaca: mantenha-se bêbado”.

Preços: prato de Jabá: R$ 2,00 (pequeno) e R$ 3,00 (grande); Cerveja Brahma: R$ 2,00.

Cerveja Nova Schin: R$ 1,99.

Na mesa ao lado, cinco sujeitos tomam Pitu em lata, comem jabá e discutem com seriedade os caminhos do dominó. Lá pelas tantas, um lamenta:

“Pra jogar lá, a gente tem que pagar. Agora... eles aqui jogam de graça”, diz ele, com um jeito meio desconfiado.

Termino minha cerveja, passo na casa de Peste, meu velho amigo, mas ele saiu. Procuro um táxi, mas o taxista foi almoçar. Desço a pé mesmo, o velho e bom Alto José do Pinho. Vou olhando as pessoas, as casas, os jogadores de dominó do início da tarde, as velhinhas aboletadas nas varandas, uns cachorros preguiçosos, caçando sombra, o subúrbio, a periferia, essas coisas que adoro, os lugares onde me sinto em casa.

No primeiro andar de uma casa, um senhor de bermuda vai levantando uma parede lentamente. Está suado, são quase duas horas da tarde, o calor está fodendo tudo, ele está concentrado em seu ofício, tem um tijolo nas mãos, não olha sequer para os lados. Lembrei de uma crônica do Rubem Braga, escrita na Itália, logo após o final da II Guerra, quando ele observa um homem reconstruindo sua casa, "trabalhando quieto, quase sem comer, de sol a sol, indiferente a tudo o mais". Ao final, Braga diz que aquele homem estava ali, solitário, mas parecia que estava fazendo mais que reconstruir sua casa, destruída pelas bombas: "estava começando a reconstruir o mundo".

Pego um ônibus até o mercado de Casa Amarela, vou em Mary, procuro Davi, mas ele não está. Passo na barraca de Denise, ela grita "oi, meu amor", bem delicado, e acho essas coisas do Recife impagáveis, líricas, afagos na alma. Penso em almoçar peixe, mas hoje não tem peixe, deixo pra lá. Pego um táxi, volto para casa com um taxista silencioso, um carro velho, caindo aos pedaços.

Chego em casa, olho no espelho, o cabelo ficou na medida, Eliete é demais.

Deveria ter anotado a placa do táxi, para jogar no bicho, mas esqueci.

Bem, a vida segue.

ps. hoje à tardinha (sexta-feira), será aberta a exposição "Visões do Poço", com trabalhos de vários artistas do nosso reduto. A mini-galeria funciona na mercearia de Seu Vital, no Poço da Panela. Quem quiser ir, vai curtir.

quarta-feira, 29 de março de 2006

Anotações sobre o jogo do bicho

Acabei de fazer uma enquete em Seu Vital sobre o jogo do bicho e a única conclusão que cheguei foi a seguinte: não há motivo algum para esse troço ser ilegal.

Ricardo, filho de Vital, comprou um carro novo ontem. A placa (6342) vai ser jogada por todo mundo da comunidade do Poço da Panela. A dezena 42 é cavalo.

Não entendeu?

O jogo do bicho tem sua lógica, e 25 animais estão representados por várias dezenas. Exemplo: de 01 a 04, é avestruz. De 05 a 08, é águia. De 09 a 12 é outro animal, que não vem ao caso lembrar. Não entendeu? Ok, de 09 a 12, é burro, está tudo certo.

Então, se a pessoa jogou a milhar 2501, jogou na avestruz. Se jogou 3005, foi águia.

Qual a importância disso para a história da humanidade?

Imagine se você sonhou com um elefante, animal que gosto deveras, principalmente elefante azul, que dizem estar em extinção. O que vai fazer? Consultar o psicanalista, para fazer relações com o peso do animal, sua imensa tromba e sua cor? Não, meu querido ou minha querida, melhor jogar a milhar com a dezena terminando entre 45 e 48, que é a “dezena de elefante”, como diz Vital.

O brasileiro é um bicho sonso. Apesar de proibido, aqui no Poço, todo mundo joga no bicho, e os animais estão como que atravessando a vida das pessoas. Exemplo: outro dia sonhei com Arara, pai deThiago e Thúlio. Como não tem Arara no bicho, me sugeriram jogar na placa do camarada. Joguei três dias seguidos a R$ 1,00 e quando desisti, deu a milhar. Com o jogo do bicho é assim: você joga 200 vezes, e quando deixa de jogar, dá na cabeça, o primeiro prêmio.

Na última campanha, organizei uma caminhada com Luciana Azevedo aqui no Poço da Panela. O número dela, salvo engano, era 13813 (a dezena é borboleta). O certo seria, no dia seguinte, todo mundo jogar 3813, do primeiro ao quinto. Só que deu uma pane e todo mundo aqui esqueceu de jogar. Deu no primeiro prêmio. Quem ganhasse, acharia Luciana a mulher mais linda do mundo.

"Samarone, viesse com a sorte, e não pegamos”, me disse um morador. Ainda bem que Luciana teve uma votação de arromba. Aqui no Poço, ninguém esqueceu o número dela.

Outro dia, fui numa gráfica para encomendar um trabalho, e fiquei perplexo com a quantidade de comandas do jogo do bicho que estavam sendo impressas. Eram milhares de blocos, formulários, rolos. Um universo que movimenta milhões de reais, todos os dias, aqui em Pernambuco.

Lembro da época em que trabalhei no Diário de Pernambuco, de 1991 a 1994. Quando saía o resultado do Bicho, às 13h, havia uma comoção na redação. Depois, tem o jogo das 15h e o das 18h. Quem não ganhou no primeiro, joga no segundo, arrisca no terceiro, e ainda tem a “salvação”, das 17h.

Não sei se ainda tem muita gente jogando no Bicho, o Diário, porque os tempos mudam. Mas aqui no Poço, se der a dezena ente 73 e 76, é pavão. Se for de 77 a 80, é peru, e por aí vai.

Sempre joguei 3059, que era a placa do carro de meu pai, quando eu era pirralho. É jacaré. Olhando bem, o carro parecia mesmo um jacaré, sempre na terra e na água, resistindo a tudo. Deu duas vezes, na cabeça. Nas duas, eu tinha prometido jogar, mas esqueci.

Eis um detalhe do jogo do bicho. Você joga a vinda inteira, e nunca arranca nada. Quando você esquece, dá na cabeça. E você promete nunca mais jogar.

Mas no dia seguinte, diz para si mesmo: não custa nada arriscar.

segunda-feira, 27 de março de 2006

Cada papelzinho, uma vida

Nas muitas viagens que fiz à Argentina, Chile e Uruguai, para pesquisar sobre ditaduras e solidariedade, que resultou no livro Clamor (2003), escutei dezenas de histórias, que não entraram no livro, mas guardei com carinho em muitos cadernos, e passo a compartilhar.

Lembro que a pesquisadora argentina Claudia Feld, que participava comigo e outros 15 jovens pesquisadores da América Latina do projeto “Memória e Repressão”, me entregou uma pesquisa que tinha feito sobre o julgamento dos militares argentinos, em 1985. Era uma longa e detalhada pesquisa sobre o impacto que o julgamento dos milicos, após a redemocratização do País, teve naquele contexto argentino. Mas, como sempre, foi uma pequena história a que mais me interessou.

Não era sequer uma história. Na verdade, pouquíssimas frases, de uma pessoa que foi ao Tribunal, dar seu testemunho. Era o depoimento de uma mulher. Das 833 pessoas que deram seu testemunho, cerca de 500 havia sido afetadas diretamente pelo terrorismo de Estado: sobreviventes de centros clandestinos de detenção e familiares de desaparecidos.

Alberto Amato contou para Claudia um episódio que ocorreu no Tribunal. Um dia, uma testemunha apareceu com uma pasta laranja debaixo do braço, sentou-se e contou sua história. A pasta estava grudada ao corpo. Ao final do depoimento, o juiz perguntou:

“A senhora tem alguma prova?”.

“Sim”.

"As trouxe?”

“Sim”, respondeu a senhora.

“Estão nesta pasta?”

“Sim, estão nesta pasta”.

“Por favor, entregue-a ao Tribunal”, pediu o juiz.

O juiz pediu a pasta e a mulher foi se desprendendo dela com uma enorme dificuldade, “como quem se desprendia da única amarra que tinha com a vida”, como disse Amato. Dentro, estavam muitos papéis. Após entregar a pasta ao Tribunal, ela só conseguiu dizer uma frase:

“Por favor, não percam nenhum papelzinho”.

Lhe disseram:

“Fique tranqüila, não vamos perder nenhum papelzinho”.

Atrás dela, um jornalista disse a Amato:

“Te dás conta? Cada papelzinho é uma vida”.

***

Uma vez, estávamos discutindo sobre o número de mortos e desaparecidos nas diferentes ditaduras de cada País. A conversa com os amigos pesquisadores do Cone Sul ficou em cima dos números. Lembro que uma das pesquisadores, que era do Chile, ficou impressionada com o baixo número de mortos e desaparecidos no Brasil, em comparação com os seus vizinhos (só na Argentina, o número de desaparecidos pode chegar a 30 mil).

“Mas só?”, perguntou ela, referindo-se aos desaparecidos brasileiros.

Eu fiquei tão perplexo, que só me veio uma frase Tzevan Todorov como resposta:

“Um milhão de mortos é uma informação. Uma morte é um sentimento”.

sábado, 25 de março de 2006

Conversas recifenses na fila do banco

Estou na fila do Banco do Brasil, na sede da Prefeitura do Recife, para receber uma pequena ajuda de custo para pagar nossa orquestra dos "Barba". É sexta-feira, já passei duas horas com Serjão, nos corredores da Prefeitura, o tal do "empenho" vai de um lado para o outro, falta sempre alguma assinatura, até que recebo o papel em três vias e vou para a fila. A fila não, aquilo era um mar de gente. Então descubro que é o dia do pagamento da ajuda de custo para as troças e blocos. Aguço o ouvido, esqueço o cansaço, e começo a pescar as conversas. Descubro que há muitos mundos, dentro de uma mesma cidade, cada um com seus valores e importâncias. Neste caso, estou no meio de uma gente pobre, que insiste em manter a tradição de um bloco ou troça no bairro, às vezes sem dinheiro nem para a passagem de ônibus dos integrantes.

Três sujeitos estão à minha frente. Um deles tem apenas o dente da frente, pontudo, aguçado, um dente que parece não querer ficar dentro da boca. Batizei-o logo de Dentinho. Ele é o mais falante. Ao seu lado, um sujeito baixinho, de calça marrom desbotada, camisa verde bem velha, aberta à altura do peito, chapéu branco, daqueles de poeta, enterrrado na cabeça. Lembou um amigo meu da Casa do Estudante, "Tijolinho". Eles conversam. Esqueço do cansaço e começo meu trabalho de registrador das conversas recifenses:

"Rapaz, a Dantas Barreto acabou-se no Carnaval. Ninguém vai pra lá, só se for para ser morto ou assaltado".

"Quando fizeram aquele corredor de merda..."

"Na Praça do Diário era que era bom. A gente saída do Marco Zero e vinha se apresentando, era lindo".

O de dente pra fora passa então a reclamar:

"Maracangalha estava com dez passistas e cinco diretores, e foi quarto lugar!"

"E eu, que fui o sétimo!", reclama Dentinho.

"Maracangalha não foi quarto não, rapaz, foi quinto, que eu vi a apuração".

"E eu, que fui o sétimo! O Sétimo!"

"E o terceiro, foi quem?"

Silêncio.

Dentinho retoma:

"Se eu tivesse caído, ía processar a Federação".

Olha para os amigos, indignado, e pergunta:

"Agora me diga. Como é que passa sem o porta-estandarte e se classifica em quinto lugar, e eu fico em sétimo?"

"Em quinto? Isso é que é uma esculhambação".

O celular do cara atrás de mim toca.

"Alô Clarinha? Tudo bem? Ôx, ele está juntinho de mim, aqui na fila".

(passa o celular para Dentinho, que abre um sorriso com seu único dente).

"Ei, menina, tás com raiva de mim ainda?"

Silêncio.

"Meus trabalhos na comunidade, estou aprendendo a trabalhar melhor, visse?"

Silêncio.

"Vou entregar o aparelho ao teu marido, minha linda".

Fala para os amigos:

"Eu vi ela guri, conheci pequenininha".

Outro sujeito, na fila, fala alto, como se pensasse entre seus miolos.

"Aquelas agremiações do interior receberam o mesmo que a gente. O que sobra para eles, falta para a gente. De outro município, tinha que vir como convidado".

Entra um sujeito moreno, forte, na agência. Ao meu lado, Dentinho dá um grito.

"Seu Vladimir!!!!"

A fila inteira olha para seu Vladimir. Uma velhinha que cochilava na cadeira quase cai, com o berro de Dentinho.

"Vladimir Vieira da Silva!"

Abraços e tapões nas costas, igualzinho aos políticos.

"Fala Bicão!"

Do meu lado:

"Aí eu me arretei... Era o Urso da Boa Vista".

"Faltando cinco minutos para terminar minha apresentação, Léo tirou a orquestra e me prejudicou muito. Veja bem: cinco minutos antes de terminar a apresentação!"

"Safadeza monstra. Agora... tens notícia de Camisa Velha?"

"Camisa Velha passou vários anos sem sair, e quando saiu, me ganhou o título por um ponto. Sabe o que é perder o título por um ponto?"

"Um ponto é pra arrasar a pessoa".

Chega uma senhora, com o carnê do IPTU.

"Me informaram agora que meu débito do IPTU é dois mil e pouco. Já pensasse?"

"É um pobrema, esse negócio do IPTU. Eu tenho um barraquinho de cinquenta metros, e estou devendo mais que isso".

"A turma lá de cima não perdoa pobre", comenta um senhor barrigudo, muito sério.

Do outro lado da fila, a conversa segue.

"Tá desmoralizada. A Federação Carnavalesca está desmoralizada. A pessoa não pode ter três agremiações de jeito nenhum".

"Eu vou te dizer uma coisa. A minha comunidade é muito boa para o Carnaval. Quando a gente sai, sai mesmo, não tem quem segure".

"Sabia que o cara está com três ursos, aquele homem lá do Buriti?".

"Eu te digo: esses caras estão acabando com o Carnaval do Recife".

"Ali, rapaz, só punhalada nas costas".

Vai chegando a minha vez de ir ao caixa. Ainda escuto o acerto:

"Quando a gente receber o dinheiro, vamos na casa de Jorge Bicão, tomar uma".

"E apois".

Durante uma hora de fila, não escutei um comentário sobre corrupção, guerras, o aumento da violência no Recife, o custo de vida, desemprego, nada. Era outro mundo, com suas carências, seus sonhos, suas tristezas e alegrias. Outros recifenses, que moram nos altos e baixos, longe dos lugares mais arrumadinhos.

Fiquei arrependido de não ter perguntado qual a agremiação que perdeu o Carnaval por um ponto, um reles pontinho, mas deixei para lá. Certas coisas, sem resposta, ficam até melhores.

E confesso: se tivesse me chamado para ir na casa de Jorge Bicão, tomar uma, eu teria ido na hora.

Fica para a próxima, então.

quinta-feira, 23 de março de 2006

Minha briga com o IG e as lorotas de sempre

Até outro dia, eu vinha usando o IG para ver meus email, olhar as notícias na Internet, enfim. Mas o tal do IG tem uma mania feia de mandar informes quase diários, que enchem a paciência, pelo menos a minha, que detesto receber porcaria para ler. Pior: mandam coisas no meu nome, com uma falsa intimidade que detesto. “Samarone, mude para melhor!”, disse o primeiro email, e fiquei olhando atravessado, dizendo ôx!

Por que mudar para melhor, se o melhor deles pode ser bem diferente do meu? Foi então que descobri meu gosto de filosofia. Passei o dia lendo os socráticos, pré-socráticos e existencialistas, analisei profundamente os conceitos do bom e do melhor, e não cheguei a conclusão nenhuma.

Depois veio a ofensa: “Samarone, cadastre seu currículo gratuitamente!”.

Das duas uma, e não sei qual a pior: 1) o IG acha que estou desempregado, na pior, na pindaíba mesmo, nem lugar para currículo tenho para mandar, é o fim da linha, aos 36 anos, já com as chuteiras penduras, já rendeu o que tinha para render, coitado ; 2) O IG quer me arranjar um emprego, quando acho isso uma coisa muito fora de moda, neste início de milênio. Vou sobrevivendo com meus bicos jornalísticos e informo que zerei todos os débitos, semana passada, graças ao Dia Internacional da Mulher (Carol, valeu pelo frila), paguei até seu Vital, que tinha me emprestado duzentinho, na hora do aperto.

Achando pouco, o IG mandou um informativo com a seguinte manchete:

“Filha de Jacky Ickx vai correr no DMT!”.

Amigos leitores, eu sou relativamente bem informado, mas não sei, não imagino, não vislumbro sequer o rosto da tal Jacky (o segundo nome não sei pronunciar, e duvido que algum leitor deste Blog saiba), imagine a filha dela! A única conclusão que cheguei foi a seguinte: o IG acha que sou muito burro e seleciona lixo para eu ler. Agradeço se alguém me explicar o que é esse tal DMT, creio que é Depressa Mata Tudo, mas em inglês deve ser diferente, algo do tipo Down Man Trash, que eu não imagino o que vem a ser, porque gosto mesmo é da língua espanhola, especialmente os poemas do Juan Gelman.

O IG sempre se renova. Outro dia me mandou a pergunta: “Samarone, qual a sua religião?”

Além de ser uma coisa muito íntima, pessoal, confesso que não sei me situar no plano religioso. Em São Paulo, tive um guia espiritual, que era um pai-de-santo, coisa que não encontrei ainda no Recife, e que vai ser tema da próxima crônica. Era um negão forte e sorridente, que me atendia uma vez por mês, botava búzios, abria meus caminhos e dizia o que estava se passando comigo como se estivesse lendo meus diários. Êpa baba! Foi lá que descobri minhas aproximações com Oxalá, e é por isso que gosto tanto de roupa branca. Adoro os espíritas e acho uma igreja católica vazia, aquele silêncio contemplativo, a coisa mais religiosa do mundo. Além disso, geralmente ando com o terço que foi da minha avó Zeneuda, e vai aqui uma confissão, mas que minha família não saiba: já rezei algumas vezes o terço, quando o Santinha estava perdendo, e funcionou. A família haverá de perdoar, porque foram jogos decisivos: a decisão do Estadual, este ano, e o jogo contra a Portuguesa, quando viramos e subimos para a Série A, dois gols de Reinaldo, quando eu terminava o terceiro mistério. Ultimamente estou querendo ler o Alcoorão, para entender mais aquela confusão toda no Oriente Médio, e acho aquela saudação a Meca, todo entardecer, uma cena bonita.

Tem um nome para o povo ou a pessoa que tem várias religiões, e todas se harmonizam por dentro e por fora, mas esqueci agora como é o nome estou com preguiça de ir ao Aurélio, o pai dos burros, então sou um burro preguiçoso, graças a Deus, Oxalá, Chico Xavier e Maomé e Buda, os deuses maias, astecas e todos os outros que não lembro agora.

Acharam pouco? O IG me manda um informativo perguntando: “Samarone, qual o seu perfil?”

Como assim, por exemplo? Perfil psicológico? Terei que invocar minha amiga Emília Miranda, para escrever sobre minhas manhas e manias. Perfil futebolístico? Ficará dividida em duas partes: 1) Meu amigo Inácio França escreverá sobre a parte dos jogos do Santa Cruz, nos estádios e botecos, bem como o dia do Tetra, em São Paulo, quando quebrei o espelho de sua casa imitando o Senna; 2) Dinho Papeira falará sobre minha atuação na zaga dos “Caducos”, nos domingos pela manhã, aqui no Poço.

Não, pensando bem, nada desse negócio de perfil. O IG que vá amolar outro sujeito. Emília está viajando muito para cuidar das crianças no Sertão, Inácio está cuidando das crianças dele, que são duas, e das crianças do Unicef, que são muitas, e Dinho Papeira está de férias, perambulando aqui no Poço com uma eterna gaiola na mão, o homem é louco por passarinho, quase foi pego pelo Ibama, outro dia.

Eu já estava sem paciência, quando chegou a mensagem: “Samarone, assine Veja + 1 revista e pague só em 7/04!” (Toda mensagem vem com exclamação, como se fosse coisa importante).

Foi a gota d’água, deixei o IG de lado. Não bastasse a intromissão diária na minha vida, ainda quer me empurrar lixo, goela abaixo.


ps. Há seis anos, só leio Veja em consultório ou cabeleireiro, para ver qual o remédio novo para emagrecer ou como tratar os movimentos sociais como reles bandidagem. Como quase não fico doente e Eliete, minha cabeleireira, só compra “Carinho”, “Contigo” e “Caras”, me limito a olhar a capa, nas bancas. E então, compro a Caros Amigos ou Carta Capital.

ps 2. peguei no tranco: vou atualizar este Blog diariamente.

terça-feira, 21 de março de 2006

Anotações sobre um livro novo

Finalmente, chegou a hora. Depois muitos anos, estou conseguindo escrever a versão final de um projeto que iniciou em 1993, quando eu estava no último período do curso de Jornalismo, da Unicap, aqui no Recife. É um livro sobre a explosão de uma bomba no Aeroporto dos Guararapes, em 1966, quando estávamos com dois anos de Ditadura.

No atentado, morreram duas pessoas, outras ficaram mutiladas, mas a Polícia nunca conseguiu identificar os autores. Por outro lado, ninguém assumiu a ação. Ficou assim mesmo, no vazio. Uma bomba silenciosa.

Em dezembro de 1968, dois engenheiros foram presos e envolvidos no atentado, numa cilada kafkaniana de um delegado insano, no Recife. Apresentados à imprensa dia 11 de dezembro de 1968, Ricardo Zarattini e Edinaldo Miranda conheceriam de perto e por dentro, as entranhas da Ditadura. Dois dias depois, foi promulgado o AI-5, tirando até o habeas corpus do mundo jurídico. Não foi fácil passar pelo que os dois passaram. Não nos enganemos: esse Brasil já foi muito pior.

No livro, conto a história dos dois engenheiros. A prisão, o sofrimento, as fugas, exílios, amores, enfim.

Falo aqui neste Blog por um motivo simples. O livro estava atravessado em mim. Escrevi uma versão, em 2003, e não gostei. Tentei dezenas de vezes recomeçar, e esbarrava no próprio crivo - não achava o caminho.

Há duas semanas, consegui acessar a fonte. Sentei, botei o primeiro capítulo para o final, e o rio começou a passar. Comecei a reescrever capítulos, cortar coisas, mudar relatos, refazer percursos. É um mistério, esse negócio de escrever. A hora mais importante do dia é esta, quando ligo o ventilador aqui, no pé do ouvido, no três, ligo o computador e vou trabalhar.

Aos poucos, o livro foi renascendo. Um, dois, três capítulos refeitos. Outros foram chegando, nascendo prontos. Refiz a ordem cronológica, mudei caminhos, e agora há pouco, tive um susto: tenho 22 capítulos prontos, três por revisar, creio que mais cinco capítulos, e o livro estará pronto. Até a Semana Santa, farei mais três entrevistas complementares, para ter mais densidade nas informações.

Será meu último livro sobre o período das ditaduras. Já publiquei "Zé", em 1998, a pequena biografia de um militante clandestino da Ação Popular. Depois veio "Clamor", em 2003, minha dissertação de Mestrado sobre a solidariedade no Cone Sul da América Latina, durante as ditaduras. Agora vem o terceiro, fechando a trilogia. Fala de um encontro com o passado e de um encontro com a verdade.

Os verdadeiros autores do atentado nunca assumiram o fato, e a culpa ficou, historicamente, em cima de dois engenheiros. Um deles, Ricardo Zarattini, disse num belo documentário da Andréa Ferraz, que "a verdade tem força revolucionária, ela muda o mundo". Acho que é verdade.

Acho que está ficando bom, pelo menos estou escrevendo apaixonadamente, em todos os horários. A pior coisa para quem escreve, é um bloqueio, quando você não sabe ou não consegue começar. O livro está vindo como um rio.

Por enquanto, o título é: Quando o silêncio condena, que é o mesmo título do documentário da Andréa.

Não sei nem por que comecei a falar sobre isso, acho que para compartilhar com meus leitores uma alegria, um alívio. Comecei esta pesquisa com 23 anos, com uma barba rala e mais tímido vinte vezes que hoje. Fui seguindo meus caminhos no Jornalismo, e nunca me perdi dessa história. Fiz grandes amizades com a turma dessa geração, uma entrevista fortíssima com Edinaldo, ao som de músicas revolucionárias do mundo inteiro. Estou com 36, alguns cabelos bancos, e está na idade de criar juizo, dizem alguns amigos. Menos, menos.

Bem, são coisas da vida. No fundo, acho que escrever tem me ajudado a viver melhor, é simples.

Entre um capítulo e outro, tentarei sempre arranjar um tempinho para o Blog, que adoro.

Vamos que vamos.

segunda-feira, 20 de março de 2006

Notas soltas sobre jovens e livros

Estou aqui, com 73 questionários respondidos por jovens que moram em bairros da periferia do Recife, que estão participando de uma seleção para uma escola, que vai ser inaugurada no mês que vem. Como sou um dos professores da escola, terei que selecionar, a partir de uma série de critérios (questionário, redação, desenho etc), jovens de 16 a 19 anos que possam participar da segunda fase da seleção. O trabalho com a primeira turma, 80 jovens, vai vai durar 18 meses.

Então me dá uma tristeza. Tenho em minhas mãos um pequeno retrato de como anda a Educação neste país, mais especificamente no Recife, onde vivo, e qual o futuro desses jovens. Os questionários, quase todos, são de doer. Pior que o massacre à língua, a imensa dificuldade de articular algumas poucas idéias, é a ausência quase completa de uma bagagem cultural mínima. É preciso lembrar que muitos já estão no segundo grau. Uma das perguntas mais difíceis, é citar três os três livros que mais gostou na vida. “Carandiru”, “O Alto da Compadecida” e “JK” foram os mais lembrados. Os dois primeiros foram filmes, exibidos pela TV Globo. O último é uma mini-série na mesma TV, ainda em cartaz. Dos 73, apenas um conseguiu falar de um livro.

Fazer um breve comentário, de cinco linhas, sobre o livro que mais gostou, é exigir o impossível. Um livro, e somente um. O “Pequeno Príncipe” já resolveria. “Meu pé de laranja lima”. Nada. Fico me perguntando: para onde estamos indo, com estas milhares de criaturas sem acesso a uma educação no mínimo razoável, sem emprego, sem perspectivas de vida?

Lamento, mas acho que o pior ainda não chegou. Está sendo cuidadosamente gestado.

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Cada dia que passa, sinto que o Recife está precisando melhorar suas poucas livrarias. Temos a Livraria Cultura, ali no Paço da Alfândega, mas a parte de literatura estrangeira é fraquíssima, a de poesia não fica atrás. A cada consulta um pouco diferenciada, não há livro disponível, é preciso encomendar. Na última visita, nem o livro novo da Adélia Prado, uma poeta conhecidíssima, tinha. Os vendedores são atenciosos, um pessoal descolado, mas esse negócio de encomendar livro não é minha praia. Gosto de ir, cutucar as prateleiras, encontrar algo bom e sair com o volume debaixo do braço, para ir lendo no ônibus.

A Livraria Imperatriz, no Shopping Plaza, é muito menor e mais diversificada. Sei quem tem uma no Shopping Recife, a Saraiva, mas o shopping é longe pra chuchu, deixo sempre para a próxima semana. Tarcísio Pereira bem que poderia reabrir a Livro 7, aquela maravilha que nunca esqueço, até hoje sinto uma alegria quando vejos os livrinhos com o símbolo da Livro 7.

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Vou ao Hiper Bompreço comprar um café e um azeite, e resolvo passar na parte de livros. Minha Nossa Senhora, é o fim dos tempos, o miserê cultural atinge em cheio uma classe média que pode comprar livros. As prateleiras estão cheias de livros de auto-ajuda e busca de sucesso, uma combinação que vem crescendo muito nos últimos anos, em detrimento a uma boa literatura, aos bons poetas. As pérolas que dominavam o amplo espaço:

“Pais brilhantes – professores fascinantes”, do Augusto Cury; “Nunca desista de seus sonhos”(ibdem); “O poder que vem do seu nome”(Aparecida Liberato e Beto Junqueira), “As cinco pessoas que você encontraria no céu”(Mitch Albom); “Ditadura da beleza e a revolução das mulheres”(Augusto Cury); “Paixão por vencer – a bíblia do sucesso”(Jack Welch). E esta pérola: “O vendedor Pit Bull – o profissional indispensável para sua empresa”, de Luiz Paulo Luppa. Na foto, há um cachorro bul zangadíssimo, rangendo, com os lábios arregaçados, pronto para o ataque. A versão normal custa R$ 17,52, mas a edição de bolso, um pit bul menorzinho, custa somente R$ 8,71).

O sujeito que sai do supermercado com um livro sobre “o vendedor Pit Bull” ou “A Bíblia do Sucesso” não está precisando de boa literatura. Para esse, o bolso cheio de dinheiro é a melhor biblioteca.

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Recebo do amigo Ricardo Mello a coleção “Poeminhas” (3 volumes), em parceria com o cartunista Samuca, feita pela Editora Bagaço. Uma belezinha, uma festa para adultos e crianças. Tem um volume de “Hai Kados”. Pequenas gotas de colírio, digamos assim, nessa secura literária que toma conta de nossa cidade.

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Não sei o que há no Recife, que não tem um mercado razoável de sebos. São poucos, e com pessoas que não conhecem muito de literatura, é mais aquela venda rasteira dos livros do segundo grau. Quando morei em São Paulo, comprei muita coisa boa em sebos ou em bancas, nas ruas mesmo, era um barato. Sempre que viajo, para outros cantos do Brasil ou do exterior, procuro uma pracinha que tenha venda de livros, especialmente nos finais-de-semana, e os livros sempre estão em lugares privilegiados. Seria lindo um negócio desses aqui no sítio histórico do Poço da Panela. Allgo sossegado, sem muita agitação, com um chorinho ao fim da tarde, para ver o dia morrendo devagarinho, tomando um bom café e lendo as primeiras páginas de um bom livro. Lembrei de San Telmo, em Buenos Aires, e me deu saudades.

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Os livros do Juan Carlos Onetti, uruguaio absurdamente lindo, estão saindo pela Editora Planeta, pela graça divina. Aguardo rezando de joelhos pelos livros com as poesias do Juan Gelman, e por edições populares do Robert Arlt, o argentino louco e incomparável, capaz de escrever uma maravilha como “Os sete loucos”, que já reli tantas vezes, que já sei páginas interias decorado, apesar da péssima memória que sempre tive.

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Soube outro dia da morte da querida Elita, da Editora Bagaço. Fiz um projetinho com a Bagaço, na época em que estava na Universidade, e ela foi sempre uma mulher generosa. Nos víamos sempre de manhã, aqui no Poço, quando ela passava, em suas caminhadas. Agora, não a vejo mais, isso é a morte. Vai um abraço para Elita, de coração.

sexta-feira, 17 de março de 2006

Uma velha crônica, para matar saudades das histórias de amor...

Amados leitores:
atendento a um bocado de pedidos, republico a crônica "Pequenas histórias de amor - volume I", que faz parte do livro "Estuário", lançado ano passado.
Com este texto, encerro a "semana amorosa" deste Blog, e volto a escrever sobre as besteiras de sempre.
Espero que gostem e se inspirem, para amar ainda mais.
Samarone Lima
***
Pequenas histórias de amor -volume I

Recife, 24 de dezembro de 2004.


Ele descobriu que a amava quando tinha 15 anos, em 1984. Ela estudava na mesma turma, e quando entrava na sala de aula, ele cantarolava intimamente “pela luz dos olhos teus”, porque havia algo de encantador nos seus olhos, no que eles diziam, uma ternura que cativava aquele coração tão moço. Ele lembra, vinte anos depois, do dia em que ela fez circular um caderninho para os amigos deixarem mensagens, e atravessando a fronteira da timidez, escreveu “você é meu único e definitivo poema”. Depois disso, eles desencontraram.

Ele entrou na faculdade e, como me disse há poucos dias, se distraiu das coisas do amor. Conheceu outras mulheres, se encantou com algumas, mas nenhuma tinha aqueles olhos. Se reencontraram anos depois, quando ela terminou a faculdade. A última cena deste novo contato foi ela se beijando com um sujeito, no baile de formatura. Como queria estar naquele lugar!

Os dois casaram e não se viram mais. Aqui e ali, nos encontros com os amigos da turma, uma notícia esporádica. Somente em 2001 voltaram a se ver, num encontro dos velhos amigos, para cativar lembranças. Na primeira vez que o viu, depois de tantos anos, ela comentou com uma amiga– “o menino virou homem”. A resposta da amiga acendeu alguma chama que ela nunca percebera – “o teu apaixonado chegou”. Surpresa em saber daquele amor silencioso, ela ficou em silêncio, achando-o mais belo.

“Aquela frase da amiga foi um sopro divino”, me disse ele, repassando os detalhes da história, enquanto tomávamos uma cerveja.

Mas a vida seguia outros cursos. Tinham compromissos, casamento, filhos. Em 2002, voltaram a se encontrar. Pare ele, já não era tão fácil olhá-la nos olhos. E a turma, sem perceber que alimentava um sentimento que parecia perdido, colaborou para que voltassem a se ver. Um novo encontro, em 2003, serviu para que ele confirmasse que aquele menino estava vivo, dentro de sua alma, querendo amar plenamente.

Em 2004, por uma desculpa qualquer que sempre encontramos, quando queremos algo de verdade, almoçaram juntos. Ao final da longa e cativante conversa, ela perguntou:

“Você sentia alguma coisa por mim naquela época?”

“Eu era muito apaixonado por tu”, respondeu ele.

Algo rompera na timidez dele. Ela agora sabia de algo secreto, que ele trazia há muitos anos. Voltaram a falar de literatura, cinema, dos caminhos profissionais, mas algo já tinha sido dito, e era irreversível. Pronunciaram, timidamente, o nome do amor.

Quando se encontraram novamente, nada mais poderia ser feito. Os dois se queriam tanto, que quando ele a abraçou, sentiu que estava protegido, acolhido, que aquele era o melhor lugar do mundo para estar.

Os mundos que viviam exigiam outras respostas. Sim, os compromissos, outros laços haviam sido firmados em duas décadas. Ela foi mais incisiva. “A partir de hoje, morreu”, disse, na despedida. “Essa história acaba por aqui”, repetia, muito séria.

“Como vou te tirar de dentro de mim?”, perguntou ele.

Nas longas semanas de silêncio, ele também fazia o esforço. Ao final do dia, se perguntava – “será que pensei nela hoje?”. Sim, era a resposta. Sua dúvida era saber se, em algum momento do dia, ela tinha pensado nele, para que os pensamentos se encontrassem, em algum ponto da cidade.

No último encontro dos amigos, ele bebeu para chegar ao bar com o coração entorpecido, para que a alma não o traísse. Escolheu um ponto da mesa em que não pudesse vê-la. Decidiu que não a olharia, em hipótese alguma, durante toda a noite. O cumprimento formal, gelado, era a tentativa dos dois de administrar algo que era quente, muito quente, por dentro. Ela confessaria, dias depois, que quando o viu, suas pernas tremeram. Agradeceu a Deus por estar sentada. Na despedida, ele a olhou de longe e acenou. Viu aqueles mesmos olhos e desejou cantar “pela luz dos olhos teus”.

Naquela fração de segundos, o sentimento desvendou os dois. Nada mais poderia ser feito. No dia seguinte, se falaram. Era preciso fazer algo. “Não consigo te tirar de dentro de mim”, confessou ele.

Sim, eles fizeram as escolhas e tomaram decisões. Não podiam abrir mão do sagrado, da calma que sentiam estando juntos, da plenitude que encontravam em cada palavra. Num dos encontros, ele falou ao seu ouvido o poema “Teresa”, de Manuel Bandeira. “Os céus se misturaram com a terra/E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas”, diz o final do poema, que parecia ser o que viviam. Céus e terras se misturavam.

Vinte anos depois, eles decidiram assumir o amor.

E quando estava a terminar esta crônica, me chegou um email de um amigo, com o pequeno trecho de um poema do Drummond:

“Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?”

quinta-feira, 16 de março de 2006

Pequena declaração de amor de um leitor à sua amada

Em dezembro de 2004, quando ainda tinha a coluna “Estuário”, no JC On Line, publiquei um texto intitulado “Pequenas histórias de amor – volume I”. Era a história de um sujeito que se apaixonou por uma garota quando tinha 15 anos, em 1984. Um amor silencioso e tímido, celebrado com a música “pela luz dos olhos teus". Ele recordou, vinte anos depois, do dia em que ela fez circular na sala de aula, num daqueles famosos caderninhos para deixar mensagens (que depois todo mundo perde), e do exato momento em que atravessou a fronteira da timidez e escreveu: “você é meu único e definitivo poema”.

O texto entrou na seleção do livro “Estuário”, que publiquei ano passado, pela Livro Rápido, livro que contou com a apresentação do jornalista João Magro Valadares, uma apresentação tão bacana, que ele citou até crônicas que não estavam no livro, o que não deixa de ser uma inovação no mercado editorial, gosto muito dessas ousadias intelectuais.

Eu já tinha escrito o volume II da série “pequenas histórias de amor”, uma história também linda, um encontro retumbante que uma grande amiga viveu, mas o desenlace foi triste, e não achei graça nenhuma em publicar uma história de amor com final infeliz, apesar de saber que isso faz parte da vida, a gente toma cada pau da porra nessas coisas do amor, mas eu gosto de final feliz, fico puto com filme que tem final infeliz e não vou usar meu pequeno espaço de Blog para ficar escrevendo coisas tristes, me perdoem a sinceridade.

Então me chegou um email da Keila, uma pessoa muito bacana, que insiste em ler Estuário nas horas vagas. Vamos ao texto:

"Meu caro Samarone...
gostaria de te fazer algumas perguntas, se vc me permitir...
Lembra (claro que lembra!) de uma crônica sua publicada no JC Online que falava de uma história de amor entre duas pessoas que tinham dificuldades de vive-la intensamente devido a situações e escolhas da vida?
O título (se não me falha a memória!) era: "pequenas histórias de amor vol. 1". Pois é...
Agora vem a minha pergunta : essa história foi fruto de sua inspiração ou vc se baseou em alguém que realmente viveu coisa parecida?
2ª pergunta: Se foi baseado em fatos reais, como anda esse casal que viveu tanto tempo escondendo o amor deles ?
3ª pergunta: se não foi baseado em fatos reais, pq vc não faz uma crônica continuando essa belíssima história??
Aguardo suas resposta, meu caro poeta!
Forte abraço pra vc."

Respondo por partes.

Eu tenho meus lampejos de inspiração, mas inventar uma história como aquela, cheia de detalhes e confissões, seria muita, mas muita inspiração, e eu deveria estar escrevendo era contos e ganhando uns trocadinhos. Foi baseado em pessoas reais, um grande amigo me contou a história com os olhos brilhando, e eu perguntei se poderia escrever no Blog. Ele autorizou e aproveitou para me contar a mesma história 40 vezes, em dois dias, então decorei tudo, nos mínimos detalhes.

Não é que o casal “viveu tanto tempo escondendo o amor deles”. Creio que não era o momento, e eles seguiram vivendo, fazendo coisas, os dois casaram, ele teve filhos etc. Não sofriam por algo que não era pleno, apenas tinha algo lá, guardadinho, aquele sentimento, aquele "um dia, vamos viver isso", a tal cosquinha no coração.

Mandei o email da Keila para o casal. Ela, a mulher da história de amor, preferiu ficar mais quietinha, silenciosa, mas ele, o meu amiog, me mandou a seguinte resposta, reveladora do tamanho do sentimento:

“Olá velho,

Gostaria de aproveitar a oportunidade que o Estuario me oferece para fazer uma Pequena Declaração de Amor (vol 2, o primeiro volume foi e-mail que enviei e desencadeou tudo)

Afinal não tenho já não tenho medo de admitir que:

é com ela que gosto de enroscar as pernas ao acordar;
para ela que quero levar café na cama, no meio da manhã;
é no corpo dela que curto passar o sabonete novinho, recém saído da embalagem;
é ela quem transforma em jóias as pequenas bijoterias do cotidiano;
diante dela que me sinto homem ao dizer "sou teu, somente teu";
com ela quero catar pedrinhas no fundo da piscina;
com ela quero marcar viagens, realizáveis ou imaginárias - para Caruaru ou Timbuctu;
com ela, andar de mãos dadas é passear por um paraíso antes desconhecido;
ao lado dela, sou capaz até de esperar uma inspeção por vitrines de lojas;
com ela, quero - mais uma vez - trocar fraldas e dar banho num filho;
com ela, quero acordar sabendo que estou um dia mais velho - e adormecer, acreditando estar um dia mais jovem”.

Bem, a resposta foi dada.

E ainda dizem que não há mais homens românticos na cidade...

terça-feira, 14 de março de 2006

Pequenas histórias de amor, volume II

Ela andava meio sem esperança no amor, e já tinha me confessado em nossos muitos cafés. Ninguém a emocionava o suficiente para que os olhos brilhassem, até que apareceu uma viagem. Iria filmar, com uma equipe do Recife, um Festival Internacional de Bonecos. Viagens, muitas apresentações, artistas de todo o mundo. Quem sabe, pensamos, quem sabe neste Festival não aconteça algo que seja simples e bom, do jeito que queres, a sorte de um amor tranqüilo.

Ele é jovem, e me confessou outro dia, na praia, que estava há muito tempo sem se apaixonar. Viajava muito, com sua companhia de bonecos, tinha percorrido a Europa, conhecera gente bonita, interessante, tivera lá seus pequenos afetos, mas... faltava algo que lhe fizesse se sentir menino, capaz de brincar com as besteiras do dia, de se encantar com uma conversa, uma troca de olhares, um sorriso que lhe acalentasse a alma.

E o Festival começou. Ela, a diretora, fazia seu trabalho, dizia as cenas que queria, fazia as entrevistas. Começou a viajar por muitas cidades, já tinham se passado três semanas de Festival, e tudo seguia calmo. Estavam em Cuiabá, quando ele chegou com sua trupe. Ele, com seus bonecos, seguiu na louca agitação da preparação para as apresentações, aquele mundo de gente do mundo inteiro. Ela lembra que era uma sexta-feira, quando foram apresentados. Trocaram algumas rápidas palavras, nada muito importante, porque nem sempre o amor é à primeira vista.

No dia seguinte, se reencontraram, e algo começou a se mover. Ela viu quando ele subiu ao palco, e ficou se perguntando – quem será esta criatura, meu Deus? “Quando fecho os olhos e lembro deste momento, me vem um cheiro doce na lembrança e logo um sorriso com braços largos e ternos”, me contou ela outro dia.

Aquele sujeito de pernas finas, peito estufado, cabelos lisos e sorriso generoso estava concentrado em seu boneco, quando olhou e viu novamente aquela morena esguia, cabelos pretos, de sorriso doce mãos eloqüentes. Sentiu, não sabe porque, aquela fisgada no peito, que um amigo diz ser “uma cócega no coração”. A troca de olhares já havia se modificado. Os dois decidiram, sem revelar a ninguém, que precisavam se falar mais.

Deram um jeito de conversar, foram afastando quem estava por perto, e pouco tempo depois, nenhuma conversa interessava mais, a não ser o que um tinha a dizer para o outro.

Não sei qual foi a desculpa que ele inventou para convidá-la até o quarto, ele até me contou outro dia, mas ando com a memória fraca, acho que algum boneco novo, mas enquanto ele tentava abrir a porta do quarto, ela encostou a cabeça na parede e ficou olhando, reparando, sentindo seu cheiro e achando-o a criatura mais linda, e sentiu isso tudo antes mesmo de a porta ser aberta, o que para mim é uma metáfora linda.

Ele, que se engasgava com a chave, sentindo sua respiração, olhou-a docemente e se beijaram ali mesmo, esqueceram a porta, o quarto, o Festival, e o mundo ficou mais bonito, como uma moldura, pintada de azul. Ela me disse depois que perdeu a noção do tempo e do espaço, ele me disse que ficou vendo estrelas de todas as cores e tamanhos, e se grudaram.

Passaram vários dias namorando, se reconhecendo. Não havia pressa. Ele, um passarinho do Sul, ela, uma ave migratória do Nordeste, se encontrando no coração do Brasil.

O festival seguiu por várias cidades, e eles foram descobrindo as paisagens de cada um. O encontro já tinha acontecido, e era irreversível. Já não se tratava de um pássaro do Sul e uma ave migratória do Nordeste, mas duas almas que se reconheciam em pleno vôo.

Ao final do Festival, foram inundados pela saudade. Muitas vezes, durante o almoço, ele parava e não percebia as lágrimas descerem pelo rosto, molhando a comida. A mãe dele ligou para a “moça do Recife”, perguntando o que ela fizera, porque seu filho estava enfeitiçado. Era verdade.

Tomaram suas decisões. Primeiro, ela foi ao seu encontro. Depois, ele veio para os dias de sol recifense. Breve, vão estar juntos em algum lugar que não seja de um, nem do outro, mas que seja dos dois.

Estão juntos há sete meses, e me pediram, outro dia, para fazer a bênção do casamento, então resolvi contar esta pequena grande história de amor.

Para Deá e Rafa, que se reconheceram.

sábado, 11 de março de 2006

A partilha (uma pequena história de amor e separação)

Depois de alguns anos, chegou o momento que eles tentaram, às duras penas, evitar – a separação. E foi em meio a uma discussão banal, ele tinha esquecido algo importante, o horário de um exame, ela ficou esperando, o celular não atendia, isso não teria importância nenhuma, se certos rancores não viessem se acumulando ao longo dos anos, quando tudo parecia fácil e bom, como fora antes, no começo, até algum momento que já não lembravam. Então, tudo explodiu em frases fora do tom, as pequenas infelicidades acumuladas se tornaram mágoas. As palavras feriram. Ao final da discussão, estavam aos pedaços, e nada havia mais a fazer.

“Vou dar um tempo. Estamos estressados”, disse ele.

“Doze anos já é muito tempo”, respondeu ela, hostil. “E agora tudo que é sentimento ruim vira estresse”.

Ele saiu num rompante. Era uma sexta-feira, sabia onde encontrar os amigos. Estavam todos no boteco de sempre, com as conversas que ele já conhecia.

“Cadê a Paulinha?”, perguntou o primeiro. Ele pediu um chopp, disse que ela estava com enxaqueca. Mandou ver. Bebeu com sede, danou-se a fumar, coisa que raramente fazia, no máximo dava uns traguinhos, para sentir o gosto do tempo em que fumava uma carteira por dia.

Chegou em casa de manhã, naquele estado. Adormeceu no sofá e teve sonhos ruins, mas não conseguiu lembrar os detalhes. Quando acordou, encontrou o bilhete.

“Doze anos foi um bom tempo. É a hora da partida e da partilha”.

Ele passou o dia agonizando no sofá, entre os males da ressaca e do coração. Sim, ainda havia algo que gostava na Paulinha, mas o pior é que nem sabia o que era. Talvez o jeito de tratar as crianças, a forma como dizia “mas Rafael”, um movimento singular, quando dizia “cuide-se”, algo que o comovia.

Quando ela voltou, à tardinha, estava armada de palavras. Tinha deixado os filhos com a mãe, para facilitar as coisas. Teriam o restante da noite do sábado e o domingo inteiro. Rafael olhou-a séria, intensa, decidida, quase rancorosa, e perguntou:

“Onde está aquela jovem estudante de Sociologia, que usava um vestido de chita e óculos enormes, que conheci no Teatro do Parque, na fila para o show do Gilberto Gil?”

Ela ficou em silêncio. Lembrou que o Gil agora era Ministro da Cultura e achou isso engraçado.

“E onde está aquele rapaz que estudava História e queria revolucionar a América Latina inteira, com um par de sandálias de couro, a camisa do Che Guevara e barba sempre por fazer?”.

Por um breve instante, se desarmaram. Mas os olhares estavam quebrados, tinham virado alguma esquina, que os levava para novos caminhos. Ele se aproximou, ela esboçou um leve sorriso, se abraçaram longamente, repassando pelos corpos, a memória do muito que tinham vivido. A emoção mudara de tom, de cor, e teriam que seguir de outra forma.

“Quero levar somente minhas plantas”, disse ele, aceitando o fim.

“Deixe aquela buganvília que eu gosto tanto”, pediu ela, agora com doçura.

“Sorte não termos um disco do Pixinguinha”, disse ele.

“E nunca gostei muito do Neruda”, respondeu ela.

E sorriram levemente.

Nos dias seguintes, Rafael foi resgatando suas plantas, até que deixou somente a buganvília que ela pediu.

Foi um período em que começou a chover muito no Recife, lavando o quintal e o jardim, lavando as calçadas e as ruas do bairro.

Uma tarde, a Paulinha ficou sentada, olhando a buganvília, a única que restou. A chuva lavava tudo, parecia açoitar a terra, às vezes com fúria. Então sorriu levemente.

Ele, do outro lado da cidade, aguardava o sinal abrir, em meio a um congestionamento. Ligou a rádio, tocava uma velha canção do Gil, a que mais gostavam. Ele também sorriu levemente.

Agradeceram pela bênção daquele encontro, naquele show do Gil no Teatro do Parque. Ela, com o vestido de chita e os óculos imensos. Ele, o mais revolucionário de todos, com o dinheiro que dava somente para o ingresso no show e uma cerveja.

Agradeceram também porque souberam fazer a partilha sem rancores.

Para Rafael e Paulinha, que me contaram essa história simples.

quinta-feira, 9 de março de 2006

Dicas úteis para uma vida fútil

Para quem anda muito preocupado com uma vida útil, para quem anda preenchendo todos os buracos da agenda com atividades as mais diversas, como trabalho, inglês, academia, cinema, cursos diversos, shopping, compras, comprar outro carro, aniversários diversos, casamentos, sempre correndo muito e com um inseparável celular no pé do ouvido, sugiro a leitura urgente do maravilhoso Mark Twain – “Dicas para uma vida fútil: um manual para a maldita raça humana”, publicado recentemente pela Relume-Dumará.

Comecemos pelo fim. “Fumo, alimentação e saúde aos 70 anos”, um discurso em 1905. Twain diz esta idade é o momento em que o sujeito pode deixar de lado as “decorosas restrições” que o oprimiram e postar-se sem medo e sem vergonha no seu terraço no sétimo andar, olhar para baixo e ensinar – sem qualquer censura. “Pode contar ao mundo como chegou lá”.

A partir dos 40 anos, avalia o escritor, “nossas manias ficam permanentes”, coisa que concordo plenamente, apesar de só estar com 36 e já ter muitas. “A partir dos quarenta anos, mantive a hora de ir para a cama e me levantar – e esse é um detalhe importante”. Ele transformou em lei algo precioso – só deitar quando não houvesse mais ninguém com quem conversar, e criou uma regra – só se levantar da cama quando fosse preciso. “Isso criou uma inabalável regularidade da irregularidade”, diz Twain. “Foi o que me salvou, mas teria condenado outra pessoa”. Outras observações do escritor:

“Transformei em lei não fumar mais de um charuto por vez. Não tenho outras restrições em relação ao fumo”.

“Sempre tive por lei não fumar dormindo e não parar de fumar quando acordado”.

Mas Twain também teve seus períodos longe do vício do cigarro. Vejamos como ele conseguiu:

“Reconheço que parei de fumar de vez em quando, às vezes até por meses, mas não foi por princípio, foi só para me exibir, para aniquilar os que me criticavam dizendo que eu era escravo dos meus hábitos e não conseguiria me livrar deles”.

Bingo. Vamos à questão da bebida:

“Quanto à bebida, não tenho qualquer lei. Se os outros bebem, gosto de colaborar, senão fico sóbrio por hábito ou escolha”.

Em 1882, num clube de jovens, Twain leu um “Aviso aos Jovens”. Começou num tom eloqüente- “obedeçam sempre aos pais, quando na presença deles”. Lembrou que essa era a melhor política a longo prazo, pois, “se não desobedecerem, serão obrigados a obedecer”. Twain foi mais longe. Disse para os jovens respeitarem seus superiores (se os tivessem), os estranhos e, às vezes, aos outros.

“Se uma pessoa lhe ofender e você ficar em dúvida se foi proposital ou não, não tome atitudes radicais, basta esperar uma oportunidade e acertar um tijolo nele. Isso basta. Se descobrir que essa pessoa não tinha a intenção de ofender, seja sincero e confesse que agiu errado ao atingi-lo com o tijolo”.

Twain sugere que o jovem que reconheça isso “como um homem” e diga que foi sem querer.

“Sim, evite sempre a violência, estamos em tempo de caridade e gentileza, tais coisas já não têm mais lugar. Deixem o uso da dinamite para seres inferiores e grosseiros”.

O livro tem ótimas dicas para nós, pobres brasileiros, que vivemos sendo importunados pelas companhias telefônicas, de cartão de crédito, pelas moças da cobrança, com aquele insuportável “eu vou estar te mandando a fatura”, sempre a chateação toda no gerúndio.

Vejamos alguns assuntos que Twain aborda, que vão me inspirar para muitas novas crônicas:

“Reclamação sobre serviços não confiáveis”;

“Aviso de guarda-chuva roubado”;

“Apelo contra blasfêmias precipitadas”;

“Assinatura de revista não solicitada”;

“Sobre telefonemas e blasfêmias”;

“Aviso. Ao próximo ladrão”;

“Sugestão para pessoas prestes a entrar no céu”.

O livro é delicioso, mas a minha frase predileta é esta:

“A vida ideal consiste em ter bons amigos e uma consciência sonolenta”.

Acabo de dar uma bocejada, amigos. Tenham um bom dia.

terça-feira, 7 de março de 2006

Os mistérios e o menino na janela

Parei de me benzer há muitos anos, não lembro exatamente quando. Quando passava defronte a uma igreja, fazia o "pai, filho, espirito santo, amém" e beijava o indicador, como tinha ensinado minha avó Zeneuda, que já não está mais por aqui. Herança de minha mãe também e de uma série de ancestrais cristãos.

Não sei quando foi quando deixei de ser cristão e passei a acreditar em tudo. Tenho fé nos pássaros, nas árvores, nas gentes, animais, nas árvores, enfim. Mas, como moro ao lado de uma igreja, todos os dias vejo a cena clássica. As gentes que passam mansamente, ou apressadamente, e fazem o "pelo sinal", numa devoção respeitosa. Lembro da minha avó, que fazia isso também quando passava defronte a cemitérios.

Uma das maiores experiências religiosas que vivi, aconteceu no Carnaval de 2001, depois de seis anos longe do Recife. Era sábado de Carnaval, e saí meio sem destino, perambulando pelas ruas de Olinda, e acabei na frente do Clube Atlântico. Era a concentração de "Ceroula", e entrei. Os homens, só os homens, comiam feijoada e tomavam cachaça, se preparando para o desfile. Fiquei reparando. Aos poucos, a orquestra de Ceroula subiu ao palco e tocou uma das músicas mais belas que conheço, que é o hino de Ceroula. Eu fiquei completamente abalado com a força dos instrumentos e a beleza da música. Minto: a força era dos homens, que tocavam carregando suas histórias de vida.

No meio do salão, com aqueles famosos chapéus de palha, os integrantes do bloco pulavam, abraçados e alucinados. Eu me meti no meio daquela confusão e durante aqueles longos minutos, me misturei à turba, despido de personalidade. Era apenas um anônimo, pulando com minhas enormes pernas. Foi um êxtase. Ali, estive com os deuses todos, esqueci de tudo, vivi algo meio místico. Foi uma experiência religiosa, tenho certeza.

Há um lugar no Recife que é um santuário para mim. É um mangue que nasceu e vingou no meio do Rio Capibaribe, defronte ao Parque da Jaqueira. É um mistério que esteja ali, porque vai desafiando o curso das águas, como que dizendo: eu existo. Sempre que passo, seja de carro ou de ônibus, deixo tudo somente para olhar, atentamente. Algumas vezes pensei em me benzer, mas não é o caso, seria apenas o gesto mecânico, a herança familiar que não vinga mais de forma plena. Aquele mangue, para mim, é uma igreja, um templo, uma catedral da natureza.

Estava anotando essas besteiras num caderninho, quando o ônibus que eu ía, parou em um sinal, na avenida Agamenom Magalhães e um menino se pendurou na janela ao lado, onde estava um sujeito muito sério. O que estava no banco de trás, disse um ríspido: "vai estudar, rapaz". Mas não era um rapaz, era um menino, e ele mexeu com as pessoas. O que estava ao meu lado ofereceu dois reais para ele descer. O menino abriu um sorriso imenso e desceu, o homem sério abriu a carteira e jogou o dinheiro pela janela. Não vi mais o menino, o homem sério guardou a carteira e o ônibus seguiu.

Eu pretendia falar de heranças familiares e coisas do tipo, mas o menino na janela mudou tudo. Não sei o que o menino foi fazer com os dois reais, mas tinha um sorriso lindo e não era um rapaz, era criança mesmo, pensei em corrigir o colega do banco traseiro.

Desconfio que nem sempre a gente consegue falar o que quer, culpa desse negócio que chamam gente, o maior dos mistérios.

segunda-feira, 6 de março de 2006

Sobre o problema da gaia

A cada dia que passa, me decepciono mais com o Aurélio. Me perdoem a intimidade, sei que é Aurélio Buarque de Holanda, mas todo mundo só o chama pelo primeiro nome. “Menino, me traz aí o Aurélio”; “Puxa, estou sem meu Aurélio aqui”. O nome do sujeito já virou nome de objeto. Um Aurélio é um dicionário bem completo, todo mundo sabe disso.

Pois bem, venho colecionando falhas grosseiras no citado livro, já citadas em crônicas anteriores (não tem buchuda, por exemplo, nem pantim). A crônica de hoje, que seria sobre a famosa “gaia” (ato de levar um par de chifres), não contou com a ajuda do “pai dos burros”.

Página 827: gaias. S.f. pl. Redemoinho de pêlos no peito ou nos quartos da base da cauda do cavalo.

Decepcionante.

Procuro então a palavra “galha”, apesar de saber que ninguém diz “fulando levou uma galha pesada”. Todo mundo diz que fulando levou uma baita de uma gaia.

Página 830: galha. [Do esp. Agalla, com aférese] S.f. designação que os pescadores dão à primeira barbatana dorsal dos peixes, e quem em alguns, como no tubarão, anda, mais ou menos, fora da água.

Sem comentários

***

Tirando o desconto que não sei o que é aférese, e não vou passar a manhã procurando palavras num dicionário, só posso dizer que o Aurélio está precisando ser renovado, incluindo o que a população brasileira mais conversa: o desalentador problema da gaia, que é quando alguém passa chifres em alguém. No “Dicionário do palavrão e termos afins”, do Mário Souto Maior, não só tem “gaia”, como “galhas”.

"Chifres, cornos (Nordeste): casou-se outro dia e já botou galhas no pobre do marido, nossa!"...

Estou falando no assunto hoje porque ontem, no aniversário de Boy, aqui no Poço, o assunto não saiu das mesas e cadeiras. Todo mundo tocou no assunto de alguma forma, uns com uma recorrente insistência, outros com um ar de preocupação. Lá pelas tantas, uma dessas músicas bregas que tomaram conta do Recife, nos últimos três anos, começou o poético refrão:

“É gaia, é gaia, é gaia”.

Minha experiência filosófica é a seguinte – quanto mais o ambiente é simples, quanto mais vamos chegando ao povão, mais o assunto entra na roda e permanece. Diria que é uma obsessão de parte da população brasileira, falar sobre a questão da gaia. É possível se passar uma tarde inteira falando do mesmo assunto, entre uma dose de Rum Montilla e outra? É sim, e aconteceu ontem no aniversário do meu amigo. Aqui-acolá, se falou de outro assunto, o campeonato estadual, botar mais carne para assar, mas era como se fosse o comercial de algum programa, o intervalo. A gaia estava sempre ali, imponente.

Um intelectual da mais alta estirpe, Marcelo Barreto, me encarou com aquele olhar profundo e dramático, outro dia, e disse o seguinte:

“Samarone, gaia é um problema de segurança pública”.

Concordei imediatamente e fiquei impressionado com a constatação, de alto valor filosófico e existencial. As políticas públicas deveriam incorporar o tema nos programas de prevenção à violência. Nem todo corno é manso.

Outra amiga disse que o problema não é propriamente a traição, isso pode acontecer com qualquer pessoa, mas é o peso da palavra: “levou uma gaia” é muito mais cruel do que a singela frase “ele foi traído”. É diferente mesmo, admitamos, dói muito mais ser acusado de corno. “Aquele ali é um corno” é uma frase feia pra caramba, uma das mais feias da lïngua portuguesa.

Tem um conhecido nosso aqui do bairro que é ranzinza, carrancudo e trata mal as mulheres. Nunca entendi o motivo, mas também nunca tive intimidade suficiente para descobrir. Ontem mataram a charada. Falando sobre o dito cujo, aquela brabeza toda, a falta de atenção com as mulheres, e alguém me explicou:

“Tu não sabe? Aquilo foi uma gaia, que deixou ele empenado. Nunca mais se recuperou”.

Tomei mais uma dose e voltei para casa, mas confesso que me deu pena do sujeito.

sexta-feira, 3 de março de 2006

As pequenas fortunas do afeto

Desde a quarta-feira de cinzas ando intrigado com uma questão filosófica e poética: por onde andará o meu precioso exemplar do “Livro do Desassossego”, do Fernando Pessoa, que os ladrões levaram, junto com minha bolsa, naquele assalto feio e nervoso?

Sei que após colocar minha bolsa no ombro, os dois ladrões entraram na favela de Santo Amaro e fiquei desamparado, com apenas uma caneta no bolso, em plena Agamenom Magalhães, uma das mais movimentadas do Recife. Um taxista me disse que lá dentro da favela “é um verdadeiro labirinto”, e lembrei de Borges, com seus labirintos. Será que o Pessoa foi notado? Será que alguém ali por dentro chegou a ler a bela dedicatória que a super super Érika fez para mim, no maio dos meus 30 anos, em São Paulo? Será que alguém percebeu que o livro está riscado em todas as páginas, com dezenas de anotações minhas nas primeiras páginas, coisas que servem para toda uma vida? Vão reparar que algumas páginas estão manchadas de café?

Ontem, me dei ao trabalho de um levantamento mais completo das coisas que estavam na bolsa e confirmei o que vinha pensando: quem me roubou não ficou menos pobre, apenas causou males a um amante da literatura e das besteiras da vida. Além do Pessoa, tinha o pequeno livro do Gustavo, o “Comunicosofia”, que ganhei de presente, em Brasília, e vinha relendo para preparar as aulas que vou dar na “Oficina da Palavra”. Tinha feito inúmeras anotações e o livro, na verdade, era já um esboço das aulas. Espero que Gustavo leia esta pequena crônica e me envie um novo exemplar, com dedicatória novamente.

Mais duas cacetadas: a deliciosa caneta-tinteiro, que me acompanhava serena e bela, há mais de dois anos, e um relógio de bolso, com aquela correntinha, igual aos dos nossos avós ou bisavós, aquele que a gente aperta um pitoco e a tampa abre. Lembro que quando eu dava aula, colocava em cima da mesa para ver a hora de encerrar algum assunto, e dizia que tinha sido do meu avô, uma história cheia de meandros, coisas de herança etc. Na verdade, o pequeno objeto me custou R$ 19,99 em uma banca de revista, mas valia inventar a história pelo tom solene da conversa e o ar de espanto.

Por último, confirmei agora de manhã. Tinha colocado na bolsa, pouco antes de sair, uma cadernetinha linda, que ganhei da Fabiana, de Londres, uma cadernetinha repleta de anotações aleatórias, frases de autores queridos, de amigos, pequenos trechos de reflexões inúteis sobre a importância do café forte para a saúde, a vantagem de ter pé grande na compra de sapatos, ponderações sobre a necessidade de conversar com desconhecidos em praças e ônibus, além da pequena ode aos jardins. Me dói saber que a tal cadernetinha estava a poucas páginas do final.

Há pouco me deu um frio na espinha. E se um dos ladrões, o que estava com um 38 me apontando na cabeça, resolver ler minhas anotações? Meu Deus. Pior: se ele foi comemorar o assalto em um boteco, ali por dentro, tomando umas cervejas, e resolver ler em voz alta minha reflexão existencial sobre a importância da pelada de domingo nos Caducos, aqui no Poço?

Como só recebo dinheiro lá para o dia 10 de março, acabei de pegar R$ 200,00 a título de empréstimo, com Seu Vital. Paguei dona Fátina e me sobrou R$ 150,00. Daria este meu pequeno orçamento pelos dois livros, a caneta, o relógio e meu caderninho. Acho que os ladrões topariam.

Já que a questão as segurança pública está um desastre mesmo, deveriam inaugurar pelo menos um “Serviço de Interação com os Ladrões”. Você discaria para um 0800 e negociaria o material roubado. Tenho certeza que muitos bandidos barra pesada aceitariam uma graninha pela foto do filho que a mãe levava, no cantinho da carteira que foi roubada.Outros lalaus venderiam por uns trinta contos aquele terço da avó, que a mulher levava na bolsa, a modo de proteção. A carta que a amada mandou de longe, cheia de saudades, valeria um pouco mais.

Porque mais que o dinheiro, o celular, os cheques, são esses pequenos afetos que nos roubam, essas lembranças que carregamos conosco para fazer a vida mais bonita. O retrato da filha distante, um bilhetinho de alguém dizendo “te amo”, com sua letra garatujada, um restinho do perfume predileto, para usar no encontro de daqui a pouco, aquela fitinha do Senhor do Bonfim, baratíssima em todo canto, mas que é uma proteção, uma pequena bênção, o livro mais querido, cheio de anotações, com uma foto antiga dentro.

São as pequenas fortunas do afeto, nossas besteirinhas, nossa singularidade. Quando levam, assim à força, a vida fica menos bela.

Para Luisa, a Luluôô, que completa dois anos hoje, e faz minha vida muito mais bela.

quinta-feira, 2 de março de 2006

Ó quarta-feira ingrata...

O Carnaval foi perfeito, cada dia com sua folia, brinquei muito, encontrei as pessoas queridas, mas já na segunda-feira, existia aquela questão filosófica que sempre discuto com o professor Davi: por que a quarta-feira de cinzas chega tão rápido? Como diz o velho frevo, "a gente esquece tudo quando cai no frevo/ e no melhor da festa/ vem a quarta-feira".

É um mistério. No meu caso, o fatídico dia chegou com uma entrevista, para realizar no início da tarde, um free lancer para pagar as contas atrasada, que são muitas, garanto. Mas ninguém merece fazer uma entrevista em plena tarde da quarta-feira de cinzas, enquanto o “Bacalhau do Poço” se concentra para sair, e os amigos todos estão ainda na folia.

Lá vou eu. Na hora de descer do ônibus, errei a parada, desci um ponto antes do shopping e fui logo assaltado. Dois caras com um trinta e oitão que eu vou dizer. Entreguei a bolsa e fiquei com R$ 3,00 no bolso, mas escapei vivo, apesar da tensão completa. Os ladrões devem estar com ódio de mim. Levaram a bolsa de pano que Emília me deu de presente ano passado. Dentro, uma agenda, dois blocos de anotações e o “Livro do Desassossego”, do Fernando Pessoa. Nem um tostão, nem celular, cartão de crédito, nada. O que eles queriam, eu não tinha, o que eu tinha, não servia para eles.

Duzentos metros depois, tinha uma guarita da PM, informei o episódio e os três policias ficaram me olhando com aquela cara de quem está só esperando terminar o horário do plantão, um tédio misturado com omissão, essa é a Polícia de Pernambuco, voilá.

“Foi ali na esquina”, disse eu, apontando o dedo ainda meio trêmulo. Não sou esse homem todo, capaz de ser assaltado com um revólver e ficar sem se tremer.

“É esse pessoal da favela”, me respondeu um.

“É bom ir na delegacia, registrar a ocorrência”.

Foi tudo.

A entrevista foi transferida das 14h para 16h, e a ressaca comendo no centro. Fui de táxi, com um fotógrafo e assistente, para um hotel depois de Calhetas, quase uma hora de viagem com seu César. O hotel não era aquele, era outro, que ficava na metade do caminho, nos deram o endereço errado, e só fizemos mesmo foi perder tempo. Na volta, pegamos aquele baita congestionamento dos carros que estão vindo do litoral sul. É hoje! Já entardecendo, pedi para parar o carro e fui num fiteiro, comprar uma cerveja. Só tinha Nova Schin. Tem muita propaganda e tal, mas a cerveja é ruim, vos garanto. Foi ela mesmo, e fiquei com aquele sentimento de ter pisado em rastro de corno, que dizem dar um azar danado.

Acabamos marcando a tal entrevista para hoje de manhã. Cheguei em casa quase 19h, com R$ 1,00 no bolso (os outros dois gastei com duas Schin em lata) e uma caneta fuleira pela metade. Onde estará meu Fernando Pessoa, foi o que pensei. Ficaria aliviado se alguém pegasse o livro e tomasse conta, pelo menos para enfeitar alguma prateleira.

Passei em Seu Vital, contei os detalhes do assalto aos amigos, escutei aqueles “vige nossa senhora”, “o Recife está um caso sério” e frases consoladoras no mesmo estilo, mas que não consolam nunca, depois fui em casa, botei um calção e fiquei brincando de molhar a meninada na rua. Foi o que salvou o dia, ficamos todos ensopados e ainda corremos atrás de Teresinha com um balde, para dar um banho nela. Ela escapou por um triz. Resultado: faltou água em casa.

Por fim, o Santa Cruz perdeu de 2 x 0, pelo Estadual. Só me restou mesmo dormir.

Mas tirando esses detalhes da quarta-feira, o Carnaval foi lindo, garanto. O povo pernambucano é um povo que sabe brincar, e isso é da alma. Ano que vem tem mais. E la nave va.