Parei de me benzer há muitos anos, não lembro exatamente quando. Quando passava defronte a uma igreja, fazia o "pai, filho, espirito santo, amém" e beijava o indicador, como tinha ensinado minha avó Zeneuda, que já não está mais por aqui. Herança de minha mãe também e de uma série de ancestrais cristãos.
Não sei quando foi quando deixei de ser cristão e passei a acreditar em tudo. Tenho fé nos pássaros, nas árvores, nas gentes, animais, nas árvores, enfim. Mas, como moro ao lado de uma igreja, todos os dias vejo a cena clássica. As gentes que passam mansamente, ou apressadamente, e fazem o "pelo sinal", numa devoção respeitosa. Lembro da minha avó, que fazia isso também quando passava defronte a cemitérios.
Uma das maiores experiências religiosas que vivi, aconteceu no Carnaval de 2001, depois de seis anos longe do Recife. Era sábado de Carnaval, e saí meio sem destino, perambulando pelas ruas de Olinda, e acabei na frente do Clube Atlântico. Era a concentração de "Ceroula", e entrei. Os homens, só os homens, comiam feijoada e tomavam cachaça, se preparando para o desfile. Fiquei reparando. Aos poucos, a orquestra de Ceroula subiu ao palco e tocou uma das músicas mais belas que conheço, que é o hino de Ceroula. Eu fiquei completamente abalado com a força dos instrumentos e a beleza da música. Minto: a força era dos homens, que tocavam carregando suas histórias de vida.
No meio do salão, com aqueles famosos chapéus de palha, os integrantes do bloco pulavam, abraçados e alucinados. Eu me meti no meio daquela confusão e durante aqueles longos minutos, me misturei à turba, despido de personalidade. Era apenas um anônimo, pulando com minhas enormes pernas. Foi um êxtase. Ali, estive com os deuses todos, esqueci de tudo, vivi algo meio místico. Foi uma experiência religiosa, tenho certeza.
Há um lugar no Recife que é um santuário para mim. É um mangue que nasceu e vingou no meio do Rio Capibaribe, defronte ao Parque da Jaqueira. É um mistério que esteja ali, porque vai desafiando o curso das águas, como que dizendo: eu existo. Sempre que passo, seja de carro ou de ônibus, deixo tudo somente para olhar, atentamente. Algumas vezes pensei em me benzer, mas não é o caso, seria apenas o gesto mecânico, a herança familiar que não vinga mais de forma plena. Aquele mangue, para mim, é uma igreja, um templo, uma catedral da natureza.
Estava anotando essas besteiras num caderninho, quando o ônibus que eu ía, parou em um sinal, na avenida Agamenom Magalhães e um menino se pendurou na janela ao lado, onde estava um sujeito muito sério. O que estava no banco de trás, disse um ríspido: "vai estudar, rapaz". Mas não era um rapaz, era um menino, e ele mexeu com as pessoas. O que estava ao meu lado ofereceu dois reais para ele descer. O menino abriu um sorriso imenso e desceu, o homem sério abriu a carteira e jogou o dinheiro pela janela. Não vi mais o menino, o homem sério guardou a carteira e o ônibus seguiu.
Eu pretendia falar de heranças familiares e coisas do tipo, mas o menino na janela mudou tudo. Não sei o que o menino foi fazer com os dois reais, mas tinha um sorriso lindo e não era um rapaz, era criança mesmo, pensei em corrigir o colega do banco traseiro.
Desconfio que nem sempre a gente consegue falar o que quer, culpa desse negócio que chamam gente, o maior dos mistérios.
2 comentários:
Sama, tu tá demais! Esse blog vicia a gente. Tb lembro de um menino que ficava na janela esperando o pai chegar do Banco do Brasil para entrar na "lapada". Lembra? Abração do mano PH
Tá aí. Eu também parei de me benzer com o sinal da cruz não sei quando. Minha mãe é daquelas cristã que foi professora de crisma, catequese, gosta de novena e até hoje canta na igreja com meu irmão. E eu sempre me benzia quando passava na frente de igrejas, qualquer uma. Quando adolescente, eu era obrigada a ir à missa antes de ir pra matinê da boate aos domingos. O momento que eu mais esperava era a comunhão, pois logo depois a missa, enfim, acabava. Nunca entendi essa coisa de se confessar com um padre. Pra que? se posso interagir, sem intermédios, com a energia cósmica. Hoje me benzo, do meu jeito, sempre que vejo o Mar, a Lua, a Mata, o Rio...Assim como tu, Samarone, já me peguei recentemente quase fazendo o sinal da cruz ao passar por uma igreja, mas não saiu, não é natural.
Quanto ao menino da janela, este usou o sorriso como benção àquele momento.
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