terça-feira, 31 de julho de 2007

Tomado

Há tempos um livro não me acertava assim, de cheio. "O passado", do argentino Alan Pauls, chegou há alguns dias. Acordo, leio, pego o ônibus, vou lendo, dou aulas, leio mais um pouco. Estou tomado pela história do Rímini e da Sofia.

Leio sorvendo cada pedacinho, sem pressa. Livro bom não dá vontade de terminar nunca. Por causa dele, deixei para depois o "Neve", do Orthan Pamuk.

Un pedacito:

"Sim, odeio você. Sim perdôo você.
O amor é uma torrente contínua.
Como sei que não vai ser capaz de ir sozinho à mostra de Riltse (já posso ouvi-lo: "lembranças" demais - as aspas são suas), na quinta às sete vou estar na porta do museu.
Sou a garota baixa e de olheiras, de impermeável amarelo (se estiver chovendo), ou a que acaba de descer sem fôlego de sua bicicleta verde (se o tempo estiver bom).
Você não tem como errar.
Odeio ter que lhe dizer isto, mas é sua última chance".


Vou aqui, ler mais um bocadinho, tomando umas goladas do meu chimarrão. Faltam somente 400 páginas, pela graça divina.

Perdão pela eventual demora em atualizar o blog.

"Mas a compreensão é um dom que exige resposta"(pag. 79)

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Últimas cenas do Pan, no Alto José do Pinho

Faltavam quatro quilômetros para terminar a Maratona, e o cara da Guatemala já vinha bufando, arfando, achando certamente aquela distância toda um exagero. O locutor disse que ele não estava mais com a mesma homeostase, algo assim, essas coisas ridículas dos locutores, após o camarada correr feito louco por 38 quilômetros. Atrás, num galope firme, o corredor do Brasil, mais decidido que ministro do Supremo. A diferença entre os dois era de reles 150 metros.

Eu estava na casa de Eliete, no Alto José do Pinho, tomando uma cerveja, enquanto Eliete atendia uma freguesa, em seu salão. Ela me deu o controle remoto da TV e pediu que eu esperasse só um pouco, enquanto cuidava dos cabelos de uma senhora distinta.

"O brasileiro vai passar, Eliete!", gritei, como se aquilo fosse algo muito importante.

Ela veio para junto, com uma tesoura na mão. A cliente ficou na cadeira, com uma pá de cremes no cocoruto. O camarada do Brasil dava cada passada de girafa, que vou dizer.

O locutor fazia um carnaval danado, mas estava na cara que o guatemalteco estava caindo pelas tabelas.

Ficamos olhando atentos, a tensão foi aumentando, até que o brasileiro engatou a quinta e passou tinindo.

"Eita, ninguém mais segura ele", comentou Eliete.

Depois, foi aquela presepada toda. O sujeito pegou a bandeira, o povo aplaudia, e debaixo de chuva, o mineiro ganhou a Maratona.

Quando acabou a prova, olhei para Eliete. Estava com os olhos cheios d´água.

Depois, fui ao Caldinho do Biu, encerrar a tradicional manhã de domingo no Alto. Estava começando um jogo de basquete. Seu Biu chegou, me cumprimentou, ele parece muito (no jeito), com Seu Vital, do Poço da Panela. Aquele camarada que não é muito de brincadeira, e que tem posições muito definidas sobre o mundo e as coisas.

Um sujeito comentou:

"Seu Biu vai torcer contra o Brasil".

"Eu não torço contra o Brasil, eu sou realista", respondeu Seu Biu.

Adoro esses diálogos metafísicos, onde o sujeito se define perante a existência como "um realista", "sou um sonhador", essas coisas.

"Naquele jogo mesmo contra a Argentina, nem o técnico esperava aquela vitória".

(Para meus leitores menos afeiçoados ao futebol e seus resultados, ele se referia ao jogo Brasil 3 x O Argentina, no final da Copa América).

"Isso é porque ele joga no Chiocago Buls", comentou um papudinho, sentado junto ao balcão.

"Mas Joca, tem que ser realista..."

Numa mesa ao lado, o sujeito com a camisa de um clube da periferia, meio barrigudinho, com cara de quem tinha disputado uma partida fundamental para a sua humanidade naquela manhã, comentou:

"A gente nota quando o sujeito joga bola. Está a maior confusão, ele mata a bola no peito e distribui a jogada".

Muito bom isso, de distribuir a jogada.

"Pois eu perdi um gol igualzinho ao dele. Mano tocou para mim debaixo da barra, chutei pra fora. Não acreditei".

"Seu Biu, me dê uma latinha!"

(Se referia a uma latinha de Pitú, produto largamente consumido no Recife).

Seu Biu passou por mim e comentou:

"O cara tem que ter fé em Deus e não desanimar".

A frase serve para tudo.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Mapa-mundi (pequena fábula de viagens)

Na argélia, esqueci um guarda-chuva comprado em Paris. Fui à Palestina, levei flores para a Faixa de Gaza.

Fui salvo no Canal da Mancha por uma enfermeira russa, que passava à procura de um soldado raso. No trem que partir para a Turquia, fumei cigarros com um desertor, comemos no intervalo da manhã uma sardinha vencida (que ele furtou da última guerra).

Tive problemas no Caúcaso, nas Ilhas Samoa e no Alasca, me veio a certeza de que tenho medo de altura. Por absoluta falta de ação, fiquei pasmo nos mares do sul, a sorte foi um cozinheiro em Madri que adivinhou meu nome.

De galho em galho, de fresta em fresta, fui revertendo um tempo e cismei de apertar as mãos de um rabino, que me disse algumas passagens à meia voz. Por enquanto, não lembro os detalhes, naquela tarde nublada em Israel.

Cansei meus pés visitando minhas saudades, levei pedras nos bolsos para acertar o cocoruto de Ramsés, mas ele ausentou-se para uma festa nas bandas de Mallorca. Teve sorte, o infeliz.

Por duas vezes acendi o Vesúvio com fósforos Paraná, e tive problemas na fronteira com a Bolívia: queriam tomar meus dois colares comprados no Cariri.

Foi neste tempo que encontrei meu avô, passando de mansinho pelas calçadas, eu disse "ôps", ele respondeu "oba", e ficou por isso mesmo, ele estava com pressa e fazia muito calor naquela tarde.

Voltei à velha oficina, nos desertos do Chile, mas começava o Carnaval, de formas que me perdi na turba, e não peguei o ventilador quebrado. haja calor!

Nas calçadas da Guatemala, quantos homens cheios de cabelos, Deus do céu!

Muitas vezes preferi não agir, e um monge beneditino me piscou o olho, dizendo que estava tudo certo para minha estadia (por precaução, tomamos duas cervejas e ficamos contentes com as duas garotas que insistiam na filosofia tântrica). Mas nada aconteceu, dei o pé numa bicicleta de 14 cilindradas.

Quanto àquela noite na Criméia, passei apertos. A cela era pequena e nos aquecemos sem pressa, apesar do cansaço e das tormentas, mas pior é morrer sem conhecer os bafos do mundo.

Fiz por onde habitar meu nome numa pequena cratera para as bandas do Saara, iniciei meu nome com tinta guache e fui aplaudido de pé por quatro jamaicanos que jogavam dominó. Ainda não sei o motivo. Pensei em fazer o contorno e passar novamente por Buenos Aires, mas o tango não veio, fiquei reservado, esperando os ventos laterais. Tomei um café com o Roberto Bolaño num boteco safado na Cidade do México, pouco antes de sua morte, e saí sem pagar, ora bolas.

Evitei os problemas respirando fundo com aquele dragão sagrado em Vancouver, uma cidade que me lembrou muito Itapipoca, cheia de girassóis-mirins, herdados de Mombaça.

Causou-me estranhamento o silêncio dos hermanos, ao sul de Lima, mas como fazia fogo brando, na região dos lagos, não me apoquentei. Botei as barbas de molho, descobri que tinha andado muito, resolvi voltar.

Então perdi o trem, que só passou dois dias depois, e vi que estava cansado. Olhei para meu caderno velho, toquei fogo nas palavras, com uns índios velhos, os potiguares, fiquei em silêncio por duas gerações, e só então voltei pra casa.

Para quem gosta de andar pelo mundo, como um cubano que conheci em Buenos Aires, e reencontrei meses depois, na Chapada dos Veadeiros, sempre com sua bicicleta ao lado e um sorriso sereno.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Um sujeito besta

Tenho descoberto, ao longo do tempo, que sou um sujeito besta. Besta no sentido metafísico mesmo. Hoje mesmo, fui a uma livraria comprar um livro, encontrei outro que julguei melhor, não comprei o livro original e agora, em casa, fiquei reparando nos detalhes da mudança.

Fui para um boteco meia boca, ali no Bairro do Recife, pedi uma cerveja, e anotei na primeira página:

"Livro comprado no faro".

Chama-se "Passado", do Alan Pauls. Fui vencido pelos dois primeiros parágrafos. Livro me vence não é pela orelha, nem pela apresentação gráfica, nem pela listagem dos mais vendidos. O nocaute é mesmo nas palavras. Dois, três parágrafos, e caio na lona, então o juiz começa a contagem.

Lá, na livraria, encontrei o velho e bom Siba, do Mestre Ambrósio. Eu, meio apressado, fiquei desnorteado quando ele me olhou nos olhos e perguntou:

"E você, está bem?"

Não, não era aquele "oi, tudo bem?". Era algo mais denso. Tinha uns segundos de silêncio, de atenção. Ele queria realmente escutar quem estava à sua frente. Fica o registro. No Recife, em julho de 2007, ainda tem gente que quer saber como o outro está. Nesta turma, incluo a Naire, a Flávia Suassuna e mais dois ou três malandros e malandras.

No boteco, onde fiquei tomando a cerveja geladíssima e lambendo o livro, a garçonete, Etiene, me perguntou até quando iria o Pan do Brasil.

"Até domingo, acho".

"Tá danado", respondeu ela. "Esse negócio não acaba mais nunca".

Chego em casa, vejo que "O passado", do Alan Pauls, trata do amor. O Rímini, após separar da Sofia, começa a falar de suas experiências.

"A prosa é alinhavada pelos recuos e dispersões do tempo, lembrando um estilo de Proust que tivesse lido Cortázar", diz um panfleto da Cosacnaify.

"Como assim, por exemplo?", penso eu, já pensando em devolver o livro.

Olho minha estante principal. Preciso reler "O ser e o tempo da poesia", do Alfredo Bosi. Dos 47 contos do Onetti, tenho ainda 7 na corda bamba. Ganhei o Dom Quixote da Kika, e nem comecei. Mas, como sou besta de verdade, vi que o "Viagem ao fim da noite", do Céline, foi degustado de cabo a rabo.

Me dá uma pena danada dos atletas, quando eles têm que parar. A Janeth, por exemplo, jogou até os 38, agora pendurou as mãos, coitada.

Então fiquei pensando na imensa vantagem que é o sujeito escrever. Ele nunca vai precisar parar.

Tenho a mesma idade da Janete, acho que nunca fiz uma cesta, e só vou parar de escrever quando meus dedos entrevarem. Mesmo assim, arranjarei um jeito de ditar as coisas para uma secretária decente. Tenho a segunda vantagem, que é a de nunca parar de ler. Vou ler até o último segundo. Por mim, eu morreria numa biblioteca, debruçado num livro. Poderia ser o "Voces", do Antonio Porchia. Coisas de um sujeito besta.

Você, leitor, que é advogado, padre ou policial, é melhor ir pensando num negócio que não termine nunca, para não ficar se lamentando depois. Por exemplo, ser jardineiro. Terra neste mundo é o que não falta.

"O amor é uma torrente contínua", diz uma personagem do Alan Pauls.

Concordo plenamente.

Esta crônica de hoje está sem ritmo e densidade. Melhor seria passar uma temporada em Cuba.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Nossa matança na terra

O Brasil inteiro chora os mortos da queda do avião da TAM, é realmente muito triste, lamento e sinto muita dor, mas preciso lembrar dos que morrem sem sair do chão, numa tragédia coletiva que parece não ter fim - e que não sai nos jornais.

Do dia 1o de maio a 23 de julho de 2007, foram assassinados, em Pernambuco, 925 seres humanos, informa o site www.pebodycount.com.br

Não vi nenhum editorial de jornal, TV, revista, nenhum artigo indignado, mostrando a dor das famílias e o tamanho da tragédia. Não pensem que anotei errado ou que o site apurou com exagero. Quatro jornalistas da nova geração resolveram publicar, diariamente, os nossos mortos quase anônimos. É importante ver o trabalho do Carlos Eduardo dos Santos, João Valadares, Rodrigo Carvalho e Eduardo Machado. Olho todo dia. Hoje mesmo, a grande briga da Polícia é pelo aumento salarial.

Os dados são confirmados pela própria Secretaria de Defesa Social. Do Dia do Trabalhador até hoje, menos de três meses, o número de assassinatos em Pernambuco daria para encher quatro aviões da TAM. Outros 125 cadáveres ficariam para outro vôo. Só no mês de junho, 350 pessoas foram assassinadas. Dá um vôo e meio.

Cada vez que olho o site, fico assombrado. Mais assombrado fico com o silêncio, a passividade, a normalidade com que olhamos esses números. São 925 mortos, 925 corações, 925 famílias, 925 sonhos, 925 desesperos. Morrem aos poucos, cada dia uma média de 12, em todo o estado. Ficam por ali, em matagais, em casas pobres, em terrenos, em botecos caindo aos pedaços, esperando a chegada de um carro do IML. Depois, algum familiar vai fazer o reconhecimento. Fico pensando nas 925 mães, nos 925 pais, irmãos, amigos.

Sempre detestei os tempos histéricos. Transitamos da euforia das medalhas, no Pan-Americano, onde cada atleta parece vencer a pobreza e a miséria única e exclusivamente por causa do esporte (o que é uma grande mentira), e vamos aos plantões macabros dos mortos da aviação. Nossa grande tragédia não está nos céus, está na terra.

Mas no fundo, está certo um pensador que gosto muito, Todorov. Ele diz que um morto é um sentimento, um milhão de mortos, é uma informação.

Aceito de bom grado dividir nossa dor e indignação dos desastres aéreos com esses anônimos, que morrem diariamente em Pernambuco e no Brasil.

Até o final do dia de hoje, serão 12 assassinatos na terra do frevo e do maracatu.

Queria que virassem 12 sentimentos, e alguma informação.


A todos os mortos, por acidente, ou por assassinato.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Rabiscos de Fortaleza - 2

Não sei o que houve aqui em Fortaleza, mas o fato é que cheguei em meio a uma febre psicosomática de proporções gigantescas, envolvendo um tal "chip da Oi".

Desde a terça-feira, minha família só fala disso. Minha mãe, já na rodoviária, começou a comentar que precisava pegar o chip dela. Em casa, minha irmã Patricia nem me deu um abraço.

"Tu tem que pegar um chip pra tu, Sama", foi o primeiro comentário.

Depois, ela pegou o telefone e foi ligar - para a Oi, claro.

Fomos à casa da tia Beta. Meu primo, Rogério, que andou tendo dengue hemorrágica, estava ao telefone. Demorou horas, até que desligou e comemorou.

"Finalmente, consegui meu chip´".

Estava começando a ficar com dor de cabeça, quando reencontrei o Neto, meu amigo maratonista, que ficou de fora do Pan por reles 16 minutos.

"Rapaz, tu já pegou o teu chip?", foi a primeira pergunta.

Parece que a promoção é venenosa, a pessoa bota R$ 10,00 e recebe R$ 100,00 de crédito.

Não sei o que diabos as pessoas têm tanto para falar. Como meu objetivo é cada vez falar menos, uma promoção dessas, para mim, não faz sentido.

Estávamos tendo uma conversa bucólica, familiar, ontem à noite, quando minha irmã fez uma pausa poética. Pensei que ela iria lembrar alguma passagem poética de nossa atribulada pequeninice, mas ela falou bem séria:

"Será que eles só colocam o crédito depois que a gente gastar os R$ 10,00?"

Joguei a toalha. Melhor dançar um tango argentino.

Na segunda-feira, colocarei no ar a entrevista bombástica com tio Ademar, que nos anos 70 foi um dos homens mais ricos e loucos do Crato.

Vou aqui, tomar uma cervejinha na Praia do Futuro.

Rabiscos de Fortaleza -I

Cheguei a esta imensa casa da rua Mário Studart, 200, Monte Castelo, Fortaleza, cercada por um muro de pedras, em 1983, segundo minha mãe agora há pouco. Eu estava com 14 anos, o bairro era festivo, com muitos jovens, e ficou famosa uma quadrilha que organizamos, onde recitamos na vida e nos corpos aquele poema famoso do Drummond. O Pepo se apaixonou pela Nadja, que se apaixonou pelo Roncalli, que se apaixonou por alguém que não lembro o nome, que não queria ninguém. E foi acontecendo aquela soma de paixões, até que alguém acertou com alguém, e pelos milagres dos campos mórficos, os casais foram nascendo, eu encontrei a Veruska, passei vinte mil dias criando coragem para pedi-la em namoro, até que ela aceitou e o céu se misturou com a terra.

Mas tudo passou. Não sei o que aconteceu com o bairro. As ruas estão vazias. Os muros subiram de altura, pelas mãos do medo. Muita gente se mudou. Os que partiram, nunca mais voltaram. Da velha turma, só continuam o Pepo, que virou jornalista, e o Neto, que é maratonista e deveria estar no Pan. Ontem, voltando com minha mãe de um passeio, comentei sobre o deserto. Ficaram as árvores, por assim dizer. Inútil procurar o bando de jovens correndo atrás de uma bola, no final das tardes, com partidas decididas no último lance, um golaço de alguém, a festa. Inútil procurar os jogos de vôley, com um pedaço de pano servindo de rede. Todos se espalharam.

Talvez o grande desafio seja este: não procurar pelo que não existe mais. É tolice voltar para os lugares do passado em busca de algo intacto, ficar na melancolia da imagem congelada. Eu também fui embora, ora bolas. O tonho, meu irmão, casou e foi embora. Meu outro irmão, o Paulinho, foi embora para Minas. Meu pai foi para outra casa. Muita gente buscou outra paisagem. Nossos movimentos pelo mundo mudam geografias.

Melhor então percorrer o velho jardim da casa, que agora está sendo cuidado pelo seu Antônio, dedicado jardineiro movido a Ypióka, com um sorriso sincero em meio às plantas. É bom saber que algumas plantas, hoje adultas, foram plantadas por mim, em uma dessas muitas vindas, desde 1998.

Melhor ficar observando minha mãe, em seu eterno costume de arrancar o esmalte das unhas, enquanto resolve uma pendência na Riachuelo, na tentativa bem-sucedida de fazer um crediário para o filho mais moço, embora nem tão moço assim. Melhor observar atentamente minha irmã Patrícia, e ver nela alguns gestos da minha avó, traços que perpetuam a família. Melhor ver a satisfação eda dona Ermira, quando encontra uma amiga na rua, e me apresenta como o filho “jornalista e escritor”, com uma ponta de orgulho, como quem indica que tenho duas profissões. Agora, ela prepara uma sopa. Hoje à tarde, tia Beta fez um bolo que adoro, e fomos juntos à rodoviária, comprar a passagem de volta.

Escrevo no famoso gabinete, onde ficavam os livros, de uma biblioteca que chegou não sei bem como, as coleções que faziam sucesso, tempos atrás. Agora não é mais tempo de coleções. Desde que chegamos a esta casa, chamava atenção um objeto inusitado, para uma classe média-média: um cofre, incrustado na parede, com chave e segredo, da marca “Confiança”- de luxe.

Não sei o que tinha dentro do cofre, se meu pai guardou alguma coisa nele, desconfio que a chave esteja perdida para sempre. Ele está aqui, à minha frente, vazio de segredos, ou repleto de silêncios. Ninguém mais pode abri-lo.

Então me ocorre escrever algo, compartilhar retornos, passeios pelo passado, ancorado no presente. Às vezes, quem escreve sente uma imensa solidão, que precisa ser compartilhada. É o meu caso, hoje.

Amanhã terei que escrever sobre uma obsessão que tomou conta de todos os meus familiares e agregados, desde que cheguei. Um tal do "Chip da Oi", que move céus e terras. Mas fica para amanhã. Por hoje, fico por aqui. Na Lan house, vamos de Roberto Carlos.

Mini-recesso

Estou em Fortaleza, sentindo o cheiro da família e vadiando pelas ruas da velha cidade, que me abrigou dos 9 aos 18 anos.

Os amigos só querem farra, minha mãe quer fazer todos os crediários do mundo e pensa em me levar a um cabeleireiro que vai dar jeito na minha juba.

Diante dos fatos, só me resta decretar um mini-recesso de crônicas neste blog, até o próximo domingo, quando estarei de volta.

Abraços a todos,

Samarone

Ps. Sugiro lerem o Blog da Naire e o Razão-Poesia, do Gustavo. Os endereços estão ao lado.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Reflexões inúteis sobre a decisão de parar de beber

Há alguns meses, participei de uma reunião dos Alcoólatras Anônimos em Fortaleza. Fui dar uma força para o meu tio, que passou a vida bebendo, e resolveu parar, antes que fosse tarde. Fui para rever o tio querido e aproveitei para matar minha curiosidade. Como deve ser uma reunião da turma que está enfrentando um desafio tão difícil quanto parar de beber? Escrevi até uma crônica, que deve estar em um desses arquivos. Meu tio recebeu a medalha: estava há um ano sem beber. sei que ele segue firme, mas não é fácil.

O que vi naquela pequena noite foi que duas coisas pesam bastante neste momento crucial, que é a decisão de parar de beber. Primeiro, se o cara é alcoólatra mesmo, se a bebida entrou nos ossos e nas células, parar de repente implica numa luta contra algo de muitos anos. Depois, os amigos não ajudam em nada, porque tudo é levado na esportiva, e socialmente, a bebida está em tudo que é lado. Na verdade, os amigos deveriam frequentar também o AA, para ver como o negócio é barra. Escrevo neste tom de brincadeira, mas sei que o negócio não é fácil.

Basta o sujeito dizer que parou de beber, que tudo fica esquisito. Você vira a esquina, encontra um grande amigo que não via há anos. Após o abraço, as perguntas iniciais sobre o que tem feito, se está casado, se tem filhos, vem a frase:

“Rapaz, vamos tomar uma cervejinha para comemorar”.

Quando o camarada resolve parar de beber, os aniversários se multiplicam, os batizados pipocam de segunda a sábado, todos os conhecidos decidem casar no mesmo mês, pelo singelo motivo de oferecer um coquetel aos amigos. Seu time resolve passa a jogar praticamente todo dia. Basta você entrar no estádio, que um amigo está com a latinha na mão:

“Pega logo tua cerveja, que estou nervoso”.

Os amigos são inimigos brutais de qualquer tentativa de parar de beber. Basta você sentar numa mesa animada e pedir um guaraná, que o mundo cai.

“Que frescura do caralho!”, diria Joãozinho Peruca.

“Tas feito fresco agora, é?”, frase típica do João Valadares.

“Só quer ser o diferente”, comentário do César Maia.

“Esse cara está com problemas”, diria Osvaldo Titio.

“Tu tas com problema em casa, meu irmão?”, frase típica de Naná.

Para dar o drible nos amigos, o melhor sistema é dizer a lapidar frase:

“Estou dando um tempinho”.

Olham para você atravessado, surgem muxoxos, mas nada que chegue a magoar, porque fica no ar a certeza de que é algo passageiro, que você vai se recuperar logo, e voltar às atividades copísticas.

Meu amigo Davi passou seis meses sem beber. Pedia um refrigerante num copo longo e dizia aos amigos que tinha Rum Montilla. Ele sabia que o clamor popular não permitiria tanto tempo longe dos gramados.

Josmar Jozino, meu dileto companheiro de redação, em São Paulo, parou de beber e aderiu à Kronnenbeer, aquela cerveja horrível, sem álcool. Funciona bem, porque ele vai bebendo e ficando com aquela voz pastosa, de quem bebeu de verdade. Na verdade, ele sente o gosto da cerveja, e parece que faz efeito. Psicologicamente funciona, é o que importa.

Com Seu Vital não deu certo. Ele parou de beber à força, indicaram a tal Kronnembeer, ele resolveu arriscar. E três dias, tomou 54 latinhas. Foi vetado pelo departamento médico. Voltou à cerveja original.

O grande perigo de quem bebe e dá um tempo, é aquela sede que o cara tem quando volta. Naná, amigo de longas jornadas, passou oito dias sem beber, e no domingo passado voltou às atividades. Amigos, o copo não ficava cheio dois minutos! O gordinho voltou com aquele sede retroativa.

Dois lugares são pouco recomendáveis para quem está querendo parar de beber - o bar de Seu Vital, no Poço da Panela, e minha turma de amigos do Monte Castelo, em Fortaleza. Nos dois lugares, o clima é todo favorável à manguaça. Em Vital, aquela conversa fiada, o botequim das antigas, a cerveja que agora está saindo estranhamente gelada, o dominó manhoso etc.

No Monte Castelo, os amigos de adolescência, o churrasco no jardim da minha casa, o cozidão que minha mãe prepara, a alegria que ela fica olhando os amigos todos juntos.

Aí é fogo. A mãe contente porque o filho está no jardim de casa, bebendo com os velhos amigos, não dá nem para o sujeito pensar em parar.

Farei o teste.

Para o tio Ademar, que deu a volta por cima, com ou sem a ajuda dos amigos.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Postagem 300

Fui olhar agora no "blogger", que é o editor deste meu blog, e tive um susto, mas um susto bom. Esta é a postagem de número 300!

Estava pensando em escrever um texto relembrando meus professores queridos, mas achei o número de postagens tão exagerado, que senti imediatamente uma preguiça fundamental, "estruturante", como bem diz minha amiga Ana Luíza.

Me ocorreu mais agradecer pela imensa troca com os leitores. Faço deste espaço um lugar muito sagrado, onde posso contar sobre as coisas que vejo, vivo e sinto. Em alguns momentos consigo chegar perto do que quero dizer, em outros, fica apenas a intenção. Muita gente que lê eu jamais vi, não sei nem de onde estão acessando, e acho um mistério bom receber um email da minha amiga Haidée, que está no Chile, informando que recebeu um texto sobre a agressão policial ao Procópio, ocorrido aqui no Coque.

Outro dia, conversando com o velho Gustavo, disse que a crônica tinha sido uma das grandes descobertas da minha vida. Antes, eu transitava do jornalismo clássico, de reportagens mais densas, com fôlego, e trabalhava nos meus livros-reportagem. Na moita, escrevo sempre meus poemas, mas é coisa minha, mais o prazer de escrever mesmo.

Então veio a crônica, esta criatura que não tem formato certo, tamanho exato, onde o tema pode ser uma topada na calçada, um olhar esquecido numa parada de ônibus, restos e sobras do cotidiano, uma mãe que joga os umbigos dos filhos no Capibaribe, uma história de amor vivida por um amigo. Nem jornalismo, nem poesia. A vida em suas reentrâncias, falhas, dobras, fendas. A vida é tão imensa, cabe tanta coisa...

Hoje, eu queria reunir todos os meus leitores para uma grande farra. Na impossibilidade, mais tarde tomarei uma cerva com meu amigo Ailton, que trabalha comigo na Oficina da Palavra. Farei um brinde aos meus leitores.

Obrigado pela troca constante. Amanhã escrevo uma crônica pra valer. Hoje eu queria somente celebrar 300 encontros.

Samarone Lima

Ao Iramaraí, que me deu um esporro quando fiquei sem escrever e me mandou abrir um blog, e à minha professora de blog, Maksandra.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Tiremos Paulo Freire do altar

Vão querer me matar, mas é o que penso.

Acho que precisamos tirar Paulo Freire do altar. Nosso grande educador fez a cabeça de gerações de professores, digo, educadores, transmitiu esperança e ternura a milhões de líderes comunitários, teólogos progressistas, intelectuais, pensadores, questionou as formas de transmissão do conhecimento, as relações em sala de aula, colocou o amor, o reconhecimento do outro, mas...

Mas o homem vem sendo cada vez mais colocado num altar, com água benta do lado e caminha para a condição de santo. Reverenciamos Paulo Freire todos os dias. Da reverência, estamos passando para o endeusamento. Há congressos, livros, seminários. As práticas em sala de aula são questionadas a cada segundo. O aluno, perdão, o educando, foi ganhando importância, mas tanta importância, que está acontecendo um fenômeno social incrível – hoje, o professor é quase um coadjuvante em sala de aula. A impressão que tenho, hoje, é que o aluno olha para o professor, e tem vontade de dizer:

“Professor, o senhor está atrapalhando a aula”.

Venho pensando sobre isso há algum tempo, matutando devagarzinho, porque no Brasil, temos algumas pessoas que são colocadas no altar, viram mitos, intocáveis, e ai de nós, reles mortais, do pensamento mediano nacional, se ousarmos fazer alguma crítica. Fenômenos inversos também ocorrem. Nelson Rodrigues, o reacionário dos anos de chumbo, é cada vez mais visto como revolucionário, um homem capaz de falar das coisas mais sombrias da alma, sem concessões. Quem vai se aventurar a falar mal do Nelson Rodrigues, hoje? Isso era moda nos anos 60 e 70.

Duas coisas me chamaram a atenção, nos últimos tempos. Primeiro, virou quase politicamente incorreto, beirando à ofensa, o sujeito ser chamado de “professor” (aquele que ensina uma ciência, arte, técnica; mestre, segundo o Aurélio). Agora, para quem ainda não sabe, o certo mesmo é “educador”. Eu, que trabalho com as palavras, seja lendo, ensinando, escrevendo, acho a palavra “professor” linda. Basta eu falar dela, que lembro meus bons professores do passado, aqueles que me ajudaram a ser quem sou e o que sou. Não lembro de nenhum deles como educadores. Eram sim, meus professores. Quando você bota o politicamente correto na palavra "professor", tão cheia de significados, está tirando toda a sua força.

Depois, tenho visto coisas terríveis acontecendo pelas escolas do Recife e adjacências, já que moro numa adjacência chamada Cabo de Santo Agostinho. O professor só falta pedir perdão para fazer uma chamada. De tirano, de inquestionável, de dono do saber, de capataz, em outros tempos, se tornou quase um intruso em sala de aula. Por outro lado, o aluno foi mudando de lugar. Do que obedecia tudo, do que temia a figura do professor se aproximar, que aceitava o que chegava de conhecimento como algo dado, fechado, inquestionável, que não podia refletir criticamente, o aluno virou quase o senhor da sala de aula. Isso acontece na escola pública e nas escolas mais caras do Recife.

Há 15 dias, encontrei uma amiga, professora de mão cheia, conhecedora dos percursos, teias e paixões da literatura, da escrita, uma figura sensível e atenciosa, com um blog delicioso aqui na Internet. Nosso encontro, em meio à inauguração de uma biblioteca no Coque, um dia festivo, teve uma nota intrigante. Ela tinha pedido demissão de um colégio de classe média, em Casa Forte, onde a mensalidade é uma pancada no bolso dessa gente, que se vira como pode para tentar dar uma boa educação aos filhos. Se preocupa tanto em pagar uma escola cara e boa, que esquece de dizer que ele deve respeitar o professor.

Minha amiga não agüentou sequer um ano na escola. Ficou chocada com a falta de respeito, a obsessão pelo celular, os fones de ouvido literalmente dentro do cérebro, a balbúrdia. Tentou criar estratégias, mudar formatos, abriu caminhos, diálogos, mas nada. Exausta, abatida, sem entender o que faz um bando de jovens do 1o ano do Ensino Fundamental sair de casa para exercitar a criatividade jogando coisinhas em seus celulares, ela jogou a toalha. Pediu demissão. Estava aliviada, mas triste.

Queria muito ensinar coisas mágicas do mundo da Literatura, mas não deu. A sorte é que ela tem turmas particulares de Literatura, então acontece uma coisa engraçada: a classe média paga mais uns trocados, para os filhos que querem mesmo ir para um lugar com o objetivo específico de estudar, já que a sala de aula comum está parecendo um samba do crioulo doido.

Sempre li Paulo Freire com os olhos mais humanos. Antes de morrer, ela já era um mito. Disse e escreveu coisas linda, importantes, fundamentais, que tenho comigo como referência para meu trabalho como professor de literatura e escrita, mas tenho críticas, discordo de algumas coisas, acho que tudo que ele disse e escreveu tem sido levado ao pé da letra. Eu, se fosse ele, estaria incomodado.

O professor tem pensado tanto no aluno, que tem esquecido da sua importância. Os valores estão todos virados pelo avesso. O celular novo é mais importante que um poema do Fernando Pessoa. O pêndulo mudou de lado. O aluno vem perdendo sistematicamente os referenciais de respeito, de atenção, cuidado. A sala de aula vem deixando de ser, há algum tempo, um espaço sagrado para a transmissão do conhecimento, para a reflexão, desenvolvimento das potencialidades e visão de mundo. Vixe Maria, agora estou ferrado mesmo: usei a frase “transmitir conhecimento”. Ninguém transmite conhecimento, nós vamos para a sala de aula para aprender com os educandos, aquela coisa.

Modestamente, acho que um sujeito que passou a vida lendo, anotando, pesquisando, planejando suas aulas, pensando na melhor maneira de passar para seus alunos, está transmitindo conhecimento sim. Outro dia, perguntei aos meus alunos quem sabia o que era uma metáfora. Dos 19 em sala, apenas um sabia, e de forma improvisada, porque não conseguia explicar direito aos colegas. Então, começamos uma nova jornada, em busca de metáforas. Levei livros, poetas, escritores, lemos juntos metáforas, até que ela virou nossa amiga.

Sou professor. Adoro este ofício, fico emocionado quando um jovem aluno vem me mostrar um poeminha simples, início da grande aventura pessoal. Ontem, uma aluna me contou que passou a tarde inteira lendo um romance, e esqueceu do tempo. Outro dia, ela disse que não gostava de ler. Conversamos, rimos, trocamos idéias, mas não tenho o menor pudor de parar uma aula e dar um carão, quando a coisa desanda. Fica aquele silêncio, mas sinto que é um silêncio de respeito, um freio nesta grande esculhambação que este país tem se transformando, porque tudo é culpa do outro. Tem alguém, ali, um professor, que por um momento diz um "não" bem dito.

Depois do silêncio, eu digo:

“Vamos continuar?”

E sigo a aula.

Não sei se Paulo Freire acharia isso opressor ou não, mas isso não me incomoda. Não coloquei o velho mestre num altar, e também não quero ser santo. Quero ser apenas um bom professor.

sábado, 7 de julho de 2007

Vinte e três minutos na Dantas Barreto




Com ilustração de João Lin

Estou na avenida Dantas Barreto, centro do Recife, exausto, depois de um dia cheio de atividades, desde a troca de um cheque, após périplos em três Itaús (não sei como se escreve Itaú no plural), trabalho com meus alunos no Alto Santa Terezinha, encaminhamentos de pendências, enfim, essas coisas da vida e da sobrevivência. Então, é hora de voltar para casa.

A Dantas Barreto, como foi bem descrita em um documentário há algum tempo, é uma avenida que vai de nada a lugar nenhum. Foi uma idéia maluca do prefeito Augusto Lucena, se não me falha a memória, que dizimou o bairro de São José quase inteiro, casarões e arquiteturas, isso sem falar no sofrimento das famílias.

Começo a contar os minutos para ver quanto tempo espero meu "Centro do Cabo". A movimentação no entorno das paradas é algo poderoso, a luta pela sobrevivência torna a chegada de qualquer ônibus um comércio dos mais vorazes. Os vendedores de pipoca se amontoam às janelas, as preferidas são as salgadas, que custam R$ 0,50. De fato, são saborosas, dá para tapear a fome até chegar em casa, uma hora e vinte minutos depois.

O comércio da compra e venda de passes é também digno de nota. Há gente de toda idade fazendo este trabalho. Uns com cara de gangster, outros com cara de desespero, outros com cara de quem está apenas buscando ganhar uns trocados a mais. Tem uma senhora que simpatizo há tempos, aquela sexagenária gordinha, com sorriso bom. Me aproximo e peço dois passes tipo "B", que é o que usamos no Centro do Cabo. Ela me cobra R$ 2,30 e diz que compra por R$ 2,10. A diferença é o lucro. No ônibus, a passagem custa R$ 2,45.

Aproveito para fazer perguntas. Dona Zélia tem 60 anos, mora no Alto Três Carneiros (ou são dois, não lembro direito, eu quando não tomo nota, esqueço muitas coisas), e fica na Dantas Barreto das 7h às 19h. Sim, 12 horas ali, ganhando o seu e lutando pela vida. Traz a comida de casa, e só gasta na rua um pouquinho, um café com pão, já na parte da tarde. Também vende pipocas e salgadinhos, que ajudam a fazer uma frente.

"A gente trabalha aqui faz tempo, todo mundo se conhece", diz, com um sorriso bom e a esperança de estar viva, quando chegar a aposentadoria, daqui a cinco anos.

Zélia, que tem a mesma idade de uma tia minha que mora em Fortaleza, tem três filhas, duas casadas e uma solteira, que mora com ela. Vai ganhar o terceiro neto em breve. Engraçado isso: ela tem três filhas mulheres, e os netos todos são homens.

"É assim. Quando as filhas são fêmeas, os netos são tudo macho", explica, e lembro das compensações.

Fico olhando os ônibus. Vem um bem longe (reconheço os ônibus da São Judas Tadeu a quilômetros, ele tem as cores da Itália), aperto o olho e vejo: Cabo/Cohab. Não serve. O tempo vai passando, converso mais com Dona Zélia, ela explica que todos que trabalham ali, do mais simples vendedor de pipocas ao que trabalha com CD pirateado, sobrevive da rua. E a cada chegada de ônibus, a movimentação aumenta, parece que o coletivo chega com um imã. A gritaria é grande, as promoções surgem ao acaso, a pipoca salgada reina absoluta, em segundo lugar vem a água mineral, e só na partida, o comércio termina.

Passam mais três "Cabo/Cohab", eu sinto um cansaço, minha bolsa nas costas pesa, tem livros, eu sempre ando com livros para minhas atividades na escola, pareço um contrabandista de papel, de poetas e romancistas, mas não reclamo, adoro isso.

Estou com vinte minutos na Dantas Barreto, conversei com Dona Zélia, comprei uma pipoca, até que surge, ao longe, o Centro do Cabo, e pequena multidão se aglomera. Quando o ônibus chega, subimos como dá, naquele aperto, até que um homem moreno, com cara de vigilante, calça azul, cisma com outro, um galego com cara de quem bebeu, cabelos desgrenhados, dentes horríveis.

"Tás querendo me roubar, safado?"

Já estou do lado de dentro, passando pela roleta, quando a confusão aumenta, os dois estão do lado de fora.

"Tás doido?"

O pernambucano usa mesmo essa linguagem, não é invenção minha.

Os dois ficam num pega pra capar, os passageiros ficam na expectativa de uns sopapos, um boxe em plena avenida. Cara de Vigilante dá-lhe uns carões, o chama de safado, diz que está de olho, Cara de Quem Bebeu fica leso, tentando escapar, sabe que tentou mesmo dar uma gatunada, o cobrador me olha e diz:

"Isso é um safado. Tá aqui roubando direto. A Polícia nunca aparece".

A rusga termina porque Cara de Vigilante embarca, e o motorista começa a ciscar, anunciando a partida. Neste momento, Cara de Quem Bebeu sente um arroubo, sobe-lhe uma fleuma sabe-se lá de onde, ele se aproxima do ônibus e grita pela janela:

"Tu não sois filho de Gerson, ládo Cabo? Pois eu vou falar com ele, visse?"

Não tivemos tempo de entender este final surpreendente, não sei se Cara de Vigilante é mesmo filho de Gérson, pois o motorista arrancou, indiferente ao final da cena urbana. Olhei para o relógio: 23 minutos de Dantas Barreto.

Então começam as conversas, as avaliações, a psicanálise dos fatos. Uma mulher diz que Cara de Quem Bebeu estava atuando com uma mulher.

"Eu vi a gilete na mão dela!"

Burburinhos, rumores, acusações, é preciso ter cuidado, a Dantas Barreto está um ninho de ladrões, essas coisas. Me ajeito por ali. Graças a Deus, peguei uma vaga na janela, perto de onde fica a cadeira do cobrador, que tem mais espaço para estas minhas pernas de girafa. Sem morrer, que está cedo, estico as canelas. Que dia!

Neste meio tempo, não avisei a vocês, eu tinha comprado duas cervejinhas em lata. Abro uma, faz aquele barulhinho bom. Pego dois canudinhos, dou uma boa golada, encosto a cabeça no vidro da janela e sei que teremos muito chão pela frente.

Uma senhora gorda, que sentou ao meu lado, ficou calada um bom tempo. Depois, soltou uma espécie de desabafo sentido, cheio de raiva e tristeza:

"É muita safadeza!"

Acho que só eu escutei.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Sobre livros, livrarias e otras cositas más



Com ilustração do parceiro João Lin

Fiquei a meio metro do chão quando a Priscila Venâncio, a Índia, minha aluna, chegou com “O amor nos tempos do cólera”, do Garcia Márquez. Leu de cabo a rabo. Leu mesmo, com fé e coragem, e indicou para os amigos da turma.

Todo mundo que trabalha com literatura sabe como essa paixão é incorrigível. Nós ficamos doentes pelo troço, e queremos contagiar todo mundo. Do porteiro do edifício que mal conhecemos, ao primo distante que diz ter dor de cabeça quando começa a ler, passando pelo colega de trabalho que deixa escapar uma réstia de alegria com algum livro, e nos danamos a falar de nossa prateleira principal.

Mas quando um aluno chega com os olhos brilhando, falando de sua inauguração no mundo da leitura, ave Maria santíssima, é uma felicidade que fica rendendo o resto da aula e se prolonga pela tarde inteira.

Tem muita paixão que acaba, mas até agora nunca conheci uma pessoa apaixonada por livros que tenha encontrado um motivo para acabar a relação.

Uma pessoa que ama ler, por sinal, jamais discute a relação. Sente, é claro, aquela pontada de ciúmes quando empresta levianamente algum livro, e ele fica num terreno perigosíssimo, que é longe da casa.

Quanto mais envelheço, mais vou ficando suspeito para falar no assunto. Meu faro está ficando refinadíssimo, melhor mil vezes que aqueles camaradas que provam vinho (esqueci o nome da profissão agora), que e ficam numa frescura dos diabos para tomar uma dose de Chateau Duvalier, rodando a taça mil vezes, olhando para a lâmpada fluorescente e cheirando, como se estivessem bebendo uma boa dose de perfume da Natura.

Entro na livraria, meu nariz começa a coçar, tem um radar na ponta dele, indicando a prateleira. Fica fazendo um barulhinho “piiii” intermitente, igual aos modernos subterfúgios de guerra, que vai aumentando à medida que respiro. Então vou me aproximando do livro indicado pelo meu subconsciente mais remoto, onde não funcionam os recalques ou segredos, até que o alarme dispara de uma vez e retiro o objeto da estante.

É o momento sagrado de cheirar o livro, sentir aquela mistura sagrada de papel e tinta, que penetra na corrente sanguínea e dá um barato. Raramente falha o meu alarme, que os psicólogos mais astutos chamam de intuição.

Um bom amante dos livros, no entanto, não cai na cilada da paixão desenfrada por uma boa capa, uma orelha de primeira, uma página inicial arrebatadora. É preciso dar uma boa circulada na livraria, desligar o alarme, usar os equipamentos mais antigos mesmo, que são os olhos e o coração. Percorre-se aquelas prateleiras ermas, onde podem estar os autores abandonados, exilados, os fora do esquema das grandes editoras. É preciso caminhar sem demonstrar preocupação, um andar quase de desdém, uma caminhada por ali, meio claudicante, como quem usa uma bengala imaginária.

Depois de uma boa colheita, é o momento de procurar um bom lugar para sentar e fazer a garimpagem. Cheirar os demais, passar as páginas, cutucar, ler trechos. É a hora de confirmar o encontro ou despistar o infeliz. Daqui a pouco, chegará o momento fatal de ver o preço, melhor não apressar os fatos. Minhas últimas grandes descobertas foram “Três cavalos”, do italiano Erri de Luca, e “Rosário Tijeras”, do colombiano Jorge Franco. Arrisquei pesado no chileno Luís Sepúlveda, com “Diário de um Killer sentimental”, mas faltou algo. Fiquei mal acostumado, com o Roberto Bolaño.

Por aqui - No Recife, estamos ainda órfãos da Livro 7, é uma saudade perpétua e irrevogável, melhor nem passar pelo centro para não sofrer muito. A Livraria Cultura, aquela gigantesca criatura, nos fornece uns assentos que você só fica o tempo de ler uma orelha, sob o risco de uma boa escoliose, fora câimbras nos glúteos. Além disso, não um reles, um raquítico banheiro.

Ultimamente, eles estão numa perseguição ao avesso junto aos leitores. O sujeito entra, com um livro comprado lá mesmo, na semana anterior, e vem um vendedor, educadíssimo, dizer que o apito da porta apitou, que o livro deve ter magnetizado de novo. Já aconteceu comigo três vezes, é um troço chato. A vantagem é que o vendedor entrega logo um cartão dele, muito bonito, e volta muitíssimo feliz, com seu livro desmagnetizado, você pensa inclusive que vai ganhar um belo brinde, mas a brincadeirinha ficou por ali.

Tem a Poty, que é uma ótima livraria, principalmente para a turma das Ciências Humanas, mas eu não sei qual o mistério existencial ou metafísico, os vendedores estão sempre ocupadíssimos, parece inclusive que estão consertando o mundo. Outro dia, fui comprar um lote de livros para a minha escola, passei quase um mês pelejando, parecia que eu estava comprando uma jibóia do Instituto Butantãn em 13 parcelas. Já estava desistindo, quando o Felipe entrou em ação, e resolveu tudo. O Felipe para a Poty é como o Erasmo era (poxa, essa ficou horrível) para o Roberto, nos bons tempos. Desculpem a comparação destoante, mas foi a única que me ocorreu.

A livraria oferece café e água mineral de graça, e os clientes citam Lacan, Malinovsky e Foucault, fora um camarada que vai lá toda tarde, falar seu inglês de Londres, com um dos vendedores. Eu, que falo inglês pra chuchu, não entendo uma vírgula. A Poty fica na Conde da Boa Vista, que está passando por obras, e o trânsito, que já era péssimo, ficou pior. Melhor ir de helicóptero.

Esta semana, voltando da dentista, esbarrei na Livraria Arraial, ali na Rosa e Silva, e tive um sobressalto no espírito. Rapaz, o espaço está bonitinho, com muita coisa boa. De cara, vi três livros do Juan Carlos Onetti e pensei: tem algum maluco aqui. Para minha surpresa, o “Estuário” também está sendo vendido lá, então vi que são malucos mesmo, e minha anestesia passou na hora. Procurei incontinente pelo vendedor. O Antônio veio me atender, é solícito e conversador, e tem na biografia algo como ter jogado no Santos na época de Pelé: foi vendedor na lendária Livro 7.

Falamos do assunto (o da Livro 7) “en passant”, porque se fôssemos entrar nos detalhes, daqui a pouco estaríamos no boteco mais próximo, tomando Rum Montilla e Coca Cola, afogando nossas lágrimas de saudade, lembrando aquele galpão infinito, aquele clima que ninguém do Recife esquece.

Perambulei a valer, vi que a Arraial está tinindo, fiquei tão contente, que esqueci até de perguntar se tinha banheiro, para malhar a Cultura. O Antônio disse que estavam esperando mais 1.000 livros da Editora Record para esta semana, e fiquei procurando espaço ali para colocar mais 10 exemplares de alguma outra coisa, e não achei.

Bem, mas eu lá vou ser louco de discutir com um cara que já foi vendedor da Livro 7?

Fico por aqui, e nada de me acusar de merchandising.

domingo, 1 de julho de 2007

Manhã no Coque, entre livros, crianças e sonhos



Com ilustração de João Lin

O Coque aparece quase todo dia na TV e nos jornais, quando acontece algum homicídio ou prisão, relacionada geralmente com tráfico de drogas. É considerado por muita gente como “o bairro mais violento do Recife”.

Como era de se esperar, nenhum jornalista apareceu, nenhum meio de comunicação deu as caras, para mostrar a inauguração, neste sábado, da Biblioteca Popular do Coque, uma iniciativa da comunidade, com o apoio de Frei Aloísio Fragoso, UFPE e outros parceiros. Alguém já viu inauguração de uma biblioteca num bairro pobre ser notícia neste país? Não deve dar ponto no Ibope ver uma pequena casa repleta de gente, livros chegando, doações de todos os lados, enquanto jovens liam histórias para crianças, nas calçadas do bairro.

Marquei com alguns dos meus alunos a estação Joana Bezerra, do metrô. Iríamos também dar um abraço em Procópio e Sérgio, do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI), brutalmente espancados pela Polícia Militar, dia 23.

Defronte à estação, um descampado, sacos de lixo e um cavalo, tentando descolar um lanche. Do outro lado, o imponente, majestoso, caríssimo prédio da Justiça. Muita coisa no mármore, porque a turma da Justiça gosta de um mármore, talvez a metáfora mais simples de algo duro, imutável e frio, como a Justiça no Brasil. Um vendedor fica gritando:

“Olha a Folha! Folha é um real!”

Dou uma olhadinha na machete:

“Tiros e demissões no Náutico”.

Observo o movimento. A estação do metrô tem integração com o terminal de ônibus. Várias pessoas vêm por fora e não passam pela catraca, sob o olhar complacente de três policiais militares. Não sei qual a regra para liberarem desse gasto a mais (R$ 1,60), mas vejo várias pessoas passando. Daqui a pouco, vem um jovem negro, com boné para trás, com um andar meio tímido. Faço o meu teste de racismo ao vivo. Ele vem na direção da catraca, faz um sinal de positivo para o guarda, querendo passar por fora, o PM responde:

“É por lá, visse?”, mostrando a catraca.

Enquanto isso, várias outras pessoas passam sem pagar.

O rapaz baixa a cabeça e volta. Está sem dinheiro. Penso em pagar a passagem, mas se eu for me intrometer em todas as mazelas sociais, minha vida vai ser um inferno. O rapaz faz uma cera, depois encontra um casal, que vem com um filho pequeno. Fala com eles, vem andando. Acho que agora, acompanhado de uma família emprestada, ele vai conseguir. Lá vem ele. A família passa, o PM olha e diz, irritado:

“É por ali, eu não já te disse”, diz o tira, na faixa dos 50 anos, gordo, cabelos grisalhos, uma pistola à cintura.

O menino vai embora, olhando para o chão. Outras pessoas passam sem pagar.

Depois chega Ana Cecília, minha aluna. Veio de Brasília Teimosa. Está estudando em um pré-vestibular na UFPE. É uma criatura maravilhosa, umas das melhores alunas, educada, gentil, e leitora voraz de coisas lindas. Aguardamos Aldemir, o “Suco”, que também vem de Brasília, dar uma força à biblioteca. Ele chega de ônibus, acena pela janela com aquela sua cara de boa gente. Traz na sacola seu caderno, cheio de poesias.

Caminhamos até a rua Centenário do Sul, viramos à direita, estamos dentro da comunidade. É o sábado típico do Recife, com gente nas ruas, manicures mandando ver, roupas penduradas, crianças brincando etc. Na frente da biblioteca, muita gente, crianças, gente da UFPE, a velha amiga Ivana Fechini, muitos alunos. Encontro Flávia Suassuna, amiga blogueira, professora de Literatura. Ela vai falar na inauguração do espaço, e fico sabendo que também fui escalado para dizer algo.

Flávia conta da importância dos livros. Citou um exemplo maravilhoso, ao mostrar um livro com um quadro ao seu filho, e ele respondeu:

“Mãinha, ainda não sei gostar”.

É isso mesmo, Flávia, é isso mesmo, nada como ajudar a gostar dos livros, para mudar esta cidade tão bela e assustadora. Mais livros, mais bibliotecas, mais histórias, romances, crônicas, poesias, menos armas, menos violência, a gente começa a gostar das belezas, a se mexer, a fazer algo, por mais simples, e não aceita mais tanta feiúra, nem fica refém do medo.

Falo minhas águas, cito o exemplo de minha aluna, Cássia, que mora no Coque. Ela chegou para a inauguração com três livros, para doar. Um deles era “Estrela da Vida Inteira”, bela edição com os livros de Manuel Bandeira.

“Pôxa, você vai doar o Manuel Bandeira?”, perguntei.

“Tem problema não, professor. Lá em casa tem dois, um vai para a biblioteca”, responde.

Isso, Cássia, é assim que vamos arrebentando as barreiras. É compartilhando Manuel Bandeira, não com a violência da Rádio Patrulha contra os jovens.

Olho uma figura ímpar. Um senhor bem aprumado, com camisa manga comprida para dentro da calça social, cinturão, uma boina creme com a imagem de Che Guevara. Sim, amigos, é o frei Aloísio Fragoso, que está na comunidade há 30 anos. Estava feliz com a iniciativa, lembrou que a “criança”, que era a biblioteca, tinha nascido, mas precisava crescer, amadurecer.

“Conhecimento hoje é poder. Quem conhece, tem poder”, observou.

Depois ele fez a bênção, com a leitura de um trecho da Bíblia, depois ele espargiu adoro esta palavra) água benta e começaram a cantar a “Oração de São Francisco”. Aproveitei para dar uma olhada nos livros, que chegaram como doação. Simone de Beauvoir, Gabriel Garcia Márquez, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, muita literatura infantil, enquanto todos cantavam “onde houver trevas que o leve à luz”.

Do lado de fora, brincadeiras com as crianças, leituras, o bairro em festa. Os meninos do MABI estavam eufóricos.

Voltei para o centro do Recife com Aldemir, o aluno-poeta. Resolvemos seguir caminhando mesmo, para economizar passagens e gastar palavras. Atravessamos a ponte, saímos nos Coelhos, e fomos falando da vida, livros, amores, dores, alegrias, essas coisas. Suco me contou sobre sua vida, a violência que já sofreu da polícia, falou de sua paixão pela poesia, a descoberta dos livros, mais isso fica para outra crônica.

Lá pelas tantas, vinha caminhando uma mulher, com seu filho nos ombros. O menino estava sem camisa, era pequenininho e sorria. Ela vinha repetindo:

“A, e, i, o, u”.

O menino repetia:

“A, e, i, o, u”.

A tal educação sentimental.


ps.Quem quiser ajudar com livros ou com trabalho voluntário, é só mandar um email para: coquevive@gmail.com

Ps. Vejam o belo e emocionante texto da Flávia Suassuna sobre a inauguração no www.fsuassuna.blogspot.com