segunda-feira, 27 de fevereiro de 2006

Recesso carnavalesco

Amados leitores,

Este jovem cronista só voltará a escrever na quarta-feira de cinzas.

O motivo é simples: Carnaval.

É impossivel escrever algumas linhas quando em Olinda e no Recife tem uma multidão cantando e brincando, e o dia está lindo.

Não sou de ferro.

Até breve.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

Notas pré-carnavalescas, anotações históricas e conversas nos coletivos

Serjão, meu amigo que nunca para quieto, me mostrou ontem o álbum de fotografias da Troça Carnavalesca "Me segura senão eu caio". O título é mesmo uma graça: a troça é formada somente de deficientes físicos. Aos trupicões, saem cantando e celebrando a vida, uma lição de vida e tanto.
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Estou fazendo um trabalho extra, entrevistando um bocado de gente, o troço tem que ficar pronto logo depois do Carnaval. Acabo de receber um telefonema, avisando que uma das entrevistadas vai me receber no sábado de Carnaval, dia do Galo da Madrugada e outra, possivelmente na quarta-feira de cinzas. Estou aqui meio em desespero, tentando desmarcar tudo, vamos ver, ninguém merece isso.
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Nossa Troça Carnavalesca Mista "Os Barba" costumava bater no peito e dizer: "fazemos a festa com uma orquestrazinha fornecida gratuitamente pela Prefeitura da Cidade do Recife!" Pois deu errado. Este ano, não liberaram um saxofone sequer para a agremiação. A sorte é que alugamos uma orquestra, temendo o pior. Viva "Os Barba".
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Algumas troças maravilhosas que pesquei na programação do Carnaval de Olinda, e que pretendo acompanhar: (onde tem TCM é "Troça Carnavalesca Mista")

T.C.M. Anárquico Erótico Ereto Bicho de Pé.

T.C.M. Leve Minha Cunhada.

T.C.M. Mexendo Passa.

T.C.M. Anárquica Bebedoura Mole Não Entra.

T.C.M. Quase Que Não Sai.

T.C.M.Só Quero Um Pouquinho,
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Fiz um pequeno levantamento de caráter sociológico (no site da Prefeitura de Olinda) sobre o Clube Carnavalesco Misto "Cachorro do Homem do Miúdo", fundado em 05.03.1910. A agremiaçao surgiu no antigo Beco das Barreiras, atual Rua José de Alencar, no Recife. Segundo o site, um grupo de amigos voltava de um enterro e viu um vendedor de miúdos caído no chão, embriagado, tendo ao lado vários cachorros, que não permitiam que ninguém se aproximasse do dono nem comiam os miúdos que tinham caído do tabuleiro. Tanto zelo, inspirou o grupo que acabou criando uma pequena agremiação homenageando os cães. Um miudeiro com o tabuleiro na cabeça e um cão ao lado (símbolo do clube) estão bordados no estandarte da agremiação. Informo que o presidente do Clube é o senhor Carlos Orlando, que mora na Ladeira do Giz, em Águas Cumpridas.
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Ontem, parei defronte a uma escola e fui tomar um suco de maracujá. Daqui a pouco, vejo uma penca de meninos saindo de uma sala, por uma rampa. Traziam nas mãos uns adereços e cantavam: "Ei pessoal, ei moçada/ Carnaval começa, no Galo da Madrugada".
Impossível não sentir uma emoção.
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Bem, meu pantim dos últimos dias está passando e me preparo para os festejos. Como estou liso, tento empréstimos de emergência com vários amigos. Há pouco, recebi o primeiro não, mas com elegância. Mais tarde tentarei Cesar Maia, Déa e Mimos. Ninguém merece um Carnaval liso.
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Lembrei agora de um Carnaval em que eu estava trabalhando pelo Diário de Pernambuco, junto com a amigona Graça Prado. "É o bicho, vou te devorar, crocodilo eu sou", fazia o maior sucesso. Foi a primeira vez que vi o Carnaval em cima de trios elétricos. Foi bom, mas bom mesmo é no meio da massa.
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Só para lembrar...
Saiu no "Diário na História" de hoje, uma nota sobre o sábado, 23 de fevereiro de 1856 (150 anos atrás):
Avisos diversos - Desapareceu no dia 10 corrente pela 8 da noite, um escravo de nação, por nome João, levou calça e camisa de algodão riscado, altura regular, seco de corpo, costuma embriagar-sé; roga-se as autoridades policiais e capitães de campo que o apreendam e levem a seu senhor, na rua Largo do Rosário, botquie 27, que será recompensando generosamente".
Precisa-se alugar uma ama de leite sem filho: na praça da independência, números 36 e 38/
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Estou no Alto Santa Isabel, sexta-feira de Carnaval, 8h23 da manhã. O diálogo do motorista com a cobradora:
Ele: Bob Esponja está descansando hoje?
Ela: Ele ainda tem coragem de botar aquele chapéu cheio de gaia dele?
Ele: Pense!
Ela: Ele diz que é ex-corno. Eu disse que isso não existe: quando é corno, é para todo o sempre.
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Mais na frente, o ônibus para num sinal. O mesmo motorista conversa com o colega do ônibus ao lado:
Motorista1: Óia, tu vai bater bumbo hoje?
Motorista 2: (inaudível)
Motorista 1: E apois.
Motorista 2: (inaudível)
Motorista 1: Pense! Pense numa água de crente que vou beber hoje!
O sinal abriu, e acabou a conversa.
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"Deixa o frevo rolar/ eu só quero saber/se você vai brincar...

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

A palavra que conserta a vida

Por obra do destino, voltarei a ser professor. Ganhei de presente uma disciplina com o delicioso nome de “Oficina da Palavra”. A partir de abril, trabalharei com jovens de 16 a 19 anos, de bairros menos favorecidos desta cidade imensa e desigual, que é o Recife. Durante 18 meses, junto com outros profissionais, tentaremos buscar novos caminhos profissionais e humanos para 80 jovens, num belo projeto que envolve muita gente bacana, sob a batuta do querido Ricardo Mello. Por ora, só posso informar isso, para as coisas fluírem bem.

E me vi novamente preparando aulas, pensando nos caminhos a seguir. Fui à Biblioteca Central da Universidade Católica, levando meus cadernos e alguns livros. Passei o dia inteiro em meio aos livros, naquele clima delicioso de biblioteca.

E logo que cheguei, me veio uma torrente de lembranças. As mesmas mesas, as cadeiras iguais, as prateleiras não mudaram, desde a primeira vez que pisei ali, em 1988. São 18 anos, meu Deus! Foi ali, naquele mesmo lugar, que comecei a minha grande aventura com a escrita, com os livros, com a descoberta dos mundos. Lembro que morava numa pensão ali próximo, e dividia o quarto com dois camaradas. Sei que os nomes deles estão anotados em meus inúmeros diários, mas não é o caso de futucar o passado com vara curta, é só uma constatação.

Lembro de um, que trabalhava vendendo seguros, algo assim. Ele chegava do trabalho e abria uma latinha de Pitu, ficava a bebericar e fumar seus cigarros. Era magro, aquele que bebe e vai ficando magro (porque tem cara que bebe e vai ficando gordo). Quando eu voltava da Universidade, ele ainda estava em sua melancolia profunda, entre os goles de aguardente e o cigarro forte, que eu não achava ruim. Quando a faxineira vinha limpar o quarto, arrastava com a vassoura um monte de latinhas vazias, que estavam debaixo de sua cama, e eu ficava impressionado com sua sede. Não sei que destino levou. O outro era um rapaz do interior. Se não me engano, sonhava em morar no Rio de Janeiro, tomara que tenha conseguido, é bom realizar sonhos. Ele sempre botava um pano na janela, para não entrar sol de manhã, e isso era muito bom.

Fui preparando as aulas, pensando em como a palavra poderia ajudar na formação desses jovens que encontrarei. Enquanto isso, olhava para os funcionários e tentava o precário reconhecimento de lembranças antigas. Minha memória é péssima, acho que por isso escrevo tanto. Tinha uma gordinha simpática que sempre me atendia com um sorriso, não lembro seu nome, mas lembro de seu sorriso. Não a vi. Terá se aposentado? Muita coisa muda em 18 anos, mas creio que seu sorriso não mudou, deve ter melhorado. Com o tempo, o sorriso das pessoas melhora.

Lá pelas tantas, as aulas foram ficando prontas, pelo menos na minha cabeça, mas o filminho continuou passando. As aulas, os amigos de turma, os primeiros estágios, até que chegou a hora de viver disso, do jornalismo, viver da palavra, por assim dizer. Conquistei, às duras penas, o ofício de Jornalista. Depois de vários anos, retornei para ensinar na mesma Unicap. Teria que repassar este amor às palavras e aos textos aos meus alunos. Lembro da apreensão que fiquei, antes de entrar em sala de aula, e da grande dica que Gustavo me deu, antes da primeira aula:

“Você não precisa mudar nada porque vai ser professor. Seja você mesmo, que vai dar tudo certo”.

Foi o que tentei fazer, não sei se cheguei a realizar plenamente o que planejei, mas guardo muitas lembranças lindas.

Agora, terei pela frente 80 jovens de bairros menos privilegiados do Recife, para caminhar e descobrir novos mundos. O nome da disciplina é “Oficina da Palavra”.

E me vem uma percepção mínima, mas que me serve, me ampara e me orienta: a palavra muitas vezes consertou minha vida. Em outras, ela me salvou.

domingo, 19 de fevereiro de 2006

O menino com a bola, a pelada e outras besteiras de sempre

São 12h47 do domingo, o sol vai rasgando o Recife e estou na esquina aqui de Seu Vital, conversando lorotas com os amigos. Estou numa cadeirinha daquelas de ferro, junto com o velho Diazepan, bebemos uma cerveja para relaxar. O dia está lindo, não há uma verruga nele. Lucidélia traz um tira-gosto e tanto: cebolinhas cozidas, uma delícia, recomendo. Nana vai e vem para todos os lados, armando uma mesa com frutas, para tira-gosto. Defronte, na igreja de Nossa Senhora da Saúde, mais um casamento. Quantos casamentos já assisti na vida? Uns 100, creio, talvez mais. É a vantagem de morar ao lado de uma igreja, a gente sempre vê muitos casamentos. A noiva é linda e o noivo tem lá seu charme, usa um terno branco que se garante. À saída, jogaram arroz neles, igualzinho ao cinema. Eu me considero um sujeito de sorte, por ter um domingo assim, tão doce, sereno.

E surge uma cena do nada, que se torna motivo desta crônica. Vem andando um garoto, de uns 14 anos. Ele está só de calção, descalço, o cabelo cortado bem curto. É um moreno escuro, mas não chega a ser negro. Vem com uma bola de futebol, fazendo embaixadas. Sim, ela caminha e vai tocando uma bola, sem deixá-la cair, com uma habilidade impressionante. Deixo tudo de lado e passo a reparar no menino. Não, não é um menino, é um menino com uma bola. Os dois, o corpo e a bola, se transformam em uma coisa só.

Ele está descalço, vem andando, não repara no casamento. A bola vai ficando macia no pé dele. Nada mais tem importância, nesta manhã de domingo. É ele e a bola. Os dois são um. Aliás, somos dois – o menino com sua bola e eu. Não tem importância nenhuma o chão de pedra e o mormaço. Ele está acariciando a pelota com os pés.

E me vem então este sentimento amoroso com o futebol, que os intelectuais não entendem. Na verdade, não sei o motivo de me encantar tanto com o futebol. Talvez seja porque futebol e vida, para mim, se entrelaçam. Meu nome, por exemplo, veio de um jogador do Fluminense, que meu pai adorava. O Samarone do Flu de 1969.

A pelada do domingo é a minha grande festa corporal. É quando grito, chuto, dou bicudas, solto o bicho dentro de mim. Cada partida é uma decisão. Eu queria ver algum homem brasileiro que aceite perder a pelada do domingo sem ficar contrariado. Do domingo ou de qualquer outra data. Perder a pelada é começar mal o dia, ver o adversário crescer. A maior solidão de um ser humano é a de um sujeito que vai buscar a bola dentro da rede, depois de levar um gol.

Há muito mistério em uma pelada, tenham certeza. Por um breve momento, naquelas quatro linhas, todos são iguais. Todo domingo, jogo com desempregados, porteiros, motoristas, zeladores, encanadores. É quando me sinto mais próximo à igualdade de um país desigual. Posso levar um drible de um cachaceiro e me sentir um merda. Posso dar uma solada em um cara que me acha um burguesinho metido a gente boa. Posso mandar um cara que mal conheço se foder, porque perdeu o gol debaixo da barra.

Pago R$ 1,00 para ajudar no aluguel do campo, e R$ 5,00 para ajudar a pagar a bola oficial, que Batman comprou no crediário. Todos pagam a mesma quantia. Eu acho isso lindo, é uma partilha.

O futebol ensina tantas coisas. Ensina que nunca a vitória é fácil, isso todo mundo já sabe, mas viver isso, sentir isso, é diferente. Hoje mesmo, logo cedo, na pelada dos Caducos, meu clube e minha fé, enfiamos um 6 x 0 no primeiro tempo, Dinho Papeira estava o cão, fez cinco gols. No segundo tempo morgamos geral, erramos a marcação e o time adversário cresceu. Resultado: teve um momento em que a partida chegou ao dramático 6 x 6, o meu time todo desorganizado, e Ruy alardeando que iria virar.

Então, virei bicho, briguei com o time, gritei, fiquei louco. No final, ganhamos de 9 x 6 e me senti responsável pela vitória. Vitória não, me senti responsável pela superação. Saí de campo ensopado de suor, exausto, joguei um balde de água na cabeça e me veio aquele cansaço pleno, a exaustão repleta de sentido. Fiquei sentado, respirando, o suor escorrendo por todos os poros.

Me veio um sentimento muito simples, mas que talvez ainda nos salve enquanto povo: nós, brasileiros, ainda sabemos brincar. Uma pelada na manhã de domingo, aqui onde vivo, é este pequeno exercício de muitos homens se encantando com uma bola, e dialogando em pequenos toques para os corpos que correm. Cultivamos a noção de espaço no mesmo tempo. Dialogamos com poucas palavras: "toca", "passei", "na direita", "pega!", enfim.

Pena que ainda não aprendemos a ser iguais fora das quatro linhas.

Um dia chegaremos lá. E seremos um povo parecido com este menino, que vem andando e equilibrando a bola nos pés, feliz somente por existir.


Para Peitao, Papeira, Sérgio, Cioba, Hércules e todos os amigos da pelada dos Caducos.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Não tenho mais idade para isso

Um amigo meu outro dia fez uma viagem ao interior, em um ônibus vagabundo, para ver o seu time jogar. Seu time, por coincidência, é o meu, que vem a ser o Santa Cruz. A viagem foi infame, num ônibus caindo aos pedaços, ele deveria chegar em casa à meia noite, mas o ônibus foi parado pela Polícia Rodoviária três vezes, e o pneu estourou, isso sem contar que o nosso time perdeu. Chegou no Recife quase quatro da manhã e constatou: não tenho mais idade para isso.

Até outro dia, eu tinha uma birra com esse negócio de "não tenho mais idade para isso". Mas ela, a frase, mudou de sentido. Ao invés de revelar um cansaço, um abatimento da alma, me diz que vamos ficando mais seletivos, com o passar do tempo. O ser humano pode sim, ser como os vinhos. E descubro que não tenho mais idade para muitas coisas.

Não tenho mais idade para ficar aturando gente chata. Eu me afasto mesmo, na base da cara feia, e se for o caso, digo para o sujeito: meu irmão, tu é chato pra caralho. Engraçado que há uma média de 10 homens chatos para cada mulher chata.

Não tenho mais idade para ser destratado em bar ou restaurante. Ontem mesmo, estava em um bar, o tal do Recanto Paraibano, assistindo um jogo do meu clube, o já citado Santa Cruz. Tinha um telão imenso, mas a gente não escutava nada. Os dois garçons que nos atendiam eram azedos dos pés à cabeça. Pedi ao gerente para aumentar o som, ele perguntou se o jogo já tinha começado, quando ia começar o segundo tempo. Não tive dúvidas: paguei a conta antes de começar o segundo tempo e fui assistir ao mesmo jogo em um botequinho de terceira, uma maravilha.

Não tenho mais idade para ficar contando vantagem, seja lá qual for a vantagem.

Não tenho mais idade para ficar contando os centavos, quando chega a conta. Calculo quanto gastei e coloco na mesa. Quando todos fazem isso, dá certo.

Não tenho mais idade para esconder sentimentos e emoções.

Não tenho mais idade para ficar mandando para os amigos aquelas mensagens engraçadinhas que chegam pela Internet. Aliás, nunca tive idade para isso, mas tem muita gente mais velha que continua com essa mania chata.

Não tenho mais idade para escutar palestra, conferência ou debate de qualidade duvidosa, sobre qualquer tema. Eu me levanto e vou embora, e quem achar ruim que ache ruim.

Não tenho mais idade para suportar bêbo chato falando besteiras no meu ouvido, apesar de ter feito isso com amigos, eles que me perdoem.

Não tenho mais idade para ler poetas ou escritores ruins. Nas primeiras páginas, se não gosto, eu delicadamente deixo de lado e vou em busca de algo que me encante.

Não tenho mais idade para ver filme ruim até o fim.

Não tenho mais idade para pedir autógrafo a ninguém.

Não tenho mais idade para ficar longe dos amigos.

Não tenho mais idade para acreditar em amores impossíveis e sofridos.

Continuo tendo idade para buscar o amor real, aquele júbilo que tão bem sabemos.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Melancolíricas

Ah, certos dias me vem uma tristeza muito grande, uma melancolia, os últimos foram assim, e há uma sensação de que algo está, de fato, se rasgando por dentro, me perdoem os poucos leitores pela falta de coisas boas para compartilhar. Sou muito de brincar, gosto da alegria, mas não sou imune às dores da vida, também tenho minhas angústias, tristezas, desolações, minhas falências espirituais, enfim, nada mais que um integrante da espécie humana.

O que me salva é sempre um amigo que saiba escutar sem julgar e ficar no meu canto, quieto. Nesses momentos, quando estou ferido, eu sou meio bicho do mato mesmo. Minhas dores são egoístas, faço como os cães, que lambem suas feridas num cantinho. As alegrias, ah, as alegrias são em conjunto, com os meus, ao deus-dará, eu adoro a celebração coletiva.

Me salva também sair pela cidade, andar em silêncio pelo Recife, vendo as pessoas e criaturas, os rostos, as esperanças e tristezas. Ontem mesmo, fui assistir “Cidade Baixa”, no Teatro do Parque, uma sessão às 18h, que custa R$ 1,00. Desço uma parada antes da Rua do Hospício, vou andando no meio da multidão, na Conde da Boa Vista. É bom me sentir anônimo, somente olhando, respirando a cidade onde vivo. O Recife está um mormaço, um calor ainda intenso, ao entardecer. Em cada esquina, um carrinho vendendo CDs pirateados, com frevo rolando. Ah, o Recife é todo Carnaval, é uma cidade que parece apenas esperar a hora, o momento da grande festa coletiva, há um povo inteiro somente esperando o momento da celebração coletiva.

Passam mulheres suadas, com suas crianças nos braços, vejo uma se pesar na balança da farmácia: 58,9 quilos, acho que está magrinha, vou andando, olhando as lojas, os vendedores de tudo, de óculos, perfumes, alças para sutian, as vendedoras ainda com forças para bater palmas, chamar novos clientes, o sujeito com voz de locutor, chamando os clientes ao microfone, um fantasiado de palhaço, fazendo firulas na porta da loja.

Na fila do Teatro, muitas colegiais, vendedores, gente da classe média baixa e outras classes que não reconheço bem, gente que pode estar salvando o dia com um filme por R$ 1,00. Compro meu ingresso, agradeço, a mulher responde “de nada, meu bem”, nunca num Shopping vou ser cumprimentado assim, tem sempre um vidro e um ridículo microfone, para dar o toque impessoal, mas é isso mesmo, fico feliz com o "de nada, meu bem", que veio com um sorriso doce.

Sento, vem “O Poeta”, um personagem que está no Teatro do Parque há anos, com suas folhinhas impressas, seus poemas invariavelmente ruins, ele aborda as pessoas com a voz exageradamente alta, com a acusação: “Oi, eu sou poeta, estou mostrando meu trabalho”, comprei um poema por R$ 0,25 e acho que ele está piorando com o tempo, e há muito tempo ele diz que é poeta. Um poema sobre “A sala de aulas” termina dizendo “as condições humanas, expõem-se questionadas/afastam pouco a pouco, o estado de asmo/A participação em as questões poematizadas”, eu não entendi uma vírgula e não sei o que é “asmo”, se alguém souber, me avise, porque me senti um asno com o poema, ou talvez pasmo.

Olho o Teatro do Parque, mato saudades. Aqui assisti um grande show de Elomar, há muitos anos, aqui assisti um belo show do Luís Melodia, o filme começa, é um filme intenso, com cenas de sexo, desejo, dois homens e uma mulher que se desejam, no submundo de Salvador, no final, na última cena, uma cena desconcertante, um sujeito grita bem forte “porra!” e há uma gargalhada geral.

Saio pela Rua do Hospício, já é noite, muitos comem cachorro quente a R$ 1,00 com o suco grátis, tomo um suco de tamarindo, ligo para o Ricardo Mello, apareceu um trabalho bacana para mim, oficinas de texto com jovens de comunidades de baixa renda, me animo, é isso o que gosto de fazer, marco uma reunião para hoje, depois vou às Lojas Americanas, está fechando, só vejo os vendedores cansados, terminando a luta de mais um dia, olho CDs, daqui a pouco começa a tocar “Ave Maria”, e não estou com clima para um negócio triste desses no final do dia, volto pela Conde da Boa Vista, um homem forte boceja na parada, vem o Alto Santa Isabel, sempre ele, entro, sento próximo à cobradora e vou olhando pela janela a paisagem do Recife, esta cidade que entrou em minha alma e no meu sangue.

Há alunos na calçada de um cursinho fumando cigarros e esperanças. Ainda vejo os incansáveis vendedores de pipoca, a cobradora está cansada, encosta a cabeça e cochila, vejo uma moça que pega o ônibus errado, muitos e muitos que esperam o ônibus nas inúmeras paradas, casais que se equilibram, mães, avós, homens sérios, jovens, o ônibus vai seguindo, o vento vai entrando pela janela, volto para casa, chego ao Poço, vejo os amigos aqui em Seu Vital, tomo um café, como meu pedaço de fruta-pão que simplesmente adoro e vou me aquietar, que a vida segue seu rumo, a vida está certa, é só deixar que ela siga, como um ônibus pela Rosa e Silva, a caminho de casa, viver parece que é caminhar para casa, que é a gente mesmo, sei lá, vamos vivendo, a gente não nasce e vai vivendo, a gente vive e vai moldando, parece, mas não tenho certeza.

Das vantagens do corte da água

Já me aconteceu de tudo um pouco: já fui preso e levado num camburão à saída do estádio, uma vez esqueci minha mala de viagem em um boteco (e só lembrei na rodoviária), comi soda cáustica quando era pivete, já cortaram minha luz algumas vezes, cochilei em plena avenida e meti meu Fusca num Honda Civic, já fui presidente de Casa do Estudante, fundador de troça de Carnaval, enfim, mas teve uma boa semana passada – cortaram a água aqui de casa.

Eu sempre fui tão preocupado com as contas de luz (média de um corte por ano), que fui deixando a água de lado, acumulando contas, até que a turma da Compesa partiu para a ignorância mesmo – diante da minha obstinação não-pagamental, levaram o hidrômetro (acho que o nome é esse mesmo, apesar de achar que deveria se chamar aguômetro, algo assim), me deixando na seca.

Há inúmeras vantagens em ficar sem água em casa, e pouquíssimas desvantagens, acho inclusive que deveríamos fazer um boicotezinho para a Compesa baixar os preços das contas de água. Primeiro, é ótimo esse negócio de tomar banho na casa dos amigos, porque sempre tem um monte de shampoo bacana, dá para tirar uma lasquinha, aquele que custa mais de dez reais, não aqueles de R$ 3,99 que compro, na promoção. Outra sugestão minha é a seguinte: leve sempre um balde para o banho e traga-o cheio, para os momentos mais críticos no seu banheiro.

Outra vantagem imensa do corte de água: você vai conhecer o banheiro dos vizinhos e até ficar mais amigo deles. Seu Vital, por exemplo, tem que prender o cachorro para que ele não me despedace por inteiro, e faz isso com uma certa satisfação, como quem diz “esse Samarone não tem jeito mesmo”. Tomo banho no WC dos clientes e já deixo o sabonete por lá, que é para o próximo banho. Volto para casa com a toalha no ombro e ainda escuto gracinhas dos clientes.

Na casa de Naná, o banho é bom, mas a lâmpada do banheiro está queimada, e atrapalha um pouco o serviço, penso em levar uma vela para o próximo banho, para um “banho à luz de vela”, deve ter sido aí que nasceu aquela história de “Banho Turco”, é porque Nana deve descender de turcos.

Descobri também que lavar pratos usando a água do balde representa uma economia de 95% no consumo de água, vou falar para meus amigos do Semi-Árido para implementarem o projeto “pratos no balde”, ao lado do “Um Milhão de Cisternas”.

A única nota a lamentar é que as plantas estão sofrendo um pouco, mas como ontem deu uma chuvarada, posso ficar mais sossegado. O jabuti, ou cágado ou tartaruga não deve estar gostando também da brincadeirinha.

Naná ficou de me trazer um tonel, amanhã de manhã, para eu não ficar zanzando com baldes na mão. Pensa em puxar uma mangueira por cima do seu muro, atravessar quintais e terrenos, numa intricada combinação de canos e mangueiras, até chegar à minha casa. Não sei se vai dar certo. Sei que estou pelo menos me divertindo um pouco.

O corte de água serviu para me afastar um pouco as tristezas que andei sentindo nos últimos dias. Parece que quando o sujeito tem que lutar pela sobrevivência, deixa o sofrer meio de lado, talvez esqueça de sofrer mesmo, nem que seja para descolar um balde d'água. Corte de luz não ajuda nada, porque sem um ventilador por perto, eu não durmo um segundo. Além disso, privatizaram a Celpe para os espanhóis, não quero espanhol nenhum me deixando no escuro.

Por via das dúvidas, amanhã tentarei pagar as faturas atrasadas e renegociar a dívida. Daqui a pouco, Seu Vital vai ficar injuriado com esse prende e solta do cachorro e Naná vai achar ruim eu levar uma vela para o banho em sua casa.

E confesso: tem hora que o banho de cuia é poético, mas enche o saco mesmo.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

A mulher que perdeu os medos

Foi na semana passada, e como dizem os psicólogos, estou elaborando o diálogo, pela rara intensidade. Eu conversava com duas pessoas, na despedida de um amigo, a o papo seguia bom, cheio de coisas ricas, delicadas, falávamos de coisas da vida (acho melhor não citar o nome porque nem todo mundo quer ver seu nome em uma crônica, e daqui a pouco não vão querer conversar mais comigo, porque posso publicar conversas) e nenhum dos três sabia contar piadas, creio.

Fomos trocando impressões sobre os mais diferentes temas, lembrando coisas de nossas vidas. Uma disse que foi apaixonada por um menino do Jardim I até a 4a série, então rimos muito. A outra disse uma frase e tanto: “Desde que eu me lembro, estou apaixonada por alguém”. Ela tinha um pôster do He-Man em seu quarto, e cada vez que acordava, dava um beijo nele. A amiga confessou que também adorava o He-Man, mas não só adorava mesmo, não chegou a ficar apaixonada pelo super-herói. Minha lembranças de infância são meio ruis, porque fui um pirralho que leu pouqíssimo gibi e assistiu pouquíssimo desenho animado, não sei o que eu ficava fazendo nas muitas horas vagas da infância.

Até que, em um determinado momento da conversa, uma delas me disse que não tinha mais medo de nada. Ela disse que nada, absolutamente nada, lhe dava medo. Perdeu todos os medos.

Fiquei assombrado. Como assim, sem medo de nada?

Então ela me contou que no ano passado perdeu a irmã mais nova, vítima de uma doença. Não entrou em detalhes, e nem precisava. Mas o que ela mais temia na vida era perder aquela irmã tão amada, e foi justamente o que aconteceu. Uma esquina torta no meio da vida. Um safanão da vida, a morte precoce de quem se ama.

Hoje, ela não tem mais medo da solidão, da morte, de ficar desempregada, nada. Simplesmente perdeu o medo, nada mais que isso. Ele foi embora, junto com aquela dor, que só posso mesmo imaginar. Não havia convencimento em suas palavras, não se tratava de nenhuma tentativa de demonstrar força, mas pelo contrário: É como se tivesse chegado ao ponto mais frágil da vida, quase um graveto, aquele graveto quase quebrou, mas depois ela conseguiu se redimir, sobreviver, florescer.

Quando ela terminou de falar, fizemos um breve silêncio, e dos seus olhos vazava uma luz muito forte, serena, que guardei como quem está recebendo um presente para a humanidade inteira.

Achei justo compartilhar com vocês, num dia muito triste.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

Tatuagens de ternura

Amanhã o Recife vai amanhecer sem Zeca, porque logo cedinho ele vai estar viajando para o Rio de Janeiro, onde vai morar. Ontem teve a despedida-surpresa, organizada por sua mãe, Lucila, mas foi tudo fajutice, porque ele percebeu que algo estava sendo preparado durante o dia, e fingiu que não tinha nada a ver com aquilo. À tardinha ele veio aqui, tomamos duas cervejas geladíssimas em Seu Vital e fiz aquela cara de leso, como quem não sabe nada, e acho que tinha um letreiro na minha testa, informando que teria um assustado em sua casa.

À noite, em meio aos comes e bebes, tive algumas conversas filosóficas da mais alta importância com ele. Primeiro, fiquei sabendo que não tenho uma tartaruga em casa, mas um cágado, o que muda radicalmente meu cotidiano e minha forma de ver o mundo. É que eu andava muito nervoso, sem dormir direito, achando que minha tartaruga estava com dengue, pois não saía do canto, não se alimentava, não ia ao banheiro, não dava um passo. Zeca me tranqüilizou, disse que já teve um cágado, um gato e um pato de uma vez só, explicou que eles, os cágados, são assim mesmo, ficam bem quietos, sem importunar ninguém, sem puxar assunto, são criaturas silenciosas e mansas, então fiquei profundamente aliviado e acho justo que a TV Globo esteja contratando Zeca para trabalhar no Rio de Janeiro.

Depois, me bateu uma inveja irreversível. Zeca vai morar no Rio e vai ganhar um salário para escrever sobre ....futebol! Como é um de meus sonhos de infância, combinamos que ele vai ficar de olho, e se aparecer uma vaga, vai me indicar, dizendo que eu levo jeito com a escrita, e prometeu que dividiremos o apartamento em Laranjeiras, o que é muito chique. Falam da violência do Rio, mas acho o Recife muito mais barra-pesada. Quando tiver jogo do Santa Cruza contra os times do Rio, estaremos lá, no Maracanã, empurrando nosso escrete e calando a torcida do Flamengo.

Então fiquei pensando sobre o fluxo da vida, que é sempre um mistério. Conheci primeiro o pai de Zeca, o engenheiro Edinaldo Miranda. Em 1992, eu era um jovem candidato a jornalista, e estava escrevendo umas reportagens sobre o misterioso caso daquela bomba que explodiu no Aeroporto dos Guararapes, em 1966, durante a ditadura. Morreram duas pessoas, e várias ficaram feridas. Edinaldo foi preso dois anos depois e apontado como responsável pela bomba, junto com o também engenheiro Ricardo Zarattini. O tempo todo eles repetiram que eram inocentes, nunca foi provado nada contra eles, mas ficou assim mesmo. Eles passaram por coisas terríveis, sofreram muito, até que veio a Anistia, em 1979, e puderam recomeçar a viver. Mais que isso, começaram a lutar pela verdade sobre aquele episódio, mas nunca conseguiram. Estou perto de terminar este livro, e espero que fique bonito como Edinaldo e Zarattini.

Fui na casa de Edinaldo várias vezes, a partir de 1992, lembro que eu tinha 23 anos e ainda estava naquele período da pindaíba pesada, que foi de 1987 a 1992. Nas muitas idas ao apartamento na Estada das Ubaias, eu não fiquei amigo de ninguém da família, a não ser Edinaldo, que morreu em 1999.

Alguns anos depois, fiz uma série de entrevistas com Lucila, a esposa de Edinaldo, e acabei amigo dela também, fato que prossegue até hoje, pela graça divina. Em 2000, voltei ao Recife e conheci Emilia, filha de Edinaldo e Lucila, e ficamos amigos também. Teve um Carnaval desses que tomamos um porre de chamar Jesus de Genésio, declaramos nosso amor incondicional, e até hoje somos iguaizinhos àquela música muito brega, que tem o refrão em espanhol, “amigos para siempre”, que as pessoas dançam abraçadas quando estão mamadinhas.

Por último, veio Zeca. Fomos nos aproximando aos poucos, e lembro que eu estava ensinando na Unicap, quando ele entrou na sala, timidamente, com seu passo e jeito mansos. Era meu aluno de Jornalismo, quase uma década depois de eu ter ido à sua casa, entrevistar seu pai. Terminou o curso, trabalhou em alguns lugares, agora vai para o Rio, ser gauche na vida.

Não sei qual o motivo de escrever sobre a partida de Zeca. Não é para dizer o quanto gosto dele, porque ele já sabe bem. Acho que é para falar da vida, dos encontros, de como é bom conhecer e conviver com gente de verdade, no mormaço e na chuva, na alegria e na tristeza, pessoas que criam raízes na gente.

Mário Benedetti fala em um de seus poemas de “tatuagens de ternura”.

Acho que é isso mesmo. Há pessoas que deixam tatuagens de ternura na gente, e quando partem, ficam também, como tatuagem, deixando a lembrança infinita de uma boa e profunda conversa sobre a diferença existencial entre uma tartaruga e um cágado.


Para Edinaldo, Lucila, Emilia e Zeca, pois.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

O que sobra das derrotas é a vida

Acabei de confirmar a participação como palestrante na calourada dos alunos de Comunicação da Unicap, na próxima semana. Eu gosto muito desses encontros, porque há uma boa troca e lembro do período em que fui estudante de Jornalismo na mesma Universidade. É bem provável que o debate seja no auditório que freqüentei muitas vezes, em busca de algum conhecimento ou, no mínimo, de algum encontro, alguma palavra que ajudasse a pensar os caminhos de um jovem estudante universitário latino-americano sem dinheiro no bolso, sem parentes importante, e vindo de Fortaleza, ainda imberbe.

Então vai acontecer aquilo que me deixa meio sem graça, mas é parte do script. Vão falar onde me formei, dos livros publicados, dos lugares onde trabalhei, do mestrado etc. Como sempre gostei muito de mudança, passei por muitos lugares. E mais uma vez, vou passar o filminho na cabeça, lembrando algo que deveriam citar também na trajetória de qualquer pessoa: os inúmeros fracassos.

Lembro que o “Zé”, meu primeiro livro, foi enviado para várias editoras, e quase todas recusaram olimpicamente, até outro dia eu tinha as cartas informando que o livro não era viável, naquele tom respeitoso e cordial para dizer que seu trabalho é uma merda. Um dia, uma editora de Minas Gerais me telefonou, dizendo que tinha achado o livro lindo e que iria iniciar a edição, fiquei muito emocionado, mas é preciso lembrar dos muitos “nãos” que fui colecionando, até ver o livro nas minhas mãos, no maio dos meus 29 anos. O detalhe é que a distribuição foi um desastre, e muita gente jamais conseguiu comprar o livro, o que foi uma vitória com fracasso, porque todo escritor quer ser lido. Bateu na trave.

Tentei reeditar o “Zé” pela Objetiva, que publicou Clamor, mas levei um não bastante redondo, e nunca mais se falou nisso nem de outro projeto de livro-reportagem que eu vinha alimentando há alguns anos.

Consegui fazer um mestrado muito bacana na USP, um núcleo de pesquisas sobre a América Latina, mas não lembram que fui reprovado em outras três tentativas (duas na PUC-SP e uma na Unicamp) porque me faltava “consistência teórica” e outros requisitos intelectuais de maior monta, mas que, pela graça divina, não lembro.

Tentei emprego na Folha de São Paulo umas três vezes, e recebi simpáticas cartas negativas em todas elas, naquele mesmo tom gentil e delicado, dizendo que agradeciam meu interesse pela vaga, mas informavam meu curriculum não tinha a qualificação necessária ou suficiente, sei lá. Ou seja: nem da primeira fase do processo de seleção eu passei, que bicho burro da gota, era o que eu pensava.

Mandei uma seleção dos meus poemas para dois concursos da Prefeitura da Cidade do Recife, e nas duas oportunidades não recebi sequer uma medalha pela participação, aquela "menção honrosa", que é uma espécie de pirulito para o menino não chorar muito. Para me consolar, estou publicando os poemas aos poucos, no meu blog de poemas (www.quemerospoemas.blogspot.com)

Outro dia uma grande amiga minha, Luzilá, quis me elogiar em sua coluna das terças-feiras do Diário de Pernambuco e falou com um certo orgulho que eu tinha sido “repórter da Veja”, como se fosse algo muito importante. Eu fiquei envergonhadíssimo, quase saio comprando todos os jornais da cidade, para que ninguém soubesse, porque foi o período mais triste de minha vida profissional, eu nunca vi uma máquina tão poderosa de destruição de coisas e pessoas, tanta boçalidade e arrogância num mesmo espaço, e num determinado momento eu achei que não tinha chegado ao ponto máximo da carreira, mas ao ponto em que mais me envergonhava da profissão, foi uma decepção e fracasso juntos.

Fracassei em vários projetos literários (nunca consegui editar minha coleção de frases nem os relatos de viagem) e experimento meio-fracassos quando escrevo crônicas meia-boca neste Blog, a sorte é que tenho escrito muito, e dá para tapear um pouco, e o povo gosta mais de comentar quando acha bom do que quando o texto está aquela coisa insossa.

Tive meus fracassos no amor, que doeram muito, mas segui. Por sorte, tive poucos fracassos nas amizades, que sempre foram perenes, mesmo as mais distantes e silenciosas, acho que tenho um talento com as amizades, uma vocação fraterna e afetiva para não me perder dos que são da minha praia.

De sorte que vejo o mundo com uma minúscula e simpres frase do poeta norte-americano Robert Frost: “a vida segue”.

Minha anotação o pára-choque do meu caminhãozinho: o que sobra das derrotas é a vida.

Para quem toma seu remediozinho controlado...

Continuo a receber notícias as mais diversas sobre o Carnaval do Recife, que está a um palmo de distância. Há o intrigante fenômeno do surgimento da troça, aquele momento em que o sujeito tem uma idéia e resolve passar para as ruas, transformar um sonho em frevo, por assim dizer.

Acabo de receber o email do meu amigo Josias, que também atende pela alcunha de Geó. Melhor reproduzir na íntegra, porque pode interessar a muita gente que é chegada a uns remedinhos para o cabeção, e pode muito bem conciliar seu ansiolíticozinho, seu remédiozinho com a tarja preta, com uma boa tarde na frevolândia de Chico, aqui na Rua dos Arcos, no Poço da Panela.

"Venho comunicar-lhes do surgimento da mais nova troça carnavalesca da cidade do Recife, a Troça Químico Carnavalesca Tarja Preta (Pé-na-cova). Formada da necessidade de depressivos, agorafóbicos, claustrofóbicos, acometidos da síndrome das pernas nervosas, de pânico, de consumo complusivo, viciados em sexo etc, provarem que também são animados e dispostos pra folia. Enfim, aqueles consumidores de bolinha, psicotrópicos, ansiolíticos e afins querem provar que também são gente boa.

Em seu primeiro ano e apresentação, a Tarja Preta saíra às ruas no dia 11 de fevereiro, um sábado, concentrando-se por volta das 3 da tarde, e desfilando pelo circuito Poço da Panela-Casa Forte.

A Troça contará com a presença de cordão de isolamento (para os agorafóbicos) e animada orquestra.

É desnecessário afirmar que o bloco é democrático e aberto à participação de todos, ou seja, mesmo os normais podem participar.

Camisas já estão sendo confeccionadas à preços módicos, podendo-se adquiri-las facilmente mediante contato com alguém da organização (no caso de vocês que estão recebendo esse mail, falem comigo, óbvio).

Não percam a chance de obter uma prova de sua participação no triunfal primeiro desfile do Tarja.

Espero todos lá,

Josias Geó - atual Presidente do troço..."

**

Desnecessário informar que no mesmo dia teremos a prévia do famoso "Amantes de Glória", que reúne um time que eu vou dizer (César Maia, Giba, Carol, Ariel, Ivanzinho etc). Na festa do Amantes do ano passado, faltou até freio no meu Fusca, mas este ano não corro perigo, porque nem Fusca mais eu tenho. A gamelagem será no Bar Pirata, ali por detrás do Colégio Salesiano.

Informo que haverá um teste de resistência para os mais fogosos. É que no domingo teremos a prévia do "Esfola ou Arrebenta", na Praça do Arsenal, a partir das 15h30.

Está muito difícil trabalhar aqui no Recife, nesta época do ano. Até o Carnaval, teremos prévia todo dia e toda hora, festa para todos os gostos.

Defendo a tesde de que o ano só começa de verdade depois do Carnaval, lá pelo dia 6 de março, porque fica difícil a pessoa se concentrar em qualquer coisa séria, com tantos clarins anunciando a chegada de mais uma troça e com tanto troço bom acontecendo.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

Ai, ai, saudade, saudade tão grande...

Tenho uma falha existencial inexplicável, mas que já se incorporou à vida – sinto saudades de algumas pessoas que não conheci, mas que admiro e me ajudam a tocar esta vida. Ultimamente, ando saudoso do velho e bom Antônio Maria. A saudade deve ter aumentado porque estamos nesta época intensa do Carnaval, e ontem, no Mercado da Boa Vista, tivemos uma prévia do “Lili nem sempre toca flauta”, uma festa linda e cheia de gente amiga.

Se vivo fosse, ele estaria lá, o gordinho, bebericando seu whisky e cantando suas canções. Antônio Maria foi jornalista, cronista e compositor, e tenho aqui, em vinil, o “Frevo número 2 do Recife”, cantado pela Maria Betânia. Um absurdo de belo, e com aquele chiadinho do vinil, que adoro. Para quem não lembra:

“Ai, ai, saudade
saudade tão grande
saudade que eu sinto
do Clube das Pás, dos Vassouras
passistas traçando tesouras
nas ruas repletas de lá.
Batidas de bumbo
São maracatus retardados
Que voltam pra casa cansados
Com seus estandartes por ar”.

Para quem é do Recife e está longe, a segunda parte vai doer um bocado, mas a vida é assim mesmo, tem que aguentar:

“Quando eu me lembro
o Recife tá longe
a saudade é tão grande
e até me embaraço.
Parece que eu vejo
Haroldo Matias no passo
Valfrido e Cebola, Colasso
Recife está perto de mim.
Saudade que eu tenho
São maracatus retardados
Que voltam pra casa cansados
Com seus estandartes por ar”.

Garanto que no Carnaval passado, uma moça cantou esta canção inteira, numa voz meio rouca e afinada, sem errar uma palavra, e faltou pouco para pedi-la em casamento.

Em 1996, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos escreveu uma deliciosa biografia do Antônio Maria, para a coleção “Perfis do Rio”. Acabei de ver o livro ampliado, como várias fotos, agora publicado pela Objetiva. “Era um homem movido a emoção”, diz o jornalista, que conheci de raspão, quando fui assinar um contrato com a editora Objetiva, em 2003. Por conta do liseu, ainda não comprei a nova edição, mas vou comprar ou vou ganhar de presente, porque fevereiro é um mês ótimo para receber presentes.

Por esses dias, ando também rangendo de saudades da Clarice Lispector. Não sei se escreveram uma boa biografia dela, mas acho que nem é o caso, basta ler “A descoberta do mundo” para ver sua alma inteira, pendurada num varal, secando quando há sol, molhando quando há chuva, pegando sereno nas noites mais amenas. E de pensar que o livro, que é minha Bíblia, meu Alcoorão, meu Torá, é a reunião das crônicas que ela publicou no Jornal do Brasil, de 1967 a 1973.

Houve uma época, neste País, em que o sujeito comprava o jornal e lia, de manhã, antes de sair para o trabalho:

“Não dou pão a ninguém, só sei dar palavras. E dói ser tão pobre”.

“Tenho recebido olhares que valem por uma reza”.

“Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada”.

“Nessa hora eu me senti pior do que uma mendiga porque nem ao menos eu sabia o que pedir”.

“Tudo o que não sei é minha parte maior e melhor”.

“...e o homem dizia que amava com mudo fervor. Eu respondi que todo fervor é mudo”.

“Há dias que são tão áridos e desérticos que eu daria anos de minha vida em troca de uns minutos de graça”.

E para terminar:

“Prometo aos meus leitores que serei mais feliz e assim os farei, pelo menos por um instante, mais felizes. Mas, Deus meu, como é que se é feliz?”

Sigamos.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006

Entardecendo

Vai entardecendo aqui no Poço, e resolvo fazer meu périplo. Saio de casa de propósito, para contemplar o que resta de luz, enquanto há luz, porque daqui a pouco a noite, a misteriosa noite chega. Vou em Vital, está Guga Mota, tomando sua solitária cervejinha. Do outro lado da calçada, na curva oeste, um grupo toca um violão sossegado, parecem estar compondo algo. Peço R$ 10,00 a Guga, ele me empresta os últimos trocados, preciso pagar Matuto, um Rum Montilla que comprei há 15 dias por R$ 9,00.

Sigo, passo em Popa, vou em Matuto, que é o nosso Bompreço aqui da comunidade, tem tudo o que precisamos na hora da necessidade, pago o rum, ele pergunta se quero outro, menos Matuto, menos, que rum é muito oleoso, dizem os entendidos. Falo com as crianças, aceno para os distantes, cumprimento os velhos, chamo os cachorros com os estalos. Vou em Abdias, Ruy já tomou umas, me reclama porque não fui para a pelada hoje, eu nem fui informado da pelada extra dos Caducos, senti uma tristeza retroativa. Os meninos jogavam no campo de Abdias, e gosto de ver moleque jogando bola. O brasileiro é a maior prova de habilidade que um corpo pode desenvolver. Não sabem nada da vida, mas sabem dar um drible em um espaço mínimo, onde só cabe a bola e o pé, fico olhando e me deliciando, contemplando o movimento dos corpos em torno de uma bola.

Volto para Popa, à beira do Capibaribe. No caminho, encontro Carne de Vaca, passando o jogo do bicho. Jogo 1,00, do primeiro ao quinto. Se der, levo R$ 280,00 e vou pagar Seu Vital. Em Popa, a informação: só tem Nova Schin, vai ela mesmo. Sento, na mesa ao lado uns coroas conversam sobre tudo e nada, sobre a vida e as coisas da vida. Olho o rio, tem um barquinho atravessando de lá para cá, cheio de gente. O recifense ainda atravessa o seu rio de barco, é um toque singelo ao entardecer, eu fico feliz.

Escuto os diálogos. "Tu bebe naquela barraca?"; "Se você sabe que ele não presta e bebe com ele, você também não presta"; "Também não é assim"; "Peraí, menino!"; "Deixa de teu pantim"; "A verdade é verdade"; "Pois se um safado me der bebida, eu não bebo com ele"; "Aí tá certo"; "Ele é chegado?"; "Tu precisava ver a morena, de dar água na boca", e por ai vai.

Sou tomado de uma saudade imensa de Pixinguinha, que queria muito ter conhecido, eu tenho essas coisas saudosas de tempos que não vivi.

Chega Márcio, um moleque gordinho que estuda na Escola Municipal Nilo Pereira, o colégio que nossa comunidade adotou para acompanhar. "Posso sentar, Sama?", senta, Márcio. Ele me fala de um carangueijo que saiu "daquele buraco" outro dia e nunca mais viu, depois fala de outras coisas, até que sai. Na Rádio Recife, o melhor do brega. "São 17h57 e você pode faturar um aparelho celular, ligando e participando". Sou informado pela rádio que no presídio Barreto Campelo 50 presos estavam de castigo há mais de 30 dias, sem ver o sol, e que muitos não tinham colchão para dormir.

Às 18h, o golpe fatal. A rádio começa a tocar "Ave Maria", não sei quem canta, mas é algo triste, pungente, doloroso, é como se quisessem nos lembrar que é preciso ser infeliz ao crepúsculo, então percebo que é hora de voltar, me aquietar.

Chego em Seu Vital de novo, está dona Fátima, a mulher que cuida da minha casa, ela me olha bem séria e diz:

"Trouxe tua tartaruga. Veio de Abreu e Lima".

Ela traz um isopor com a tartaruga, que agora está perambulando no quintal. Já está escuro, e não posso vê-la direito, amanhã escolherei um nome.

A noite chegou com a tartaruga sem nome. É assim que vai anoitecendo por aqui, lentamente, e a vida segue.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

A lógica da alegria compartilhada: contribuição para uma discussão filosófica sobre carnaval e lucro

Não sei como é em outras cidades, estados e países, mas aqui no Recife, só há um assunto filosófico importante a inundar as mesas de bares, botecos, balcões de padarias, caixas de banco, filas de desempregados, universidades, celulares, email: o Carnaval.

Nós, que fazemos parte da Troça Carnavalesca Mista “Os Barba” (ano V), estivemos envolvidos esta semana em um acalorado debate sobre os mistérios da nossa pequena troça, fundada para reunir amigos e simpatizantes da boa festa. Fomos questionados, pelo dono de um bloco gigantesco, por que não ganhamos dinheiro com nossa idéia, se temos tudo para conseguir patrocínio, apoio, lei de incentivo etc. Ele fala com a voz da experiência. Seu pequeno bloco, surgido aqui no Poço, há mais de dez anos, arrasta multidões, quinze dias antes do Carnaval. Só o que ele vende de cerveja, eu passaria cinco anos vivendo de fulozô, só escrevendo crônicas e viajando. É a tal lógica do "fazer dinheiro".

E nós, dos Barba, o que achamos disso tudo?

Não temos estatuto nem organização, mas já é lugar comum em nossas conversas: no dia em que a Troça tiver a insuportável presença da “diretoria”, quando formos devidamente organizados, é hora de cair fora, porque acabou a alegria e começou a empresa, e nós só queremos nos divertir no sábado antes do Carnaval, aqui nas ruas do Poço, com nossa gente. Vamos parar com essa frescura do capitalismo de fazer tudo virar comércio, tudo virar empresa, como se nunca sobrasse espaço para a simples e deliciosa festa, sem outras intenções. O capitalismo parece aquele cara que não consegue dançar com uma mulher bonita sem querer levar pra cama, acaba nem dançando com gosto, nem levando para a cama, é um saco.

No próximo dia 18, vamos fazer nossa tradicional farra, com a presença do novo rei e a transmissão solene do cargo. Para fazer a farra, precisamos somente de alguns ingredientes, que passo a detalhar:

A rua – Colocamos um cavalete na rua e todo mundo respeita. Mas é uma rua que passa dez carros por dia. No dia dos Barba, ela vira a "nossa rua", e ninguém reclama, é grátis.

Uma orquestra – Há três anos, fazemos um ofício simples para a Prefeitura (Fundação de Cultura), explicamos nosso bloco, pedimos uma orquestra, e ela vem, de graça. A gente só dá o almoço e a cachaça aos músicos, mais cachaça que almoço, garanto. Ou seja: sai de graça, pelo menos é um consolo para o IPTU que a gente paga o ano inteiro, acabei de descobrir que IPTU é quase a mesma coisa de PITU, é só inverter o lugar do "P", só o sabor que é diferente, rarara.

Um panelão de feijoada – O panelão é feito na rua, com fogo de madeira, e a mistura é cientificamente elaborada a partir de pedaços de algo comestivel, trazidos pelos integrantes da Troça, subtraídos na madrugada, de geladeiras as mais diversas. Ninguém paga nada, e Nana domina tudo, fazendo o milagre da multiplicação.

Cachaça – A PITU, fornece uma ajuda financeira e etílica. No dia da festa, um garraffão de 20 litros é oferecido gratuitamente à comunidade, e a comunidade não se faz de rogada, bebe até chamar urubu de meu louro.

Uma camisa da Troça, pintada pelos artistas da comunidade – A camisa é o ingrediente mais caro da festa: custa R$ 10,00. Cada camisa tem uma pintura diferente, e são elogiadíssimas pela crítica de pintura-de-camisa-do-carnaval-especializada. Os artistas pintam de graça, porque fazem parte da Troça.

Então nem venham com esse papo de ganhar dinheiro com a Troça, porque vamos ter um troço, perdão pelo trocadilho infame, mas chega desse papo de tudo dar lucro, tudo ter que ser pela lógica do capitalismo. Nossa lógica é a da alegria compartilhada no meio da rua, com o frevo rasgando a tarde do sábado, e só neste dia, o glorioso sábado antes do Carnaval. Depois disso, estão todos liberados para farras em outros blocos, que ninguém é de ferro.

Vai aqui um pedacinho do nosso hino, feito pelo glorioso Lula Terra, que deve inclusive reger a orquestra novamente:

“Barba já chegou ôoo
Animando o Carnaval
Barba a todo vapor
Sai da venda do Vital”

Tem barbudo presidente
ôôôoooo
Tem barbudo operário
Ôôôooo
Tem o barba boa gente
Mas tem barba que é otário”.

Para a mulher que me piscava o olho

Saí de casa em 1987, em meio a uma turbulência familiar que me impulsionou ao mundo, e nunca mais voltei a morar em Fortaleza. Foi no início de julho, após uma despedida espantosa, regada a cachaça, vinho e confissões, com os amigos da época, hoje espalhados por aí, nem sei direito onde. Meu irmão do meio casou pouco depois, o mais velho foi para Minas. Minha avó, que morava conosco, morreu em 1999. Minha mãe separou dois anos depois da minha partida. Ficaram com ela somente as duas filhas mais novas. A casa, que chegou a abrigar nove pessoas, ficou apenas com as três mulheres: mãe e duas filhas.

Então aconteceu algo que me dói muito, mas não posso fazer nada: parece que essa nova geração já não sabe amar os pais. Algo como um “esquecimento perpétuo do amor”, em nome de outras coisas que são, no mais das vezes, objetos, coisas e turmas. Minha mãe vive sua maior solidão.

Eu já tinha notava isso quando visitava Fortaleza, e ficava dois, três dias. O desamor a gente percebe nas entrelinhas, na falta de bondade, no jeito de falar, de tocar. Estava tudo grosseiramente à vista, e sou bom de vista. Eu sei que amar não é fácil, mas a Clarice já diz que amar os outros é a única salvação individual. “Ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca”.

A minha mãe tem uma história e tanto. Ela foi casada durante mais de duas décadas, passou maus e bons bocados, até que “criou coragem” e separou. Era já uma senhora, uma simples e dedicada dona de casa, quando conseguiu a alforria, e começou sua revolução pessoal. Fez um curso de auxiliar de enfermagem, enfrentou um baita de um concurso, foi aprovada e entrou de cabeça no maior hospital de Fortaleza, o José Frota. Isso com mais de 40 anos. A vida deu uma guinada. Foi se cuidar, foi caminhar, outro dia começou a estudar inglês.

Hoje, ela mora com duas filhas, mas não conta com ninguém sequer para uma conversa rápida. Volta do plantão, não há um aconchego, uma conversa, um prato raso de sopa morna. Ela que se vire com seu cansaço, com seus plantões, com sua vida. Vive a pior solidão, que é aquela acompanhada.

Lembro que uma época adolescente lutei karatê, e meu pai era totalmente contrário à "invenção", tanto que não liberou grana para a compra de material esportivo. Minha mãe foi economizando da feira, tirando um trocado daqui, reduzindo no pepino, no tomate, outro tanto dali, escondendo migalhas, fazendo mágicas, até que conseguimos comprar um quimono, o mais belo quimono que já usei na vida. Acho que foi com ela que aprendi essa grandeza dos pequenos gestos, do quase nada que transforma.

Havia sempre um piscar de olho nos momentos mais difíceis, e isso até hoje é uma lembrança simples, uma fagulha de esperança, uma espécie de “segure firme, meu filho, que tudo se arruma”, a solidariedade silenciosa.

O nome dela é Ermira, e sei que está cansada de um monte de coisas. O pior é que não posso fazer nada, porque a gente pode aprender a amar, a ter esta salvação individual, mas é impossível ensinar alguém a amar – mesmo que seja a própria mãe.