sexta-feira, 30 de setembro de 2005

Pequeno inventário das minhas grandes invejas

Recife, 30 de setembro de 2005.

Inveja infinita de quem toca um sax alto durante o ano, e no Carnaval toca em alguma pequena orquestra somente para dar uma força à turma;
Inveja de certos homens que ficam sentados uma manhã inteira, olhando para o tempo, uma tarde inteira, olhando para o vento, e chegam à noite com os olhos ainda virgens;
Inveja de quem sabe contar piadas, mas não passa a noite enchendo os amigos de piadas;
Inveja de quem não tem medo de altura;
Inveja de quem ganha de presente cadernos de papel reciclado e canetas bico-de-pena;
Inveja de quem tem um Fusca 68 azul e nunca o bateu em um Honda Civic;
Inveja de todos os jogadores de futebol que já entraram no Arruda e foram saudados pela torcida do Santa Cruz, em qualquer época da humanidade;
Inveja de quem não é dono de bar;
Inveja total de quem chuta com as duas pernas e sabe cabecear bem;
Inveja de quem sabe usar a linguagem dos sinais e usa, sem ser surdo-mudo;
Inveja de quem joga bem dominó e faz um lá e lô no final decisivo do jogo;
Inveja de quem assistiu um show ao vivo da Elis Regina;
Inveja de quem tem uma casa própria;
Mais inveja ainda de quem tem uma casa própria no Poço da Panela;
Inveja de quem sabe recitar os próprios poemas para os amigos, e, especialmente, para a mulher que ama;
Inveja de quem recebeu um adiantamento da editora para escrever seu próximo livro, e vai passar seis meses só no fulozô;
Inveja de quem está viajando hoje para Cuba e depois Venezuela;
Inveja de todos os textos de Osvaldo Soriano, o argentino maravilhoso que escreveu “Uma sombra logo serás”;
Inveja de quem sabe dançar bem e tem disposição para dançar bem, como Luciana;
Inveja de quem tem um programa de rádio, de madrugada, coloca músicas lindas e lê as cartas enviadas pelos desconhecidos;
Inveja de quem conheceu a América Central numa longa viagem, cheia de amigos;
Inveja de quem toma um porre e se lembra de guardar os óculos num lugar seguro;
Inveja de quem não fica nervoso para falar em público;
Inveja de quem passou a tarde hoje num café, conversando com seu melhor amigo ou amiga;
Inveja de quem anota na agenda a data do aniversário dos melhores amigos, e lembra de telefonar no dia certo;
Inveja de quem tem disposição para fazer seu próprio aniversário;
Inveja de quem tem paciência para escolher e comprar roupas;
Inveja de quem toca “Carinhoso” no sax ou em qualquer instrumento;
Inveja de quem sabe cantar uma música de Lupiscínio Rodrigues bem afinado;
Inveja de quem sabe o nome das plantas e flores, como Iramarai;
Inveja de quem conheceu Antonio Porchia, no subúrbio de Buenos Aires;
Inveja de quem tem uma máquina fotográfica manual e tira fotos dos amigos, crianças e velhos há muitos anos;
Inveja de Carlos Pena Filho, pelo “Soneto do Desmantelo Azul”;
Inveja de quem salta de pára-quedas e fica gritando lá do céu um monte de palavrões;
Inveja de quem foi feliz na infância;
Inveja de quem encontrou seu amor tranqüilo;
Inveja de quem conviveu muito tempo com os avós;
Inveja de quem sabe recitar os poemas de Manuel Bandeira;
Inveja de quem tomou um porre com Antônio Maria;
Inveja de quem sabe o nome de todas as pontes do Recife;
Inveja de quem vai passar o sábado inteiro numa rede, lendo algo maravilhoso;

Invejas, simplesmente algumas invejas...

Pequenas alegrias

Recife, 30 de setembro de 2005.

***
Acabei de receber a confirmação - o livro "Estuário - crônicas do Recife", vai ser lançado mesmo dia 11 de outubro, a partir das 18h, durante V Bienal Internacional do Livro de Pernambuco (que vai de 7 a 16/10). Optei pela "Livro Rápido", de Tarcisio Pereira, para não ficar batendo as portas das editoras e acabar perdendo muito tempo. A capa foi feita pelo desgin César Maia, e está algo bem bacana. Não sei ainda quanto vai custar. Espero que um troço bom, bonito e barato. O livro é uma seleção das melhores crônicas publicadas no espaço "Estuário", do JC On Line, durante um ano.

**
Como ninguém é de ferro, vou participar de uma mesa redonda que promete ser saborosa. Intitula-se "Crônica: o cotidiano e a palavra", e vai acontecer no dia 9/10, às 15h15, no Auditório Manuel Bandeira. Meu chapa Ivan Morais, que escreve para o PE360 graus, também vai contar suas lorotas comigo.

**
A "Antologia do Instante", que seria um livro de bolso com as melhores frases que andei coletando nos últimos anos, ficou para depois. Deu preguiça em César Maia e em mim também.

**
Vou caminhando. Mais tarde tem crônica nova. Como ando lendo muito o Álvaro de Campos, segue esta pequena beleza:

"Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém;
É sempre de nós que partimos quando deixamos a costa".

terça-feira, 27 de setembro de 2005

Para uma amiga com câncer

Recife, 27 de setembro de 20005.

Estamos acompanhando há semanas, já são meses, creio. Lucidélia, ou Lucinha, ou “a professora”, nossa vizinha e amiga, estava com um nódulo no seio, o troço cresceu, inchou muito, e foi diagnosticado: câncer. Ô palavrinha complicada de dizer e escutar, deus do céu...

Por conta de nossa amada Luisa, de um ano e três meses, eu e Lucidélia nos aproximamos muito, nos últimos meses. É a tal força dos afetos, especialmente quando chega uma criança com aquele sorriso, que desfaz todos os nódulos. Diante de uma criança, tudo parece mais simples, menos atribulado e doloroso. Era quase um ritual de dois tios abestalhados. Eu tomava um cafezinho em Vital, depois passava na casa da professora e dava um grito:

“Lucidélia!”.

Ela aparecia na janela com um sorriso e eu completava:

“Menos, professora, menos”.

Tenho umas manias esquisitas mesmo, uns rituais que fazem parte da alma, um jeito de falar que incorporo como uma espécie de código. Eu só falava esse “menos”, Lucinha abria um sorriso e saía de casa, para começar o dia brincando com Lulu. Eu, de 36 anos, e Lucidélia, de 60, parecíamos dois doidos, fazendo estripulias para ver Lulu sorrindo. E Lulu sorrindo é mesmo uma bênção, então viva.

Veio a primeira sessão de quimioterapia. É uma surra na alma da pessoa. Lucinha ficou quebrada mesmo, daqui a pouco os cabelos já não estavam, veio aquela vontade de não fazer nada, dificuldade para se alimentar etc. Ao invés de sair para o dia, ela me pedia para entrar em sua casa. Numa das visitas, reparei nas muitas fotos dela quando jovem. Era uma mulher bonitona, vistosa, os cabelos claros, rosto afilado e sorriso generoso. Conversamos muito sobre a vida dela, o que tinha feito e deixado de fazer, com um bom humor danado, tratando o câncer como uma espécie de visita chata, na hora do cochilo ou no meio da sessão da tarde.

Depois veio uma certa dificuldade em cuidar do jardim. As manhãs começaram a ter este gosto de cuidado com o jardim, do molhar as plantas, com Luisa aprendendo a manejar o regador, o que não deixa de ter aquele sentido da vida sempre renascendo. Da última vez, ganhei de presente várias mudas de rosas, e a professora se furou com um espinho. Me deu um carão, ficou chupando o dedo sangrado, mas me deu flores. Luisa ficou só olhando. Eu queria ter tido isso na infância sim - gente que dá plantas e se fere, mas vai sorrindo.

Veio a segunda quimioterapia. Antes de sair, ela me deixou um bilhetinho:

“Samarone, não deixe minhas plantas morrerem. Conto com você. Te adoro, Lucinha”.

Ela está agora na casa da irmã. Ontem à tarde, fui com Nana fazer uma visita. É pau. O corpo sente a carga. Mesmo assim, debilitada, ela não escondeu a preocupação com o resultado do jogo do bicho da tarde. A vida é mesmo este mistério mesmo do câncer por vencer e o resultado do jogo do bicho por conferir.

Na quinta-feira, ela completa 61 anos. Estamos preparando uma visita-surpresa, na Kombi de Nana, com bolo e tudo. Acho que vamos todos, os mais chegados, e vai ser uma boa farra, movida a guaraná e bolo de chocolate.

Ainda vai ter a cirurgia e mais umas três quimioterapias. Lucinha vai ter que ter uma força muito grande para atravessar este deserto que é o câncer.

Não deixarei as plantas morrerem, Lucinha, mas veja se volta logo, para o dia amanhecer melhor.

segunda-feira, 26 de setembro de 2005

Um pouco de poesia, que ninguém é de ferro...

Recife, 26 de setembro de 2005.
Um pouco de poesia, que ninguém é de ferro, e a preguiça está imensa.

(Florence, obrigado pelo olhar).

***

Um rio


Um rio incandescente
Molha meus dedos
Quando olho teu retrato
Colado à antiga parede
Que já não existe

Lembro dos teus dedos
Como guardanapos de pele
Que guardavam silenciosos
Minhas lágrimas


Então, volto a chorar de ti

***

Aos calcanhares


Não acorrentarei o amor aos calcanhares
A ponto de não poder andar
Para dentro de ti

Caminhemos,
Caminhemos para além
De todo o aço da certeza

Haveremos de ser felizes
Com alguma delicadeza

Haveremos de ser felizes
Mesmo com nossos calcanhares
de Aquiles

***

Resposta


Me perguntas pela vida
Como se fôssemos antigos conhecidos
A tagarelar na esquina
Sobre os fatos do dia

Meus olhos te respondem
com aquele mesmo silêncio
Das terras devastadas

Falo da vida, o que fiz ontem
E hoje
O que farei ao entardecer

Te conto como tem sido
Meus últimos trinta e seis anos

Por precaução
Evito te falar das coisas do coração
E ao final, como quem diz um até breve contigo
Murmuro para mim, na esperança que escutes:

Tua ausência me dói, é simples.

quinta-feira, 22 de setembro de 2005

A pessoa que a gente ama parece com a cidade que a gente ama

Recife, 22 de setembro de 2005.

A pessoa que a gente ama parece com a cidade que a gente ama, mesmo que ela esteja longe. Fica sempre a lembrança do cheiro, dos contornos, dos lugares ocultos, das belezas sutis, da cor, uma forma de gozo que atravessa a alma. Fica a lembrança também do cansaço, a memória dos lugares destruídos, as feridas, as mazelas, sofrimentos silenciosos que os habitantes de uma cidade e os habitantes de um amor compartilham, mesmo que na penumbra.

Sim, porque o amor não é algo que se vive, tão simplesmente. Creio que a gente também habita o amor, como se habita uma cidade. Um coração é feito de ruas jamais alcançadas, lugares ermos, silêncios, descobertas, mergulhos íntimos nas águas e reentrâncias, nos mamilos e na carne, no suor e no êxtase. Todo coração é uma pátria, do tamanho de nossa cidade mais íntima. A minha cidade mais íntima é o Recife.

Um amor começa, portanto, pelo Poço da Panela, que é o coração da cidade que amo. Daqui a muitos anos, a paisagem do Poço será a mesma, os casarões serão os mesmos, as ruas de pedra serão as mesmas, somente as pessoas não serão as mesmas.

A invasão humana, por aqui, segue seu ritmo de rostos que chegam e olhares que partem. Mas os homens, em seu capricho, ergueram casarões e pavimentaram ruas com as pedras do tempo. A beleza protege a si própria, numa espécie de tratado estético que alcança os homens. A aproximação por aqui é lenta, como a chegada das manhãs ou a partida das tardes, coisa que acontece com os amores. E um coração, a exemplo deste pequeno ponto no Recife, é algo que exige cuidado, aproximação cheia de ternura. Os amores que nascem lentos criam raízes mais fundas, creio.

É como um coração de cada um, com sua imensa história, suas pedras irregulares, sua esperança sempre vencida de se manter intacto.

O tempo transforma tudo mesmo. Um músculo que empurra o sangue se transforma, ao longo da vida, em sentimento. E o que pulsa não bombeia somente o sangue, bombeia a vida, no que há de mais sublime. Então o meu amor é um poço artesiano também, com sua água cristalina saciando as sedes das tantas fontes que errei, dos amores que me perdi.

E meu amor é um pouco dos mercados da minha cidade, onde estão os cheiros, as vozes, as vísceras, o pão, o gozo e a festa. Se o Poço é o coração da cidade que amo, os mercados são como o sexo e as entranhas, o êxtase com o alarido dos que bebem e celebram, com as carnes, os frutos, a intensa demografia dos que circulam, sempre buscando algo para completar a eterna falta.

Ninguém vai a um mercado impunemente. Ninguém vai à procura de um simples abastecimento, que não seja um abastecimento afetivo. Mais que o pão, mais que a cachaça com um caldo, busca-se imagens, sons, cores, encontros. Sempre há uma esperança silenciosa de ficar mais um pouco, por conta de uma derradeira cerveja, alongando a tarefa sutil das compras, a desculpa para uma festa dos desejos.

Um amor deve ter doses iguais do universo inexplicável dos mercados da Madalena, da Encruzilhada, São José, os temperos do mercado da Boa Vista, a maciez selvagem e clara, muito clara, do mercado de Casa Amarela, onde circulam tantas criaturas, onde a vida parece mais afoita, onde escutei certa vez um suspiro de um homem ao ver uma linda morena passar, e dizer - “ai, essas mulheres de Casa Amarela...”

As coxas e pernas de um amor devem ser longas artérias que cruzamos para sobreviver. Então, o amor caminha comigo na Conde da Boa Vista, rui Barbosa, Rosa e Silva, 17 de Agosto, Estrada do Arraial, e vamos caminhando para o norte do Recife, levando por dentro a impressão de chegar sempre a algum lugar recém-descoberto, como é o corpo de quem se ama.

Os olhos do amor devem resplandecem na rua da Aurora, com suas casas coloridas que se refletem na lâmina espelhada do rio, e uma aurora é tudo que preciso para seguir a cada dia.

Os longos braços de quem se ama de verdade, ou de quem amo de verdade, bem que poderiam ser os dois lados da avenida Agamenon Magalhães, que levam a Olinda, em um extremo, e à praia de Boa Viagem, no outro. Os braços de quem se ama levariam, portanto, a belezas extremas, onde estariam gravadas as ladeiras de Olinda, sempre por percorrer, ou o mar, para a eterna dissolução.

Mas é tudo mais simples e menos grandioso. Os braços que vejo e sinto são caminhos aquietados no rumo do Horto de Dois Irmãos, repletos de árvores e sementes, porque os braços do amor são repletos de folhas e sombras e germinam a cada dia.

A velhice do meu amor resvala no Bairro do Recife, talhado em minha memória desde o primeiro encontro. Cada prédio abandonado, cada ruína, é uma tábua rangendo sob os meus pés fatigados, moídos de tanto caminhar. E depois da última ponte, quando há o mar, e somente o mar, então anoiteço lentamente, deixando as certezas em terra firme, levando comigo, talhado nas mãos, a textura das mãos de quem amo e contemplo. Sim, porque o amor é algo que se contempla.

O jeito de quem se ama, a sua forma de andar pelo mundo, de falar o que acalma, ou de silenciar alimentando, tem este jeito do Recife de existir, uma cidade que entrou pelos meus poros, se enraizou em meus tendões, cresceu lentamente em meus ossos, desde o primeiro dia. E o jeito tem muito dos altos da cidade, especialmente o Alto José do Pinho, repleto de sorrisos e cores, um interminável movimento em sua grande rua principal, como a dizer que o amor é mais simples, é a respiração em comum, a transpiração dos que se encaixam espontaneamente, e não precisam se explicar, apenas caminham juntos, sorrindo.

E como um homem que se declara à mulher que ama, embora não esteja ao seu redor, fazendo-se cativo de sua trajetória, cúmplice de seus desejos, é necessário redescobrir o amor, como quem redescobre a cada dia sua cidade, refazendo o mapa interminável das ruas recém-criadas, das árvores que começaram a crescer, enquanto outras tombaram por descuido, enquanto o sol inunda as janelas de todas as casas.

É necessário aceitar que algo no amor desvenda, acolhe e prepara para a felicidade, tal como faz uma cidade, como fizeram algumas criaturas nesta minha pequena jornada, e como me faz o Recife, a cada dia.

Porque a pessoa que a gente ama parece com a cidade que a gente ama. E amar alguém com a cara do Recife é chamar esta pessoa de bela a cada aurora, é chamá-la de intensa e interminável, sempre pronta para ser desvendada, percorrida, reinventada, como deve ser o amor a cada dia.

terça-feira, 20 de setembro de 2005

Os dois filhos de Francisco no Cine São Luis

Recife, 20 de setembro de 2005.

Estou sem assunto para a crônica de hoje, fico tamborilando no computador, pensando em algo decente, quando vejo no jornal que o filme “2 Filhos de Francisco” está em cartaz no lendário Cine São Luis, ali no centro do Recife, às margens do Capibaribe. Pronto, ganhei o meu pão de hoje. Tomo um banho apressado, e em minutos, estou dentro de um ônibus da Transcol, numa viagem ensandecida para o cinema.

Não sei se Lucimério mandou a moçada correr muito, mas o fato é que o motorista estava alucinado. O ônibus rasgou a Rui Barbosa em questão de segundos, e a sinuosa avenida mais parecia mais uma reta de Fórmula 1. Vum, vum, vum, cada acelerada doida, que eu vou dizer. No banco de trás, dois jovens travavam uma conversa formidável, um deles disse inclusive que duas coisas mexiam muito com ele - a curiosidade e a inquietação - , mas não tive tempo nem jeito de tomar muitas notas. Eu tentava rezar para chegar vivo ao cinema, porque o motorista raspou três postes a mais de 180 por hora, não tenho a menor dúvida. “Mas menino...tem uma vida me esperando lá fora”, comentou o rapaz da cadeira de trás, eu pensei em responder “aproveite, meu filho, que sua vida está já acabando num belo poste”.

“Eu bebi um copo d’água para descer aquilo que estava entalado”, disse o outro, e ainda perguntou umas duas ou três vezes “entendesse?”. Não sei se o outro entendeu e nem o que o entalava tanto, mas quando chegamos ao Derby eu já me dei por satisfeito de continuar com todos os ossos inteiros. “Esses pontinhos de luz são vida pulsando, e a vida é um leque de possibilidades”, arrematou o mesmo rapaz do copo d’água. Foi minha última anotação, antes de me agarrar à cadeira como um desesperado, para não sair voando pela janela e morrer no início da Conde da Boa Vista.

Cine São Luis, não sei quantos anos depois, mais de uma década, com certeza. Já gostei do ingresso (R$ 6,00) e do enorme saco de pipoca na calçada (R$ 1,00), que decidi comer às margens do Capibaribe, ali na rua da Aurora, centro do Recife. A pipoqueira banguela me abriu o mais generoso dos sorrisos, antes de perguntar se queria pipoca era doce ou salgada. Salgada, com manteiga, minha senhora, que de doce já basta a vida, como diria Mauricio. Até agora, vou gastando R$ 8,50 para um cinema, porque a passagem no Recife custa R$ 1,50.

Sento e olho a fachada do belo cinema, cravado na esquina da rua da Aurora com a Conde da Boa Vista. Fico tão contente, que deixo cair a pipoca e perco a metade do saquinho. Faltam vinte minutos, resolvo entrar. Entro com o pé direito, igualzinho aos jogadores de todo lugar do planeta, ao pisarem no gramado. Um senhor vestindo uma bermuda, camisa aberta até o umbigo, de chinelão, espera bovinamente o início da sessão. Tem cara de quem não fez nada hoje e está cansado, o que angaria logo a minha simpatia. Ao lado, um casal se amassa com fé e fome, com beijos tão calorosos que as línguas aparecem, isso eu não acho muito bonito, falta uma certa delicadeza, mas tudo bem, cada qual com seu cada qual.

Entro no São Luis e tomo um susto. De repente, ele ficou imenso, há cadeiras da rua da Aurora até o Derby. Olho para os lados, nada de amigos. Puxa, pensei que iria encontrar um bando de amigos no filme sobre Zezé de Camargo e Luciano, no centro do Recife, numa bela segunda-feira de lua cheia... Ah, já sei – Déa está viajando, César Maia agora cuida do filhote, Emilia viajou de novo e Waldemir está em casa, descansando. Giba deve estar conversando fiado em algum boteco, João Magro está fazendo suas reportagens, Bruno prepara o casamento e Marcel anda lendo muito. Inácio agora deve estar com os filhos ou com seu amor. O que sobrou de amigo está em Vital, tomando uma cerveja e conversando água.

Umas trinta pessoas no cinema, quase todas acompanhadas. Ao lado, uma bela morena com cabelos castanhos até os ombros, mas eu, com minha pipoquinha, não vou a lugar nenhum. Sou absolutamente incapacitado para chegar a uma criatura do sexo oposto e puxar assunto, como se nada estivesse acontecendo. Pensei em ir ao banheiro, ver “o banheiro do Cine São Luis”, mas me deu aquele medo histórico de perder os trailler, parte que considero das mais importantes da história do cinema. Filme sem trailler é como amor sem beijo.

Olho o telhado, procurando uma goteira. Não estava chovendo, então só vi mesmo o telhado descascado, mas nada decadente. Oba, lá vem trailler. São uns três, e me esbaldo. Caramba, esse tal de Harry Potter é feio pra chuchu. A casca do amendoim ficou presa no dente, pego a tampinha da Bic e resolvo a parada. No Cinema da Fundação, tirar a casca do amendoim com tampinha de Bic é absolutamente arriscado, sugiro não tentar, porque vão notar e vai pegar mal. Fiz nas entocas, por precaução.

O filme

Muita gente cabeça não vai nem passar na calçada do cinema, porque o filme é a história da dupla sertaneja Zezé de Camargo e Luciano, mas eu gostei e recomendo, é muito melhor que muito filme cabeça. Meu amigo Inácio França, que leu Dostoievski de cabo a rabo (me informou ontem, como quem faz um gol de escanteio), também tinha assistido e me recomendou.

Deixando os preconceitos musicais de lado, o filme é bem feito e mostra a história de uma família nas brenhas de Goiás, no início dos anos 60. O pai da dupla, Francisco, ganhou minha simpatia desde a primeira cena. Teve uma hora que a família do seu Francisco já tinha sofrido tanto, que eu já estava com os olhos marejados, implorando por uma cançãozinha de sucesso, para desafogar o peito.

A música que levou a dupla para a fama se chama “É o amor”, e quem nunca escutou a dita cuja, ou é surdo ou é cínico. “Eu não vou negar que você é meu doce mel/Meu pedacinho do céu/Eu não vou negar”. Nunca escutou? Não conhece? Então, meu nego, ou minha nega, você nunca passou por um mercado público, nunca entrou num boteco, nunca viu um programa de auditório na TV, no domingo, nunca viu uma faxineira cantando durante o trabalho. Você morou na Iuguslávia, nos últimos 15 anos.

A cena mais comovente do filme acontece quando eles finalizam o primeiro disco, e a gravadora não lança no mercado, porque falta um sucesso. Seu Francisco, sempre ele, pega a fita com “É o amor”, leva para uma rádio da cidade, e começa a ligar, pedindo a música. Na construção onde trabalha, sai espalhando fichas (lembram da ficha telefônica?) com os operários, para que eles peçam a música. Parece um menino, fazendo peraltice. Todo mundo começa a ligar para a rádio, até que a música emplaca os primeiros lugares em Goiânia, e obriga a gravadora a lançar o disco, que vende um milhão de cópias. Eu, que adoro os malucos, achei o seu Francisco a jóia do filme.

Tem de tudo no filme. Fome, pobreza, miséria, a busca de um sonho, generosidade, falta de terra para trabalhar, êxodo rural, uma mulher raçuda cuidando dos filhos (ai, aquela Dira Paes me mata), fome, desespero, morte, ganância etc. Tem um momento em que o pai lê algo para os filhos, e um deles pergunta o que quer dizer “Nação”. Ele não sabe, fica em silêncio, e responde:

“Ora, vamos pra frente”.

Peguei o Casa Amarela/Nova Torre para voltar, e o motorista corria três vezes mais que o primeiro, além de conversar pelos cotovelos, olhando para a cobradora. Pensei em anotar alguns trechos da conversa, mas é coisa de tabacudo querer anotar tudo da vida. Na descida do viaduto da Torre, a 250 por hora, pensei em rezar para São Francisco, pedindo que ele intercedesse, no uso dos freios, mas não deu tempo. Cheguei vivo sabe-se lá como.

O passeio todo me custou R$ 10,00 (passagens + cinema + pipoca), matei saudades do velho Cinema, sujei a rua da Aurora com pipoca e descolei uma crônica novinha. Como disse o Eduardo Carvalho, em um blog que li outro dia, "escrever exige trabalho de campo".

Não sei se sonhei com a Dira Paes, mas acordei com esta belezoca na cabeça – “Eu não vou negar que sou louco por você...”

Inté.

sábado, 17 de setembro de 2005

Momentos decisivos da (minha) humanidade

Recife, 17 de setembro de 2005.

Estou aqui com o livro “Momentos Decisivos da Humanidade”, do Stefan Zweig, escritor que adoro e que acompanho há tempos. Lembro como fiquei tomado de emoção pelo romance “A embriaguez da metamorfose”, também traduzido como "O êxtase da transformação", há alguns anos. Os momentos decisivos da humanidade são mesmo de arrebentar: a descoberta do oceano Pacífico, a 25 de setembro de 1513 (pense num sujeito que gosta de exatidão!); a conquista de Bizâncio (29 de maio de 1453); a ressurreição de Georg Friedrich Händel (21 de agosto de 1741) – e por aí vai. Foi assim, nesses dias de sereno e mormaço, frio e acaso, que chegamos ao ponto atual, com essa delinqüência toda do Busch e as bombas comendo no centro.

É, mas os momentos decisivos da humanidade do meu amigo passam é longe pelo Brasil, e o Recife nem sequer é lembrado como uma verruga no corpo da humanidade, o que me deixou deveras desapontado. E não é por falta de informação, porque ele morou, salvo engano, em Teresópolis, ali no Rio de Janeiro.

Ora, ele canta loas e boas à criação da Marselhesa (25 de abril de 1792) e deixa de fora simplesmente Pixinguinha, que compôs um hino para a humanidade, intitulado “Carinhoso”. E os meus olhos ficam sorrindo/ e pelas ruas/ vão te seguindo/ mas mesmo assim/foges de mim. Lamento, meu caro Stefan, mas isso sim, foi decisivo para a humanidade, pelo menos para a minha, saber que os olhos ficam sorrindo por uma pessoa, e vão seguindo seus passos mansos. Ah se ela soubesse como eu sou tão carinhoso, não fugiria mais de mim.

Uma série de composições de Lupicíno Rodrigues que deixariam o senhor Rouget de Lisle, autor da citada peça musical que “cresce para os compassos martelantes, elásticos”, devidamente corado. “Ela disse-me assim/Tenha pena de mim/vá embora”, na voz de Jamelão, rompeu definitivamente os laços entre a psicanálise e a filosofia (ou amarrou mais, eu sei lá), e o sujeito brasileiro finalmente pôde sofrer em paz, sem o bafo de Freud ou Frank Phillips por perto.

A batalha de Waterloo (Napoleão, 18 de junho de 1815), aquela sangria desatada (400 canhões de ambos os lados trovejando), pode ter causado muito sofrimento aos franceses e seus descendentes, mas antecipo - não foi lá essas coisas todas não. Tudo bem, Napoleão entrou pelo cano, mas eu me pergunto – e do cavalo branco de Napoleão, por que não falam?

Sofrida mesma foi aquela batalha do meu time, o Santinha, contra o Náutico, em 1993, que resultou num título impossível, dramático, quando o juiz já tinha levantado o braço para apitar o fim do jogo, e milhares de tricolores voltavam feito farrapos humanos para casa. O Recife era uma cidade com milhares de cadáveres que andavam, cabisbaixos, até que Célio fez o gol no finalzinho, aos 45 do segundo tempo, e tivemos o milagre da ressurreição coletiva, naquela prorrogação que durou bem mais que toda a eternidade e mais um dia. Bem, vamos perdoar, são apenas pontos de vista distintos, eu gosto do perdão.

A descoberta do Eldorado (janeiro de 1848, sem dia específico), também foi um momento decisivo na história da humanidade, aponta o Stefan Zweig. Então me pergunto – e aquele massacre dos sem-terra em Eldorado dos Carajás, não conta?

A 22 de dezembro de 1849, Dostoievski estava no paredão, pronto para o fuzilamento, em Petersburgo, na Praça Semenovsk, que hoje deve ser nome de vodka russa. O pelotão já estava puxando o gatilho, iria ser aquele crime sem castigo, chumbo grosso no camarada russo, quando chegou uma carta do Czar, comutando a pena. Eu não vou discutir, para não parecer chato. Livrar o velho Dostoievski do fuzilamento, aos 47 do segundo tempo, é algo decisivo para a humanidade mesmo, ponto para meu amigo Zweig.
.
Eu só queria encontrar um amigo, numa mesa de bar, que tivesse lido Crime e Castigo inteirinho, deitado numa rede, do crime até o castigo. Aguardo.

A primeira palavra através do oceanos (Cyrus W. Filde, a 28 de julho de 1858) não me interessa. Sei que foi importantíssimo o negócio da comunicação à longa distância, mas tem episódios mais decisivos para analisarmos, como a invençao da máquina de datilografia. A luta pelo Pólo Sul (Capitão Scott, 90o de Latitude, 16 de janeiro de 1912), é mais uma história de aventuras do que propriamente um momento especial da humanidade. Ficamos sabendo que a vontade de Scott era “dura como o aço”, e que ele tinha um rosto "frio, enérgico, fleumático, endurecido mas igualmente pleno de energia interior", então penso entre meus miolos – terá nascido daí a famosa “Emulsão de Scott”?

O encontro de Jobim e Vinicius não é citado. O nascimento de Capiba, para encantar o mundo, passa ao largo. Nem uma linha sobre o Carnaval do Recife, que é algo importantíssimo para a humanidade, pelo menos para a minha. A criação do “Acho é pouco” nem é lembrada. Necas de pitibiriba para a invenção do dominó, que acalenta a vida de tantos amigos do meu bairro. Pelé, que mudou os rumos de um objeto simples como uma bola de futebol, e foi capaz de parar uma guerra na África para vê-lo jogar, não aparece nem nos agradecimentos. Ficaram de fora coisas do maior relevo, como a invençao do Totó e o desenvolvimento da sanfona, que nos deu um Luis Gonzaga, por exemplo, e agora o nosso Chiló.

Vou terminar por aqui esta crônica de sábado. Tem o aniversário de 40 anos do meu grande amigo Aldo, daqui a pouco, e amanhã tem a pelada dos Caducos, às 6h da manhã. Isso sim, é que são momentos decisivos para a humanidade. Quero dizer, para a minha humanidade.

E estou adorando esse negócio de blog.

sexta-feira, 16 de setembro de 2005

Notas de um homem feliz no quase silêncio do anoitecer

Estou em casa, no primeiro andar que dá para a esquina da mercearia de Seu Vital, aqui no Poço da Panela. O silêncio do anoitecer só é interrompido pelas batidas secas do dominó – pec, pec, pec – e depois, o barulho das pedras girando no centro do tablado, porque alguém bateu a partida. O entardecer foi embora há pouco, o amarelo do céu passou para o rosa e depois para algo misterioso no firmamento. Restos de penumbra iluminaram paredes muito antigas.

Ando a recolher pedras para um canteiro no quintal que virou jardim. Saio para uma volta no quarteirão, vejo uma boa pedra e trago comigo, sorrateiramente. Só agora entendo a fascinação dos doidos pelas pedras. Elas, as pedras, têm o fascínio da permanência. Junto as pedrinhas e pedronas e, aos poucos, vai nascendo um canteiro de florespedras, em meio às florespétalas.

Há pouco o sino tocou. Blem, blem, blem – e já não sei mais o que seu Jaime quer dizer com essas badaladas secas, se quase não temos missas, e os casamentos têm ficado para os sábados. Não importa o objetivo. Um sino, para existir, deve badalar. Blem, blem, blem.

Daqui a pouco, desço para um café e como aquela pipoquinha salgada da Kinitos. Saberei da vida dos amigos que passam todos os dias, ao anoitecer. Creio que nos amamos muito, porque algo nos atrai para o mesmo lugar, todos os dias, à mesma hora. Tem uma esquina no meio de nossas vidas.

Como sempre, vou dar um palpite aleatório sobre uma eventual jogada no dominó, simulando conhecer o tratado das pedras e dos números. Com o gosto do café na boca, os dedos com restos de manteiga devidamente limpos na barra da calça ou da bermuda, voltarei para casa em fá menor sustenido.

Ultimamente tem sido assim o anoitecer, e é o que me basta. Dou mais uma reparada no quintal, fico muito quieto como aquelas pedras e sinto aquela dúvida existencial me tomar o espírito – quando, deus do céu, aprenderei a jogar dominó?

Volto ao primeiro andar, olho para a esquina e as pedras continuam batendo – pec, pec pec.

Sei que está fora de moda, não combina com a morgação da vida pública do nosso País, mas tenho sido, modestamente, um homem feliz.

quinta-feira, 15 de setembro de 2005

Hoje, e somente hoje

Recife, 15 de setembro de 2005.

Hoje, e somente hoje, alguém foi a um cartório tirar a segunda via do registro civil para casar;
Hoje, alguém cantarolou uma música antiga e lembrou de uma certa pessoa;
Hoje, alguma mulher grávida olhou para a imensa barriga e pensou com um sorriso – “eu vou ser mãe”;
Hoje, e somente hoje, alguém muito rico resolveu comprar uma Land Rover à vista;
Hoje, alguém que não conheço entrou definitivamente na linha da pobreza e vendeu o velho Fusca 74 (ou 75, não sei), para pagar as dívidas;
Hoje, alguém armado roubou uma pessoa desarmada na rua;
Hoje, alguém foi morto a tiros;
Hoje, alguém visitou um parente no hospital e sentiu que ele está próximo de partir;
Hoje, alguém saiu de casa somente para comprar uma lâmpada forte para a sala de leituras;
Hoje, e somente hoje, alguém desistiu de um trabalho angustiante e resolveu mandar tudo às favas;
Hoje, alguém foi ao primeiro dia de estágio numa grande empresa, e não sabia sequer onde sentar;
Hoje, alguém lembrou de um filho distante;
Hoje, alguém que está vivendo há tempos no exterior se perguntou – “mas o que diabos estou fazendo neste fim de mundo?”;
Hoje, alguém escutou uma canção de Gilberto Gil, possivelmente "Drão", enquanto dirigia, e pensou nas belezas do mundo;
Hoje, alguém rompeu a barreira do autocontrole e mandou um email dizendo “oi, eu errei, e quero voltar”;
Hoje, alguém olhou a caixa de email e não tinha nada dela, e isso doeu muito;
Hoje, alguém pensou pela milésima vez em começar a ler Dom Quixote, pelo gosto de ter lido ao menos um clássico;
Hoje, algum adulto ensinou uma criança a dizer pela primeira vez “água”;
Hoje, alguém comprou o vinho mais caro, porque o jantar com aquela pessoa merecia;
Hoje, alguém tomou uma dose de cachaça para começar o dia;
Hoje, alguém que precisava muito, acertou na milhar;
Hoje, alguém olhou para o mural de fotos e resolveu tirar a foto dele, porque é o momento de olhar para outros homens;
Hoje, em meio a uma discussão patética, ela disse furiosa “ora, vá pra casa do caralho, você e sua grosseria!”, e ele ficou perplexo;
Hoje, ao ver o noticiário na TV, alguém comentou “esse país está uma podridão só”;
Hoje, alguém comentou "mas esse Jô Soares está ficando um chato de galocha!";
Hoje, algum amigo cumprimentou o outro dizendo “fala, miséria, por que tu não fosse à pelada do domingo?”;
Hoje, alguém tirou a carteira de motorista, mas ainda não tem carro;
Hoje, alguém descobriu que está com câncer mas decidiu enfrentá-lo;
Hoje, alguém pensou – “é hoje, que eu encho o caneco”, esfregando as mãos;
Hoje, alguém sentou na calçada e ficou pensando no nome do filho que ainda vai ter com a mulher que ama;

Hoje, e somente hoje, o dia que cabe todas as coisas...

quarta-feira, 14 de setembro de 2005

Essas criaturas que são massacradas e nos devolvem pássaros...

Recife, 14 de setembro de 2005.

Tenho aqui em casa, emoldurada, uma foto de Juan Gelman, o grande poeta argentino. Vou buscá-la para ver melhor.

Os olhos são de uma tristeza infinita. A mão esquerda está erguida, à altura do queixo, e entre os dedos, queima um cigarro, com um filete de fumaça subindo para um teto que não posso ver. O farto bigode é bem aparado. Há muitas rugas no rosto, mas não posso ver seus cabelos, porque a foto está muito centrada em seu rosto. É um rosto, diria, repleto de palavras. Me parece um homem triste, com olhos que vazam dor, mas não infelicidade. São duas coisas diferentes. Há pessoas que passam por dores terríveis, mas não se tornam infelizes. É um mistério.

E deste poeta que aprendi a amar, muitas histórias de sobrevivência pela palavra tornaram-se conhecidas. Uma delas me comoveu.

Durante a ditadura da Argentina, que arrancou do país milhares de vidas, ele foi para o exílio na Espanha. Precisava escapar, porque as ditaduras não gostam das palavras alheias. Estava em Barcelona e escutou a história de uma mulher, que teve seu filho preso. Ela contou a Gelman que seu filho pediu à irmã “os livros de Gelman publicados no exterior”. A irmã atendeu ao “pedido poético” de uma forma disfarçada. Como os livros eram proibidos, ela teve que decorar os poemas. A cada visita, levava, na cesta da memória, dois ou três poemas. Era o alimento do irmão.

Fico a pensar que, ao invés de conversarem sobre as coisas da vida, a realidade política opressora e devastadora, as coisas da família, a doença de um vizinho, os dois passavam o tempo a dizer, repetir, e lembrar. Palavra por palavra, linha por linha, até que o irmão guardasse na memória o poema. E então, algum soldado avisava com seu fuzil que a hora da visita tinha encerrado. Adiós, hermana.

Ao retornar da sala de visitas para a cela, o próprio irmão levava um alimento para os demais prisioneiros: dois ou três novos poemas de Gelman, que naquele momento, estavam circulando pela Europa. Quantos prisioneiros não foram alimentados por aquelas palavras?

“Eu ficava sabendo dessas coisas e isso, além de ser comovedor, ajudava na hora de enfrentar a batalha da solidão, da folha em branco”, lembraria o poeta, muitos anos depois.

Palavra e memória sempre me lembrarão Gelman. A ausência de pessoas muito queridas na vida do poeta, certamente o fizeram seguir por este caminho, que é o de confrontar a dor e desesperança com o fulgor das palavras.

Em 1976, a ditadura Argentina levou seu filho Marcelo e sua esposa, Cláudia, que estava grávida. Em 1989, os restos mortais de Marcelo foram encontrados. A neta, que poderia ter ou não nascido, foi encontrada somente em 2000. Estava com 23 anos. Os restos mortais de Cláudia nunca foram encontrados.

Usar a palavra, para Gelman, é essencialmente lembrar.

“Eu não vou me envergonhar de minhas tristezas, minhas nostalgias. Sinto falta da ruazinha onde mataram meu cachorro, e eu chorei junto à sua morte, e estou grudado no calçamento com sangue onde meu cachorro morreu, existo a partir disso, existo disso, sou isso, a ninguém pedirei permissão para sentir nostalgia disso”.

Existo a partir disso, existo disso, sou isso. As confissões de um poeta, às vezes, são como testamentos da própria humanidade, inscrições em lápides que ficarão para uma eternidade que jamais saberemos contar.

“Acaso sou outra coisa? Vieram ditaduras militares, me tiraram os livros, o pão, o filho, desesperaram minha mãe, me puseram para fora do País, assassinaram meus irmãozinhos, meus companheiros foram torturados, desfeitos, rasgados. Ninguém me tirou da rua onde estou chorando ao lado do meu cachorro”.

Em um de seus poemas, Gelman diz que seu coração “tornou-se belo como o sol que sai”. Seu coração voa e canta. “De manhã cedo é um passarinho e depois é teu nome”.

Fazer o que, com essas criaturas que são massacradas e devolvem pássaros na manhã?


Para Tany.

segunda-feira, 12 de setembro de 2005

O murmúrio de Hurbineck

Recife, 12 de setembro de 2005.

O texto anterior me fez lembrar de Hurbinek, uma criança de aproximadamente três anos, que vivia e morria em Auschwitz, no início de 1945. A guerra, ela própria, também agonizava, e os prisioneiros do campo de concentração assistiam os moribundos partindo ou simplesmente aguardavam algo. A morte já tinha atravessado a todos.

O escritor italiano Primo Levi era um deles. Ele percebeu a existência de Hurbinek e o salvou com suas palavras. Salvou na memória.

O próprio nome do menino fora escolhido pelos prisioneiros. De Hurbinek, nada se sabia. Não aprendera nenhuma palavra e nem tinha nome. Estava paralisado dos rins para baixo, e tinha, como lembraria Primo Levi tempos depois, “as pernas atrofiadas, tão adelgaçadas como gravetos”.

Graças às palavras de um italiano que jamais conheci, posso ver Hurbinek. Ele, neste momento, está vivo e seus olhos “perdidos no rosto pálido e triangular, dardejam terrivelmente vivos, cheios de busca e asserção, de vontade de libertar-se, de romper a tumba do mutismo”.

Hurbinek está me olhando com seu desamparo. Quem cuida dele, nestes dias de frio e fome, é Henek, “um robusto e vigorosa rapaz húngaro de quinze anos”. Minha simpatia com Henek torna-se, portanto, visceral.

Certo dia, Henek avisa com seriedade que seu amigo, seu pequeno Hurbinek, “dizia uma palavra”. Todos os prisioneiros foram tomados por uma expectativa. Assistimos, neste momento, o parto de uma palavra. Que palavra? Algo como “mass-klo”, “matis-klo”. Mas eram palavras também prematuras. Ainda não sabiam o que dizer ao mundo.

“De noite, ficávamos de ouvidos bem abertos: era verdade, do canto de Hurbinek vinha de quando em quando um som, uma palavra. Não exatamente a mesma, para dizer a verdade, mas era certamente uma palavra articulada; ou melhor, palavras articuladas ligeiramente diversas, variações experimentais sobre um mesmo tema, uma raiz, sobre um nome talvez”.

E sinto a angústia de Levi por não conseguir, escutar a palavra de Hurbinek. Posso escutar apenas seu murmúrio, seus esboços de palavras, em uma língua que não é a minha, e que talvez seja apenas a sua língua, inventada em meio aos escombros.

Alguns presos suspeitaram que as palavras do menino quisessem dizer “comer” “pão” ou “carne”, em boêmio. Mas os falantes de várias línguas da Europa jamais conseguiram decifrar aquele murmúrio de Hurbinek. E se ele estivesse tentando dizer somente “vida” ou “adeus”?

As palavras de Primo Levi, no entanto, salvam este menino, mesmo com a morte. São palavras de ressurreição:

“Hurbinek, que tinha três anos e que nascera talvez em Auschwitz e que não vira jamais uma árvore; Hurbinek, que combatera como um homem, até o último suspiro, para conquistar a entrada no mundo dos homens, do qual uma força bestial o teria impedido; Hurbinek, o que não tinha nome, cujo minúsculo antebraço fora marcado mesmo assim pela tatuagem de Auschwitz; Hurbinek morreu nos primeiros dias de março de 1945, liberto mas não redimido. Nada resta dele: o seu testemunho se dá por meio de minhas palavras”.

As palavras, testemunho da presença humana na terra. Graças a elas, muitas vezes saio do meu desamparo, supero tristezas, encontro novos mundos. Estendo os braços a Hurbinek e a Lucio Flávio, e caminhamos juntos por uma estrada que sequer existe, mas que acabei de criar.

Uma estrada feita de murmúrios e silêncios.

ps. O livro de Primo Levi se chama "A Trégua", e é lindo.

domingo, 11 de setembro de 2005

Cada homem tem sua legião de palavras para amar e proteger

Recife, 11 de setembro de 2005.

Há muito tempo, talvez minha eternidade inteira, as palavras me seduzem e definem meus caminhos. Trato-as como se vivas fossem. Percebo quando estão ansiosas, depressivas, tristes. Sei, por algum pacto com elas, quando resplandecem, quando estão a desabrochar. Sinto a claridade de cada uma, a claridade que me ilumina.

Como as coisas que estão vivas, as palavras podem mudar de destino a cada instante, a cada diálogo. Uma palavra abençoada pode tornar-se amaldiçoada em uma fração de segundos. E o tirano pode dizer, enquanto contempla cadáveres, a palavra que também estava destinada à morte. Há sim, palavras que escapam de forcas, cadeiras elétricas, fuzilamentos. Eu mesmo, em silêncio, tentei salvar algumas palavras, não sei se consegui.

Talvez seja por isso o meu amor aos dicionários, de todas as línguas, que guardam, naquele momento da língua, as palavras possíveis. Todo dicionário é um réquiem. Nele, as palavras descansam, repousam. Mas não é um réquiem de morte. Réquiem de beleza. Talvez seja por isso que eu escreva, há tantos anos, meus silenciosos diários, que enchem uma estante. São estantes repletas dos meus instantes...

Me custaria muito viver, não fossem as palavras que aprendi e carrego, não sem uma certa humildade. É que vejo o mundo não pelos olhos, mas pelas palavras.

O poeta Juan Gelman me ensinou a amar o amor com suas palavras, que parecem tocar todos os corpos e almas do mundo. Em um de seus poemas sobre a chuva, ele diz que lhe custa escrever a palavra amor, “porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa/e somente a alma sabe onde os dois se encontram”.

É isso. O amor é uma coisa, a palavra amor é outra coisa. Mas não haveria o encontro na alma se a palavra não tivesse realizado aquilo que o coração teceu, tantas vezes sozinho e em silêncio. E não esqueçamos de louvar também os amores silenciosos, decifrados somente com este contato silencioso do dedo com a pele, no braile que os amantes reescrevem a cada encontro.

Há, segundo Gelman, palavras que naufragam, palavras “que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que se amou/ e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá, como o silêncio que há entre duas rosas”.

Sim, palavras prematuras, que nascem e morrendo. Talvez seja por isso que a palavra “prematuro” seja sempre a do meu irmão, Lúcio Flávio, que morreu com cinco dias de vida, talvez menos, e nós, os três irmãos, como reis magos sem presentes, fomos impedidos de vê-lo, em uma pequena capela de um hospital, quando a minha infância estava na metade. O que ficou, de sua curta passagem pela terra? Terá ele esboçado um sorrido ao ver o rosto de sua mãe, pela primeira vez? Sequer escutei seu grito inicial, que parece inaugurar nosso primitivo rompimento com o silêncio uterino.

E descubro que Lúcio Flávio não teve tempo de aprender a falar. Quais as palavras que meu irmão teria trazido ao mundo? Quais as palavras ele ressuscitaria? Porque sinto que cada ser humano vem ao mundo não apenas para viver, amar, construir coisas, belezas, ter uma história, mas também para trazer palavras, emudecer outras, ignorar muitas. Alguns poucos conseguem o milagre de ressuscitar palavras, mas cada homem tem sua legião de palavras para amar e proteger.

Meu irmão, que não disse uma palavra em sua passagem por este mundo, me trouxe a palavra “prematuro”. Desde então, tudo o que é prematuro me leva ao meu irmão, que jamais vi, mas tenho e sei.

E me lembro que o nome dele, as duas palavras “Lúcio” e “Flávio”, causaram um certo rumor familiar, que jamais consegui decifrar inteiramente. Era como uma nuvem escura, em torno de um nome de uma criança que não tinha sequer nascido. Lúcio Flávio era o nome de um famoso criminoso nos anos 70, e meu irmão nasceu em 1975, salvo engano. A história do criminoso resultou em um livro (e depois em filme) que tinha um título épico: “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia”. Certamente, se o chamassem de Lúcio não haveria problema. Flávio, somente o Flávio, seria aceito a contento.

Mas havia um problema – as duas palavras estavam juntas.

Então me veio este sentimento, ao longo da vida, de que certas palavras, juntas, mudam completamente de sentido, se tornam “outra palavra”, que não é também uma terceira palavra.

Haveriam palavras destinadas à mais completa solidão? Palavras que nunca poderiam sequer se aproximar das outras, sem causar feridas?

Não sei se o meu irmãozinho viveu sua agonia, se passou os poucos dias de vida dentro de uma incubadora, se sentiu frio, se teve fome. Não sei sequer se ele pôde tocar o peito de sua mãe, que também é a minha, para os primeiros goles do leite ancestral da vida, para o acolhimento maternal dos primeiros minutos no mundo. Não sei a cor dos seus olhos, se tinha muitos cabelos, não sei sequer se ele foi registrado, e morreu levando o nome que tantos quiseram lhe negar.

Não sei se ele trouxe a palavra “prematuro” ao mundo, ou somente ao meu mundo. Mas há uma ironia nisso tudo. Ele também foi um passageiro rápido demais neste mundo, e também viveu sua agonia.

Ficou esta esperança gravada em mim - a de que toda agonia seja sempre passageira.

Ficou esta certeza em mim - cada homem tem sua legião de palavras para amar e proteger.

quinta-feira, 8 de setembro de 2005

E ainda dizem que invento histórias...

Recife, 8 de setembro de 2005.

***

Estou aqui na esquina de seu Vital, no Poço da Panela, acompanhando o entardecer no tronco cortado de uma árvore, o céu é amarelo-magnífico, se não existe esta cor, acabo de inventar. Seu Vital conta as loas e boas de uma viagem espetacular ao Juazeiro do Norte, feita recentemente. Seguia sua prosopopéia nos mínimos detalhes, o tamanho do ônibus, o quarto em que ficou hospedado, o amigo secreto no ônibus, enfim. Jorge, enquanto fazia um desenho na mesa única e principal, escutava tudo em silêncio. Lá pelas tantas, sentenciou:

“É, mas faltou o chato da viagem”.

Seu Vital emendou, sem respirar:

“É, faltou você na viagem”.

***

Estou conversando com Massahiro, um menino que mora aqui ao lado. O nome dele é esse mesmo e ele deve ter uns sete anos. Então, faço aquela pergunta estúpida que os adultos estúpidos adoram fazer para as crianças:

“Massahiro, o que tu vai ser quando crescer?”

“Power Rangers”, responde ele, sem hesitar.

***

Um amigo está contando uma história de dois homens que encontram um urso, e eles acham que vão morrer, porque o urso vai correr e devorá-los.

“Um urso corre mais que um homem?”, pergunto estupidamente.

“Na minha história corre”, completa meu amigo, e a história segue, claro.

***

Converso longamente com um amigo que nunca aceitou, em hipótese alguma, essa história de “força da gravidade”, que nos ensinam no colégio e acreditamos sem saber direito o motivo. Meu amigo arregala os olhos e diz, num tom de profecia:

“Não existe força da gravidade, Samarone, o que existe é o embalo”.

***

Longa discussão em um bar sobre o governo Lula e a crise do PT. Graças a Deus, a discussão não tem questão de ordem, mas o negócio vai ficando interminável, as avaliações são as mais profundas possíveis, todos gastam mesmo o verbo sobre as verbas que torraram para acabar com um sonho coletivo. Depois de escutar tudo em silêncio, um dos camaradas solta o brado mais importante da noite:

“O problema mesmo é que meu copo está vazio!”.

***

Estou aparando a cabeleira com Eliete, minha cabeleireira do Alto José do Pinho, e vou escutando as conversas das comadres sobre amor, desamor, paixões e ciúmes, isso não tem preço. Lá pelas tantas, uma das mulheres solta sua definição amorosa:

“Eu não fico me preocupando em dominar não, minha filha. Eu me preocupo é de cuidar”.

Olha para as outras no salão e repete:

“O importante é cuidar”.

***

Chego ao bar de seu Biu, no Alto José do Pinho, depois de aparar os cabelos, e reencontro meu amigo Ailton, ou “Peste”, baterista da banda Matalanamão. Conversa vai, conversa vem, Peste me dá seu email:

"bulbônica@hotmail.com"

“Mas Peste, e este email...”

“Já tinha tanta peste no mundo, que botei bulbônica mesmo”.

***

Xuxa, nosso amigo aqui do Poço, chega em Vital e pede um quartinho. Fica quieto, bebericando silenciosamente, diria que serenamente. Bebe, bebe,bebe sua cachacinha, o quartinho desaparece no organismo, Xuxa pede mais um e vai amansando. Lá pelas tantas, ele interroga ao bar inteiro:

“Por que a hora só passa quando eu largo?”

***

Dona Fátima, que faz a faxina e me dá carões homéricos a cada quinze dias, chega muito séria e fala de um amigo que indiquei para ela também fazer a faxina. O amigo começou agradando muito, depois farrapou com ela, até que desistiu.

“Olhe, seu Samarone, aquele seu amigo era indo e voltando, só que agora ele foi e não voltou mais”.

***

Um amigo muito simpático, boa gente, encontra outro amigo muito sisudo, sério, no dia dos pais, e fala com uma certa euforia.

“Rapaz, hoje é dia dos pais, meus parabéns!”

“Obrigado. Só que você não é meu filho”.

***

Acordo, vou ainda sonolento em seu Vital e peço um café. Beberico o produto e olho para o relógio: nove horas da manhã.

“Puxa, seu Vital, já são nove horas!”, digo alarmado.

“Se preocupe não, Samarone, que o dia hoje começou mais tarde”, responde ele sem pensar.

***

E ainda tem amigo meu dizendo que invento histórias.

terça-feira, 6 de setembro de 2005

Confissões de um dono de bares

Recife, 06 de de setembro de 2005.

A primeira vez que fui dono de um boteco faz um bom tempo. Eu tinha lá pelos 13, 14 anos, quando meu pai chegou em casa com a novidade: as chaves do bar da esquina, rigorosamente defronte à nossa casa, onde se reunia a velha guarda do Monte Castelo, em Fortaleza. Meu pai tinha tomado umas garapas a mais e o dono do bar também. O dono do bar estava reclamando do cansaço, meu pai tinha uma graninha no bolso e disse:

“Eu compro”.

Fizeram o negócio de fogo mesmo. Os dois se arrependeram no dia seguinte, creio, mas a palavra já tinha sido dada, e essas coisas no Nordeste valem muito. Lá fui eu, junto com meus dois irmãos, Tonho e Paulo, tomar conta do negócio. Não lembro o nome do bar e não tenho certeza se o Paulo estava no meio da confusão, porque teve uma época em que ele acreditou que seria mesmo um padre, e se meteu no seminário de Carpina. Bem, era o bar da esquina, e está bom, ora bolas, nem tudo precisa ter nome e pompa.

Eu adorava a velha guarda, especialmente a que se reunia aos sábados, com violão e microfone, para repassar as músicas das antigas, esse negócio singelo que atende pelo nome de boemia. Eu não sou um boêmio por falta de resistência, apenas amante da boemia. Para mim, Lupicinio já disse tudo sobre a alma humana.

Não sei quanto tempo durou o bar. Sei que me diverti muito, e que meu pai reclamava muito dos fiados que a gente deixava a turma anotar. Quero saber qual a criatura com 13, 14 anos, vai botar moral na questão bíblica dos fiados.

O segundo bar veio ao acaso, e batizei-o de La Prensa. Meu deus, o negócio pegou mesmo, tinha dia que eu olhava e pensava:

“O que esse povo todo está fazendo aqui?”

Um dia, voltando de viagem, em pleno domingo, vi uma fila enorme de gente esperando a vez para entrar no bar. Fila para entrar num bar em pleno domingo à noite! Acompanhei o La Prensa durante dois anos, depois segui meu caminho. Muitas coisas bonitas aconteceram ali, naquela famosa esquina da 17 de Agosto.

Agora estou no terceiro bar, o Garraffus. Entrei na sociedade com meu irmão, mas avisei que iria só dar uma ajudinha, até o bar “pegar”, porque o bar era dele. Aconteceu um movimento contraditório - o bar pegou e meu irmão voltou para Fortaleza, com sua família. Há uns três meses, voltei a ser dono de bar. Dono mesmo, de ficar acompanhando o movimento, conferindo contas, resolvendo broncas. Eu, e os “sócios emergenciais”: Professor Davi, Ana, Teresinha e Nana, cada um mais ocupado que o outro.

O bar está ótimo, tem uma clientela maravilhosa, não há tanto fiado assim e há casos patéticos de gente que vem no dia seguinte, porque se lembrou que saiu sem pagar a conta. Chiló, o sanfoneiro coral, outro dia foi pagar uns atrasados, e quando mostramos as contas, ele fechou a cara:

“Tenho certeza que não é só isso!”

Insistimos que era só aquilo mesmo, mas ele bateu o pé:

“Podem procurar, que só saio daqui se pagar tudo!”.

Fez uma confusão dos diabos, ameaçou nunca mais voltar, quis me chamar de mau caráter, disse que tinha separado a quantia certa para pagara os penduras, até que encontramos três contas antigas no fundo do baú. Só então Chiló voltou a sorrir. Como botamos cerveja grande, temos a graça de nunca receber reclamação de João Valadares, aquele infame que odeia long neck (quem não odeia?). Álvaro Claudino, por sua vez, parou com o famoso bordão:

“Cerveja quente de novo!”

É, as coisas vão bem, obrigado, é tudo bacana, é bom ver tanta gente legal se divertindo, namorando, chorando suas mágoas, conversando, comemorando aniversários, fazendo festas para receber amigos, para dar adeus aos que partem, mas vai aqui o anúncio – cansei.

Sim, amigos, cansei mesmo. Está na hora de passar o ponto para alguém que tenha tempo e disposição para tanto movimento, um homem de negócios. Eu não sou homem de negócios, assumo. Quero é ficar no meu canto, escrever minhas besteirinhas, ler as belezas que tanta gente anda produzindo, assistir mais filmes. Quero ir ao teatro, ver o que andam produzindo outros artistas. Perdi um show do Erastos Vasconcelos, no domingo passado, por puro cansaço. Me dá um remorso no coração quando vejo aqui o “Viagem Terrível”, do Robert Arlt, esperando para ser relido pela terceira vez, e não consigo. Até outros bares preciso conhecer. Meu circuito tem se limitado ao lendário Empório Sertanejo, quando agüento, e a Seu Vital, aqui do Poço, porque dou um passo, e estou lá dentro.

A noite me dá um ótimo material para crônicas, mas quem disse que eu vivo para escrever crônicas? Elas são fruto da vida. Seria mesmo patético o sujeito viver para escrever, como se a vida fosse decifrável. No meu caso, eu primeiro vivo, depois escrevo. No final das contas, tudo pode ser tema de crônica.

No último domingo, percebi o tamanho do problema existencial. Nosso time da pelada aqui do Poço, o “Caducos Futebol Clube” foi jogar uma partida contra o glorioso selecionado de Santana, do bairro de Santana, perdão pela redundância. Fui escalado para a defesa, possivelmente com Batman na lateral esquerda e Egildo ciscando pela direita. Acordei às 7h e voltei a dormir, exausto. Perdi o jogo do nosso clube azul e branco, e a chance de me firmar como titular. Não procurei saber ainda o resultado do jogo, mas se tivermos perdido de 1 x 0, assumo a culpa. Foi falha minha, eu que não travei a bola com o artilheiro adversário, na hora do chute. Isso dói, meus amigos, dói quase tanto quanto uma derrota do Santinha.

Quero ficar do lado de cá do balcão, tomando uma cervejinha sem me preocupar com o garçom cutucando a cada cinco minutos:

“O cliente pediu para tirar um couvert, porque a namorada chegou agora”.

Bem, se algum homem ou mulher da noite andar lendo essas minhas crônicas miúdas, pode entrar em contato, para a famosa cerimônia da “venda do ponto”. É só mandar um comentário neste blog, que chega ao meu email. Cansei mesmo. Diria que estou exausto.

Alguns vão dizer que sou doido, que não gosto de ganhar dinheiro, essa lorota toda.

Então eu vou de Roberto Juarroz, poeta argentino:

“Meu objetivo é sentir que estou vivendo aquilo que devo viver”.


Ps. Nesta quarta, tem a famosa roda de samba, além do aniversário de Silvinha. Nos vemos.

sábado, 3 de setembro de 2005

A história do homem que amou demais - Final

Recife, 03 de setembro de 2005.

Onde estávamos? Ah, sim, eu falava das histórias do desconhecido que conheci ocasionalmente na praça de Casa Forte. A última frase da crônica sentimental anterior foi “O sangue nas minhas veias se expandia...” – uma imagem por demais poética e amorosa (quem não leu, faça-me o favor, é o texto anterior, logo abaixo). Meu amigo se referia ao seu grande amor, Zeza, uma criatura feia, baixinha, gorda, mas que ele amava, com o amor não tem isso, não escolhe beleza, palavras do próprio amigo.

Na verdade, quando entramos no delicado tema amoroso, o meu amigo fez confissões as mais duras. Com a retroescavadeira, chafurdou a alma. Sofri junto com ele, quando disse que seu coração pulsava por ela. “Aquele olhar seguro, humilde, me acalmava. Perto dela eu me sentia feliz”.

“E o que era ela para você?”, perguntei, e imediatamente descobri que arrancara a tampinha da ferida.

“Eu sofri dores angustiantes que me fizeram padecer. Mas sou de sofrer calado. Agora, respondendo à sua pergunta – uma árvore, um pássaro, uma canção, tudo me lembrava ela”.

“Mas se era assim tudo tão perfeito, por que vocês se separaram?”

“Eu nunca entendi, mas ela separou de mim”, respondeu ele, tristíssimo.

Me olhou muito sério e completou:

“A mulher é uma criatura que ninguém entende”.

Concordei imediatamente. Sei que tem gente que entende, mas não conheci tal felizardo. Descobri que meu amigo se chamava Luis Antônio Bezerra Tavarêz (com z e acento circunflexo, como me informou), 62 anos. Deu baixa do Exército em 1964. Trabalhou 20 anos na Celpe e saiu em 5 de janeiro de 2000, graças a um Programa de Demissão Voluntária (PDV). Recebeu uma bolada razoável – R$ 78 mil e gastou tudo, absolutamente tudo com Zeza. Passeios, piscina, viagens. Viveram seis anos juntos, me disse ele.

“O pedestal é o edifício mais alto que existe”, completou.

O Tavarêz gostava de sair com frases intempestivas, que alavancavam a conversa. “No pedestal tem piscina, caviar, pernil, Ballantines 12 anos”, prosseguiu.

“E hoje, na terra tem lapadinha de cana”.

Foi isso. Meu amigo recebeu uma boa grana, torrou tudo com a querida Zeza e depois levou um chega-pra-lá. Veio o famoso tombo. Eu já estava me preparando para encerrar a conversa, tinha sido um ótimo começo de noite, quando o Tavarêz deu uma tossida breve, aquela de quem vai começar um assunto, e me disse que tinha amado uma mulher que o Orlando Silva cantava em prosa e verso. Perdão, fui consultar meu bloquinho agora, e é o Orlando Dias. Me parece que um é mais antigo que o outro, não sei, é só uma intuição.

“Ela se chamava Dolores. Tomei uma cana tão grande, que fui pedi-la em casamento”.

Então caiu o mito do “único amor”, que o Tavarêz tinha alardeado. Teve a Zeza, mas a Dolores também fez estragos.

“Eu era cambiteiro na época e ela disse que eu não podia sustentar ela”. Informo que não sei o que é cambiteiro. “Foi a mulher que mais amei na vida, Dolores”, disse ele, em meio a um suspiro.

Francamente, Tavarêz, tem hora que eu não entendo mesmo são os homens. Há pouco, a mulher de sua vida era uma morena baixinha, feia etc. Agora me surge, assim do nada, essa Dolores, que me parece ser uma mulata alta, esguia, cabelos até os ombros e lábios grossos, pelo menos foi como a imaginei, pelo olhar de gula dele.

“Depois veio Toinha, Rosângela, Maria, Zefinha... e hoje eu nada tenho, só sofro de saudades”, lamentou ele.

“Espero um dia abraçar novamente a mulher que mais amei na vida”.

Como eu já não sabia qual era a mulher que ele queria abraçar, preferi não perguntar, para não ser indelicado. Ficamos conversando mais um pouco, pensei em chamá-lo para uma cervejinha num fiteiro defronte à praça, mas eu tinha que trabalhar, essa minha vida de dono de bar me mata. Falamos umas potocas, mas a conversa deixou de ter percalços bíblicos ou rasgos filosóficos. Percebi que Tavarêz era uma daquelas criaturas que tinha amado demais na vida. Ultrapassara o dique que ele mesmo podia suportar e ficara como Nova Orleans, inundado.

O resultado era que a dor também tinha deixado marcas fundas, sulcos, buracos em sua alma, e talvez não houvesse mais como fazer os tais remendos. Perdera, talvez, as sementes e a colheita. Não havia mais como plantar, nem como esperar brotar. Daí a solução caseira – “amor só existe um, que é o de mãe", como ele dissera, no início da conversa”.

Sim, Tavarêz, mas é o mais seguro também, porque e é diferente amar uma criatura como a Zeza, que é feia mas fica linda. Se minhas amigas psicólogas te pegarem, estás em maus lençóis. Terás um complexo de presente.

Mas estou conversando água. Tavarêz fez o primeiro silêncio da noite, me olhou fixamente e disse:

“Hoje, só fracasso e solidão”.

Senti uma fisgada no coração. Doeu até em mim.

Ele se levantou, me estendeu a mão direita e completou:

“Mas amanhã é outro dia. Paramos por aqui”.

Ele saiu andando devagar e creio que conheci um homem que amou demais. Há gente assim na vida. É só uma constatação. Há que se acolher, nem que seja com um olhar, num banco de praça no Recife, uma pessoa que amou demais e rompeu os próprios diques.

sexta-feira, 2 de setembro de 2005

A história do homem que amou demais- Parte I

Recife, 02 de setembro de 2005.

Estou sentado num banquinho da praça de Casa Forte, lendo o Juan Gelman que ganhei da Fabiana, muito concentrado, quando vem um sujeito de barba branca andando lentamente. Esse daí bebeu e não foi pouco, penso. Ele passa por mim e diz a frase, num tom muito solene:

“amor, só de mãe”.

Fecho o livro e pergunto se ele tem certeza disso, só para iniciar uma conversa. Ele fica sério, diria que meditativo, e completa:

“nada disso que a gente vê, a gente leva. Só a natureza”.

Guardo o livro, pego meu bloquinho de anotações que ganhei de Ana Luisa (é, agosto foi um mês difícil, mas cheio de pequenos agrados) e já sei que vem muita coisa boa pela frente. Meu amigo começa a falar suas coisas. No fundo é isso, somente isso. Ele estava sozinho com tanta coisa acontecendo em sua vida, e precisava falar com alguém. Como um sonâmbulo, se arrastava pelas ruas do Recife à procura de alguém ou à procura de nada. Acho que não precisava nem de uma pessoa com nome, mas que fosse alguém, ou o Zé Ninguém. Dei esperanças a ele com um olhar, creio. A gente nunca sabe a quem dá esperanças.

“Estou mais magro, mas agüento dois dias de fome”, comenta.

Imediatamente, achei que ele estava mais magro mesmo. Olha para o banco, senta e diz, como num desabafo:

“dormi aqui as duas últimas noites, na poluição do tempo”.

Depois se corrige:

“Não, na poluição da terra”.

Me olha assim, com uma cara de cansaço, muito cansaço, e pergunta quase implorando:

“Onde está a humildade?”

Eu lá sei, amigo, eu lá sei, o mundo está repleto é de deuses e famosos, de carros e apressados. Como não sei mesmo onde está a humildade, confesso minha ignorância e vou anotando suas ponderações sobre o mundo.

“Cada árvore dessa aqui, eu acho um Deus”.

Nisso concordamos integralmente. As frases vão pulando de sua boca. Pareciam pequenos animais amordaçados, que ganharam um alvará de soltura.

“O poder é uma ficção”.

Bingo. Ele me olha novamente, agora mais afetuoso e pergunta:

“Agora eu faço uma pergunta ao mestre – qual foi a pessoa que mais pecou no mundo? O homem que botou a primeira gaia no mundo?”

Caramba, sempre fui péssimo em argüições orais. A sorte é que ele não me deu tempo para pensar.

“Foi Deus, que por obra do Espírito Santo, botou gaia em José”.

Informo aos amigos leitores mais católicos apostólicos, que estou apenas transcrevendo uma conversa numa praça do Recife, numa noite de quinta-feira, após um dia atravessado de problemas e chateações, de norte a sul. As afirmações fortes são do meu amigo da barba branca.

“Salomão pediu a Deus inteligência e sabedoria. Deus ofereceu isso tudo e mais uma coisa – dinheiro”.

Anram, como diria Benira. Me deu uma inveja integral do Salomão, que teve inteligência, sabedoria, e certamente não atrasou suas contas e pôde viajar sempre, para qualquer canto do mundo, coisa que me fascina.

“Agora me diga: qual foi o homem da fé?”

Pensei em responder um Santo Agostinho, que escreveu lá suas confissões, ou São Francisco, de quem sou inclusive devoto, mas ele se antecipou e cortou o meu barato.

“Foi Abraão”.

Então ele me deu uma longa explicação bíblica, que me pareceu bem fundamentada e pertinente, mas desprovida de fé. Meu amigo informou que Deus pediu o filho de Abraão, Isaac, em sacrifício. Quando Abraão subia a montanha para matar o filho, com um feixe de lenha (ele não explicou para que servia o feixe de lenha), Isaac perguntou, talvez desconfiando do pior:

“Papai, cadê o carneirinho?”

Caramba, essa pergunta me matou. Um singelo carneirinho, à caminho da morte. Cadê o carneirinho, na subida da montanha, é aquele momento da tragédia em que o coro entra em ação e a platéia se arrepia. Ele me olhou e comentou:

“Tu estás anotando, é?”

Confirmei. Disse que estava escrevendo um livro sobre os anônimos mais importantes do Recife, e ele abriu um sorriso. Seus dentes eram bem separados um do outro, mas estavam inteiros e polidos. Senti aquele aroma de quem andou bebendo com dedicação, nos últimos 25 ou 30 anos.

Bem, no alto da montanha, Abraão pegou o cutelo para matar o filho, informou meu amigo. Eu já fiquei nervoso, temendo o pior com Isaac, o do carneirinho.

“Sabes o que é cutelo? É para imolar”.

Eu não sabia que cutelo só servia para imolar. Estava preocupado era com o garoto. Mas o bom do meu comparsa é que as perguntas vinham com a resposta. Ah, se eu tivesse perguntas já com respostas já na quinta série...

“Tu sabes dizer o que quer dizer proverá?”

Essa eu sabia, mas ele não deu bola. Se encostou no banco e disse que se sente feliz às três horas da manhã, quando as aves gorjeiam. Lembrei do poema que fala das aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá, mas esqueci o autor. Preciso decorar algumas coisas, nem que seja para impressionar numa conversa de praça.

“Tu sabes qual foi o mártir brasileiro que, para defender sete pessoas, deu sua vida?”

Caramba, eu não sei de quase nada importante da história da humanidade! Ele respondeu:

“foi o alferes da Marinha, Tiradentes”.

O sujeito me ganhou só pelo uso de “alferes”, que é palavra certamente oriunda de outros séculos, e pela história do carneirinho.

“Ele foi guilhotinado e esquartejado, e em cada canto de Minas Gerais, colocaram um pedacinho do seu corpo”.

Eu não sabia que a gilhotina fora utilizada abertamente pelos mineiros. Que esquartejaram o velho Tiradentes, eu sabia.

“Por outro lado... a felicidade está debaixo dos meus pés. Quando eu levanto os pés, ela aparece”.

Fiquei feliz em saber que ele encontrou a felicidade, mas estava mudando os assuntos com uma rapidez impressionante.

“Ela aparece e foge. Não, ela na verdade se apaga”.

E o amor? - perguntei eu, para jogar lenha na fogueira. Na verdade, joguei um balde cheio de gasolina. Ele estremeceu e me disse:

“Eu trabalhei 28 anos na Celpe e possui 22 mulheres”.

Não entendi a questão do trabalho com as mulheres, mas pouco importava, cada um com seu jeito de lembrar as coisas. Ele começou a dizer, como quem escala o time supercampeão de 1973, o nome de todas.

“Zan (Rosana), Tonha, Marleide, Zeza, Lourdes, Beatriz, Bia, Dolores...”

Ele falou os nomes com tanta rapidez, que perdi alguns e fiquei com vergonha de pedir para repetir.

“Foram princesas das quais só uma eu amei: Maria José Ribeiro, a “Zeza”, morena brejeita, cor de canela. Às vezes eu beijava seus próprios pés. A chamava de minha princesa. Ela tinha tudo: era feia, baixinha, gorda, mas o amor não tem isso – não escolhe beleza. Ela pode ser fedorenta, feia, mas no aconchego da vida, a gente é feliz com essa pessoa”.

Respirou fundo e completou:

“O coração se queima. Era o pulsar. O sangue nas minhas veias se expandia...”

***
(A última parte da conversa vem na próxima crônica, ainda hoje. Aguardemos o restante da história de um homem que amou demais.)