segunda-feira, 31 de outubro de 2005

Pequenas histórias de amor - volume II (ou: o moço da bicicleta verde)

Ela era casada, mas sempre que ele passava, geralmente de bicicleta, ela sentia aquela fagulha, ou aquela “coceirinha no coração”, como me disse outro dia um grande amigo. Olhava o rapaz, seu jeito de pedalar meio manso, como se estivesse saboreando cada sopro daquele vento. Achava lindo ele e aquela bicicleta verde. Ele, por sua vez, tinha reparado nela, mas sabia que era casada, tinha um filho, então seguia pedalando, pedalando, por outros caminhos.

O tempo passou, ela separou. Um dia, foi a uma mercearia, próximo da sua casa, encontrou um amigo. Tomaram uma cerveja, mataram saudades, até que o rapaz chegou, em sua bicicleta verde. Ela teve um susto, perdeu o rumo da conversa. O amigo conhecia o rapaz e a apresentou. Ele morava ali próximo, ela nem desconfiava, mas era quase seu vizinho.

Mas foi tudo rápido. Ele comprou um saco de bolachas e saiu pedalando. Ela guardou, deste dia, seu sorriso de corpo inteiro. Descobriu também que adorava as bolachas que ele comprara.

O tempo passou. Há alguns dias, ela me contou que o encontrou. Saiu de casa para comprar uma melancia, numa tarde de sábado. Quando passou pela venda, ele estava tomando uma cerveja com um amigo e a convidou para sentar. Ela, assustada, deixou a melancia para depois.

Foi uma conversa boa, cheia de sorrisos e pequenos esboços de luz. O bêbado que passou, falando de futebol, o dominó à sombra de uma grande árvore, cães mansos cochilando em plena tarde. Quando ela estava para sair, ele a convidou sem muito pudor.

“Vamos tomar a saideira lá em casa?”.

Ela foi. Sempre quis ir.

Sabe-se que se amaram a tarde inteira. Já era noitinha, quando ela cheirou os cabelos dele. Não, não cheirou, ela respirou profundamente os cabelos dele.

“Eu sempre quis cheirar teus cabelos”, disse.

Foi assim, tudo bem simples, como quem compra uma melancia, numa tarde de sábado.

sexta-feira, 28 de outubro de 2005

Alguns pedidos a Santo Expedito

Ah, Santo Expedito, fui informado que tu és o santo das causas impossíveis. Melhor que isso, que hoje é o teu dia. Sim, minha mãe falou, de Fortaleza, e meu irmão confirmou, de Belo Horizonte, são duas fontes totalmente confiáveis, como dizemos no jornalismo. Os dois já fizeram suas preces e acenderam suas velas, mas como gosto de escrever as coisas, lá vai minha pequena lista de pedidos no teu dia, meu queridíssimo Santo, vê se dá uma olhadinha no meu blog e imprime meus pequenos pedidos, para não esquecer nenhum.

Ajudai a aparecer um comprador para o meu bar, o Garraffus, porque estou exausto desta vida de jornalista, cronista e dono-de-bar. Eu não sei, meu santinho querido, quem inventou esse negócio infame de abastecer o bar no dia seguinte. Na próxima, meu santo, me dê um bar que fique cheio de gente bacana, e no dia seguinte, se abasteça sozinho;

Não, meu santo, dai-me somente um comprador bacana para o bar, que encerrei minha carreira empresarial do ramo noturno e agora quero só ficar do lado de fora do balcão, enchendo o saco do garçom, reclamando do preço das coisas e pedindo intermináveis saideiras;

Eu te peço, meu bom santo das causas impossíveis, que Lucidélia fique logo boa do câncer, mas obrigado pela ajudinha das últimas semanas. Ela já está aguando os jardins de novo e passando o jogo do bicho, parece que o pior já passou;

Não vou te pedir nada nas coisas do coraçao, meu santinho, porque parei de ficar correndo atrás do amor, ele vai chegar doce e bom na hora certinha, é o que tenho sentido. Peço somente um amor tranquilo e verdadeiro para uma amigona minha, que declino o nome, mas é uma criatura linda, adorável, que está a merecer um sujeito que a queira bem e a faça feliz;

Meu expeditinho, perdão pela intimidade, mas providencie uma sanfona nova para meu amigo Chiló, porque o cara toca bem, tem uma voz raçuda, mas a sanfona dele anda fazendo “fum”, "fum" e ele já está a merecer uma sanfona nova, que custa somente R$ 8 mil;

Meu Santo, vê se tu dá um jeito de cassar logo esse José Dirceu, que ninguém agüenta mais tanta prorrogação, tanta liminar, tanta chateação neste mundo.

Santo querido, faça com que dona Jane, a minha vizinha, desista de arrancar a linda mangueira do quintal, como ela já tem anunciado aos quatro ou cinco ventos. Não sei o senhor, meu santo, mas eu adoro manga espada e principalmente o verde das folhas e a sombrinha gostosa;

Expedito do meu coração, dá um abraço nos meus avós que já morreram, se eles estiverem por perto, bem como no meu irmão Lúcio Flávio e nos amigos que já não estão por aqui;

Meu queridinho, sei que estou exagerando, mas dá uma ajudinha ao meu Santa Cruz neste sábado, a partir das 15h, no Arrudão. Basta um soprinho naquelas bicudas que o Andrade “Cabeção” tem dado, de fora da área, para estufar as redes do Grêmio e entrarmos em delírio;

Meu santo, fique atento para nosso arqueiro Kleber não levar nenhum golzinho durante os eternos 90 minutos;

Ditinho, ajude para que a Pati continue me mandando os livros do Juan Gelman dos Estados Unidos, e a Fabiana não esqueça de mandar, da Inglaterra, aqueles caderninhos pequenos e lindos, da marca “Moleskine”;

Agradeço-te, Expeditinho, por manter-me sempre neste estado de leseira e distração, mesmo nos momentos mais difíceis da vida;

Por último, meu querido e simpático Santo, daí-me sempre um pouco de inspiração, para não deixar meus poucos mas simpáticos leitores chateados com crônicas meia-sola. E ajudai um pouco na venda do meu livro recente, o “Estuário”, que está sendo exposto aqui na venda de seu Vital, no Poço da Panela;

E perdão, meu santo, por eu ser tão pidão.

quarta-feira, 26 de outubro de 2005

Sobre a memória, que é irmã siamesa do amor

Recife, 25 de outubro de 2005.

Talvez uma das coisas mais impressionantes no ser humano, a que mais me intriga e me encanta, seja a memória. Ela parece ganhar vida própria, com o passar dos anos, às vezes é cheia de sutilezas, é como o amor, uma boa malandrinha, que nos pega de surpresa. Depois de ter estudado tanto sobre o assunto, uma vez escutei a seguinte frase de Letícia Lins:

“Memória é reconhecimento”.

A frase definiu meus dois anos de mestrado. Nem precisava ter lido tanto, ter pesquisado tanto, se memória, no final de tudo, é como o amor: reconhecimento.

O assunto apareceu depois que cheguei de São Paulo, onde passei seis anos intensos (1994-2000). Foi um período singular da vida. Cheguei um garoto, com 24 anos, e saí já mais arejado para os rumores da vida, com 30. Neste período aconteceu de tudo. Trabalhei em ONGs, no jornal da Igreja Católica, sob o comando de Dom Paulo Evaristo Arns, passei por redações da grande imprensa, sinto que virei jornalista de verdade, encontrei os mistérios do amor, e depois de tanta intensidade, me veio um cansaço e a vontade de fazer outras coisas, coisa que sempre me ocorre na vida. Então fui fazer o mestrado.

E veio a outra fase, que foi de muito sossego, leituras, um apartamento silencioso e calmo, compartilhado com o meu amigo e irmão Gustavo, que vira e mexe, manda sinais neste blog. Viajei muito para vários lugares do Brasil, mas principalmente para o Chile, Uruguai e Argentina. Morávamos na Santa Cecília, um bairro simpático, com muitos nordestinos trabalhando nos bares e restaurantes, os “Mombaça”, porque parecia que a cidade inteira tinha migrado para Sampa.

Foram seis anos de alegrias e muitas tristezas também. Não foram poucos os momentos em que me deparei pensando:

“O que estou fazendo aqui, neste frio do caralho, longe de casa, sozinho?”

São perguntas que a gente faz na hora da grande tristeza, achando que a vida é assim, explicável. Somente o tempo, este Deus, vai responder, na hora certa.

Se eu for olhar meus diários deste período, encontrarei muitas coisas surpreendentes, talvez fatos que eu não lembre, conversas com desconhecidos que nunca viraram crônicas, farras que se perderam nas brumas da memória.

Voltei algumas vezes a Sampa, sempre de passagem, sempre sem tempo para ver os velhos amigos, os que compartilharam coisas importantes, como aniversários, batizados, amigo-secreto-do-final-de-ano, essas coisas que vivo faltando sem culpa, mas que são importantes, embora não sejam fundamentais. Não encontrei Bernardete, minha chefa no Jornal O São Paulo; não encontrei Josmar Josino, o “Valente”, que considero o maior jornalista do Brasil; não encontrei minha prima Érika, a super super, sempre com aquele sorriso largo, aquela conversa intensa, cheia de vida; não encontrei Maria, a dona do mercadinho na esquina onde eu morava, uma cearense com olhos tristes, que tinha perdido um irmão assassinado em Sampa e me parecia infeliz naquele lugar; não encontrei “Tomatinho”, uma senhora da banca de revista que sempre vestia vermelho e logo de manhã me sorria dizendo “ô meu filho...”; não encontrei Camila, que morava num prédio ao lado e já começava a trocar o jornalismo pela dança, pela graça divina.

Passei ao largo. No último dia, saí com minha câmera para tirar as fotos do bairro onde morei. Iria fotografar o velho Manoel, que só me chamava de “Jacaré”, bem como ao Gustavo. Iria fotografar Maria e Tomatinho, bem como os Mombaça. Iria tirar fotos dos três lugares onde morei, além das ruas, de algumas pessoas, do clima de Sampa.

Mas a caminho da Santa Cecília, desisti. Não sei o que houve. Guardei a máquina e fiquei no bairro da Liberdade, vendo os japonezinhos passarem, naquele passo manso. Eu, com meu passo manco, eles, com os passos mansos. Cada um com seu caminhar, foi o que pensei. Entrei num boteco, o “Amigos da Liberdade”, pedi uma cerveja e fiquei ruminando minhas besteirinhas. Atrás de mim, um velhinho japonês que usava óculos escuros, disse bem alto:

“Quando eu melhorar, a Brahma que se cuide!”.

Pensei que velhinho japonês só dizia filosofia Zen. Bem, não deixa de ser uma filosofia, avisar à Brahma que vai entrar rasgando, quando ficar recuperado de algo. Ou seja: agora eu me resguardo, fico quietinho, mas depois, vou cair na gandaia com meus amigos.

Fiquei ali, olhando, ruminando e anotando algumas coisinhas. Não anotei nada de especial. Lembrei de uma frase de Gelman, “com la lágrima seca sobre el pômulo”, e nada mais. Fiquei olhando, quieto e silencioso. Senti uma paz imensa, uma espécie de regozijo. Não havia mais a necessidade de tocar as coisas do passado, para transformá-las. Fiz o meu encontro silencioso. Tudo segue, eu sigo, o bairro que morei segue, os amigos seguem com suas vidas, as lembranças do que vivemos.

Foi uma espécie de armistício. Voltei de Sampa sem saudades, sem lembranças dolorosas, sem cobranças do passado. Encontrei algo que talvez nunca tivesse perdido, mas que ainda queimava. E foi tudo simples, manso, terno. Peguei outro caminho, que me levou talvez mais para dentro de mim. Acho que reconheci algo.

Talvez me tenha saído uma lágrima seca sobre o rosto, eu não sei, desculpem pela crônica tão pessoal e sentimental, a vida segue, a vida sempre segue, como a memória, que é irmã siamesa do amor.

segunda-feira, 24 de outubro de 2005

Cenas de viagem com um trio de forró

São Paulo, 24 de outubro de 2005.


Cheguei sábado a São Paulo com uns amigos, para o jogo do Santa Cruz contra a Portuguesa. Levamos uma surra e tanto (4 x 1), mas fizemos uma festa enorme com a nossa “Sanfona Coral”.

Guardei três cenas desta viagem deliciosa com os amigos. Não são tão poéticas assim, mas servem para pensar.

Cena 1 – A doce velhinha

Estamos em uma estação do metrô, o trio toca um forrozinho lindo, somos um grupinho de oito pessoas, todo sorrindo, é uma bela tarde de sol em Sampa, o que não é tão comum. Uma velhinha se aproxima, faz um sinal positivo com o polegar, e fica nos olhando. Seus olhos brilham. Ela dá um jeito de entrar no mesmo vagão, senta e fica olhando, rindo. De vez em quando, faz um “legal” com o polegar. Creio que foi sua grande alegria do dia.

Cena 2 – Do paraíso para a morgação

Chegamos ao metrô Paraíso, a farra continua, começamos a dançar, enquanto o metrô não chega. Tudo é uma imensa alegria e beleza, até que chega um sujeito com roupa de segurança, armado com a truculência que a vida lhe deu.

“Eu sou o supervisor, e não autorizei ninguém a tocar nesta estação. Vou parar a composição para averiguar”, diz, com cara de mau.

Explicamos que viemos somente torcer pelo nosso time, que vamos ao estádio, que está tudo em paz. O sujeito está transtornado, quer nos levar para “averiguação”. Por sorte, o metrô chega, abre a porta e vamos emburacando. Ele nos acompanha, quer parar o metrô, mas é tudo rápido, já estamos a caminho. Faltou pouco para um animado forró terminar numa delegacia.

Morgação total entre nossa turma. O sanfoneiro amuado, o zabumbeiro sem graça, a triangueira triste. Sim, amigos, a alegria incomoda, fere, atrapalha.

Cena 3 – O tímido que vira truculento

Estamos no Shopping D, Zona Norte do Recife. É o ponto de encontro de todos os nordestinos que vão ao estádio do Canindé. A alegria é geral. Ficamos nos perguntando o motivo de tanto ódio entre os torcedores. Chega um torcedor da Portuguesa. Usa uma jaqueta com o nome “Leões da Fabulosa”, que é a torcida organizada da Lusa. Tímido, simpático, ele conversa com a gente, parece boa gente, come algo, toma uma cervejinha. Chegam mais dois amigos dele também meio tímidos, até comento que o cara que torce pela Portuguesa parece que está fazendo alguma coisa de errado.

Tudo está bem, nos preparamos para ir ao estádio, quando o rapaz tímido vê um camarada botando sua comida em um self-service. Usa uma camisa da “ Gaviões da Fiel”, a torcida organizada do Corínthias. Meu deus, esse rapaz franzino e tímido se transforma. Vira um bicho, começa a gritar dentro do shopping. Que vai dar porra, que vai quebrar, que vai fazer isso e aquilo. Ele não grita, vocifera. Os dois amigos o acalmam. O negócio é assustador. Saímos com nossa Sanfona Coral, vamos ao estádio, nos divertimos muito, mesmo com a derrota. Mas saio do shopping com a pergunta: de onde vem tanto ódio?

Domingo, a população brasileira votou pelo não no referendo: 63,94% dos votantes acreditam que o comércio de armas de fogo e munição não deve ser proibido no Brasil. Outros 36,06% votaram pela proibição.

Hoje, no jogo São Paulo x Corinthians, nada menos que 1.125 policiais irão trabalhar, para tentar conter a violência (e certamente usar da violência também).

Bem, a vida segue, com e sem arma, mas com os espíritos bem armadinhos.

E três vivas ao forrozinho lindo que fizemos dentro e fora do estádio da Portuguesa. Ao final do jogo, nosso time levando uma sova de 4 x 1, os torcedores da Lusa nos chamando de “cabeça chata”, nós estávamos era cantando o hino de “Elefante”.

Cenas de uma viagem com uma sanfona

São Paulo, 24 de outubro de 2005.


Cheguei sábado a São Paulo com uns amigos, para o jogo do Santa Cruz contra a Portuguesa. Levamos uma surra e tanto (4 x 1), mas fizemos uma festa enorme com a nossa “Sanfona Coral”.

Guardei três cenas desta viagem deliciosa com os amigos. Não são tão poéticas assim, mas servem para pensar.

Cena 1 – A doce velhinha

Estamos em uma estação do metrô, o trio toca um forrozinho lindo, somos um grupinho de oito pessoas, todo sorrindo, é uma bela tarde de sol em Sampa, o que não é tão comum. Uma velhinha se aproxima, faz um sinal positivo com o polegar, e fica nos olhando. Seus olhos brilham. Ela dá um jeito de entrar no mesmo vagão, senta e fica olhando, rindo. De vez em quando, faz um “legal” com o polegar. Creio que foi sua grande alegria do dia.

Cena 2 – Do paraíso para a morgação

Chegamos ao metrô Paraíso, a farra continua, começamos a dançar, enquanto o metrô não chega. Tudo é uma imensa alegria e beleza, até que chega um sujeito com roupa de segurança, armado com a truculência que a vida lhe deu.

“Eu sou o supervisor, e não autorizei ninguém a tocar nesta estação. Vou parar a composição para averiguar”, diz, com cara de mau.

Explicamos que viemos somente torcer pelo nosso time, que vamos ao estádio, que está tudo em paz. O sujeito está transtornado, quer nos levar para “averiguação”. Por sorte, o metrô chega, abre a porta e vamos emburacando. Ele nos acompanha, quer parar o metrô, mas é tudo rápido, já estamos a caminho, foi tudo rápido.

Morgação total entre nossa turma. Sim, amigos, a alegria incomoda, fere, atrapalha.

Cena 3 – O tímido que vira truculento

Estamos no Shopping D, Zona Norte do Recife. É o ponto de encontro de todos os nordestinos que vão ao estádio do Canindé. A alegria é geral. Ficamos nos perguntando o motivo de tanto ódio entre os torcedores. Chega um torcedor da Portuguesa. Usa uma jaqueta com o nome “Leões da Fabulosa”, que é a torcida organizada da Lusa. Tímido, simpático, ele conversa com a gente, parece boa gente, come algo, toma uma cervejinha. Chegam mais dois amigos dele também meio tímidos, até comento que o cara que torce pela Portuguesa parece que está fazendo alguma coisa de errado.

Tudo está bem, nos preparamos para ir ao estádio, quando o rapaz tímido vê um camarada botando sua comida em um self-service. Usa uma camisa da “ Gaviões da Fiel”, a torcida organizada do Corínthias. Meu deus, esse rapaz franzino e tímido se transforma. Vira um bicho, começa a gritar dentro do shopping. Que vai dar porra, que vai quebrar, que vai fazer isso e aquilo. Ele não grita, vocifera. Os dois amigos o acalmam. O negócio é assustador. Saímos com nossa Sanfona Coral, vamos ao estádio, nos divertimos muito, mesmo com a derrota. Mas saio do shopping com a pergunta: de onde vem tanto ódio?

Domingo, a população brasileira votou pelo não no referendo: 63,94% dos votantes acreditam que o comércio de armas de fogo e munição não deve ser proibido no Brasil. Outros 36,06% votaram pela proibição.

Hoje, no jogo São Paulo x Corinthians, nada menos que 1.125 policiais irão trabalhar, para tentar conter a violência (e certamente usar da violência também).

Bem, a vida segue, com e sem arma, mas com os espíritos bem armadinhos.
Três vivas ao forrozinho lindo que fizemos dentro e fora do estádio da Portuguesa. Ao final do jogo, nosso time levando uma sova de 4 x 1, os torcedores da Lusa nos chamando de “cabeça chata”, nós estávamos era cantando o hino de “Elefante”.

quarta-feira, 19 de outubro de 2005

A pequena história de Maria dos Desencontros

Ela me disse uma frase que pareceu uma pedrada:

“Hoje, na vida, já não faço tantos planos. É feio o que vou dizer, mas aprendi a viver meio como se estivesse em estado terminal de uma doença, sem muito apego ao futuro”.

Mas depois veio uma pequena frase, um resto de frase, uma sobra de luz que me deixou aliviado.

“O presente já me basta”.

Ah, e seu nome, como ela se apresentou: Maria dos Desencontros.

Não, não é seu nome. Seu nome é muito mais bonito, mas foi assim que ela me contou sua história, há poucos dias. Se considerava contemplada com os desencontros. Viver no tempo presente era sua única realidade.

Quando jovem, muito jovem, naquela meninice que se encanta com a vida enquanto o corpo se prepara para o contato com o mundo, ganhou um presente muito distante. Ele, o amigo, vivia em Angola. Se conheceram nesses programas de intercâmbio, e tudo parecia muito próximo. Ela escrevia com o coração, ele respondia como se fosse o eco, em outro continente. Um eco africano, resvalando em sua pele branca.

Foram dois anos de correspondências, trocas e expectativas, até que um dia ele resolveu visitá-la. Como era surpresa, não avisou. Ela tinha viajado dois dias antes para o outro lado do Brasil. Nunca se viram.

Depois, os desmandos do coração. Aos 15 anos, se apaixonou por um ator e recebeu um “Tchau, guaranau” assim, sem muitas delongas, quando tudo parecia florescer. Era uma menina, talvez fosse ainda muito frágil para aquela morte no peito. Para se machucar bem, foi assisti-lo muitas vezes. Em cena, se tornava maior, mais belo, intenso. Mas havia o grande desencontro entre o palco e a platéia. Para amar, ninguém pode ser apenas espectador, Maria.

Muitos anos depois, já mulher feita, o encontrou no Carnaval, em Olinda. Ah, Olinda, quantos encontros reservaste para tuas ladeiras... Ele se aproximou daquela mulher que não conseguira ver um dia. Agora, ele estava pleno de amor, queria inundá-la com tanta ternura e beleza, mas ela já tinha derramado o sentimento, espalhado suas quimeras pelas calçadas e jardins. Era tarde, pois também florescera. Maria dos Desencontros precisava seguir. Mas registrou o desencontro, mais um. Vira que não tinha mais um brilho nos olhos para presenteá-lo.

Um dia, encontrou um homem, também pleno de desencontros. Mas ele preferia usar outra metáfora para tudo o que vivera. Ao invés do “doente em estado terminal”, ele olhava tudo com uma frase:

“Aceito a fatalidade de cada hora”.

Se inspirara em um amigo artista, que vivia de forma mambembe, andando pelo Brasil encantando crianças e adultos com sua arte. Um vez por dia, o amigo se perguntava:

“E se eu morresse agora?”

Ele contou também suas histórias. Sua alma também era cheia de desencontros. Amara também, desencontrara do amor. Seu coração parecia cheio de ruas que já não mais existiam, casas apagadas, bairros nunca fundados. O pior momento, disse, foi quando buscou tanto o amor que desencontrou de si.

Quando viajou para muito longe, em busca de um velho amigo, ele também já não estava. Perdera-se na neblina do tempo. Contou de seus desencontros não apenas com as almas, mas com objetos e fatos. As muitas cartas postadas que nunca chegaram, a camisa de tricô que a avó deixara, mas que nunca recebera, uma bola da infância que chutara para o vazio da vida. Os desencontros com trens, as plataformas erradas, os dias desencontrados. Ah, e quantas vezes desencontrara da alegria...

E Maria dos Desencontros foi olhando tudo com mais doçura. Se fosse fazer o inventário das dores, perderia de longe para ele. No entanto, ele carregava uma ternura nos olhos, um sorriso de corpo inteiro, como se dissesse que a vida sempre ultrapassa todos os desencontros.

Estavam ali. Ela uma paciente em estado terminal, vendo tudo no tempo presente. Ele, aceitando a fatalidade da morte no próximo passo.

Mas havia algo em comum. Viviam o tempo presente como a grande flor.

Ela abriu um belo sorriso quando ele cantou, timidamente, uma canção de Tom Zé, resgatada de um velho disco empoeirado, no canto da casa vazia:

“Vestir toda minha dor
No seu traje mais azul
Restando aos meus olhos
O dilema de rir ou chorar”.

Maria dos Desencontros guardou isso. Restava aos seus olhos o dilema de rir ou chorar. E sentiu, então, uma espécie de gratidão por aquele encontro, apesar de nunca mais tê-lo visto.



Para Maria dos Desencontros, que me deixou contar sua história.

segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Sobre pássaros e eternidades

Cada dia com sua lição, já diz o velho sábio chinês que não lembro o nome, mas nem é preciso – sábio chinês sempre cai bem com essas frases.

Domingo de manhã. Aquele solzão lá fora, tenho que ir à Enseada dos Corais, quase em Gaibu, para um encontro com a mãe, antes da viagem dela para Fortaleza. Cansado dos últimos dias de autor-de-livro, dono-de-bar e consultor-do-Unicef, me dou ao luxo de acertar uma viagem de táxi mesmo. Lamento informar, mas não mereço três ônibus num domingo de sol, depois da semana que tive. O motorista é Ricardo, filho de Seu Vital.

O apelido de Ricardo, entre nosotros, é “Limão”, porque é difícil ele chegar sorrindo. É bi-campeão do nosso “Troféu Limão”, um prêmio que oferecemos durante o amigo secreto do final de ano de nossa turma. Lá pelas tantas, faço uma pergunta simples, modesta, para começar a conversa:

“Ricardo, por que Seu Vital tem tanta raiva dos pardais?”

É que outro dia, escutei Seu Vital esculhambar a raça dos pardais, um pássaro que ele considera “um pássaro assassino”.

Então Ricardo começou a falar de um assunto que parece ser o predileto: passarinho. Segundo ele, o Pardal veio com a imigração, possivelmente nos navios, e desde a sua chegada ao Brasil, já eliminou pássaros como o Canário da Terra, Caboclinho, Chorão, entre outros. Se o pássaro for pequeno, ou do tamanho dele, pode ir cavando a cova. Além de matar a bicadas mesmo (sempre atuando em bando de 20 ou 30), o Pardal faz algo barra pesada: vai ao ninho e bica os ovos dos outros pássaros. Isso é que é uma ruindade, deus do céu...

“O cara tem que correr, senão morre”, informou Ricardo.

Fiquei sabendo que aqui no Poço da Panela, onde moro, tinha muito mais Canário. “Na Praça de Casa Forte, chega dava uma alegria”, lembrou Ricardo.

Minha aula sobre os pardais passou pela alimentação, moradia e reprodução. É um pássaro "de cor acinzentada, mariscada com uma parte branca em cima da asa". O macho tem "uma faixa amarelada, puxando para o avermelhado na cabeça". Come de tudo (pão , inseto, resto de comida etc), enquanto outros pássaros são mais delicados na alimentação. Faz ninho em qualquer lugar, até nas telhas. O Sabiá, coitado, só se acasala nas mangueiras, e nos mesmos lugares. "Digo isso porque já observei muito", diz o professor. Então vai a minha sugestão para a mudança no verso famoso:

"Minha terra tem mangueiras/Onde canta o Sabiá".

Além disso, o Pardal faz a cobertura em várias fêmeas ao mesmo tempo. “Eu já observei isso também”, informa. Não entendi. Então tem pássaro que só ama uma criatura a vida inteira, que é incapaz de ser infiel, mesmo nas alturas, entre um vôo e outro?

Ricardo confirmou. “Tem pássaro que vive 20, 30, 40 anos com o mesmo casal”.

Olhou para mim e confirmou, com um sorriso:

“A mesma mulher, a vida toda, e são fiéis um ao outro, a vida inteira”.

Caramba, a essa altura eu não resisti. Puxei meu bloquinho, porque sou muito esquecido, e a lição dos pássaros estava fabulosa. O amor de certos pássaros, a vida inteira, é mesmo de emocionar. Eu não sabia também que passarinho vive tanto. Segundo Ricardo, um louro raçudo como Dudu, por exemplo, pode chegar a 60 anos. Um passarinho pode chegar aos 80, com a vantagem de nunca precisar ir para as filas do INSS. Fiquei sabendo que Dudu, aqui de Vital, tem uns 7 anos, e que provavelmente veio do Crato, no Ceará, que é a mesma cidade onde nasci. Então está tudo explicado.

Mas voltemos aos pardais, porque eu já estou puto com este pássaro febrento, capaz de sair matando os outros assim, sem mais nem menos. Ricardo disse que o bicho é resistente, predador e rebela-se contra a invenção das gaiolas. Uma vez, ele prendeu um Pardal por engano. À noite, quando foi olhar a gaiola, o bicho estava morto. Se debatera com fúria até o óbito.

“Se não fosse ele, teríamos muitos pássaros de canto exótico”, lembrou Ricardo.

Fiquei sabendo que o Rouxinol resistiu porque é guerreiro, apesar de ser pequeno, e fiquei profundamente feliz em saber que tem pássaro que canta como uma patativa, mas resiste ao predador. O Sabiá (branco) e o Sabiá Conga (do peito vermelho) sobreviveram, bem como o Bem-Te-Vi e o “Lavadeira”, que é branco e preto e parece “a vestuária de Jesus Cristo” (essa parte eu não entendi, mas tudo bem).

No Poço da Panela, ainda temos o canto do Bico-de-Lata. “Ele é pequeno, com o bico curto e amarelado, tem um carto bem curto, mas é gostoso de escutar”, informa Ricardo. “É acinzentado, meio prateado, do tamanho de um Curió”.

Informo que um Curió mede três polegadas, e pode dar oito repetições no canto. A repetição, explica Ricardo, são oito cantos iguais, e eu devia ter evitado esta pergunta, porque repetição é repetição, ora bolas. Fico sabendo que tem Curió que chega a valer R$ 100 mil, e que Rivelino, o craque da Seleção de 70, é o maior criador de curiós do Brasil. “Ele já saiu até no Globo Rural”.

Descubro que o passarinho que está na gaiola em Vital é um Curió, e que outro dia ele rejeitou R$ 500,00 naquele animalzinho de três polegadas. Já ofereceram R$ 500,00 por Dudu, mas pela graça divina, a proposta indecente foi recusada.

“Ele faz parte do cenário e é membro da família”, explica Ricardo. Concordo imediatamente, e já nem sei por que chamam Ricardo de "Limão", se o sujeito gosta tanto de passarinho. Fiquei sabendo que Vital chorou muito, quando morreu um Sabiá que era muito querido. “Era um membro da família. A gente abria a porta, ela olhava, mas não saía”, lembra Ricardo.

Então vem a parte mais do caralho. Ricardo começou a explicar que o amor aos pássaros tem uma relação com o povo.

“Isso tem a ver com a cultura de um povo. Para acabar com ela, tem que acabar com a pessoa e o filho dele, que também tem a cultura dele. Isso vem de muito tempo. Só se matasse toda a população”.

Ao final da viagem, ele me saiu com esta reflexão:

“Você nunca é o dono do animal. Ele é que é seu dono”.

A conversa foi longa como a viagem, mas foi a mais rápida das muitas que fiz com Ricardo. Ele me informou que muita gente que cria passarinho em gaiola está ajudando a salvar a espécie. Ele mesmo conhece um senhor que cria Curió, e “tira” em casa (consegue que o animal se reproduza em cativeiro).

“Essas pessoas não são biólogos nem veterinários, mas têm o conhecimento. A gente tem o tempo de vida e o conhecimento. É a vivência dos dias e dos anos, às vezes uma eternidade”.

Às vezes uma eternidade, Ricardo, assim é demais.

Só me resta encerrar com o Adolfo Montejo Navas:

"O tempo é mais rápido do que as coisas, porém mais lento do que a vida".

domingo, 16 de outubro de 2005

Enquanto vem a próxima crônica...

Enquanto vem a próxima crônica, vai uma besteirinha linda, para quem lê um blog dia de domingo...


"E amar é "tornar-se digno", alegre, é iluminar e também acalmar, conduzir nuances, é se encantar e distribuir esperança, é silenciar quando o pensamento se esquiva e a dor contamina, é ser útil, é estimular uma criatividade coletiva, compreender e realizar proporções, sair da raiva correndo e do ressentimento que lhe abre caminho, ligar metamorfoses, cultivar os jardins, derramar os mares nos oceanos infinitos, pendurar estrelas no céu".


Beatriz Araujo Lima Coelho, no excelente "Cadernos do Silêncio - pequeno itinerário de sobrevivência de uma intelectual em tempo de crise".
Ed. Relume Dumará, 2005

A todos os que foram ao delicioso lançamento de Estuário, meu muito obrigado e um grande beijo. Foi uma noite realmente muito aconchegante para a alma.

sexta-feira, 14 de outubro de 2005

Estuário, parte II, agora em versão boteco

Amadíssimos leitores e leitoras,

A editora informou que um novo lote de Estuário estará pronto amanhã, às 14h17. Então, com meus amigos músicos, resolvi fazer uma pequena farra no Garraffus Boteco, a partir das 19h03.
Chiló sanfoneiro confirmou presença, Jr Black ainda não deu resposta, Sibigu vai fazer uma seleção musical, SanB está vendo espaço na agenda, Mula Manca e Triste Figura parece estar em tournée, Tom Zé disse que vai só dar uma canja, A Parafusa não atendeu o telefonema, Delta Jam Blues parece que vai aparecer.

Se não aparecer nenhum músico, não esquentemos: trata-se de um livro, não do Grammy. Nos encontraremos por lá, quem sabe...

Garraffus Boteco
rua Conselheiro Nabuco, 21
Casa Amarela
(indo pela estrada do encanamento, entre no segundo sinal à direita, e depois na segunda rua à direita. O bar fica no fim da rua).
F: 3269.6769

quinta-feira, 13 de outubro de 2005

Uma sombra de flor na parede

Recife, 13 de outubro de 2005.

Esqueci de dizer que teu gosto ficou em minha boca como uma sombra da flor na parede. E assim, meio calado, dentro deste mistério indecifrável que é a vida, sigo lentamente, compondo uma nova sombra a cada dia, feita de fragmentos, lembranças, memória dos momentos em que as almas refletiram a mesma luz. A memória, esse lugar onde sou o mendigo de mim mesmo, como diz o Adolfo Montejo.

Mas tive a intenção de dizer, e isso ficou impresso em minha alma, foi um cordão umbilical que criei, e o desejo me levou tão próximo de ti e de mim, que os corações pareceram, naquele momento, siameses.

E me veio um sentimento de que viver é tanger improvisos, deslocar memórias, guardar talvez a lembrança dos cabelos ou da voz de quem quer que seja. É considerar as pessoas pelos olhos, com suas calmarias e vulcões, suas tempestades e silêncios. Mais que isso, é aceitar que somos catadores de pedaços de beleza, para caminhar com alguma leveza, sabe-se lá que dia.

Quantos hoje sairão de casa com seus punhais nas bocas? Quantos farão do trajeto com o filho para a escola um fardo irreversível, não um passeio amoroso, deixando de mostrar os poemas que se aninham nas garatujas das velhas fachadas? Ah, me dirão, é que não és pai, mas eu direi que fui filho pequeno, e ficou na memória fatigada a punição por ter visto (e anunciado) um elefante azul numa árvore. Data desta época, a primeira poda na árvore da fantasia, mas a planta cresceu, por outros desvãos, e sinto que há poemas nas garatujas das velhas fachadas, há outros elefantes ainda mais coloridos do que o azul da minha infância.

Ah, eu sinto mesmo é que não sei de quase nada. Hoje, menos que ontem. Menos que um, como o título de um livro amado. Parece que estou me esvaziando de todos os conceitos, descolorindo uma tela que vinha sendo pintada com os mesmos tons, o mesmo pincel, no mesmo cavalete. Aos poucos, vou construindo uma tela silenciosa, à espera de sons e luzes, para reinventar as cores.

Vou deixando de procurar a obra acabada, o momento perfeito, “aquele” momento, onde os céus e a terra se entrelaçam, que alguns nomeiam felicidade. Aceito a fatalidade de cada dia, bem como a doçura de cada pupila, o calor de mãos que se entrelaçam como plantas que querem viver junto ao muro da vida. Talvez porque eu goste tanto de chimarrão, a cada manhã, o amargo da vida já não se entranhe tanto em meus ossos.

E lembro de minha mãe, que há muitos anos assinou a separação, depois de 23 anos casada, e saiu do Fórum sozinha, talvez se sentindo nua diante da vida, uma Macabéia solitária, com uma flor nos cabelos. Não chorou, não rangeu por dentro, como tábuas velhas e feridas. Foi às Lojas Americanas, olhar para as pessoas, porque tinha a sensação de que passara vinte anos sem olhar rostos alheios.

É talvez por isso que eu acredite tanto no mistério da vida: há pessoas que às vezes me dão a impressão de estarem paradas, no meio das Lojas Americanas, olhando os rostos alheios, talvez buscando o próprio rosto, um semblante, o seu lugar no mundo. E são tantas as macabéias a passar por nossas vidas...

Esqueci de dizer que teu gosto ficou em minha boca como uma sombra da flor na parede. E assim, meio calado, dentro deste mistério indecifrável que é a vida, sigo lentamente, compondo uma nova sombra a cada dia, feita de fragmentos, lembranças, memória dos momentos em que as almas refletiram a mesma luz.

A memória, esse lugar onde sou o mendigo de mim mesmo, como diz o Adolfo Montejo.


Para Paulinha, pois.

quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Estuário, o livro, foi lançado na Bienal e pela graça divina, já esgotou!

Recife, 12 de outubro de 2005.

Acordei há pouco, olhei para o lado, o livro estava lá: “Estuário – crônicas do Recife”, publicado pela Livro Rápido (serviço de impressão de obas raras e contemporâneas). Dei mais uma olhadinha, com o ventilador ligado no três, porque o amanhecer no Recife tem este solzão de rachar. Então fui lembrar do lançamento do meu terceiro livro, de 1998 para cá, que aconteceu ontem, na Bienal do Livro do Recife.

É preciso que se diga que a impressão da citada obra passou por uma espécie de calvário, envolvendo os aguerridos editores (César Maia e Júnior, do Ateliê), e a Carminha, da Livro Rápido. Aconteceu de tudo, e de tudo isso que não entendo nada: cor da fonte, espelhamento da edição, margem do texto etc. Ontem, no final da manhã, veio a frase fatal:

“A máquina deu um pau”.

Lembrei logo da frase de Sidclay:

“Tchau, guaranau”.

De sorte que cheguei ao Centro de Convenções já resignado, como aqueles bois que vão ao matadouro. Seria um lançamento sem livro, o que não seria nada estranho para a minha curta e insistente carreira de escritor, cheia de cenas engraçadas e aflições. No stand da Livro Rápido, Tarcisio Pereira me recebeu com um sorriso e a famosa frase:

“Chega já”.

Então eu dei umas voltas com minha irmã, a conhecida Dona Ermira, que estava arrasada psicologicamente, pela falta de uma câmera fotográfica. Andréia, minha prima, se dedicou a procurar livros para os filhos, que ficaram em Fortaleza, e encontrou vários, inclusive um que ensinava a tabuada de forma divertida. Caramba, como está mais fácil ser criança hoje em dia!

Voltei para o stand, e Tarcisio me recebeu com outro sorriso:

“Chega já”.

Começaram a chegar os amigos e alguns leitores, inclusive os pais de Fabiana, uma cativa leitora que mora na Inglaterra. Peguei o mote de Tarcisio, abri um sorriso e disse:

“Chega já”.

Um calor do caralho, aquele Centro de Convenções, eu com uma camisa branca e calça creme (não teve crediário, dessa vez), à espera de Estuário. Chegaram Júlio Vilanova (tricolor), Inácio França (tricolor) e Geórgia (alvirrubra). Chega já, meus amigos, chega já. Minha mãe já estava cutucando os transeuntes, à procura de uma máquina. A Livro Rápido ofereceu vinho, que aceitei imediatamente. Minha mãe tratou de virar o primeiro copo em cima da mesa, tumultuando o ambiente. Para cada pessoa que chegava, eu me antecipava:

“Está chegando” (achei melhor que o distante “chega já”).

Chegou a turma da esculhambação: César Maia (zagueiro), Ivanzinho (médio volante) e Barreto (ponta de lança), além de Júnior, recém-contratado, mas ainda sem posição fixa, no esquema tático do Ateliê. Foram tomar uma cerveja para relaxar, apesar de não ter achando nenhum deles nervoso. Fiquei falando com os amigos, e depois de tanto “está chegando”, senti que estava chegando a hora de tomar mesmo era uma cerveja, porque o nervosismo já tinha chegado. Fui ao encontro da citada rafaméia, que estava bebericando na Praça da Alimentação.

Ali pelos 12 minutos do segundo tempo, recebi a informação pela Adriana, ao pé do ouvido:

“O teu livro chegou”.

Me deu um arrependimento no espírito, um tremelique nos sentimentos e uma vontade de sair correndo. Barreto, sutilmente, me livrou da conta. Cheguei ao stand e Tarcisio me recebeu com um sorriso:

“Chegou”.

Minha mãe já estava com um exemplar e tinha conseguido angariar uns quatro ou cinco fotógrafos de qualidade.

A educadíssima fila tratou de esgotar rapidamente a primeira edição de Estuário. Por questão de marketing, a editora resolveu não informar quantos exemplares foram vendidos, e também não me dei ao trabalho de contar. Sei que Inácio, Júlio Vilanova, os pais de Fabiana, Andréia e Pérside (mãe de Lulu), saíram com o livro nas mãos, além de outros convidados. Eupídio tirou fotos como o quê. Minha prima se tornou a caixa oficial.

Após o lançamento-relâmpago, fomos todos ao Garraffus, onde a obra citada circulou entre as mesas, como um cachorrinho de estimação. Dei várias olhadinhas, lambendo a cria. O texto que mais gosto, que mais me diverte, é o “Uma Hiroshima na Pajuçara” (página 216), sobre uma pelada numa praia, em Maceió. Mas o que sinto um gostinho especial ao reler, é a história de Epifânio Rodrigues, o “Colecionador de Epifanias” (página 304). Ali, acertei em cheio, creio.

Sexta-feira devo receber a segunda edição. Vou pedir para a Livro Rápido colocar uma tarja preta, informando: “Edição revisada e ampliada pelo autor”, para dar mais um charme. Acertei com Macksandra e Michelle uma festa para o próximo sábado, para o re-lançamento de Estuário, com vários amigos convidados tocando no improviso no Garraffus (sem couvert, please): Jr Black, SanB, Chiló e a Sanfona Coral etc. Não sei se elas tinham tomado um aperitivo a mais, de formas que considero encaminhado o lançamento no sábado, o dia em que não vai faltar Estuário para ninguém, nem pra mim.

A capa foi elogiadíssima, bem como a apresentação do magro Valadares, que se empolgou tanto, que falou até de crônicas que ainda não foram publicadas, deixando o leitor curioso sobre esses textos do futuro.

Acuso ausências fundamentais – tia Flocely, Vital, Valzinho, o mano Paulinho, Emília, Lucila, entre outros e outras, a lista é grande. Mas os que estavam por lá me pareciam bem contentes, então viva a vida.

Sábado a gente faz uma farra boa e assim caminha a humanidade, pelo menos a minha, a dos que amo.


Ps. após o relançamento, deixarei o livro sendo vendido em dois lugares - em seu Vital, aqui no Poço da Panela, e no Garraffus. Como levei um carão de Tarcisio, vai ficar por R$ 28,00. Se souberem de alguma livraria que tope colocar o livro por lá, agradeço.

segunda-feira, 10 de outubro de 2005

Lançamento de livro na Bienal

Amigos e amigas,

Este cabeludo que vos fala estará lançando amanhã (11/10, terça-feira), a partir das 18h03, no stand da Livro Rápido, no Centro de Convenções (Olinda), o livro "Estuário".

O livro, editado pelos lendários Cesar Maia e Edelry Júnior, ficou robusto, com 230 páginas, e vai ser vendido pela singela quantia de R$ 25,00. A apresentação coube ao magro João Valadares. Era para ele esculhambar o trabalho, mas ele não logrou êxito, e o texto ficou melhor que as crônicas deste que vos fala.

Quem não puder ir ao citado lançamento, poderá se deslocar ao Garraffus Boteco, bar de minha propriedade, para uma confraternização simples, a partir das 20h59, movida a música boa e gente bacana. O autor pretende superar o seu próprio recorde mundial, que foi a venda de 45 exemplares de "Clamor", ano passado, em Vitória, no Espírito Santo.

Aguardo vossa estimada presença.

Inté,

Samarone.

ps. o livro é a coletânea das crônicas publicadas no JC On Line, de junho de 2004 a junho de 2005.

ps. o Garraffus fica na rua Conselheiro Nabuco, 21, Casa Amarela. Vá pela Estrada do Encanamento, entre à direita no segundo semáforo, depois entre na segunda rua à direita. O bar fica defronte ao colégio Apoio.

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

Pedras Pensadas - I

Recife, 7 de outubro de 2005.

No “Livro das Teorias”, que estou a escrever, tenho uma teoria que uso sempre – “é preciso colocar um ponto de luz no meio do turbilhão”. Isso já me salvou muitas vezes.

Ontem, no meio do turbilhão, das inúmeras demandas de um dono de bar agitadíssimo, de livro sendo finalizado para o Unicef, de Estuário virando livro, fora as coisas da vida, o aluguel vencido, o exame de vista que sempre perco, uma topada na esquina, o ônibus que acabou de passar, o gás que acabou, cassete, a água mineral que ainda não fui buscar, peguei um pequeno vácuo no turbilhão e me deparei com as estantes da Livraria Cultura, em plena tardinha. Livraria me salva sempre, a Livro 7 me curou de inúmeras depressões.

Saí perambulando com meus dedos e olhos à procura de alguém que me ajudasse, me acalmasse, me desse prazer e beleza. Encontrei vários troços obscuros, inúmeros escritores brasileiros e estrangeiros que nada me dizem, mas que andam a dominar as prateleiras, por esse fenômeno complexo e cheio de artimanhas, que se chama “mercado editorial”.

E então, esbarrei nele. Primeiro, o título: “Pedras Pensadas”. Depois, o nome: Adolfo Montejo Navas. Olhei dentro as mínimas referências: “Nasceu em Madri, em 1954, e mora no Brasil há dez anos”. É dos meus, foi o que pensei, eu tenho uma intuição fortíssima com os que são meus.

Subi para o primeiro andar como o Montejo na algibeira, pedi um chocolate quente e esqueçi tudo. São apenas frases. Na verdade, são mesmo pedras que foram pensadas. Pedradas que não ferem a alma. Melhor que isso, pedrinhas que agitam as águas da lagoa silenciosa e erma. E me senti como quem encontra aquele lago bem limpinho, no meio do deserto, mas não mata a sede. Joga uma pedrinha bem longe, para ver o movimento em círculo, as pequenas marolas, que encantam, e matam a sede de beleza da alma.

Lá vai:

***

“Você conseguiu dar a volta no amor para se salvar?”

“Dorme como se fosse parte de uma oração”.

“Suporto o que sei com base no que não sei”.
(Equação poética de Antônio Porchia)

“Faz anos que o amor passou, mas o cheiro permanece”.

“Um relógio de areia na horizontal, com o tempo parado dos dois lados, lembra a eternidade ou a memória?”

“De vez em quando faz uma quermesse dos sentimentos apagados”.

“A sensação, às vezes, de que uma palavra vive de outra”.

“Deveríamos responder pelos céus contemplados”.

“A impressão cada vez mais forte de que a tristeza e a alegria pertencem às mesmas raízes da mesma árvore”.

“Trocar idéias velhas por flores”.

“Para chegar à palavra saudade,é preciso ter passado antes por vários lugares: a nostalgia, a melancolia e o anseio, nesta ordem”.

“Quem ama vive duas vezes”.

“O mundo podia parar toda vez que ela prende o cabelo”.

“Não se pode deixar os sonhos pendurados num prego”.

“O lar do último olhar”.

“Tem gente que pede desconto para viver”.

“Um pensamento feito em migalhas”.

“A felicidade às vezes é tanta que as pessoas não têm outro remédio senão fugir”.

“O amor é encarregar-se de um corpo ou de uma alma?”

E, para terminar:

“Qualquer felicidade é o que há de mais parecido com uma semente”.


***
(Pedras Pensadas. Inscrições de Adolfo Montejo Navas (1980-2002). Ateliê Editorial, São Paulo)

quinta-feira, 6 de outubro de 2005

O tempo é minha casa*

Recife, 6 de outubro de 2005.

Eu vivia repetindo que o tempo era minha casa, e tudo parecia simples, fácil e bom. Havia saído do amor inteiro, com o sentimento do ciclo que se encerrava, cada um para o seu lado, é a vida, tudo passa, tudo quebra, tudo cansa, como dizem os franceses. Foram poucas as vezes em que não saí ferido do amor.

Fui viver a minha vida, andar pelo mundo, como sempre quis, como sempre desejei, desde menino, a mochila nas costas e os pés avançando para os desconhecidos e remotos lugares, onde eu pudesse encostar e sossegar a alma.

Mas o tempo sempre passa, é como o vento, silencioso e persistente, me diz um amigo que não terminou o segundo grau, mas é o filósofo de beira de esquina mais completo que conheço. Cada casa é um país, repetia ele, são mostruários vivos de nossas transparências. Então ficou tudo frágil, depois que o tempo e a casa se juntaram, como coisas indecifráveis.

Mas há dias, não sei explicar direito, e já não busco explicações, há dias comecei a sentir uma saudade imensa de ti, uma vontade de conversar as longas horas que sempre conversamos, saber de tua vida, o que tens feito, se continuas brigando com a vida como um animal selvagem, que depois se torna quieto, manso, delicado e triste, bem perto de se tornar indefeso.

Não sei de onde me apareceu tua foto no meio dos tantos papéis que me alimentam, e ela veio para o meu mural. Estão aqui teus dentões brancos, marfins que lambi tantas vezes, tua gargalhada ecoando pela casa vazia, este meu país desfigurado, por agora.

É visceral mesmo. Tu criaste raízes muito fundas em mim, e já não é questão de tentar explicar ou entender, somente admitir. E por onde passo, vou rasgando o assoalho com meus pés cansados de tua ausência, vou emudecendo sem tua voz, vou perdendo a delicadeza da penumbra que me acompanhava. Me surgiram mais cabelos brancos e lembrei que percebeste quando apareceu o primeiro fio, ironizando que a maturidade tinha chegado antes dos 40, e me chamaste de saltimbanco tardio.

E me veio a lembrança de algo da minha infância, não sei o motivo. Me veio, como vem um arrepio de emoção por uma flor inesperada na calçada, em plena tarde quente no Recife. Lembro que eu fugia da agitação familiar, dos muitos irmãos sempre brincando, e ficava muito quieto, no quarto principal, onde estava a enorme cômoda, abrigo de tantas roupas e cobertas da família. Eu abria a última gaveta, tirava todas as roupas e ficava procurando algo. Minha mãe chegava à porta e perguntava, amorosa:

“Estás fazendo o que, filho?”

“Procurando uma coisa aqui, mãe”.

E ela saia para cuidar do alvoroço dos outros.

E fica muito quieto, dobrando as roupas, mudando-as de lugar. Só muito tempo depois, descobri que eu buscava algo que não existia, somente para ficar comigo. Foi deste tempo a aproximação terna com a solidão: buscando coisas que não existiam.

Hoje amanheci manco de teu sorriso, de tua voz, de teu corpo, da saliva. E pela primeira vez, senti que o tempo ocupava a minha casa de outra forma. Me veio o sentimento de estar encontrando coisas que nunca procurei.

Não sei qual intuição me empurrou em direção à porta, ainda sonolento da noite cheia de lembranças. Abri a porta sabendo quem estava do lado de fora, ansiosa e sem saber como seria recebida. Olhei para teu sorriso imenso e tímido, o vestido de chita que sempre me alegrou nas tardes de domingo, um vestido que tantas vezes tiramos juntos, para a nudez amorosa, os cabelos tingidos por brancuras do tempo. Estavas mais velha e tantas vezes mais bonita...

“Entre. A casa sempre foi sua”, eu disse, sorrindo.



*Conto a ser publicado no blog "oito nós", aventura literária com oito escrevinhadores

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

O futebol e a vida

Recife,5 de outubro de 2005.

Muita gente não entende a minha paixão por futebol, e sei que muitos intelectuais ainda usam aquele chavão famoso: “Futebol é o ópio do povo”.

É engraçado, porque, pelo que sei, o consumo de ópio no Brasil ainda não se tornou um fenômeno popular. Melhor seria “Futebol é a cachaça do povo”, mas trocar ópio por cachaça mudaria completamente o sentido da frase, e tem intelectual que é chato pra caralho.

Mas tantas coisas no futebol servem para a vida, para o cotidiano, que comecei a pensar não só no futebol, mas no jogo da vida, que tem ingredientes como:

O gol contra:

Quando você sabe que fez uma grande merda, e não há como reparar. A bola já entrou, você olha para o estrago, alguém que machucou, uma palavra que não deveria ter dito, sei lá. Simplesmente gol contra (às vezes, até sem querer). São as coisas irreversíveis da vida. Só resta mesmo aceitar.

Na trave:

O sujeito faz tudo certo, encaminha as coisas, capricha naquele projeto, sai dando dribles nas dificuldades, nos problemas, e depois solta o chute certinho e a bola... bate na trave. Novamente, não há o que fazer. Coisas do futebol, como dizemos nós, os apaixonados por futebol. Coisas da vida, diria o sábio Josmar Josino, o “Caveirinha”.

A derrota:

Você está ali na arquibancada, o juiz levanta os braços e aponta o meio-do- campo. Foram meses acompanhando o seu time, muitas horas no cimento da arquibancada, o coração na goela, e uma jogada, uma falta, um vacilo do seu time, e tudo terminou. Perdeu o jogo e o título. Você olha para as pessoas ao lado. Há um senhor de cabelos brancos, muito sério, grave, chorando como um menino. Ele está inconsolável como você. Seu amigo de infância está arrasado, olhando para o chão, como se tudo fosse triste, amargo, doloroso (e é, podem ter certeza). A derrota, ah, a derrota... São tantas na vida. E no ano seguinte, você está de novo, ao lado do seu amigo de infância, pulando feito um saltimbanco, por causa do título que veio naquele gol salvador, no último minuto. Você olha para o lado – o homem grave parece um menino, no jardim da infância.
A retranca:

Às vezes, é necessário jogar na retranca, fechadinho. O seu time fez um gol, e agora é segurar o restante do tempo. Qualquer bola é preciso jogar na arquibancada, mandar para longe. Recuar, suportar a pressão, sustentar o rojão, dar bicudas, não querer jogar bonitinho demais. Às vezes, a delicadeza excessiva se torna fonte de sofrimento, quase uma espécie de punição.

O golaço:

Tantas tentativas deram errado, tantos erros cometidos, e de repente, o sujeito pega a pelota e sai driblando. Passa por um, por dois, vê que está se safando, nem tinha aquela habilidade toda, dribla mais dois, vem o goleiro, ele passa pelo goleiro também, e toca para o fundo das redes. Sai correndo sem acreditar. “Caralho, eu fiz esse golaço”. Me lembro de uma entrevista para a seleção em um emprego, era um negócio meio grande, uma concorrência braba, e eu precisava muito do troço, estava liso como um gambá, naquele frio de São Paulo. Na entrevista-de-seleção, um camarada muito do boçal perguntou algo assim meio ousado, como se fosse algum autor de Dom Quixote e eu dei uma resposta seca, sem hesitar, olhando nos olhos da criatura. “Isso eu faço muito bem”, sem saber de onde veio aquela firmeza toda. Ali eu ganhei a vaga, tenho certeza. Foi um golaço.

Sair para o abraço:

No futebol, por mais que o sujeito seja craque, ele nunca é uma estrela solitária. Todo gol é comemorado em conjunto, com um abraço. Na vida, é preciso sair para o abraço e comemorar as coisas, celebrar em conjunto.

A raça:

Tem momentos no futebol que o talento não resolve. É preciso mais que isso, algo que me fascina, e que se chama raça. Sim, uma força interior para ir adiante, para se superar. Falta fôlego, muitas vezes falta até talento, mas sobra a vontade, a energia interior, algo que vem do fundo da alma, isso que chamo raça. Raça para enfrentar as coisas, para dizer “parou por aqui”. Raça para dizer “eu vou vencer essa porra dessa depressão”. Raça para viajar muitos quilômetros somente para dizer à pessoa que ama que a ama mesmo, ora bolas.

Depois acrescento mais coisas. Os amantes do futebol podem me ajudar. Inácio, please...

Nota: vou ao estádio sempre que meu clube, o Santa Cruz, joga. Nos últimos cinco anos, perdi dois ou três jogos, por motivos graves ou catástrofes pessoais. Um deles foi porque recebi a notícia da morte de um grande amigo argentino. Fiquei em casa, chorando minhas pitangas, mas depois fiquei sabendo que tinha sido um engano, fruto de uma série de informações desencontradas. Ele está vivivinho, o desgraçado do Daniel Raton, a bola bateu na trave, pela graça de Deus.

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

Oração a dois

Este texto me chegou nos comentários do Blog. É sempre lindo uma oração a dois. Compartilhemos.
Samarone.
***
Salvador, 26 de maio de 2005

Como assim descobriste o amor?

- Sim, parece que o encontrei. Não sei onde tinha andado por todo esse tempo, mas estou reconhecendo suas primeiras dores.

Cicinha descobriu o amor. Àquela altura de sua vida, já tinha escutado e visto muita coisa; o amor sempre fora um pálido receio, o maior dos mistérios. Há anos que a vida seguia como devia ser. Filha da solidão, vez ou outra ela era assaltada por um frio desconcertante a que chamava de paixão. Mantinha-se distante das minúcias características da vida amorosa, e nem sequer poderia mensurar o significado de uma vida a dois. O casulo sempre se mostrou mais confortável do que a noite lá fora. Acreditava ser o amor sinônimo de uma calma e tranqüilidade abstêmia, como uma mesma reza compartilhada por duas pessoas.

Com a paixão ela já andava de mãos dadas fazia tempo. Adorava se apaixonar e vivia se apaixonando. Gostava da forma como manifestava a paixão. Por vezes, um olhar derretia seu corpo até desmanchá-la bruscamente numa poça d’água, ou então a novidade de um pequeno gesto trazia consigo a dificuldade de uma escalada: buscava e não encontrava ar... Esse arrebatamento trazia leveza aos seus passos, quase sempre pretensos demais.

Seguia sua vida entre um café e outro, um parceiro e outro, uma ou outra canção. Com o tempo as situações, ou pelo menos o impulso delas, iam se repetindo aos olhos de Cicinha. Vivia dias de vitória-régia. Ao mesmo tempo que superficialmente bela, banhando-se ao sol, ela escurecia tudo abaixo de si. Intimamente escurecia. Estava privada da luz das causas e finalidades. Por isso, voltava-se para dentro, onde permanecia sentada, simples e calmamente no seu negro interior. O tempo passava cada vez mais rápido. Os olhares e pequenos gestos ficavam cada dia mais distantes: a vida estava rarefeita. Na sua noite longa e interminável, Cicinha não esperava pelo amor.

Até que um dia, em fração de segundos, o seu coro desafinou. Uma nota dissonante. A nova melodia ergueu-a num sobressalto e espalhou suas certezas pelo ar. Não conseguia suportar a beleza dos novos ares. Por mais que respirasse, achava que nunca conseguiria acomodar tudo o que sentia. Em cada pedaço de si que o vento soprava longe pulsava um desejo imenso de ter aquele homem. A tranqüilidade que pensara passava longe do que sentia agora.

Em pedaços, suspensa, planava entre os cômodos lotados, sentia ausência de sentido nas palavras que conhecia até então. Não encontrava nada que pudesse expressar tamanho sentimento. Pensou em fabricar novas palavras, mas todos os alfabetos juntos reduziam demais as possibilidades. Não conseguia mais falar. Sua boca lhe fugia. Só se ouvia o silêncio. Qualquer coisa que dissesse lhe aprisionaria. Sentia-se como um cofre que não se pode fechar de tão cheio.Não-ser e Ser, para a mesma pessoa, só se diferencia pelos nomes. Da escuridão em que vivia, passou às trevas. A ligação às coisas e a desordem que dali provinham lhe deixavam cega.

Se pudesse falar, talvez dissesse que sentia uma saudade imensa dele. De sua pele, do seu cheiro, dos seus lábios, de sua voz, de sua língua... diria que ele lhe encantou a vida, que seus olhos lhe decifraram, que gostou de sua pele, da sua respiração. Diria que era facil amá-lo, gostar dele, que não iria abandonar o sentimento, que queria tê-lo conhecido antes para gostar ainda mais.

Mas ouvindo, nada disso faria sentido. Ele precisava se ver dentro dela. Tomar o seu corpo, desvendar sua alma. Ela se debatia na mesma escuridão que a acalmava. Precisava desesperadamente ser possuída por ele. Ser o próprio embaraço dos seus cabelos, a cegueira dos olhos embaçados, o embaralhar de suas veias.

Quando finalmente se encontraram, Cicinha lembrou-se da oração a dois. Como não sabia mais rezar, ofereceu o seu olhar.

Zi.