terça-feira, 31 de janeiro de 2006

Confissões de um cronista desempregado

Aqui vai uma confissão: entrei em janeiro na condição de jornalista e cronista desempregado. Não é a primeira vez e não será a última, creio, tanto que não chego a me assustar. Como não tenho filhos, não pago plano de saúde, não tenho TV a Cabo, carro e não uso cartão de crédito, minha vida financeira tem somente uma definição: eu só gasto o que tenho. Quando não tenho, peço emprestado, até chegar de novo. Talão de cheque ou a famosa frase "entrei no cheque especial" não acontecerá jamais comigo, porque usei cheque uma vez na vida, fiquei absolutamente nervoso e cancelei imediatamente. Meus luxos são modestos e baratos.

O desemprego chegou sem alarde, sem aquela miséria chamada "aviso prévio", foi de mansinho, sem dor, logo que terminei mais uma das muitas consultorias para o Unicef. Do alto da minha prosopopéia, garanto: até dezembro de 2005, eu era um "consultor" do Unicef, a palavra tem uma certa imponência, eu sentia que era algo muito importante mesmo, porque o lema do Unicef é "Fazendo a Humanidade Avançar", é muito bom ajudar não só meu bairro avançar, mas a humanidade inteira. Como não tem consultoria em vista, só me resta escrever sobre minha nova condição existencial, que é a de desempregado, a humanidade que avançe sem minha interferência direta.

Fiz um levantamento. Desde que voltei ao Recife, em 2000, já fui professor de Jornalismo (Universidade Católica), fiz uns frilas para o Diário de Pernambuco, dei oficinas de comunicação para um monte de ONGs, trabalhei como assessor de comunicação da Articulação no Semi-Árido Brasiliro (ASA), fui dono de dois bares, escrevi uns livros para o Unicef e batuquei minhas crônicas para o JC On Line e depois aqui no Blog. Em cinco anos, somente um ano e meio de carteira assinada. O resto foi contrato e frila.

Pelas minhas contas, só vou me aposentar com uns 92 anos, se vivo for, porque eu realmente não ajudo muito o INSS com esse negócio de consultoria. Raras vezes na vida recebi um décimo-terceiro salário, e férias mesmo, aquela com dinheiro na conta, é uma lenda. Eu é que me dou umas férias, de vez em quando, como fiz na semana passada. Quando saí da Católica, tive direito ao famoso "seguro-desemprego", período em que me dediquei a reescrever a versão final do meu livro "Clamor", publicado em 2003, é uma coisa muito boa, receber dinheiro para ficar em casa, só escrevendo. No final, ainda sai um livro novinho em folha, já citado anteriormente, por sinal vi um exemplar hoje na Livraria Cultura.

Estou de volta à realidade. Fui ao banco hoje e ainda tenho uma reserva técnica, que vai dar para chegar vivo até o final do próximo mês. Depois disso, não sei o que vai acontecer, especialmente porque temos o Carnaval pela frente, e é uma festa que não é bom estar liso, mas posso dizer que pelo menos a farra está garantida, ninguém neste mundo merece passar um Carnaval liso, é muita maldade voltar para casa cheio dos paus num Corujão da vida.

Então acontece algo comigo que é meio misterioso, espiritual, um fenômeno inexplicável: eu sempre acho que vai chegar algo, que vou escapar fedendo, aos 45 do segundo tempo. E como tenho esta esperança sempre viva, tenho já escapei de muitas e muitas frias, a principal foi em São Paulo, quando fiquei desempregado, morando numa pensão, passando o maior frio da minha vida, parecia aquele livro do Oswaldo Soriano, "Triste, solitário e final". A mão divina foi um frila em um jornal da Igreja Católica, quando eu tinha somente R$ 30,00 na conta. Foi pelo gongo mesmo, e escrevi uma matéria sobre o "Dia Mundial da Alimentação", que ajudou muito a matar minha fome.

Vamos ver o que dizem os astros. Até sair alguma novidade, só garanto uma coisa: continuarei escrevendo minhas crônicas por aqui. Pelo menos o Blog é de graça e escrever é a coisa mais barata do mundo. Eu com um caderninho, uma caneta Bic e tempo livre, vou escapando bem.

Amanhã escrevo mais, que estou animado com a minha vida de desempregado. Sobra tempo para pensar as besteiras fundamentais. Se alguém tiver emprego, por favor não me avise, porque pretendo curtir a minha fase de desempregado sem nenhum tipo de cobrança, seria estragar este bom momento da vida.

O Governo bem que poderia dar um seguro-desemprego para quem vive de bicos e frilas, além dos consultores. Do meu púlpito, lanço o brado: um seguro-desemprego para cronistas desempregados, de norte a sul do Brasil!

ps. voltei a publicar os poemas no www.quemerospoemas.blogspot.com

sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

Fragmentos de viagem

Estou com o pé na estrada há alguns dias, com pouco acesso à Internet. Aqui perto do Farol da Barra, achei um lugarzinho baratinho, três reais a hora, e só me foi possível postar mesmo uma pequena coleção, fragmentos de coisas que ando lendo e escutando na minha vagabundagem, na minha perambulação afetiva. Então lá vai:

"O segredo sagrado da intimidade profunda".
(Tom Zé, falando sobre o amor, numa entrevista, na TV, que assisti na casa de Pedro".

"Era uma competência tão grande, que prejudicava a eficiência".
(O mesmo, falando da seleção brasilieira)

"A Malu Mader nunca me atraiu".
(Um amigo de Pedro, mentindo, lógico)

"Não estou lembrando não, mas é boa".
(Pedro, não sei em qual contexto, nem qual o motivo)

"Me emocionei com King Kong".
(Amigo de Pedro)

"O café está ótimo, não tem nem três dias".
(De um vôvô sorridente, no ônibus da Itapemirim)

"Seguirei eliminando as palavras más que pus em meu todo, ainda que meu todo fique sem palavras".
(Antônio Porchia, citado no livro "Filosofia da Comunicação", de Gustavo de Castro)

"A alegria é a prova dos nove".
(Oswald de Andrade)

"E gente é outra alegria
diferente das estrelas".
(Caetano Veloso, em "Terra")

"Perfumar o pensamento, adornar a razão, eis uma fusão sensível necessária à comunicação. Para que o pensamento esteja perfumado e a pétala possas ser pensada é necessário que pétala e pensamento possam ser recolhidos juntos".
(Gustavo de Castro)

E para encerrar, o velho e bom Oswald de Andrade, que apareceu ontem, e ficou:

"Que alegria teu
rádio
fiquei tão contente
que fui à missa
na igreja toda gente
me olhava
ando desperdiçando beleza
longe de ti".
(Oswald de Andrade)


ps. estou adorando os comentários. Os leitores estão roubando a cena, o que é ótimo.

terça-feira, 24 de janeiro de 2006

Florescimentos

Não sei exatamente quando mudo, quando algo se transforma em mim. Sei que em algum momento, por volta dos 25/26 anos, fiquei mais lento, mudei o rumo do passo, e foi uma mudança profunda. Tenho um fascínio por este tema, o da lentidão, da mudança, e gosto de reparar nos outros, nas pessoas que quero bem, gosto também de ver quando uma cidade muda, quando uma paisagem se modifica, é meu fascínio.

Não sei exatamente quando, mas um dia descobri que minha tia Flocely tinha envelhecido. Foi um momento em que ela dobrou a esquina.

Não sei quando a gente deixa de amar uma pessoa que era tão importante, era fundamental, era "tudo" para o desejo, para alma, para o coração, para o espírito. Mas há um momento, e esse é o mistério, em que o amor também dobra uma esquina. Dobrei algumas.

Nas longas conversas com o meu velho e bom amigo Gustavo, ele me falou sobre a importância de "dobrar esquinas", de seguir buscando o seu caminho, cheio de tantos percursos lindos.

Não sei quando, mas olhei para a minha profissão, de jornalista, percebi que estava reproduzindo coisas, que não queria aquilo, e mudei o rumo. Dobrei a esquina, arrisquei um novo começo, e me sinto feliz por isso.

Estou em Brasília e acho que algo vai se modificando, por aqui. Eu, que sempre olhara a cidade com a visão política, como o "centro do poder", mudei meu olhar. Ela continua sendo o centro do poder, onde a grana rola e destrói coisas belas, mas... deus do céu, como essa cidade tem árvores lindas, jardins bem cuidados, flores por todos os lados.

Nas minhas caminhadas com Gustavo, ele me contou que aqui existe um funcionário público com a seguinte função: "Podador de árvores".

Que profissão delicada e bela, pensei. Saber exatamente onde pode cortar os galhos, sem ferir a essência, sem matar.

Na vida, às vezes a gente faz a poda, mas mata a planta, mata um amor, mata uma amizade, cortando mais do que devia.

Quantos não fazem também a poda de si com tanto exagero, que não floresce a tempo?

Acho que dobrei mais uma esquina, e já não sou o mesmo.

Floresçamos, pois, floresçamos de norte a sul de nós mesmos, enquanto há tempo.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

Crônicas de Viagem (2) - O Silêncio de Brasília

Saio da quadra 314, na Asa Norte, vou sem rumo pelas ruas de Brasília, em meu passo de camundongo. Caminho, olho para a paisagem dos dois lados. São dezenas, centenas, milhares de apartamentos, Brasília não tem este fenômeno social da casa, quintal, jardim, pelo menos aqui na asa da borboleta é assim (meu amigo Gustavo diz que o Plano Piloto não tem o desenho de um avião, mas de uma borboleta, e concordo integralmente.)

Vou andando, o dia está lindo, um sol perfeito, depois vim a descobrir que estamos a 1.100 metros de altitude e tomei um susto, porque tenho um medo ancestral de altura. Para quem está no Recife, ou em qualquer cidade ao nível do mar, é só imaginar que estou escrevendo estas notinhas um quilômetro e cem metros acima do solo, acho que nunca estive tão perto do céu, já posso dizer que estou nas nuvens.

Passo por uma singela barraquinha, daquelas que vendem frango assado na fumaça, igualzinho ao Recife, pergunto o preço, à guisa de curiosidade.

“É doze reais, filho”.

“ Obrigado”, respondi, que coisa cara do oeste, foi o que pensei, mas é assim mesmo, para viver aqui, vá logo separando um bom dinheirinho. Garrafão de água mineral : R$ 6,50. Saco de gelo: R$ 4,50. Fui ao cinema à noite: R 17,00. Assisti ao filme chorando, não de emoção, mas com pena do meu orçamento.

Sigo caminhando, caminhando, quando olho no relógio, já caminhei 47 minutos, fim do primeiro tempo, paro em um banco para descansar. Estou defronte a um imenso edifício, é tudo muito limpo e organizado, árvores imensas e frondosas em todas as quadras, adoro árvores. Olho as janelas. Ninguém. Nem uma sombra singela na varanda, nada de um velhinho que leu Heidegger pensando na consistência do improvável. Não há um choro de criança, canção na vitrola, barulho de TV, sequer um reles cantor de chuveiro. Falta-me um latido de cão. Uma tosse, uma singela tosse não acontece. Há um silêncio profundo, irreversível. Por sorte, os pássaros iluminam o dia. Lembro de Pedro Páramo, do Juan Rulfo, quando um personagem chega a uma cidade e não encontra ninguém. Aqui tem muita gente, mas estão todos em silêncio, Brasília é uma cidade silenciosa, respeitemos.

Bebo um gole d´água, tomo notas, olho o espaço entre os prédios. A grama, aqui, é mais aparada e verdinha que a do Arruda, onde joga o meu clube, o Santinha. Meus olhos buscam a pelada de domingo, o fenômeno social da bola, dos times, da busca frenética pelo gol. Nada. Nenhuma pelota rolando. Passei há pouco por um campo de futebol imenso e vazio. As traves eram duas criaturas magras e inconsoláveis. Senti falta de um drible, uma ginga de corpo, nesta manhã de domingo. Sinto uma saudade flamejante dos “ Caducos”, do Poço, e fico a imaginar quem foi o destaque na pelada do amanhecer.

Fim do intervalo, vou seguindo. Chego a um um shopping imenso, tomo um café, ligo para meu amigo Gustavo, que vem me buscar. Professor da UNB, o velho potiguar mora em Taguatinga do Norte. É lá que passo a tarde, com a Florence, Margôt, Olivier, e meu afilhado, Emanuel, que não via há cinco anos.

“ Tás lembrado do teu padrinho?”, pergunta Gustavo.

“ Não”, responde Emanuel, agora com 11 anos. O cabra está bonito como o quê.

A longa conversa da tarde, escutando “Moby” e fumando charuto, mereceria outra crônica, mas não sei, vamos ver o que diz o dia de hoje e o de amanhã. Cada dia com seu alpiste e seu vagar.

Até amanhã.


(Do gabinete do deputado Paulo Rubem, do PT de Pernambuco, a quem agradeço a gentileza)

sábado, 21 de janeiro de 2006

Crônica de viagem - Volume I (Recife-Brasília)

Acabo de chegar de viagem, uma maratona Recife-Brasília, que durou 39h17 minutos, com a chegada do ônibus à rodo-feroviária da Capital Federal, no final desta manhã de sábado. Não foi por diletantismo que fiz esta maratona, foi grana mesmo, nesta brincadeirinha, consegui economizar R$ 750,00 e confesso que é uma grana que vai ajudar a seguir viagem, porque ainda vou bater pernas nos próximos dias, com a graça divina.

Dei a velha sorte de sempre, porque fiquei no fundão do dito coletivo, e sempre gostei de ficar no fundão da sala de aula, tem sempre gente mais divertida por ali, meu negócio é com a periferia mesmo. O primeiro amigo foi um vôvô de uns 60 anos, marrudo, baixinho, de Mossoró, que soltava piada a três por quatro, e resolveu ser o diretor do banheiro. Aos poucos, ele se tornou indispensável para a viagem, porque sempre dizia “tem gente”, “ tá livre”, “ tá ocupado”, “ tem café quentinho”, por ai vai. Como ele é de Mossoró, o apelidei de Potiguar, e como sou do Crato, ele disse que eu era dos índios Kariri, e ficamos assim, dois índios viajando pelo Brasil, um Potiguar e um Kariri.

Destaco aqui os motoristas da Viação Itapemirim, que a cada seis horas trocavam de turno, e sempre numa educação imensa. Diziam o nome, até onde iriam viajar, se precisasse de alguma coisa, era só avisar, vamos parar em tal e tal lugar, boa viagem a todos, eu inclusive achei os motoristas dez vezes mais educados que as aeromoças e comissários de vôo, em um povo cada vez mais chato, os tempos mudaram mesmo.

Em Aracaju, uma bela morena chorava copiosamente, porque seu homem embarcou. Era choro de soluço, então havia muito sentimento ali. Uma amiga tentava em vão consolar, mas essas coisas não são consoláveis, há que se deixar chorar até secar.

“Esse café fica quente direto, ele é aquecido pela turbina do motor do avião”, disse o índio Potiguar.

Começaram as reclamações porque tinha TV a bordo, mas não passava nada. O motorista mais educado, o senhor Rildo, que disse estar “descansado e preparado para conduzir os passageiros”, veio timidamente e falou que tinha um DVD, mas faltava o controle, então assistimos Dirty Dancing em inglês, com legenda em inglês, uma maravilha, eu só entendia quando eles dançavam, a sorte é que dançaram o filme quase inteiro. “ Tás pensando que isso aqui é avião, é”, perguntou o vovô, cada vez mais meu amigo.

Logo apelidamos um passageiro de “Pitu”. A cada parada, ele mandava ver no referido aperitivo, e em Feira de Santana já estava para lá de Bagdá, não sabia qual era o ônibus, a sorte é que o santo de bêbado é forte, ele chegou até o fim, mas o bafo, pela mãe do guarda...

Numa rodoviária, um sujeito vem com uma sacola me pedir uma ajuda. Diz que vem andando desde Aracajú, estamos na metade da Bahia, vai até Teófilo Otoni, em Minas, é muito chão, desconfio da história, ele confirma, sou meio ruim dessas coisas, vou saindo, mas resolvo dar R$ 1,00 e ele agradece com um sorriso tão simples e bom, que me comovo, dou mais R$ 1,00 e agora ele só precisa mais uns 60 contos, eu também não estou com essa grana toda, perdão.

Em algum muro, anoto:

“Prefeito, Zé Marcão
Vice: Zé Bodinho”.

Vi um homem só de calção, na pedra de um rio, tomando seu banho solitário; vi um bezerro sendo lambido pela vaca-mãe; vi uma velha muito negra se olhando num pedaço de espelho, numa calçada alta; vi o vovôzinho potiguar comer sua farofinha com galinha, igualzinho às farofas que minha avó fazia. Vi muitas coisas pela janela da poltrona 39, entre o Recife e Brasília.

Mas o que me encantou mesmo na viagem foram as rodoviárias. As rodoviárias do interior do Brasil, as rodoviárias semi-adormecidas de madrugada, com as mulheres segurando crianças no colo, homens exalando cansaço, vendedores com caras amarrotadas. De madrugada, e só de madrugada, nessas rodoviárias, se pode ver um Brasil em trânsito, sempre indo e voltando, o norte indo para o sul, o leste brincando com o oeste, a depender de um assento, de uma vaga, de um horário, de um trocado, empresas como “Transbrasiliana”, “ Princesa dos Campos”, “ Princesa do Agreste”, “Andorinha”, “ Pássaro Marrom”, “Guanabara”, enfim, cada guichê, um mundo, um sotaque, um rosto, um semblante, uma memória, cada café, uma história humana, uma herança cultural, uma trajetória, e os passageiros, essa gente sempre a caminhar, com suas mínimas sacolas, suas caixas, seus desejos, seus açoites, suas toalhas ao ombro, em banheiros vagabundos, têm somente um desejo, que é chegar, rever quem nunca mais viu, abraçar aquela criatura amada, os filhos, os pais, os parentes distantes, mas chegar, chegar, simplesmente chegar, e neste intervalo entre a saída e a chegada, é que se vê o tamanho deste país, não merecíamos ser tão pobres, mas vamos seguindo, sempre seguindo, vamos caminhando, até mais.

Da casa de Pedro e Liana, na Asa Norte.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Folhas de Relva (da Vida)

A cada viagem, tenho um ritual simples, mas fundamental. Preciso de um bom caderno, que aguente mesmo o tranco, umas três canetas, e de um livro, e somente um, para me acompanhar, para não me sentir nu. Muitas vezes, sinto uma angústia antes da viagem, que é a de não encontrar " ele", o livro que vai caminhar comigo. Diria que o livro é mais importante que o destino.

Hoje, boto o pé na estrada, rumo ao Planalto Central, com desdobramentos ainda incertos, porque não sou desses que viajam com guia, mapas, reservas em hotéis. Eu simplesmente vou, e estou indo.

E ontem, o encontrei. Minto, porque foi um reencontro. Ele se chama Walt Whitman, o velho barbudo, o grande poeta da humanidade. Eu tinha uma edição antiga, dos anos 80, a capa vermelha, o desenho dele. Está toda rabiscada, coitada. Esbarrei na edição de luxo (bilíngue) da Iluminuras, e fiquei gelado, dos pés à cabeçca. De certa forma, minha viagem já começou. Ele está comigo em todos os lugares. Precisava falar dele, antes de botar o pé na estrada.

" Vadie na relva comigo... solte o nó da garganta,
Nada de palavras música rima alguma... nem bons-costumes ou sermões, nem mesmo os melhores, só quero sua calma, o zunzunzum de sua voz valvulada.
Lembro da gente deitado em junho, numa transparente manhã de verão;
você pousou sua cabeça em meus quadris e delicadamente veio pra cima de mim,
e desabotoou a camisa do meu peito, e mergulhou sua língua no meu coração nu,
e estendeu a mão até tocar minha barba, depois até tocar meus pés.

De repente se ergueram e grassaram à minha volta a paz e a sabedoria que superarm
toda arte e agumento desta terra;"

Trata-se da primeira Declaração Universal dos Direitos dos Homens, e fico intrigado como um mesmo país, os Estados Unidos, pode nos dar um Walt Whitman e um George Busch. Não posso reclamar muito, percebo, nós demos ao mundo um Pixinguinha, um Garrincha, mas nos demos também um exemplo de como viver nos extermos da miséria e da riqueza, sem uma guerra civil declarada, os norte-americanos devem ficar confusos, relativizemos.

"E sei que o espírito de Deus é meu irmão primevo,
e que todos os homens que já nasceram até hoje são meus irmãos... e todas as mulheres minhas irmãs e amantes,
e que o amor é a quilha da criação".

Ulalá...

"Uma criança disse, O que é a relva? trazendo um tufo em suas mãos;
O que dizer a ela?... sei tanto quanto ela o que é relva".

Se eu pudesse, copiaria o livro todo neste blog, em pequenas partes, mas tiraria dos leitores que amam a poseia, o prazer do livro, de ver as fotos dele, de sentir o cheiro da relva em cada página, onde a humanidade inteira pulsa.

Encerro com esta pequena jóia:

"Bois que chacoalham a canga e as correntes ou param na sombra, o que dizem seus olhos?
Pra mim isso diz mais que todos os artigos que já li".

"A pressão do meu pé sobre a terra mina mais de cem carícias.
Elas desdenham meus melhores esforços para descrevê-las".

Vadie na relva comigo, diz ele.

Vou ali, fechar minha sacola, e partir para mais uma vadiagem. De onde estiver, mandarei minhas relvas.

Viva a vida.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Os fundamentais atos desimportantes

Outro dia um grande amigo veio me falar sobre uma criança aqui do meu bairro, um menino meio arisco, muito na dele, aquele tipo de menino que a gente acha que é chato, mas que muitas vezes é só um tímido, um excessivo tímido, e muitas vezes sofre por isso. O meu amigo me disse que o menino começou a falar de uma bola de futebol que dei de presente ano passado, e foi falando com os olhos brilhando de felicidade, cheio de um afeto e uma ternura que eu nem imaginava.

“Ele disse que foi o presente mais importante que ganhou na vida, principalmente porque não veio de ninguém da família, mas de um amigo, tu precisava ver o jeito dele falando, o carinho com que ele falava de ti”, disse meu amigo.

Então, mais que um menino de uns 11 anos aqui do bairro, tenho agora mais um amigo, e adoro a amizade dos pequenos, porque eles sabem das coisas, quando a gente vai crescendo é que vai desaprendendo das coisas da felicidade.

Eu não sabia que a bola teve tanta importância assim, especialmente porque foi um presente coletivo. Dei a bola para um pequeno grupo de meninos, e cada um deles tinha direito de ficar um dia da semana como o dono da bola, num revezamento que funcionou direitinho, sem brigas ou mágoas, até a bola furar, num chute de Moraes numa estaca, que deixou meu amigo tímido arrasado.

Mas para o menino tímido, o presente foi para ele. Um dia na semana, a bola era dele, inteiramente dele e somente dele. Lembro que comprei a bola logo depois de receber uma boa grana por um trabalho, e não custou muito, mas ela tinha algo extra: era uma bola oficial, não era aquelas fuleiras que furam batendo numa parede rugosa, que dão no Dia das Crianças, essa fajutice.

Desconfio que a gente muitas vezes nem imagina como uma besteirinha dessas, os pequenos atos desimportantes, acabam deixando marcas nas pessoas, e talvez esta seja uma das grandes belezas da vida: não é preciso muito para entrar no coração das pessoas e ficar lá, até dispositivo contrário, a famosa decepção.

Mas há uma diferença fundamental entre o júbilo, que nos faz entrar no coração das pessoas, e a decepção, quando a gente é retirado subitamente, muitas vezes sem aviso: para o júbilo, pequenas coisas, gestos mínimos, uma palavra, tudo isso serve. Para a decepção, só com coisas grandes. Ninguém se decepciona com alguém por besteira, é sempre algo grande, ou uma soma infinita de pequenas coisas, até a gota d’água. Não há nada mais lamentável que a decepção, e o amor acaba mesmo é quando a gente se decepciona, me disse outro dia uma sábia recifense.

Esses atos desimportantes, essas palavras sem muita pompa, esses presentes que chegam em silêncio são minha profissão de fé na vida e minha esperança mais secreta.

Os presentes mais importantes que recebi na vida foram coisas pequenas, que não custaram muito, ou foram coisas subjetivas, que não têm preço. Um álbum de fotografias, presente da Kika; o jantar que minha tia Flocely esquentava, antes de ir dormir, para quando eu voltasse da Universidade, já tarde da noite; algumas cartas de longe, por debaixo da porta; uma mensagem pelo celular, de um ex-aluno, falando da importância daquela disciplina que ensinei com muito gosto. As decepções, ah, deixemos as decepções no cantinho delas e sigamos a vida, mesmo que tateando sem bengala.

Uma vez, uma grande amiga estava em Paris, teria um encontro importante com uma editora, ela se arrumou muito, toda elegante, e quando foi entrar no metrô, levou uma baita de uma queda, sangrou o nariz. Aproveitou para chorar por várias outras dores e decepções que andavam guardadas, até pela morte do Ayrton Senna ela chorou.

Lá pelas tantas, alguém estendeu uma caixa de lenços de papel. Ela foi pegar um lenço, mas a pessoa insistiu, em silêncio, e ela ficou com a caixa de lenços. Nunca viu sequer o rosto da pessoa.

Que nunca nos falte uma caixa de lenços, nesses tropeços, ou alguém que te diga “como estás bonito hoje”, na hora em que você duvida de tantas coisas.

Perdão, mas hoje eu estou num lirismo total, de norte a sul na minha alma.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

Da importância dos meus vizinhos

Estou aqui a terminar mais um livro para o Unicef, o terceiro de uma coleção, e há muito tempo não trabalho tanto em casa. Quero dizer: há muito tempo não fico tanto em casa, porque trabalhar mesmo, com dedicação e perseverança, são outros quinhentos, o que eu gosto mesmo é de escrever minhas cronicazinhas, meus poemas e ler muito, porque ler é uma das delícias da vida.

Este período “caseiro” eu vivi muito quando estava escrevendo outro livro, o “Clamor”, publicado em 2003. Como tinha prazo com a editora, contratei um gerente para acompanhar minha produção diária, que fui eu mesmo. Fiz uma tabelinha das horas de trabalho, e só me dava ao direito da vagabundagem, a perambulação plena, após concluir as horas previstas. Se não me engano, eram quatro horas por dia de trabalho duro. Pode parecer pouco, mas era muito, porque usar o cabeção quatro horas por dia, intensivamente, gasta muito os miolos. Além disso, não sei quem inventou essa tal de jornada de oito horas por dia, um exagero da cabeça aos pés, ninguém merece isso.

Pois bem. Trabalhar em casa tem vantagens e desvantagens, mas tem esta coisa maravilhosa, que adoro, que é o contato diário com os vizinhos. Nunca tive sorte em jogo nenhum, mas com vizinhos, eu sou mesmo um afortunado.

A primeira pessoa que vejo no dia é meu vizinho Nana, com seus 116 quilos e um eterno bom humor. Ele chega à porta logo cedo e dá um assovio.

“Fu fuuu”.

“Entra, Montanha”, grito do primeiro andar, e ele entra. Só chamo Nana de Montanha, porque ele parece mesmo uma montanha. O nome dele tem um acento no segundo "a", mas meu computador tem esse tremelique, e nunca aceita o acento.

Hoje ele chegou, conversamos nossas águas de sempre, conversas que vão do Santa Cruz ao Carnaval, passando pela escola que acompanhamos, até que fui à geladeira e mostrei um pedaço bom de peito de galinha, herança de uma viagem recente a Bonança.

“Montanha, tu domina?”

“Domino”.

Vim trabalhar, ele comprou umas verduras e entrou em ação. O pedaço de galinha virou um baita almoço, com salada de legumes e verduras, arroz etc. Meu irmão Paulinho, que está aqui de férias, ficou maravilhado.

Teresa, a esposa de Nana, acabou de chegar para o almoço. Se Jorge passar, é arriscado ficar também, porque de vez em quando descolo a bóia por lá, um arroz integral maravilhoso com azeite e verduras. Nem precisa mais nada.

Há pouco, fui ao Posto de Saúde da Família, ver como anda um jardim que está em fase de instalação, junto com Sther. Me pesei, olhei uns livros da biblioteca que está também começando a nascer, encontrei um Fernando Sabino e um Érico Veríssimo, que vieram comigo para uns dias. Antes de sair, me ofereceram um copo de suco de manga, que cai no quintal do Posto. Delicioso. Na volta, passei na casa da professora Lucidélia, que vai dando um drible no câncer.

“Entra, gambá”, me disse ela. Lucidélia agora está com essa invenção, de me chamar de gambá, mesmo eu sendo tão cheirosinho.

Entrei. O cabelo dela está nascendo de novo. Ufa!

“Vamos almoçar comigo, gambá?”

Expliquei o almoço de Nana, meu irmão etc. Ficou para amanhã. Ela pediu um palpite para o jogo do bicho, disse que vinha sonhando com gatos, ela descobriu que a placa da Kômbi de Nana é gato e ficou toda contente, vai jogar.

Acabei de chegar. As cascas dos legumes Nana guardou num saco em separado, e levei para as galinhas que dona Severina cria.

Está um dia de sol muito lindo, eu nem estava com essa fome toda, mas não dá para resistir. Acabei de descer, a mesa está posta. Estavam Paulinho, Marluce (que veio com ele de Minas) e Teresinha olhando a comida.

"Não vão comer?", perguntei.

"Naná foi ali, levar a televisão de Neno Testão, e disse que era para a gente esperar", disse Teresa.

"Estamos contemplando a comida", completou Marluce.

Com esses vizinhos, a vida fica bem mais fácil, simples e boa. É um presente ter gente assim por perto.

O texto para o Unicef fica para mais tarde, depois de uma soneca, que ninguém é de ferro.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

O elefante azul

O dia mais importante da minha infância era em algum momento no início de julho, no início dos anos 70, quando meu pai botava os três filhos no banco traseiro de um Fusca cinza (IZ-3059), no banco de trás, a esposa, dona Ermira, no banco da frente, e saía de Imperatriz, no Maranhão, para o Crato, no interior do Ceará. Não sei a distância, mas sei que a viagem era uma epopéia, um caso de heroísmo familiar, atravessando estradas empoeiradas, esburacadas ou cheias de lama, com destaque para o Fusca, um ser indomável, que parecia flutuar no lamaçal, e sempre deixava tudo para trás, até chegar ao destino final.

Lembro que meu pai fumava Hollywood e nunca cansava de dirigir, botando o dedo no pára-brisa quando passava um caminhão e soltava pedrinhas. A gente, quando é pequeno, acha que o pai é incansável, mas às vezes é mesmo inalcançável, são coisas distintas.

Minha madrinha, Piinha (é assim mesmo, eu nunca soube o nome exato), me recebia com um sorriso maravilhado, sem contar que era ela linda mesmo, e eu ficava pasmo de ser afilhado daquela musa. Sei que ela era casada com Paulo César, mas de Paulo César não lembro nem da voz.

Passávamos um mês no Crato, durante a “Exposição”, e tudo era bom e simples. Meu pai ia para Seu Almir, que era o bar de Seu Vital do Crato, e lá encontrava seus amigos boêmios, igualzinho ao que faço hoje, a mesma conversa fiada, só faltava o dominó. Minha mãe ficava com minhas tias, e a função era simples: os homens bebiam, as mulheres conversavam e faziam outras coisas. Eu tinha muitos primos no Crato, e estão todos espalhados pelo Brasil, cearense é uma raça que gosta de se espalhar pelo mundo.

Uma vez, quem vinha na frente era o meu tio César, que hoje mora em Imperatriz, e é casado com a tia Fátima, irmã do meu pai. Não sei porque tio César estava no lugar da minha mãe, mas são coisas da vida. Lá pelas tantas, o meu tio César apontou para uma árvore grande, numa estrada interminável, e disse que tinha visto um elefante azul no alto.

Olhei para a árvore e também vi o elefante.

“Também vi”, comentei com o tio, do banco de trás.

Meu pai me olhou e perguntou se eu tinha visto mesmo um elefante azul no alto de uma árvore.

“Vi sim, mas já passou, ele está lá atrás”, respondi.

Meu pai me deu um beliscão na barriga que doeu pela infância inteira, atravessou a adolescência, ficou latejando pela idade adulta.

“Deixa de mentir”, disse, depois do beliscão.

Lembro que fiquei amuado, triste, e naquele momento, aos seis ou sete anos, desisti de ver qualquer coisa que não fosse real, palpável, contável e definitiva. Passei o resto da viagem triste, solitário e final. Ali, acabou a infância. É muito ruim quando a pessoa sabe exatamente quando acabou a infância: no meu caso, numa estrada Crato/Imperatriz, em 1976, no banco traseiro de um Fusca, após um beliscão.

Desconfio que meu pai me impediu de ver o que a imaginação mandava, e demorei muito tempo para me recuperar. Fiquei preso à realidade como um sonâmbulo no meio da noite.

Mas hoje, me deu uma saudade imensa daquele elefante azul, no alto de uma árvore, na metade dos anos 70.

Tenho uma dúvida secreta se vi realmente o tal elefante, porque já estava meio escuro, mas é uma dúvida que não é suficiente para invalidar a lembrança.

Essa é uma vantagem de escrever. Posso falar sobre um elefante azul, que vi na infância, sem medo de levar um beliscão.

Escrever é também uma forma de exercitar o perdão.

Então, meu velho Zé Vicente, aceite meu elefante azul que já esqueci o beliscão.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2006

O melhor do Recife, versão popular

Todo ano, a revista Veja publica o “melhor do Recife”, um guia de bares, restaurantes, botecos e o escambau, eleito por um júri eclético. Os ganhadores recebem diploma e colocam num lugar bem visível, para todo mundo saber quem é o “melhor da cidade”, uma espécie de atestado de "eu sou fodão".

Um amigo resolveu fazer uma edição bem mais popular, para ser lançada agora em junho, um rastreamento menos refinado das coisas de nossa cidade, e me mandou a série de perguntas abaixo, algumas bem cabulosas mesmo. Depois de uma ampla pesquisa comigo mesmo, cheguei à minha listagem final, que passo a compartilhar com os simpáticos leitores deste blog, na esperança de não atrapalhar os planos editoriais do meu amigo. Vamos lá:

Melhor Boteco do Recife: Bar Vital, no Poço da Panela, apesar da falta de tira-gosto e da mistura na marca das cervejas, o que importa é o ambiente e as pessoas, o que adianta cerveja geladíssima, garçom bacana, tira-gosto supimpa, se não aparece Lulu, por exemplo, para a gente brincar de coçar o cocoruto do louro, e se o dono do bar é incapaz de dançar com uma vassoura?

Melhor cabeleireiro do Recife: Eliete, do Alto José do Pinho, a única que consegue acalmar minha vasta cabeleira, enquanto conversa com as outras clientes e escuto tudo para uma nova crônica, coisas da alma feminina, esse eterno mistério a ser desvendado todos os dias.

Melhor caldinho do Recife: Caldinho de Seu Biu, no mesmo Alto citado anteriormente, onde Flavio vai atendê-lo com aquela voz de locutor de FM e apresentar a conta sem alarde, algo que não chega nunca a doer.

Melhor Ele & Ela do Recife: O mesmo citado anteriormente, especialmente se o produto for apreciado ao lado de Ailton “Peste”, com aquela sua conversa fiada. Informo quem não sabe o que é um "Ele & Ela", não está conhecendo as coisas boas da vida.

Melhor mercado do Recife: Racionalmente, é o da Encruzilhada, mas, por motivos sentimentais, filosóficos e existenciais, o de Casa Amarela ganha por uma cabeça (lá em Casa Amarela, é possível encontrar o professor Davi e tomar uma boa cerveja em Mary, saboreando um peixe ao côco).

Melhor livraria do Recife: A “Livro 7”, especialmente num período de formação da minha vida, de 1987 a 1994, quando morei no Recife pela primeira vez, in memorian. Todas as outras serão pálidas comparações.

Melhor estádio do Recife: Colosso do Arruda, especialmente as arquibancadas, junto à Sanfona Coral, na hora do gol do Santinha.

Melhor campo do Recife: Campo de Seu Abdias, no Poço da Panela, especialmente aos domingos, de preferência sem o mudo no time, porque ele reclama demais, imagine se falasse.

Melhor pizza do Recife: Não sei, quase não como pizza, apesar de gostar muito, e pra mim, pizza tem tudo o mesmo sabor, que vem a ser o "sabor de pizza", perdão pela ignorância, quem tiver opinião mais elaborada que aponte.

Melhor sushi do Recife: Também não sei a diferença, se vem tudo igualzinho no prato, apesar de adorar sushi, acho especial aquele negocinho verde que dá uma esquentada geral no rango.

Melhor cineasta do Recife: Camilo Cavalcanti (e é porque eu nem vi o último filme dele, que dizem ser do caralho).

Melhor hospital do Recife: Eu lá quero saber de hospital!

Melhor cemitério do Recife: Vôte!

Melhor café do Recife: Todos os cafés de Buenos Aires e Montevidéu.

Melhor bolinho de bacalhau do Recife: Os bolinhos de Dona Da Luz, apesar de admitir que estou forçando a barra, por motivos sentimentais.

Melhor Troça Carnavalesca do Recife: Os Barba, novamente por questões sentimentais, me perdoem, mas sou sentimental mesmo.

Melhor dia do Carnaval do Recife: A pergunta é absurda. Todos os dias, mas Olinda não pode ficar de fora da questão, porque no Carnaval, as duas cidades se tornam irmãs siamesas e irreversiveis.

Melhor poeta do Recife: Carlos Pena Filho, autor daquele absurdo “Soneto do Desmantelo Azul”. É preciso botar sempre uma flor no túmulo deste poeta.

Melhor hora do Recife: Não sei, mas não é às seis da noite, com Luiz Gonzaga cantando "Ave Maria", na Universidade Católica, momento em que o sujeito é tomado por um desamparo irreversível e desumano.

Melhor suco do Recife: O que Dona Fátima, minha vizinha, faz a cada três dias, de maracujá, empatado com o suco de Thiago, que tem um fiteiro ao lado do Unicef, também de maracujá.

Melhor Fiteiro do Recife: O de Thiago, já citado, porque sempre tem suco de maracujá prontinho e na medida, por R$ 0,50 o copo.

Melhor feijoada do Recife: A de dona Madalena, servida na casa de Joãozinho, antes dos jogos decisivos do Santinha.

Melhor taxista do Recife: Zinho, o “Garotinho”, que vai conversando na viagem e à noite, faz dupla no dominó comigo.

Maior leseira do Recife: Você acaba de ler, mas a sorte é que foi de graça.


ps. Vou sugerir que meu amigo faça uma edição do “Pior do Recife” também. Vai dar um samba bom.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

Bonança e o Titanic

Todo começo de ano tenho este pantim de sair da cidade, ir para um pequeno retiro, organizar as idéias, fazer planos, descansar e fingir que vou trabalhar em alguma coisa importante. Este ano vim para um sítio a quatro quilômetros de Bonança, uma cidade que já gostei só pelo nome. A casa fica no sopé de algo mais alto, que não é uma montanha, muito menos uma colina, e lá embaixo posso ver o açude, onde Val, o caseiro que mora ao lado, jura ter jacarés de vários tamanhos e idades.

Ontem à tardinha, o vizinho Cyro foi à cidade comprar vermífugo com o Val, e peguei o bigu. Val, o caseiro, aproveitou para devolver o DVD na locadora. Sim, amigos, o caseiro está atualizadíssimo com as modernidades urbanas e foi devolver um filme de terror, locado no dia anterior, para desespero dos filhos, que morrem de medo. Só não gostou mais do filme porque era todo em inglês e ele não entende nada em inglês. Na “Locadora Morena”, ele recebeu as explicações sobre o funcionamento do equipamento e pagou o aluguel: R$ 2,00. Resolvi levar um filme para assistir com Val e sua família. Olhei os nacionais – todos locados. Peguei “Náufrago”, expliquei a história ao meu amigo, ele se animou, mas deu errado: o irmão da dona da locadora tinha levado na surdina, para ver em casa.

Então aluguei um filme novinho em folha: Titanic, que alguns leitores chegaram a ver.

Val e Ciro voltaram para o sítio. Fui perambular pelas ruas de Bonança.

De imediato, percebi que a cidade tem uma auto-estima lá no topo. Tudo é Bonança. “Posto Bonança”, “Auto-Elétrica Bonança”, “Borracharia Bonança”, “Bar e Lanchonete Bonança”, “Bonança Calçados”, “Padaria Bonança”, "Farmácia Bonança", "Mercadinho Bonança" e por aí vai. Eu já estava ficando cansado de tanta Bonança, quando vi um “Bar da Viúva”. Não, amigos, não parei, é preciso andar para conhecer uma cidade. Passei em uma esquina e uma turma da meia idade jogava um dominó manso, delicado, silencioso, bem diferente do fuzuê da minha turma do Poço da Panela. Me veio uma indagação clássica: por que o Dominó nunca foi cogitado para ser esporte olímpico? A medalha de ouro sairia do Poço da Panela, indubitavelmente.

Desço uma rua principal e descubro que estou na Agamenom Magalhães, mas faltam os carros, os lavadores de vidro dos sinais, os guardas multando todo mundo pelo simples prazer da multa, quando deveriam estar orientando o trânsito. Passo por um grande terreno, onde estão montando um imenso parque de diversões. “É para a festa de Reis”, tinha me explicado Val, bem antes. Os brinquedos são os mesmos de todo parque do interior: cavalinhos lerdos que rodam, carrinhos que batem uns nos outros e ninguém se fere, aquelas canoas que ficam na gangorra e a famosa, imprescindível, fundamental e clássica Roda Gigante, que sempre detestei, graças ao meu ancestral medo de altura, seja ela qual for.

Paro para olhar a cena. Ao meu lado, um pirralho de uns sete anos veste uma camisa falsificada do Barcelona, com o nome “Ronaldinho” atrás. C'est la vie. Sigo perambulando. Mais auto-estima: “Bonança Bombons”, "Espetinhos Bonaça". Na porta de um bar, está pintado: “Quando Deus quer, é assim”. Não discuto assuntos teológicos, simplesmente aceito. Sento no balcão do “Bar Bonança” e peço uma Brahma (a R$ 1,75). Na frente, uma TV mostra as desgraças de São Paulo, depois de umas chuvas violentas. O tira-gosto mais barato é filé de merlusa, a partir de R$ 1,00 e peço logo um. “Você vai ver agora a história de pessoas que perderam tudo por causa das chuvas”, diz a apresentadora.

Daqui a pouco, passa o jornal local da TV Tribuna, uma matéria sobre meningite. Vejo o repórter: é Bruno Fontes, meu ex-aluno da Católica! Tem um sujeito do lado mergulhado na janta, penso em apontar e dizer: olha ali, é o Bruno Fontes, vê que bicho desenrolado, mas não tem clima, o sujeito está com uma fome dos diabos. A matéria é boa, o cara é mesmo desenrolado mesmo, esse Bruno Fontes. No mesmo jornal, sou informado que Pernambuco tem 285.287 motos, é moto pra chuchu, penso solitário.

“É moto pra caralho”, me diz o gordinho do lado, com um pedaço de macaxeira na boca.

Duas cervejas, dois tira-gostos, já anoiteceu, hora de voltar para casa de moto, em toda cidade do interior tem o famoso "Moto-Táxi", uma beleza. O piloto conversa mais que o homem da cobra, resolve passar no seu bar, antes de me deixar em casa, me oferece um aperitivo que não recuso, me apresenta a filha, uma moça muito bonita, mas a vida segue. Chego, vou à casa de Val, saber como anda o Titanic, se já saiu do porto, se já afundou, se o Leonardo di Capri já tomou no papeiro.

“Estava esperando o senhor para começar”.

Cyro ajeita a cor, o brilho, a imagem, começa o filme, mas o Val olha tudo, aprendendo na prática. Na sala, eu, Cyro, Val e seus três filhos homens. A mulher foi dormir, diz ele. Começa aquela história toda que eu tinha visto uma vez, e nem lembrava de um bocado de coisas. Lá pelas tantas, Cyro começa a dar umas cabeçadas. Está com sono, resolve ir embora. Ficamos vendo o resto. Val está maravilhado. Pergunto se estão gostando, respondem que sim com a cabeça sem olhar para mim. Vamos vendo a história. Aos poucos, me vem um cansaço também. Daqui que esse navio afunde, muita água vai passar por debaixo desse casco, penso. Depois de uma hora de cinema-na-casa-de-Val, digo ao amigo que vou me embora, ele diz que está cedo sem olhar para mim, os filhos nem piscam.

Chego em casa. Lá fora, um silêncio profundo, aquele silêncio do interior, que só os grilos e outros animais que vivem nas matas podem alterar. Durmo sem trégua, cansado das caminhadas e cachoeiras. Quando o dia amanhece, venho escrever estas notas, ao som de pássaros os mais diversos. Olho no dicionário o significado de Bonança: calma, sossego, tranqüilidade.

Então eu concordo com o dicionário.

Vejo Val logo depois, puxando um cavalo, que vai vermifugar.

"E aí, gostasse do filme?"-, pergunto.

"E apois", responde. "É meio demorado, umas três horas, mas gostei".

Olha para mim e completa, muito sério.

"Mais tarde vou ver de novo".

E apois.