segunda-feira, 30 de abril de 2007

Viva a vida!

Caros leitores,

Depois de 11 dias de hospital, 1.018 quilômetros rodados, acabo de retornar ao Cabo, com a tia-avó Floscely, que recebeu alta. Ela é mesmo raçuda, aos 80 anos.

Vou tomar umas e outras para comemorar.

Amanhã volto às crônicas.

Viva a vida!

Samarone.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Quando tudo fica azul

Madrugada no hospital todo mundo sabe como é. Aquele silêncio, aquele clima de que algo está em suspenso, como se o sono da gente tivesse um lençol amarrotado, sem caber no corpo, ou um travesseiro de pedra, com a ponta no cocoruto da gente.

A enfermeira Áurea está dormindo, não sei onde anda o enfermeiro-chefe, lembro que minha mãe é auxiliar de enfermagem, e já sinto um carinho enorme por todos os que viram madrugadas no mundo. Dou uma volta, dá uma pena acordar, mas tenho que acordar, para trocar lençóis, ver o soro da tia, essas coisas de quem tem um parente num hospital.

Depois de um vuco-vuco intenso, tudo se acerta, tia sente dores mas não reclama, é raçuda mesmo, veio de Exu, misturou-se com as entranhas do Crato, então o sangue é quente e forte, cheio de fibra misturado com seu caráter.

Quando a enfermeira vai saindo, tia se vira e fala, com seu humor divino:

"Precisando de qualquer coisa, é só falar comigo".

Todos rimos: eu, a enfermeira e a tia, de 80 anos.

Começamos a rir. Acho que eram duas da madruga, mais uns minutinhos, que não curto hora exatinha.

Perguntei no seu ouvido, bem no ouvido, se estava tudo bem.

"Está tudo azul", respondeu ela, antes de cochilar.

De um lado, o soro. De outro, um negócio no dedo, marcando a pulsação. Mil dores nas costas e uma hemodiálise agendada para a tarde, e do nada surge um "tudo azul".

De repente, ficou mesmo tudo azul, demos um pontapé na maré braba, já pensamos na alta.

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Carta ao amigo

Amigo, já não quero o auto-controle
de quem carrega rédeas de estimação
venho de um budismo cansado
de uma yoga incompleta
os olhos já não se impacientam
se envaidecem o tempo de um eclipse

Sei de alguns cabelos brancos
como os fios de minha ausência
o desejo expirado por uma cama
de campanha
onde o corpo se desdobra às cegas

Tentei de tudo para avançar centímetros
como um pelotão à espera da ordem de ataque
de um comandante já falecido

Bebi água salobra de corpos
que me encontraram indefeso

Minha porcelana é como a tua:
há dias em que me quebro
nas mãos de uma velha criada
e não sei juntar os pedaços
com meus ossos trêmulos e em farelos

Pouso meus olhos
em algum lugar fácil
e sinto a textura de uma estação abandonada
a Gare de Astapolvo do poeta perdido

Aqueço derrosta na algibeira
escuto sentenças como uma mãe
que recebe golfadas do filho ausente

Ali onde nasci já não existem palavras
mas um trem que admite minha presença
sem documentos, sem bagagens, sem ânsia de nada

Vou por aqui, amigo
levou tuas cartas como um abrigo
e termino a noite com um soluço
no intervalo entre dois vagões
onde está um moço que foge da guerra
e fuma seu cigarro antigo
no intervalo das batalhas por viver

Cabo de Santo Agostinho, 20 de abril de 2007

Onde estão os médicos?

Desde quinta-feira faço uma peregrinação com uma tia-avó de 80 anos, com problemas renais, que resultaram num processo de hemodiálise, uma infecção urinária e muitas dores. Ao final de todo este processo, exausto, eu me pergunto:

Onde estão os médicos?

Não se trata apenas de ser um atendimento em hospital público (minha tia é aposentada pelo estado como diretora de escola), porque no sábado à noite, conseguimos uma transferência para um hospital particular. Os procedimentos médicos são semelhantes: frios, alheios, rápidos. Para muitos, o paciente é um incômodo.

Desconfio que a exemplo do Jornalismo, a Medicina está meio esquizofrênica: perdeu-se do humano.

Tia Flocely foi atendida por vários médicos, em diferentes plantões. Estive ao seu lado, em todos eles. Apenas uma, de um total de cinco ou seis, teve a coragem de olhá-la nos olhos e perguntar, com carinho, como estava se sentindo. Tia me olhou, surpresa, e depois comentou:

"Essa médica é diferente, né?"

Seria cômico se não fosse trágico, mas relatei a uma médica do Ipsep todo o caso da tia, o problema renal crônico, a falta de apetite, ânsias de vômito, o que indicavam uma falência do rim, e a médica não teve dúvidas:

"Isso deve ser uma virose".

Aproveitou e passou remédios para verme.

Hoje, a consulta durou cronometrados quatro minutos e meio. Tia reclamou de dores fortíssimas nas costas, o médico, que parecia ter marcado uma pelada à beira da praia com os amigos do dominó, apertou com tanta força, que ela deu um grito e se arrependeu. Ele saiu sem dizer até logo. Creio que foi buscar suas chuteiras.

Algo estranho está acontecendo. Falta aos médicos uma pequena, mínima, essencial delicadeza. Aliás, algumas delicadezas. Perguntar o nome do paciente. Olhá-lo nos olhos. Dizer um bom-dia. Colocar uma mão no ombro. Isso não tem a ver com salários, más condições, excesso de plantão. Tem a ver com o compromisso básico da Medicina, que é cuidar dos seres humanos. Tem a ver com o trato com pessoas que estão sofrendo, e querem, às vezes, apenas uma palavra de conforto, de carinho.

No meio deste vendaval, aparece a doutora Bebete Molina e o Rafael Pacífico. Não fosse a delicadeza, a gentileza, a atenção e disponibilidade deles, nem sem como estaria a Flocely - nem eu.

Mas continuo com a minha pergunta, após cinco dias percorrendo hospitais e enfermarias:

Onde estão os médicos?

sexta-feira, 20 de abril de 2007

O segredo

O dia fatal chegou. A tia-avó começou a hemodiálise, depois de uma semana em crise renal. Como sempre, ela enfrentou com raça o vendaval, a notícia, o catete, as duas horas com a máquina limpando o sangue, a noite infernal no Hospital do Ipsep, outra hemodiálise no dia seguinte. Rosa, seu braço direito há mais de dez anos, soltou lágrimas silenciosas, quando a Flocely entrar para a primeira sessão, um choro triste, da alma, inconsolável. Esses que sofrem em silêncio é que salvam o mundo.

Durante dois dias, acompanhei as jornadas da tia, vendo o sofrimento dos que dependem de ambulâncias, os que chegaram aos 60, 70 anos com as muitas seqüelas do que País como o nosso faz com seu povo. Não é o caso dela, felizmente, mas estivemos juntos, neste mundo dos doentes.

À noite, na sala da hemodiálise, cansado de ler, de tomar notas para eventuais crônicas, rabiscar poemas sem futuro, me deparei com um senhor, na faixa dos 65 anos. Tinha acabado de sair da sua sessão de hemodiálise, estava em uma cadeira de rodas. Não tinha ninguém esperando por ele. Era calvo, mais para branco, cansado, tinha uma sobra de barba e usava bigode. Era um homem gasto pelo tempo, ou por alguma coisa que agora não sei o nome.

Ele comeu a janta, servida em uma quentinha. Comeu sem pressa, mas sem fome, sem ritmo, aos bocados, como um passarinho com dentes. Ao lado, a secretária do Sassepe, eu, uma senhora que de tempos em tempos falava com alguém da família aos berros, e uma TV, ligada na programação da noite. Chovia muito no Recife e fazia frio até na alma, por causa do ar-condicionado.

O homem terminou de comer, botou as sobras da quentinha junto à mesinha do café, a essa hora sem café, e não vi se ele limpou a boca com a dobra da camisa. Depois ficou quieto.

Então ele me olhou, e pela primeira vez nos encontramos. Sei reconhecer olhares, e esse camarada tinha um desamparo cravado na alma. Era um olhar triste, sustentado por alguma dor. Resisti por alguns segundos, mas doía muito encarar tanta tristeza. Era como se ele quisesse (ou precisasse) dizer algo importante para um desconhecido, que pousava pela primeira vez em seu território. Havia nele um desejo de confissão.

Depois ele baixou os olhos, certamente desapontado com minha falta de sustentação. Mas eu me perdoei, porque às vezes dói essa partilha. E uma retribuição que deixa coisas na gente. Nesta noite, eu não tinha muito a oferecer, a não ser meu desalento.

Mais tarde, chegou sua esposa e o irmão, creio. O trataram com aquela alegria de quem está vivo, após uma sessão de hemodiálise, num dia de chuvas grossas no Recife, onde tudo fica inundado. O cobriram bem, para não molhar um curativo, que fica no pescoço.

À saída, sua esposa pediu meu guarda-chuva emprestado, para o marido não se molhar. Emprestei com um sorriso. Ele foi saindo, sendo empurrado na cadeira de rodas do hospital.

Ele entrou no carro sem um pingo de chuva no corpo. Estava protegido, eu sei, mas havia algo de abandonado nele.

Me deu a impressão de que aquele homem não tinha ninguém que o escutasse. Talvez fosse esse o segredo que não escutei.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Mudanças

Essa mania da inquietude às vezes me dá um trabalho...

Bem, vejam aí o novo visual do Blog, que consegui fazer não sei como, futucando as teclas do computador do Renato.

Aceito comentários.

Mais tarde escrevo algo decente - ou indecente, tanto faz.

Samarone Lima

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Distraídos venceremos

Ontem saiu o cheque da escola em que ensino, e segui a passos largos para o Itaú, aqui no Bairro do Recife, que os habitantes locais chamam de Recife Antigo. Como sou enfezado com aquelas portas giratórias, vi a placa "Itaú", entrei rápido, sem pestanejar, com cara de antigo correntista, os dois soldados fizeram de conta que não era comigo.

Lá pelas tantas, depois de 26 minutos na fila, comecei a reparar na turma que esperava a vez. Era um pessoal meio remediado, fiquei pensando que pobre agora tem conta não só em banco, mas no Itaú, que tem um lucro absurdo, aquele Olavo Setúbal de besta não tem é nada.

Olhei mais, reparei mais, e vi uns cartazes:

"Abra sua poupança na Caixa".

Reparei nos detalhes e depois de consultar dois clientes, descobri petrificado que tinha entrado na agência da gloriosa Caixa Econômica Federal. Pior: tinha ficado quase meia hora na fila, sem perceber. Vem pra Caixa você também, vem!

Saí de fininho, para não arranhar minha imagem de distraído crônico. O banco Itaú ficava ao lado. Tinha somente entrado na porta errada. Ah, meus 63 leitores, não fiquem rindo, galhofando, todo mundo já entrou na porta errada, alguma vez na vida. Meus amigos psicólogos, se comportem!

No Itaú, a muito custo (todos os caixas saem para almoçar, justamente na hora do almoço, quando a gente pode ir ao banco), troquei o cheque e fiquei pensando "caramba, como sou distraído".

Se os distintos leitores acham que isso é um absurdo, basta saber que minha mãe outro dia pegou o carro da minha irmã, um Pálio, sei lá, ou era um Siena, e foi ao shopping. Estacionou, fez suas comprinhas, e quando voltou, bateu todo o estacionamento, procurando...o seu velho Fiat.

Depois de duas horas de confusão, envolvendo a segurança do shopping, polícia, uma tormenta dos diabos, FBI, SPC, Serasa, Samu, Corpo de Bombieiros, Polícia Federal, pais de santo os mais diversos, ela ligou para minha irmâ, dizendo, às lágrimas, que não estava encontrando o Fiat, certamente tinha sido roubado.

"Mas mãe, a senhora lembra que foi para o shopping no meu carro, que é um Pálio" (ou era um Siena, sei lá, vamos ficar com um Pálio mesmo, para não complicar o texto de hoje) - foi o que respondeu a filha, que vem a ser minha irmã, a Mônica.

Minha mãe ficou sem graça, olhou para os seguranças, o chefe da segurança, o diretor do shopping, os tradicionais curiosos, o pessoal já citado anteriormente, e comentou com uma certa timidez:

"É que eu vim no carro da minha filha e não lembrava".

Já fiquei na metade do caminho entre Belo Horizonte e São Paulo, enquanto comia um pastel, mas não creio que tenha sido distração. Foi leseira mesmo. Minha coleção é interminável, mas fico com mais um caso, para terminar bem o dia.

Um dia, estacionei o velho Fusca 68, de saudosa memória, caminhei alguns passos, o segurança do shopping veio apressado atrás de mim:

"Senhor, senhor".

E olha que eu não tinha atacado nenhuma livraria.

Ele me entregou as chaves do Fusca, que tinham ficado penduradas na porta do carro.

Nesse momentos, lembro da velha frase do Paulo Leminsky:

"Distraídos venceremos".

Ps. o livro Estuário, deste que vos fala, continua sendo vendido no bar de Seu Vital, no Poço da Panela, é uma boa para o Dia das Mães. A minha inclusive já ganhou um, autografado, e gostou.

domingo, 15 de abril de 2007

Despedida

Na sexta-feira, a tia Elisa partiu. O câncer no útero, que os médicos julgaram curado, voltou por outros caminhos, e desta vez, devastador.

O Paulinho, e sempre ele, viu as passagens. Dona Ermira, mi madre, viajou com a tia Beta para São Paulo. Ninguém chama tia Elizabete pelo nome completo. É só tia Beta e pronto. As duas tiveram tempo somente de ver a irmã no enterro, essas despedidas.

No domingo, o Paulinho, e sempre ele, viajou a São Paulo. É sempre bom ter o Paulinho por perto.

Conversas ao telefone, ponderações, dúvidas sobre como contar a uma senhora de 80 anos, bastante debilitada, sobre a morte de uma sobrinha, uma das mais queridas. Prevaleceu a tese da verdade. O direito de saber, para chorar a despedida.

Preparei um pouco o terreno, fui dizendo que a tia Elisa estava muito doente, que minha mãe viajou a São Paulo, enfim.

Rosa, que trabalha com tia há mais de dez anos, aproveitou uma conversa longa sobre parentes e saudades, e contou logo. Foi melhor.

Ontem, mexendo nas fotos da família, encontrei uma foto da tia Elisa, de 2000. Ela me pareceu triste, segurando a neta, Vitória, recém-nascida.

Botei a foto num altar, acendi uma vela, fiz minhas orações. Pela tia, por todos da família, por mim, por tantos.

A morte, essa despedida sem reencontro.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Mínimos, múltiplos e incomuns

Interrupção

"Respondi-lhe que o meu ideal é não sair jamais da minha rua".
(Mário Quintana, ao ser visitado por um rapaz de uma companhia de turismo, e perguntá-lo algo sobre "correr o mundo")

**
3 de maio
"Aprendi com meu filho de dez anos
que a poesia é a descoberta
das coisas que eu nunca vi".
(Oswald de Andrade)

***
Briga
"Vou parar de falar
vou fazer"
(Francisco Alvim)

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Lucidez
"Não consigo me recuperar de minha lucidez etílica".
(Jorge Alberto, lúcido)

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Desespero
"O desespero dele é outro".
(Jommard Muniz de Brito, ao escutar alguém ler meus poemas)

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Águas
"Em cada tempestade
morrem as águas que matam".
(Da minha coleção de murmúrios)

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Sin título
"Lo que sé lo soporto con lo que no sé".
(Antonio Porchia, in "Voces")

quarta-feira, 11 de abril de 2007

As lembranças como flores

Se eu fosse escrever um livro de auto-ajuda, iria ser algo do tipo "Escute as histórias dos velhos de sua família". Mas não tenho planos de adentrar no ramo da auto-ajuda, de formas que me limito às minhas cronicazinhas de sempre, aqui neste Blog, que agora vai com 62 leitores (soube que a Bete da Mata e a Ana Luiza estão lendo também).

É porque ando tendo longas conversas com a minha tia-avó, dona Flocely, que rompeu em janeiro a casa dos 80. De saúde, não vai nada bem. O único rim, descoberto ano passado, está capengando, as dores na coluna são imensas, fora as noites de insônia. Mas a cabeça continua bem, ela lembra de tudo. Quando esquece o nome de um parente distante, um primo em algum lugar ermo, acha que está sem memória nenhuma.

A janta é sempre o melhor momento, quando estamos sozinhos, a TV está desligada, a rua é silenciosa, e tem grilo por todo lado, no terreninho ao lado da casa. Mas grilo é um animal sentimental, baixa o tom na hora do sentimentos. Pergunto algo simples, sobre o meu avô, por exemplo, que não conheci. Então a tia começa a contar diversas histórias da família, coisas que eu nunca imaginava. Fala como era meu avô, aventureiro, que gostava de andar pelo mundo, e morreu moço, no Rio de Janeiro. Outro dia, encontrei uma foto dele, foi aquele impacto, algo do tipo "então é você, meu velho..."

Não troco nenhum noticiário, nenhuma novela, nenhum filme pelas conversas com a tia. Outro dia fiquei sabendo da história de amor do meu pai e minha mãe, um troço incrível, que envolveu o afastamento intencional para o Cabo minha avó não queria o romance), uma carta mandada de amor que chegou por um amigo misterioso, pretendentes rondando etc. No final, minha mãe se invocou, disse que o cara era aquele mesmo, e voltou para o Crato, onde o fato foi consumado. Graças a Deus, porque se ela tivesse ficado por aqui, eu poderia nem ter nascido, para escrever minhas besteiras.

Para que servem essas histórias, essas lembranças?

Servem para me situar no mundo, para entender certas coisas de minha família, olhar com mais afeto as pessoas que construíram esta teia, que me ajudaram a ser quem sou, com as qualidades e defeitos. Acho que entra perdão no meio de tudo, a gente aprende a ver, pelas histórias de vida, as limitações de cada um, situado em um tempo, em um contexto.

Talvez esteja compensando intimamente esta falta dos velhos em minha vida. Não conheci os avôs, convivi somente com minha avó Zeneuda (irmã de Flocely), e esporadicamente pedia a bênção à minha avó, Waldelice. Os velhos sempre ensinam as coisas de outro jeito, meio que por parábolas, e gosto muito disso.

Na verdade, gosto de gente velha. Não suporto essa frescurite de "Terceira Idade", ou "Melhor Idade". Velho é uma palavra linda, que tem força. Gosto de cidades velhas, de rostos envelhecidos, de cabelos brancos, das rugas. Cada ruga tem sua história, sua dor, sua saudade. Gosto de livro velho, de foto velha, de carro velho, de rua velha. Gosto da palavra velho.

Quem não tem um "velho amigo?". Quem não chama com carinho "Meu velho", o seu pai? Quem não lembrou do "velho e bom" fulano de tal, que era o tio mais querido da família?

Dizem alguns da família e amigos mais próximos, que vim ao Cabo de Santo Agostinho, a 35 quilômetros do Recife, para "cuidar da tia", que está com muitos problemas de saúde, cansada etc. É como se fosse uma filantropia fajuta, que não me agrada.

Estou ajudando uma pessoa que amo muito, levo ao médico, vejo a pressão a cada três dias, mas está havendo, na verdade, uma troca.

A tia me dá de presente as suas lembranças, e eu as recebo como quem ganha flores no meio de uma tarde triste.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

O rabino e as gravatas

Hoje é sexta-feira da Paixão, em toda esquina do Recife tem uma encenação da morte e ressurreição do camarada Jesus, mas estou no Cabo de Santo Agostinho, e aqui no Cabo a turma não liga muito para essas histórias. Comprei um vinho meia boca, botei para gelar, a Rosa fez peixe assado, a tia está lendo o jornal que comprei, um vizinho escuta canções evangélicas na maior altura. Fora isso, o sol está supimpa, e se eu não fosse um perfeito idiota, deveria estar mesmo era dentro do mar, dando umas braçadas.

Diante dos fatos, pensei: vou atualizar o Blog, que ando preguiçoso. Claro que meus 58 leitores não reclamaram, mas eu sei quando estou preguiçoso. Ultimamente, ando mais lendo que escrevendo.

Pois bem, estava pensando num tema, e me ocorreu a figura do rabino Henry Sobbel, preso outro dia levando umas gravatinhas de uma loja, em Miami, creio.

Que azar do cacete! Conheci o rabino quando trabalhava como repórter em São Paulo, fiz muitas matérias com ele. O cara foi uma figura muito importante durante os anos de chumbo da Ditadura, fez uma dobradinha espetacular com o Dom Paulo Evaristo Arns. A última vez que o vi, foi quando o Inácio, meu dileto amigo, recebeu o Prêmio Wladimir Herzog de Jornalismo. Estavam lá o rabino Henry Sobbel, Dom Paulo Evaristo Arns e o reverendo Jaime Wright, da Igreja Anglicana. Os três ganharam um prêmio especial de Direitos Humanos, pelo que fizeram pela humanidade, de uma forma ecumênica e muito bonita.

Pois bem. Depois de toda uma vida de lutas, de preocupação com o próximo, de contribuição para a aproximação das religiões, o camarada acaba fotografado e aparece no mundo inteiro como um reles, um atrapalhado ladrão de gravatas! Caramba, não dava para o vendedor pegar as gravatas de volta, dar um carão no rabino, dizer que roubar é feio e Deus castiga, e ter liberado o Sobbel? Precisava ter fotografado o camarada, e depois o negócio circular no mundo todo?

Uma vez, numa livraria, eu estava tentando levar indevidamente um livro. Um vendedor percebeu o livro entre minhas coisas, discretamente retirou o livro e o colocou de volta à prateleira. Isso sim, é que é um santo homem. Um estardalhaço ali, quando eu tinha reles 21, 22 anos, poderia ter sido um troço para desestruturar o camarada.

Sei lá, o mundo está vivendo uns exageros. Daqui a pouco, quando abrir meu vinho fuleiro, vou fazer um brinde ao velho e bom rabino Henry Sobbel. Se eu tivesse uma grana legal, comprava uma gravata bem bonita e mandava para ele, de presente. Mandava com um recadinho:

"Rabino, não ligue para os exageros do mundo. Bola pra frente, que atrás vem gente".

Boa Páscoa para todos.

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Nossos segredinhos

Às vezes é preciso chegar alguém de fora para ver os segredinhos da gente. Ver não, descobrir.

Acontece que a Ana Luiza conseguiu me convenceu a mostrar os poemas que venho escrevendo nesses últimos vinte anos ao seu grupo de poesias, o "Zodíaco". Aceitei nem sei como, mais na base da amizade, e quando dei por mim, estava em um casarão, na Torre. Mandei pelo email duas coletâneas, uns 100 poemas, ela fez a seleção.

O cachorro bravo estava preso. Ficamos conversando eu, ela e a anfitriã, Juliana, uma moça alta e com aquela beleza clássica. Só depois eu disse que amanhecera com dor de barriga. Por precaução, perguntei logo onde ficava o banheiro.

Dei sorte que os integrantes do "Zodíaco" atrasaram. Foram chegando aos poucos. Cada vez que diziam "esse é o poeta", eu gelava e suava frio. Bebi dois copões d´água e depois veio suco de graviola.

Lá pelas tantas, estavam todos. Tinha padre, professor aposentado da UFPE (falo do Jommard Muniz de Brito), arte-educadora, estudante de Direito, psicóloga etc. Ana estava com uma pastinha - "Seleção de poemas Samarone". Gelei.

Ela distribuiu os poemas, cada um ficou com um. Falou de mim, que sou colega de trabalho na escola Kabum!, depois pediram que eu falasse de mim, e falei. Não muito, é claro.

Então, cada um foi lendo um poema. Cada um lia ao seu jeito, com sua entonação, e fui sentindo aquele frio na espinha, fora o leve suor. Nunca eu tinha feito isso antes, mas aos poucos fui me acalmando. Aqui-acolá, gostava de um poema, isso era bom. Depois de cada leitura, surgia um silêncio. Desse silêncio eu gostava muito, parecia uma pausa para respirar.

Ao final da primeira rodada, perguntaram por que eu nunca quis mostrar nada em
público. Suspeitei que gostaram.

"É que a minha alegria mesmo é escrever", respondi.

Lá pelas tantas, depois da segunda rodada, o Zeferino Rocha fez uma pergunta, de sopetão:

"Você é poeta?"

Melhor:

"Você se sente poeta?"

Ele disse que escreve, faz poesias que considera boas, mas não se sente poeta.

Pensei um pouco e cheguei à conclusão que sim. Se desde os 13, 14 anos, escrevo poesias, é claro que me sinto poeta.

"Sim, eu me sinto um poeta", respondi.

Aquilo me deu um abalo sísmico por dentro. Algo mudou. Descobriram meu segredo. Eu me confessei. Não é à toa que a pergunta veio de um psicanalista.

Ao final do sarau, a Ana Luíza me segredou uma descoberta:

"Você é tímido, discreto e reservado".

Tomei um susto, mais um naquela tarde. Logo eu, que já tive bares, que vivo dando aulas, que conheço um monte de gente, que vivo viajando, que tenho blog, essas coisas todas de quem não é tímido.

Mas no fundo, a Ana Luiza estava certa.

A danada descobriu uns segredinhos.

Quanto à poesia, foi uma confissão pública do que eu já sabia.

Mas o que a gente sabe somente para a gente, não é um segredo?


Para o grupo Zodíaco, pois, especialmente a Ana Luiza.

ps. os poemas estou publicando aos poucos no www.quemerospoemas.blogspot.com