quarta-feira, 31 de maio de 2006

Crime e Castigo na Livro 7, uma história de paixão pelos livros e lembranças que se encontram

Aconteceu algo incrível, na crônica anterior. Citei assim, de orelha, en passent, como dizem os franceses, um caso que Inácio França, meu dileto amigo, tinha contado. Era a história de um sujeito que ía à Livro 7, diariamente, lia um pedaço de um livro, deixava marcado e escondidinho, e no dia seguinte voltava. O dono da livraria, Tarcísio, ficou sabendo, orientou o vendedor a não importunar o leitor, e quando o rapaz terminou tudo, ganhou o livro de presente.

Pois bem. Eu não lembrava quem tinha me contado a história. Inácio me respondeu que foi ele mesmo. Por sua vez, Inácio não lembrava exatamente o nome do livro. Chutou o Crime e Castigo, do Dostoievsky, porque Inácio é o único amigo que conheço, que já leu Crime e Castigo inteiro, do crime ao castigo. Acho que Gustavo também leu, mas não tenho certeza, porque o velho potiguar anda mais caindo para o lado da poesia.

Pois bem de novo. Nos comentários dos meus poucos mas fiéis leitores, um sujeito disse apenas o seguinte:

“Sou eu quem li o Crime e Castigo na Livro 7. Ganhei de fato o livro de presente”

Acontece, meu amigo leitor, que isso não se faz. O comentário vem como “anônimo” (aliás, não sei porque cargas d’água, quase todos os comentários do meu blog vêm como “anônimo, eu não posso nem responder ou interagir com as pessoas). Meu amigo, por favor me mande um comentário com seu email, porque não é todo dia que a gente encontra um sujeito que leu Crime e Castigo, em pequenas goladas, no banco duro de uma livraria no centro do Recife, e ainda ganha o livro de presente do dono do estabelecimento.

Imagino sua liseira naquele período, seu amor aos livros, sua paciência, para ir diariamente (ou três vezes por semana, Inácio não me contou os detalhes). Como ficaria você, espiritualmente, psicologicamente, afetivamente, se chegasse por lá e o livro tivesse sido vendido? O que você teria feito da vida? Teria buscado outro Dostiévsky? Teria partido para outro russo, como o Maiakóvsky? Não, não, Maiakóvsky é poeta, sua praia parece ser o romance mesmo, e o romance denso. Teria passado para o Tchekov, Mandelstam ou Puchkin? Teria ficado amargurado, encheria a cara com aguardente barata, limão e espetinhos de caráter duvidosos? São muitas as minhas dúvidas, amigo, por favor não me mate de curiosidade.

Falo isso porque, dependendo do período, poderemos até ter nos esbarrado em meio aos labirintos de madeira da famosa livraria. Será que cheguei a folhear o seu livro? A sorte, amigo, é que nesta época, eu vivia num estado de liseira crônica, e o "seu" livro é um tijolão. Roubar Crime e Castigo, na minha opinião, já é muita cara de pau.

Acabei de pegar o meu exemplar de Crime e Castigo, comprado em fevereiro de 2002. Aqui vai uma confissão: parei na página 145. Estou até envergonhado por não ter encarado de frente um dos clássicos da literatura mundial. Você e Inácio me perdoem pela fraqueza, meu amigo. Às vezes, é preciso um pouco de raça, perseverança, para chegar ao deslumbramento de uma grande obra de arte. Fui realmente um reles leitor vagabundo. Como dizem os jogadores, ao perder um gol feito, eu "não estava num bom momento".

Acabei de dar vários telefonemas, desmarcando compromissos inadiáveis, uma ida ao Detran, entrega de uma máquina de fotografia ao próprio Inácio, além do pagamento de duas dívidas e a compra de alguns mantimentos caseiros. Também nada de cinema, ver os gols da rodada de ontem, coisas sobre a Seleção Brasileira ou eventuais telefonemas.

Agora estou seco de curiosidade para saber que cargas d'água esse Raskólnikov andou aprontando, a ponto de fazer um sujeito bater ponto em uma livraria, buscando seu quinhão diário de beleza.

Sinto muito, amigos, mas tenho 416 páginas pela frente. Vai ser uma luta e tanto.

Ao leitor desconhecido da Livro 7.

Notas:
Depois da crônica, retomei a leitura do Crime e Castigo e é algo estrondosamente belo, recomendo.
Voltei a atualizar o blog de poemas (www.quemerospoemas.blogspot.com)

segunda-feira, 29 de maio de 2006

Breve relato de inaugurações

Lembro de muitas inaugurações em minha vida. O primeiro livro que me emocionou, a primeira viagem sozinho, para outro estado, o primeiro trabalho como jornalista profissional, o primeiro amor, a primeira viagem para o exterior. Inaugurações que continuam pela vida, sempre em mutação. A primeira aula na Universidade, a primeira crônica, a primeira aula no mestrado, a primeira cana com o melhor amigo, a primeira faixa de campeão do meu time, enfim.

E na semana passada, presenciei a inauguração de vários alunos, que caminham comigo na Oficina da Palavra, na escola Kabum!, onde estou ensinando. Gosto muito cada vez mais disso: minha profissão agora é educador. A inauguração foi simples - fomos juntos à Livraria Cultura, aqui perto. Fomos caminhando, olhando os prédios do Bairro do Recife.

No caminho, esbarramos na bela exposição do Romero de Andrade Lima, no Espaço da Alfândega, homenageando 30 escritores. Os alunos olharam tudo com atenção e seguiram para a livraria. Quase nenhum deles tinha entrado naquele espaço. Olharam tudo, leram trechos de livros, vieram tirar dúvidas. Hoje, fui com o restante dos alunos, todos na faixa dos 16 aos 19 anos, moradores de bairros da periferia, aqui do Recife.

Fiquei lá em cima, bebericando um café, enquanto eles se espalhavam pelos espaços da Cultura. O que me encantou foi simples - ver muitos deles sentados nos duros sofás da livraria (acho que os sofás da Cultura dizem o seguinte: "podem ler os livros, mas aqui você não agüenta ficar muito tempo") - , absortos em leituras, fazendo anotações, perguntando preços. Uma hora de vivência com o universo dos livros.

Na volta, um deles veio me contar, com uma alegria sincera, um conto dos Irmãos Grimm, que acabara de ler. Foi falando do texto, foi me contando a história em detalhes, enquanto atravessávamos o Bairro do Recife. Estava eufórico. Chegamos à escola, e ele ainda não tinha terminado. Vai contar o restante depois. Outra aluna contou que está lendo um livro aos pouquinhos, com visitas diárias à Cultura. Ela vai, lê um capítulo e depois segue para casa. Veio me perguntar o que é "psicologia evolutiva", mas, apesar de ter muita gente de psicologia por perto, não sei o que é. Prometi resolver a questão na próxima aula. Aceito ajudas on line.

Então lembrei de uma história, acho que quem me contou foi o Inácio, se não foi, fica sendo. Dizem que Tarcísio, da gloriosa Livro 7, ficou sabendo que uma pessoa ía todos os dias, pegava um livro, lia, marcava e deixava escondido.Era, de certa forma, o "seu" livro, mesmo sem tê-lo comprado. O vendedor percebeu e avisou, mas Tarcísio disse que deixasse como estava. A pessoa leu o livro inteiro, em pequenos goles de alegria, em encontros silenciosos, certamente num temor contido de que o livro fosse vendido, e seus encontros terminasse. Ao final, Tarcísio deu o livro de presente, creio, não sei exatamente se deu, mas está dado, é a minha licença poética, quando a gente escreve, pode mudar o passado também.

Voltamos para a escola, eles me falaram da visita, dos livros, daquela inauguração. A alegria espantada era geral. "Dá vontade de levar todos os livros, professor", disse um aluno, repetindo a mesma vontade que tenho.

Uma aluna se encantou com um livro do Carlos Drummond, onde citava o Fernando Pessoa. Aproveitou a visita para copiar o poema inteiro. Tímida, não quis ler para a turma. Espero que esses alunos se encantem com o mundo da literatura, e façam seus vôos.

Lembro que cheguei ao Recife, em 1987, e trazia poucas coisas para começar a vida. Uma bolsa com as roupas e uma caixa, com meus livros fundamentais. Sem eles, eu não sairia de Fortaleza. Aliás, sairia sim, porque tenho uma alma de andarilho, mas ficaria capengando pela vida, até reencontrá-los. Percebi agora, escrevendo esta crônica, que isso foi há 18 anos, naquele intenso mês de julho. Por sorte do destino, fui morar em Casa Amarela, bairro popular e misturado, populoso e intenso. Definitivamente, sou um homem da Zona Norte do Recife, mas acho que isso não tem nada a ver com a crônica de hoje, que fala de inaugurações, estou misturando os assuntos, melhor parar por aqui.

domingo, 28 de maio de 2006

Máximas, mínimas e outros textos

Enquanto não coloco a crônica nova, segue uma pequena coletânea da Suffit Kitah Akenat, em "Máximas, mínimas e outros textos". Vai um agradinho extra, com trechos do adorável uruguaio Mário Benedetti.

"Podes viver só
mas não sobreviverás
sem ter outro eu".
(Suffit Kitah Akenat)


"O golpe que fere
demora a cicatrizar
se pensarmos nele".
(Ibdem)

"O rosto ilumina
todas as partes do corpo
que não conhecemos".
(Ibdem)

"O cágado é ágil
se virmos a felicidade
como grão a grão".

"Quando já viveste
nada é tão profundo e belo
como sobreviver".
(Ibdem)

Benedettianas...

"Me gustaria
mirar todos de lejos
pero contigo".
(In "Rincón de haikus")

"Sereno en mi confianza
confiado en que una tarde
te acerques y te mires
te mires al mirarme".
(Ibdem)

"Faço paisagens com o que sinto".
(Fernando Pessoa, no "Livro do Desassossego")

sexta-feira, 26 de maio de 2006

Uma pequena celebração, em meio ao caos

Foi ontem, nesses encontros ao acaso, desses que começam com uma proposta simples – uma cervejinha, depois de uma reunião de trabalho, antes de voltar para casa. De mansinho, foram chegando outros amigos, e em pouco tempo, éramos seis pessoas, num desses botecos fora de moda, no Bairro do Recife. A tarde deslizava suave, o sol estava exageradamente belo, quase sagrado, e tivemos aquela alegria de uma boa conversa.


Pode parecer simples, mas a boa conversa conversa é uma arte. A arte de sair do lugar-comum, falando das coisas mais simples. A arte de escutar com atenção, enquanto o outro fala. A arte de rir em conjunto, dizendo “eu não acredito”, quando alguém conta uma história inacreditável, mas verdadeira. A arte de não buscar a discussão, o certo e o errado, de não definir os culpados, de não apresentar a verdade gravada no mármore do hoje, mas agregar esperanças, pensar a vida, ir juntos numa espécie de bondade gratuita, de generosidade, uma partilha em que cada um dava um pouco de beleza ao outro.


Tivemos de tudo. Relembramos a época das “grandes liseiras”, quando a pessoa sai de uma festa e vai esperar, às três da manhã, o famoso “bacurau”, que é o último dos ônibus da face da terra, e não vem nunca. Ah, relembrei minha época de Casa do Estudante, quando minha mãe me levou de presente, uma caixa de Ypióka, e meu quarto virou um inferno de gente querendo "só uma dose". O juntar os trocados para um táxi. O casal que cancelou uma viagem para a França, para comprar um terreno, onde vivem até hoje. A história de um poodle que se jogou do oitavo andar. Descobri, alarmado, que os animais também se suicidam (sempre desconfiei que isso era artimanha somente dos homens, para sair de cena mais cedo..)


Uma das pessoas deu explicações as mais complexas e definitivas sobre as personalidades dos cachorros. Disse que o labrador é “mais evoluído espiritualmente” que os outros. Seu marido foi mais longe. Avaliou que o labrador “é o símbolo da compaixão”.


“É o que estou precisando”, completou o recém-chegado à mesa, com sua cara de monge, e se preparando para ir morar para os lados de Maragogi. Ele tem um labrador. Perguntei a idade.


“Quatro meses”, respondeu rápido. “Completa hoje”. Esse gosta mesmo do seu cachorro, pensei.


Um dos nossos contou que o filho ganhou um poodle “tão fresco, mas tão fresco”, que quando começou a andar, feriu as patas. Sempre achei o poodle cheio dos faniquitos, mas ferir as patas porque começou a andar, aí é demais.


“Minha mãe fez sapatos de crochê para ele”, disse sua esposa. Neste momento, perdi a rara oportunidade de solucionar uma dúvida existencial – a diferença entre crochê e tricô. Se alguém souber, agradeço.


Fiquei sabendo finalmente que tenho um jabuti, não um cágado. O jabuti é terrestre, come frutas e verduras. O cágado tem membrana entre as patas, e tem que ter água por perto. Informo que o lá de casa não tem membrana entre as patas.


Depois falamos sobre carros. Mas era sobre nossa paixão por carros velhos. Eu tive um Fusca 68, que terminou sua carreira afundando um Honda Civic, o casal amigo teve uma Kombi, durante muitos anos, o recém-chegado teve um Fusca 1970 e depois um Puma. Eu nunca tinha conhecido alguém que já teve um Puma, finalmente conheci.


Lá pelas tantas, já estava anoitecendo, estávamos contentes, rindo, sem invocar, para nossa roda, as violências do PCC, da Polícia, as mortes todas, a sensação ruim das últimas semanas, que abateu tanta gente, aquele sentimento de que o Brasil realmente vai ser esse eterno desencontro, essa estupidez, esse eterno jogar fora de riquezas - ou como diria o mestre Edinaldo Miranda, "esse país que tem desperciçado tudo, principalmente gente".


Não, estávamos no meio daquela boa conversa fiada, amena, apaziguadora. Ríamos de tudo, de nossas bobagens, amores, erros. Falávamos com ternura de nossas épocas difíceis, dando um sentido novo ao passado. O futebol não fez parte da pauta. Ninguém considerava seu time o melhor, sequer falamos da Copa do Mundo. Lá pelas tantas, duas amigas pegaram sandubas deliciosos, e partilhamos em pequenos pedaços.


Já era noite quando nos despedimos. Desconfio que fizemos uma pequena celebração, sem perceber


Para Rose, Sérgio, Rosana, André, Michela, e o Neto, que chegou depois.



quarta-feira, 24 de maio de 2006

Ponderações imediatas sobre os cajás

Começou a festa dos cajás no Recife. O fenômeno cíclico da generosidade nos oferece pés abarrotados. A árvore, da família das anacardiáceas, é muito freqüente nas várzeas e nas matas de terra firme argilosa do Amazonas, informa o digníssimo Aurélio, à página 317. Não estamos nas terras do Amazonas, mas aqui tem cajá pra chuchu. As folhas são compostas de muitos “folíolos oblongos”, “flores insignificantes e agregadas em inflorescências racemosas”. Não sei o que são “folíolos” e também não vou ficar consultando o dicionário a manhã inteira, mas discordo em um ponto: não existe flor insignificante. Agora: “agregadas em inflorescências racemosas”, é poesia pura, em pleno dicionário.

Aqui ao lado, onde moro, há duas gigantescas árvores, que espalham a fruta pelo chão, desde as primeiras horas. Às seis da manhã, é possível ver o senhor Rabaçã passar com seu andar leve, seu cigarro no canto da boca, catando atenciosamente o fruto que, segundo o Aurélio, é “uma drupa elipsóide amarela, aromática, muito sucosa e fortemente azeda, própria para refrescos e sorvetes”. Não sei o nome de Rabaçã. Sei que ele viajava muito, parecendo uma ave de arribação, e ganhou o apelido. Todo mundo só o conhece como Rabaçã mesmo, e ele é o pai de Raimundinho e Sprite. Também não sei o nome de Sprite, mas não sou tão burro, sei o nome de outros vizinhos, como Naná, que é Evaldo Gomes de Moura.

Não sei o que é uma elipsóide, mas no meio da minha burrice sobre a botânica e frutânica, lembro ao senhor Aurélio que ele esqueceu de uma coisa – o cajá é a fruta própria não apenas para refrescos e sorvetes, mas para boas lapadas de cana. Um bom e reluzente cajá pede, incontinente, como diz o mestre Davi, uma dose. Era a fruta oficial do nosso finado amigo Barrabás. A essa hora, Barrinha, como era conhecido, já teria consumido uns seis cajás, com a mesma quantidade de cachaça. Onde hoje passa Rabaçã, estava sempre Barrabás, rondando, com seu óculos de basculante, sem camisa, com uma eterna bermuda quase até os joelhos, à procura da fruta para “uma lapadinha”. De Barrabás, sei apenas que era Severino, e nada mais. O apelido Barrabás veio do teatro. Na Paixão de Cristo, ele se destacou no papel do citado personagem, e o nome seguiu para a vida.

Hoje, a fruta é a cara de Zinho, mais conhecido por aqui como “Garotinho”, nosso ex-taxista, que agora se dedica ao esporte nacional da Pitu. Também não sei o nome de Zinho, mas sei que ele joga um bom dominó e que bebe uma latinha da aguardente ao meio dia, outra à noite. Com a chegada da safra de cajás, o garotinho anda rindo à toa, mas está sem freios. À noite, aqui em Vital, pode ser visto bem vermelho, suado e com os olhos brilhando. É muito aperitivo, meus amigos, haja fígado e disposição para enfrentar o tranco. Do meu pequeno reduto, lanço a proposta: que o cajá seja a fruta oficial dos caneiros do Recife. E tomara que a safra não dure tanto, porque zinho já não é mais esse garoto todo.

Lembro que voltei ao Recife em 2000, depois de seis anos em São Paulo, e estava no tempo dos jambos. Meu deus, era jambo para tudo que era lado! Mas o que eu gostava mesmo era de umas ramagens avermelhadas, que o jambeiro solta, que formam um tapete pelo chão em várias ruas e calçadas. Acho uma espécie de delicadeza da natureza, enfeitar as ruas para a gente, isso tudo de graça. A beleza mata outras fomes.

Há a safra de mangas, quando meninos fazem a festa, e passam com sacos imensos, abarrotados da deliciosa manga-espada. Só aqui no meu quintal, caem em média de cinco a seis por dia, na época mesmo da safra. Dona Jane, a proprietária, já ameaçou cortar a mangueira umas três vezes, por motivos ainda não muito claros, e fiquei meio atormentado. Usei argumentos diversos, falei do efeito estufa, lembrei da importância das frutas, até que parti para o reles dramalhão mexicano. Fiz cara de choro e disse, num tom melancólico:

“Tudo bem, dona Jane, mas deixe para cortar a mangueira quando eu estiver viajando, porque vai ser muito triste”.

Acho que isso mexeu com ela. A árvore ainda está lá. Fui dar uma olhada pela janela do meu quarto. Está frondosa, cheinha de mangas, ainda verdes. Daqui a pouco, começam a cair, para a nossa festa. Não há nada mais delicioso do que acordar, pegar uma boa manga-espada no quintal, sentar num tamborete, sob o sol matinal, e comer a fruta, se lambuzando um bocado.

Mas confesso um medo secreto e não revelado: voltar de viagem e encontrar somente o cotoco da árvore.

Como diz o velho e bom Nana, “vai magoar”.

segunda-feira, 22 de maio de 2006

Perambulações matinais

Segunda-feira, sete horas da manhã. Espero o ônibus para ir à escola, dar aulas. Fico esperando, com meus livros, e pratico um dos meus esportes prediletos: olhar as pessoas, os anônimos, essa legião que desconheço, e que passa, todos os dias, indo para algum lugar. À minha frente, muito quieta, diria que num estado de serenidade pura, uma moça jovem, belíssima, uma beleza intacta, com aqueles cabelos macios que caem pelos ombros. É dessas mulheres que têm uma penungem nos braços, umas sobrancelhas intensas e o olhar doce. Segura seus livros e espera o ônibus. A beleza em excesso deve também atrapalhar um pouco sua vida. Há carros que buzinam e homens que passam, de bicicleta, com aquele olhar meio faminto para ela. Aquele olhar invasivo, que vai da cabeça aos pés. Eu só observo, em silêncio, até que ela pega o Dois Irmãos/Rui Barbosa, e vai para alguma aula.


Às sete da manhã, todos os ônibus para a “cidade”, como dizemos por aqui, estão lotados. É muita gente, todos os dias. Ainda tem besta dizendo que o povo brasileiro é preguiçoso. Acho que o povo trabalha demais. Espero sempre algum ônibus mais folgadinho e embarco. Do meu ponto até o Bairro do Recife, são uns 47 minutos. No ônibus, as crianças têm as pequenas introduções à gentileza. Sempre há alguém pedindo para segurar a bolsa do outro, sempre alguém se levanta para dar o lugar ao mais velho. Hoje mesmo, vi uma mocinha pedir para segurar os cadernos de um rapaz. Sem esse pequenos afagos, essas micro-ternuras, a vida seria mais difícil.


Ah, as conversas dentro dos ônibus... Aguço sempre os ouvidos, fico atento aos detalhes. Hoje, duas senhoras conversavam muito. Melhor: falavam alto, sem se importar com os outros. Pareciam estar na cozinha de casa, mas estavam no Sítio dos Pintos/Dois Irmãos. Lá pelas tantas, a conversa girou em torno de um cachorro do filho, creio. Foram uns dez minutos falando sobre o caráter do animal.


“Aquele cachorro é triste. Outro dia, cagou em cima do sofá!”, disse uma delas. Eu, claro, já simpatizei com o vira-latas.


Adoro esse jeito do pernambucano usar as palavras. “Aquele cachorro é triste”, não quer dizer que o animal é macambúzio, depressivo, quer dizer que ele, o cão, não vale nada. “Aquilo é um triste”, se usa para dizer que o camarada é uma praga do Egito. “Eita bicho febrento” se usa para alguém não muito agradável. “Isso é que é uma miséria”, se diz quando o sujeito é muito, mas muito ruim de bola.


Sim, mas onde eu estava mesmo? Ah, no Sítio dos Pintos/Dois Irmãos, escutando admoestações sobre o cão. Informo que ali, depois do Hospital da Restauração, surgem os primeiros assentos livres, se der sorte, dá para descolar uma janelinha. Sou amante das janelas e do vento. É melhor para reparar as pessoas e criaturas, ver o bailado matinal de tanta gente, indo para tantos destinos diferentes, numa cidade que amanhece a mil por hora.


O ônibus perambula ali pelo bairro de São José, passa pelo Forte das Cinco Pontas, o suficiente para revelar a fulgurante presença dos vigilantes, muitos com aquela cara amarrotada, uns porque dormiram demais, outros porque ficaram atentos à madrugada.


Vou chegando ao Bairro do Recife, essa pérola que o Recife maltrata. Desço do ônibus, caminho um pouco e vou chegando à escola, numa rua com nome lindo e redundante: Rua do Bom Jesus. Jesus, pelo que sei, nunca poderia ser ruim. No caminho, já tem gari esfregando com raça as ruas do Recife. Flagrei um mijando atrás de uma árvore, ele me olhou meio sem graça. Tem gente ainda se espreguiçando, uns motoristas de táxi com aquela cara de tédio, já na segunda-feira.


Chego à escola cheio de livros, fotocópias, o plano de aula etc. Sou informado que me enganei com o calendário, minha aula não é hoje, mas na segunda-feira que vem.


Então pego um cafezinho venho escrever minha cronicazinha, debaixo de um toró medonho. É tanta água, que tenho medo de terminar o texto com o Recife fazendo glub glub glub.

sexta-feira, 19 de maio de 2006

Para não cairmos na reles histeria

Esta semana tive uma discussão pesada com um grupo de amigos, todos de classe média, e com acesso farto às informações sobre o Brasil e o mundo. Lá pelas tantas, entre uma cerveja e outra, surgiu o tema do PCC, ou Primeiro Comando da Capital. Para quem não sabe, esta semana, a organização criminosa tomou conta de São Paulo, e em dois dias, fez estragos feios na vida brasileira: 180 ataques a prédios públicos, 56 a ônibus e 8 a bancos. Mais de 80 mortos, muitos deles policiais, e motins em 73 dos 105 presídios do estado, com 351 reféns.

O placar ficou assim: dois amigos achavam que a Polícia deveria matar todo e qualquer preso em rebelião, não importando a quantidade. Podia ser 20, 30, 40 mil presos. Rebelião? Bala. Pou! Pou! Um avaliou que era preciso matar “somente” os líderes. O quarto defendia que chegassem também as famílias dos presos. E não estavam brincando.

Do lado de cá, tentando pensar um pouco nessa coisa chamada “estado de direito”, ponderando que a eliminação física dos caras não vai resolver nada, apenas gerar mais violência, ficamos eu e Ivanzinho, mas Ivanzinho trabalha no Centro Luis Freire, uma ONG que defende os direitos humanos, então sua visão crítica já era esperada.

Eu cada vez ando mais alheio a esses debates acalourados, em voz alta, com posições muito definidas e conceitos estabelecidos. Mas teve uma hora que não deu para ficar só escutando a linguagem da matança, que se você tiver um filho você vai sentir na pele, que bandido tem que morrer mesmo, que estão dando muita folga, que esse negócio de direitos humanos só defende bandido, enfim.

Entrei na discussão e relembrei um ano fundamental em minha vida: 1997.

Foi quando comecei a trabalhar na redação do Diário Popular, hoje Diário de São Paulo, cobrindo Polícia. Foi quando conheci o jornalista Josmar Josino, que considero o maior jornalista do Brasil, hoje.

Alheio a entrevista, incapaz de dar uma entrevista, Josmar recusa sempre participações em debates na TV, quer ficar no anonimato mesmo. É o outro lado da moeda do jornalismo médio brasileiro, que adora aparecer, que tem a vaidade a mil, os mauricinhos da mídia, que se acham o máximo porque trabalham na Folha de São Paulo, na Globo, e por aí vai. Lamento, mas são muitos.

Pois foi no anonimato, entrando e saindo de prisões, que Josmar começou a entrevistar os caras do PCC, quando o troço ainda estava surgindo. Lembro da primeira vez que ele chegou à redação com o “Estatuto do PCC”. Muitos riram daquele “exagero”. Josmar começou a entrevistar os familiares dos caras, as esposas, os pais. Ano passado, ele lançou um livro sobre o Primeiro Comando, intitulado “Cobras e Lagartos” (editora Objetiva), que hoje é nome de novela. As cobras e os lagartos das prisões são bem mais barra-pesadas que os da TV, garanto.

Sugiro aos candidatos à histeria, aos que defendem a eliminação de todo e qualquer preso em rebelião, a leitura do livro. O PCC não surge do nada, meus amigos. Surge logo após o massacre do Carandiru (2/10/1992), quando 111 presos foram fuzilados. O governador era Luis Antonio Fleury, hoje deputado federal e defensor do estado de direito. O comandante era o coronel Ubiratan Guimarães, que se elegeu deputado com o simbólico número 1111. Voilá.

A idéia dos caras era simples: se mataram 111, vão entrar em outros presídios e matar mais gente. “Eles resolveram se organizar para evitar um novo massacre”, diz Josmar, que atualmente trabalha no Jornal da Tarde.

O PCC nasceu também de uma realidade nas prisões brasileiras que a classe média histérica se recusa a olhar ou aceitar, e talvez até ache normal. Maus-tratos, surras, espancamentos, banho frio nas madrugadas (para presos com tuberculose), presos com cinco anos detrás das grades, sem direito a visita, outros confinados em solitárias por várias semanas, sem ver o sol. Nas cadeias brasileiras, a lei não chegou. O Aníbal Bruno, aqui ao lado, é um inferno pegando fogo.

O problema é que o negócio cresceu, e os caras descobriram que também poderiam se organizar para o crime, e o PCC virou uma máquina estruturada, com funções, obrigações, atribuições e missões. “Os caras cumprem ordens como se fosse um fanático religioso”, me conta Josmar.

O PCC tem estatuto, arrecadação mensal (mensalão, versão presídio), o “arrecadador” (o Delúbio deles), tem solidariedade com os presos fodidos, os que têm família passando fome, do lado de fora, tem advogado e tem muitas outras coisas que não sabemos.

Pelos cálculos de Josmar, dos 140 mil presos de São Paulo, 95% estão filiados ao PCC. Do lado de fora, cerca de 10 mil homens fazem o que o Partido mandar. Para “eliminar” o problema, como querem meus amigos, teríamos que matar mais ou menos 130 mil pessoas.

As notícias não chegam direito, mas a Polícia de São Paulo está dando sua contribuição para essa eliminação. Já foram mortos cerca de 120 “suspeitos”. Todos estão sendo enterrados como indigentes, no cemitério de Perus, do mesmo jeito que a ditadura fazia com os presos políticos.

Pior: o governador Cláudio Lembo negociou o comando do PCC o fim das rebeliões. Vão entrar TVs para a Copa, e o número de visitas vai dobrar. É ano eleitoral, certo?

Em 2 de novembro de 1992, o massacre do Carandiru não foi noticiado. Era véspera de eleição.

Estamos no famoso beco sem saída. Meu medo é que entremos na reles histeria. É quando escolhemos a pior saída.

Para Josmar, que me avisou em 1999: os caras vão dominar tudo.

quinta-feira, 18 de maio de 2006

Um cronista e suas teorias malucas

Amados leitores, me desculpem a demora em atualizar o Blog, mas é que andei ocupado em tentar consertar o mundo, e o mundo está muito trabalhoso. Tentei fazer remendos, botei umas soldas aqui e ali, conversei com uns e outros, mas cheguei à conclusão que é um projeto muito grande, este de querer ajeitar o mundo. Cansei logo aos quinze minutos do primeiro tempo. Olhei para um lado, para o outro, e cheguei à conclusão que é melhor mesmo escrever minhas cronicazinhas, que pelo menos eu fico mais feliz.

Pois bem. Ontem no glorioso Tepan, contei ao César Maia que estou escrevendo um Livro das Teorias. Ele quis saber detalhes. Citei exemplos.

Exemplo 1: tenho uma teoria de que quanto menos o sujeito entende de futebol, mais alto ele fala. Na mesa, estavam Gilberto e Giba, dois pernas-de-pau em se tratando de futebol. Eles não entendem uma grama de futebol, e não falavam na mesa - urravam para o Tepan inteiro. César Maia concordou comigo.

Tenho outra teoria: a de que quanto mais o sujeito está num carro novo, espaçoso e com ar-condicionado, menos tolerante ele é.

Você pode fazer o teste. Vá pelas ruas do Recife. Vem aquele velhinho numa Brasília 1976 ou 1977, caindo aos pedaços, o pára-choque amarrado com um barbante, com IPVA vencido, pneu careca, retrovisor rachado pelas intempéries da vida. Você quer entrar, ele pára de longe, faz sinal e diz para você passar. Melhor que isso: ele sorri, antes de engasgar o carro, e sair, mansamente, achando que não adianta ter pressa, o melhor é sair na hora certa.

Agora, lá vem um Honda Civic 2006, ar-condicionado, CD, DVD, Karaokê, banheira, frigobar, forno de microondas, sala de lazer, churrasqueira, piscina, quadra de tênis, o escambau. O sujeito não abre nem a pau, tranca o cruzamento, bota pra foder na buzina. Pior que isso: está sempre de mau humor por algum motivo que nem Freud explica.

Outra teoria: quando a gente entra no mestrado, descobre que é burro.

Aconteceu comigo e com vários amigos. Você é um bom profissional, dá conta do recado, lê seus livrinhos, vai ao cinema, tem uma base crítica, não é nenhum babacão, mas resolve fazer o mestrado. Na primeira semana, você descobre que o mundo está discutindo coisas muito mais interessantes, que suas leituras são magricelas, que você é meio burrinho mesmo. A sorte é que no segundo semestre, você já leu que só um camelo, começou a falar coisas interessantes, e não se acha mais tão burrinho assim.

Teoria número quatro: crítico de cinema vê o filme que você viu, mas é outro filme.

Tirando a Luciana Veras, do Diário de Pernambuco, que gosto muito, crítico de cinema parece que vê sempre outra coisa. Quando a gente vê um drama humano, um sofrimento para repensar a vida, o cara acha que Holywood está em crise, e não acerta o paradigma de uma estética existencialista. Quando o filme é aquela coisa cabeça do início ao fim, e você sai do cinema com dor de cabeça, querendo tomar umas para relaxar, o crítico entende que “a estética inovadora deu um novo pulso à narrativa, optando pela pluralidade”. Dá vontade apenas de dizer: é ruim, heim?

Outra teoria: cachorro é a cara do dono.

Podem olhar. Vem um gordinho, o cachorro é gordinho. Vem uma madame empiriquitada, o seu poodle parece uma boutique.Vem um sujeito meio vira-lata, ao seu lado estará um vira-lata.

Teoria seis: tem gente que só vai ao cinema comer pipoca com a boca aberta.

Eu realmente não entendo. Assisto vários filmes aqui em casa, nunca vou ali, fazer uma pipoquinha. Nenhum amigo que assiste filme comigo tem fome de pipoca. Mas você chega ao cinema, senta, e lá vem o sujeito, com a namorada, e uma saca de pipoca. Não, não é um saco, mas uma saca, de 12 quilos. O sujeito vem e senta ao seu lado. O filme começa. Ele joga as pipocas na boca e amassa, com a boca aberta. Srec, srec, srec. O cara não vai ao cinema para ver um filme, mas para saciar uma tara íntima de comer pipoca no escuro, com a boca aberta, coisa proibida em casa. Essa teoria eu detesto, mas é verdade.

Outra teoria: em casamento, padre só fala em traição.

Não sei qual a formação atual dos padres brasileiros, mas eu, que moro ao lado de uma igreja, onde são realizados muitos casamentos, posso dizer – padre tem uma tara punitiva e complexa pelo tema da traição. No sermão, eles acham que a humanidade não pára de se comer. Pode ser verdade, mas ele precisa dizer isso justamente na hora em que pergunta se o sujeito vai ser fiel na doença e na pobreza, na tristeza e na angústia?

Teoria oito: do jeito que as coisas estão indo, o PT vai acabar tendo o PFL como vice.

A briga pelo poder ficou tão maluca, é tanta foiçada de tudo que é lado, que daqui a uns dias, vamos encontrar esta pérola: Para prefeito de Bezerros: Zeca bigode (PT). Vice: João Matuto (PFL). Meu medo maior, no entanto, é um casamento de Sísifo com a pedra. para presidente: Lula. Para vice: FHC.

Eu garanto que vou me mudar para a Turquia, e torcer pelo Talagharesa.

Bem, vou encerrando por aqui. Tenho mais 36 teorias já anotadas no meu caderno, e não quero encher a paciência dos meus leitores com minhas besteiras, que parecem intermináveis.

segunda-feira, 15 de maio de 2006

Aproximações, ou afinidades afetivas

Não sei exatamente de onde veio isso, talvez depois de uma manhã inteira dando aulas para jovens que moram em bairros periféricos do Recife, na tal “Oficina da Palavra”. O fato é que aprendo muito com os alunos, acho que acontece o fenômeno da troca. Sei algumas coisas, passo para eles, em troca recebo novos olhares sobre as coisas e o mundo. Isso me deixa muito cheio de idéias, quase todas sem importância nenhuma para a humanidade.

Na volta, entro no Unibanco para ver se um cheque caiu, e tem um camarada na porta do banco, numa cadeira de rodas.

“O senhor pode me dar um minuto de sua atenção?”, pergunta.

Acontece que nunca é um minuto, e já sei o assunto – doação para alguma coisa que está faltando. E era mesmo. Ele tinha uma medalha no peito, e estava fazendo campanha para comprar outra cadeira de rodas, certamente mais confortável.

“Rapaz, estou liso que só um gambá. Se o dinheiro cair, te ajudo”, respondi. Não deu tempo ele dar mais detalhes sobre o processo da compra da tal cadeira. Agora mesmo, enquanto escrevo esta crônica, me vem uma gravíssima dúvida existencial – quanto custa uma cadeira de rodas?

O cheque não caiu. O saldo da conta era R 0,58. No bolso, eu tinha outros R 0,65 e um vale A. Dar um vale A para o sujeito que quer comprar uma cadeira de rodas nova é covardia.

“Deu zebra. Meu dinheiro ainda não caiu”, disse, antes de caminhar para casa, ali pela 17 de Agosto.

E o tema ficou latejando na minha cabeça – aproximações. Mas o que diacho é isso, pensei. Será o tema da minha próxima crônica, chegando sem pedir licença, enquanto avanço rumo ao Poço da Panela, com meu passo de camelo?

Então veio um carteiro suado, passou por mim levando as cartas para alguém, isso quase uma da tarde. Caiu a ficha. As aproximações que eu vinha ruminando em silêncio eram uma espécie de afinidade afetiva. Há muitos e muitos anos, tenho uma simpatia ancestral pelos carteiros, uma raça que anda. Eu gosto muito de gente que anda. Gosto mais de gente que anda do que gente que corre, apesar de ter uma frustração, que é não ter sido maratonista.

Resolvi passar no Hiper Bompreço, para olhar os livros, o que chega a ser patético. O sujeito com R 0,65 no bolso vai a um supermercado olhar livros! Então veio a segunda aproximação (ou afinidade) da tarde – fui olhar as TVs, fingindo que iria comprar algo, mas somente para ver os gols da rodada de ontem, do Brasileirão, e a lista dos jogadores brasileiros convocados para a Copa. Outros malandros estavam lá, gente de bem, fingindo olhar a marca da TV, mas esperando os gols e a lista do Parreira. Em poucos segundos, surgiu uma mesa redonda, e respiramos aliviados – ele convocou o Rogério Ceni para o gol. Os cronistas do supermercado reprovaram em peso a convocação do Ricardinho, que "não é jogador de seleção". Eu, que não sou de ferro, também desci a lenha.

Passo no setor de DVDs e vem a aproximação/afinidade número três. Estão exibindo um show antigo do velho Luís Gonzaga. Acho que esse negócio de aproximações é uma forma simples de dizer as coisas que gosto: gente que leva cartas, a escalação do nosso selecionado canarinho, Luís Gonzaga cantando, com Dominguinhos na sanfona. Sinto um remorso muito antigo por nunca ter visto Luis Gonzaga tocando ao vivo.

Depois de enrolar, saio do supermercado sem gastar nada. No caminho, tem uma padaria, lembro que o café expresso custa R$ 0,60. Paro, tomo um baita de um café expresso no calor “arrombante” do Recife, como diz a velha Grão de Bico, e continuo a jornada. Pocot, pocot, pocot, pocot. Percebo outra aproximação – café. Ainda tenho R$ 0,05 no bolso, dá para uma bala.

Chego em casa suado, cansado, e resolvo dar uma geral na casa (por conta da grave crise financeira deste que vos escreve, no primeiro semestre, tive que cancelar provisoriamente os inestimáveis serviços quinzenais da gloriosa dona Fátima). Mandei ver. Do lado de fora, Zé Carlos, nosso bêbado de estimação aqui do Poço, dava seus gritos lancinantes. Ele é aquele típico bêbado esculhambado, que fica de calção, descalço, errante pelas ruas. Ele chega aqui na frente de casa, dá um grito e depois completa:

“Samarão, iurruuu uêeeee iau uôoool!’

É uma língua estranha, mas entendo tudo. Às vezes eu saio, e dou uma moedinha para ele bicar mais um pouco, mas gastei todo o orçamento no café. Tinha só o vale A, mas é covardia dar um vale para o cabra beber. E R$ 0,05 não dá nem para meia cana. Finjo que não estou em casa. Ele grita, grita, até cansar. Depois vai embora, perturbar outro.

Além disso, iria aparecer um sujeito politicamente correto para reclamar:

“Tu tem coragem de dar o passe para um bêbado, e não dá para o cara numa cadeira de rodas?”

Não posso fazer nada. São as tais afinidades afetivas.

Além do mais: quem disse que o sujeito da cadeira de rodas não vai entornar todas e errar o caminho de casa?

quinta-feira, 11 de maio de 2006

Pequena lembrança de longas conversas

Recebo um email do Gustavo, meu interminável amigo, falando de algo espetacular – acaba de ser lançada,em espanhol, uma edição daquelas tipo “obra completa”, do nosso amado argentino Antonio Porchia, que sempre cito aqui neste espaço. Mais que isso: o livro traz um DVD, com a voz do Porchia, lendo suas coisinhas, suas pequenas frases que encantam, que abrem horizontes. Pena que dificilmente este lançamento chegue ao Brasil. Demoraremos a escutar coisas do tipo “Hace mucho que no pido nada al cielo y aún no han bajado mis brazos”, ou “Donde hay una pequeña lámpara encendida, no enciendo la mía”.

O email chegou num momento em que estou relendo uma encadernação puída, sem data, mas que deve ser de uns cinco anos atrás, somente com material impresso sobre o Porchia e a interlocução seu grande amigo, o poeta Roberto Juarroz.

A amizade de Porchia e Juarroz é algo fascinante, e convém algumas linhas, num tempo de tanta velocidade, afazeres, onde há tantos encontros para falar de tudo, do futebol, passando por alguma mazela amorosa, questões de relacionamento, sacanagens no trabalho etc. Tudo, menos do essencial, disso que se chama mistério, ou simplesmente o mais profundo da alma, sei lá. Acho que sempre tive isso na minha amizade com o velho Gustavo, este espírito de crença no humano e afirmação da vida, e cada vez que nos aquietávamos para longas, intermináveis conversas, deixávamos os assuntos do cotidiano em banho maria. Acho que nos dedicávamos a essas conversas do espírito, como faziam Porchia e Juarroz.

Juarroz, esse poeta imenso, diz que uma das coisas mais apaixonantes da vida poética são os encontros, especialmente os não-buscados. “Como o amor, os encontros não buscados são sempre os mais frescos”.

Ele já tinha visto o velho Porchia andando pelas ruas de Buenos Aires. Ficava observando de longe seu jeito manso, absorto. De vez em quando, o velho Porchia se abaixava e pegava um papelzinho na rua, “talvez pensando que encontraria o segredo, a chave”. Depois de saber que Porchia tinha publicado um pequeno livrinho de aforismos, o “Voces”, Juarroz resolveu “investigar” onde vivia aquele homem. Encontrou a casa modesta onde vivia, na periferia da capital. O primeiro encontro foi simples – pareciam velhos amigos.

“Um ser muito humilde em seu aspecto, de estatura pequena, de voz indescritível. Essa voz tem que ser escutada”, lembraria Juarroz, muitos anos depois. Para ele, escutar a voz de Porchia era a possibilidade de escutar o profundo, o mais profundo.

Os dois se tornaram amigos até o fim da vida. Juarroz fazia uma peregrinação à casa de Porchia, do outro lado da cidade, somente para o mistério do encontro, da conversa, do mergulho na alma humana. “Seu modo de vida era extremamente humilde, saía com uma bolsinha a comprar suas verduras. Mas o caracterizava a generosidade”, diz Juarroz. Ele jamais esqueceria a oferenda do velho amigo, que sempre o recebia com pão, vinho, queijo e salame. As conversas começavam às oito, nove da noite, e seguiam até o amanhecer. Lá pelas duas da manhã, Porchia puxava uma maça do bolso e dava de presente a Laura, esposa de Juarroz, que adorava maçãs. Sempre assim, a cada encontro. A maçã parecia ser um detalhe – “não esqueci de você”.

Juarroz passou a chamá-lo de Dom Antônio. Estava sempre cuidando do seu jardim, e neste momento, conseguia “escutar” as frases que fizeram parte de sua obra. Viveu sempre à margem dos circuitos literários, academias etc. Foi um homem simples e bom, que amou uma "mulher da vida", mas se afastou, quando soube que poderia causar problemas para ela.

Uma vez, uma grande revista de Buenos Aires pediu alguns textos, que ele entregou de imediato. Com a demora na publicação, Porchia perguntou o que estava acontecendo. Falaram de “alguns problemas de gramática”. Ele foi à revista, pediu os originais de volta e foi embora, sem alarde. Era sempre assim.

“Era um ser de uma humildade exemplar, mas, ao mesmo tempo com essa coisa inconvertível, imodificável, que nos faz pensar nas árvores centrais, aquelas em que o bosque inteiro parece se apoiar”, diz Juarroz.

Ao se despedir, Porchia sempre dizia:

“Tratem de estar bem”.

Segundo Juarroz, era quase um pedido, algo assim como “uma apelação infinitamente terna e delicada: um chamado à nossa possibilidade, apesar de tudo”.

Muitas vezes, acrescentava:

“Acompáñense”.

Algumas frases de Porchia iluminam meus dias, outras iluminam a vida inteira. “Um amigo, uma flor, uma estrela não são nada, se não pões neles um amigo, uma flor, uma estrela”.

Há outra frase maravilhosa dele - "Quiero tu bondad, pero no sin una sonrisa en tus labios".

Bem, vamos lá, tocar a vida...

terça-feira, 9 de maio de 2006

Entrando numa fria

Tudo bem que gosto de emoção, mas às vezes me meto em cada uma que vou dizer. O fato é que outro dia eu tinha dado um pulinho no Posto de Saúde da Família do Poço da Panela, para conversar algo com a médica, a gloriosa doutora Bebete. Olhei o jardim, me pesei, bebi água, falei com os conhecidos, e quando iria falar com Bebete, ela veio toda serelepe.

“Vamos precisar de Naná. Tem que levar um paciente com urgência para o Getúlio Vargas”.

Os hospitais do Recife tudo tem nome de gente famosa. Getúlio Vargas, Otávio de Freitas, Barão de Lucena, Agamenom Magalhães. Vai minha sugestão para os próximos: Hospital Manuel Bandeira, PSF Carlos Pena Filho, Unidade de Emergência Mauro Mota, Maternidade Dona Olegarinha etc.

Pois bem, chamei Naná, que atendeu prontamente. No Posto, ele foi informado que teria que levar um senhor idoso, negro, de andar arrastado, para ser internado no Getúlio.

“Tu vai comigo, Sama?”

Não tinha nenhum compromisso naquela hora, e, num átimo, como diz Davi, resolvi acompanhar meu amigo. Vai que o Jacaré tem um problema no traslado, pensei. Acomodamos o velho lá atrás e seguimos.

Nana me deixou na rampa do hospital.

“Vai levando ele, que vou estacionar o carro”, disse meu amigo gordinho.

Botei jacaré numa cadeira de rodas e levei para o atendimento. Aquela grosseria de sempre, aquela indelicadeza básica. Lá pelas tantas, me deram a ordem para entrar no corredor, a segunda porta à direita. Mandei ver. Entrei com Jacaré e tudo numa enfermaria. Jacaré ficou na cadeira me olhando com cara de leso e descobri que tinha acabado de entrar numa senhora fria.

Uns quinze minutos, chega um médico, muito jovem e bonachão, classe média-alta de poucos sofrimentos, faculdade paga pelo papi, carrinho do ano etc - pergunta qual o problema do Jacaré, ele mal fala, mas aponta para a barriga, tinha uma sonda, aquelas coisas bem fodidas mesmo.

“Olhe, meu amigo, o seu pai não está nada bem”, diz o médico, me olhando com uma falsa seriedade.

“Não é meu pai não, amigo, é uma pessoa da comunidade”, respondo.

“Sei”, diz ele, achando muito feio eu renegar o próprio pai.

O médico dá umas cutucadas em jacaré, passa um remédio, acho que até deu uma injeção. Na consulta, o celular tocou duas vezes, ele atendeu, acho isso o fim da picada e da ferroada. Enquanto isso, Naná me procurava, do lado de fora.

“Visse por aí um cara bem cabeludo passar com um negão velho, numa cadeira de rodas?”

Ninguém viu. Depois da consulta-relâmpago, Jacaré foi liberado. Não tinha vaga para a cirurgia, ele teria que esperar uns seis meses e meio. Voltei com ele na cadeira de rodas. Vamos levar o sujeito para casa, combinamos eu e Naná.

“Tu mora aonde, Jacaré?”

Ele não fala coisa com coisa, parece cheio dos paus. Pior. Eu, pela minha experiência no ramo, diria que Jacaré estava mamadinho. Passamos no Posto de Saúde, para saber o endereço. Estava fechado para o almoço.

“Parece que ele mora em Santana”, diz Nana. Então saímos, eu e Nana, à procura da casa de Jacaré, no bairro de Santana. A Kombi vai andando devagar e escutamos aquele baque:

“Pei!”

Jacaré levou uma queda do banco que quase morre. Ficou estirado no chão da Kombi, com os olhos vesgos.

“Naná, acho que ele morreu”.

Nana pára a Kombi, aperreado, pede para eu não brincar. Vamos dar uma olhada em Jacaré.

“Jacaré, Jacaré, tás bem”, dizemos, cutucando a fera.

“Vão tomar no cu”, responde ele, perdão leitores, mas foi o que ele disse, não vou ficar com alisado, a vida na rua é cheia de palavrões mesmo.

Começamos a circular. Paramos em vários botecos, chamávamos o povo e perguntávamos:

“Ei, algum de vocês conhece este senhor?”

As pessoas se aproximavam lentamente, temendo encontrar um cadáver. Ninguém sabia onde morava Jacaré. Isso já caminhando para duas da tarde, eu e Nana com fome, cansados, e ainda sendo esculhambados a todo instante. Que caralho.

Até que Nana lembra de uma casa em que Jacaré trabalhou como vigia, há muitos anos. A alternativa é passar por lá, a empregada informa mais ou menos onde é a tal casa. É a última tentativa. Rodamos, rodamos, até que chegamos numa vila cheia de labirintos. Vamos eu e Nana segurando Jacaré, para ele não cair.

“Me solta, seus viado, seus corno”, diz Jacaré, irritadíssimo.

Aos poucos, os vizinhos vão reconhecendo.

“Aparecesse, né, safado?”

Nos apontam a casa dele. Batemos palma. A esposa vem buscar Jacaré.

“Ô meu véi...”

Ela estava mais bêbada que ele. Jacaré nos esculhambou pela derradeira vez, entrou, fecharam a porta e acabou a história.

Eu e Nana voltamos rindo. Mais uma para nossa coleção de frias. Almoçamos galinha a cabidela em seu Antônio, ali em Santana mesmo.

domingo, 7 de maio de 2006

De volta à vida...

Descobri que estava recuperado da virose barra pesada quando acordei logo cedo, no domingo, e dei um pulo do colchão, pensando na pelada dos Caducos. Mas o corpo me deu uma cotovelada e avisou que seria um exagero. Fui lentamente para o campo de Seu Abdias, de sandálias havaianas, feito moleque adulto malamanhado, e assisti aos vários jogos de nossa gloriosa pelada. Tive que quebrar o galho como juiz, na última partida, e não fiz feio. Apliquei amarelo em Daí (uma solada feia em Noé) e outro em Xande (que estava me esculhambando direto).

Depois, casa de tia Flocely, no Cabo, para matar saudades da amadíssima criatura de cabelos brancos. Fiquei de longe, porque não queria passar nenhum vírus, mas na hora do almoço ela me intimou a ir para a mesa. Recusei, alardeando que ela poderia pegar a virose etc.

“Pode vir, que eu me garanto”, disse ela.

“Não, tia, melhor não. Essa virose é pra lascar".

“Eu tenho o corpo fechado, rapaz”.

Nem assim. São meus cuidadinhos. Ela está com seus 79 anos.

Cheguei em casa à tardinha, olhei a confusão dos muitos livros ao redor do colchão, os DVDs, cadernos. Pela primeira vez, desde o começo de maio, me vi sozinho em casa, um domingo à tardinha, recém-convalescente.

E se de um lado me senti mais forte no corpo, aquele gosto bom da cura, surgiu um desamparo, uma tristeza, talvez uma nostalgia de coisas vividas e não vividas, apesar de ser tudo muito quieto, sem agitação, sem vontade de procurar alguém para contar algo e tentar me consolar. Uma tristeza, só isso, essas coisas da alma - e quem tem alma sabe quando dói.

Dei uma geral nas coisas, arrumei a confusão, tomei um banho e fui devolver um filme que não assisti, intitulado estranhamente “De tanto bater meu coração parou”. Não sou de ferro: levei uma pipoca no bolso. Entreguei o filme e fui para a praça de Casa Forte. Reparei numa moça muito bonita, sentada num banco, mas com excesso de maquiagem. Parecia esperar alguém e o olhar era triste. Talvez estivesse triste pelo contrário: não tinha ninguém para esperar. Dois bancos depois, um desses moradores de rua ou de praças. Fiquei no banco seguinte, olhado a paisagem, que é linda.

Então me pus a reparar nele, no meu amigo vagabundo, de soslaio. Estava de boné, um daqueles bonés encardidos, uma camisa encardida, um bermudão encardido. Não sei se sua alma estava encardida, creio que não. Há tanta gente limpa e cheirosa que leva podridões por dentro...

Então, ele puxou timidamente um saco de plástico, e começou a comer um pão com qualquer coisa dentro, à seco mesmo. Não tinha um reles Kisuco para adoçar a vida. O detalhe é esse: ele comia com uma rara elegância, sem pressa, mastigando bem aquele quase nada, olhando para as plantas na água, para algum vazio ao redor. Parecia estar pensando em algo muito distante. Eis o ser humano, pensei, sentado numa praça, noite de domingo, comendo seu pão duro, com a ajuda somente da saliva. Tem gente que parece ter somente sua própria água como amparo: saliva e lágrima.

Comi minha pipoca, joguei algumas para os peixes, fui embora, deixando meu amigo jantando sozinho. Passei numa barraca, pedi uma água de côco e bebi devagar. A barraca estava quase fechando, quando chegou um camarada com cara de hippie (olha quem fala).

“Zeza, estou te devendo um e cinqüenta. Segura aí, que o Santa está muito ruim, e quando melhorar, te pago”.

Zeza fez um muxoxo.

Voltei chutando pedrinhas. Voltei sem medo de assalto, porque não tinha um tostão no bolso. Quase em casa, encontrei dois bebinhos aqui do Poço, tropeçando um no outro e falando alemão. Me pediram uma moeda para encerrar a noite. Como falo alemão perfeitamente, cutuquei tudo, encontrei vinte centavos, uma merreca.

“Essas moedinhas vão te trazer muita felicidade”, disse o bebinho.

“Imshalah”, disse eu, invocando o velho Daniel Raton, antes de entrar em casa.

quinta-feira, 4 de maio de 2006

Trinta e sete anos + um dia

Acordo às 5h32 da manhã, tenho 37 anos e mais um dia, resolvo seguir as ordens da doutora Bebete – vou dar uma caminhada para manter a forma, já não sou esse menino todo, só a pelada do domingo não resolve. Passo na frente da casa de Lucidélia, ela dá o grito lá de dentro, volto, ela pede para esperar. Está indo para o Hospital Português, fazer mais uma sessão de radioterapia. Lucidélia teve câncer na mama ano passado, fato inclusive relatado aqui, mas está driblando a doença como uma Garrincha da vida. Fez quimioterapia, os cabelos caíram, sofreu como um bicho, e agora está na fase mais suave.

Vamos caminhando para a 17 de Agosto. Ela vai levando a revista Caras, edição novíssima, de abril de 2005. Charles e Camilla estavam casando, e difícil é saber quem é mais sem graça dos dois, como dizemos por aqui, eles "se merecem".

“Levo para ler durante a radioterapia, depois deixo lá”, diz Lucidélia.

Pergunto quantas sessões ela vai ter que fazer.

“Trinta”. Faz a conta nos dedos, hoje é a quinta.

“Daqui a pouco estás boa”, digo.

“É, mas vou passar cinco anos de acompanhamento, até dizer que estou curada”.

“Tu acha ruim, viver mais cinco anos?”

Ela sorri, vamos conversando água, pego a revista, sorrateiramente arranco a página que é só de frases, eu e minhas obsessões. Gosto logo de uma: “O mais elevado nível da imaginação é surpreender-se com o esperado”, do Rudolf Kassner, filósofo tcheco. Vai para minha coleção.

Vem o Alto Santa Isabel, ela entra, me dá a revista de presente. Saio para minha caminhada, vou perambulando pelas ruas de Casa Forte, chegou a Casa Amarela, gosto dessa movimentação matinal, quando a cidade ainda não virou o caos, e é possível encontrar um ônibus levando dois, três sonolentos passageiros. Um homem gordinho passa com seu cão gordinho, o cachorro vem me cheirar, o gordinho (o homem) dá um puxavanco na coleira, quase quebra o pescoço do cachorro gordinho, não sei para que isso, mas tudo bem.

Vou por aqui, por ali, preferindo ruas mais arborizadas, sem carros, reparo nas bicicletas, há uma legião de pessoas que vão ao trabalho de bicicleta, fora os que levam os filhos para a escola, se equilibrando em duas rodas. Vou pensando na vida, nas coisas que preciso fazer, tenho agora 37, é o momento de amadurecer, saber equilibrar o orçamento, casar, ter filhos para levar ao Arruda, essa conversa fiada toda, até que volto, chego no Poço, lá vem Egildo e Jacó, Egildo com a cara enfarrascada, meio amassada, vão trabalhar numa obra, domingo estarei dando lenhadas nas canelas de Jacó, um artilheiro meia boca dos Caducos, que tenta imitar Romário. Mais conversa fiada e toco o barco.

Chego em casa, tomo um banho, e vem aquela moleza inexplicável, daqui a pouco sou informado que estou com a tal da virose, assisti os gols da rodada de ontem deitado no sofá de Teresa, minha vizinha, a almofada puro a cigarro. Volto me arrastando para casa. Dona Ermira detecta febre, vai fazer um chá de limão com alho, cancela nosso passeio de hoje para fazer um crediário (dessa vez, estou "andando descalço").

Entrei nos 37 com um passeio com Lucidélia, a revista Caras e a virose. A revista está aqui ao lado. Vou olhar as fotos lindas, todo mundo perfeito, famílias felizes, cozinhas impecáveis. “Desde o início, quis criar uma base firme para nossos filhos”, diz a Luisa Brunet, que já me deu muitas alegrias na puberdade. “Estas mulheres representam o espírito festivo da Bacardi, diz Correia, que não sei quem é, e as cinco mulheres são mesmo para o cara abandonar o velho Montilla.

Uma informação importantíssima para meus leitores: “Se tratada logo com benzonidazol, doença de Chagas pode ser curada”, explica o médico Artur Timerman. O papa tinha acabado de morrer. O príncipe Rainier também. Há páginas com fotos de casais que separaram, outros reconciliaram, mas tudo é sempre maduro, cabeça, querem manter a amizada, essa conversa toda, o importante é os filhos, ninguém contratou advogado, não houve bate-boca, ninguém admite que fez uma baixaria na saída, querendo levar os melhores CDs. A frase mais criativa de um pai: “Joaquim ampliou meu horizonte no que diz respeito ao amor”, diz Luciano Huck.

“A Europa percebe, afinal, que temos mais do que música e café de qualidade”, diz Franziska Hübner, de 38 anos, que “se sente em casa em Paris”. Nunca vi mais gorda.

Resta-me o horóscopo:

“A agitação externa diminui e você tem mais tempo para cuidar de si e dos seus. Vá ao cabeleireiro, faça compras, cozinhe algo gostoso. Não obrigue ninguém a nada, nem se sinta ofendido caso as pessoas queridas não o acompanhem. Elas têm vida própria”.

Estou liso, não quero cortar os cabelos agora e não gosto de obrigar ninguém a nada. A rede está aqui ao lado, o chá de limão com alho chegou, vou me aquietar. Tomara que sábado eu esteja inteiro, porque o Santa pega a Ponte Preta no Arruda, escutar jogo pelo rádio é muito angustiante.

E obrigado a todos que me desejaram feliz cumpleaños, fora os que vieram bebericar em Vital.

Ps. a tal da virose me pegou de jeito. Estou em casa, na lona. Se der, amanhã atualizo o Blog.

quarta-feira, 3 de maio de 2006

Aniversário, presentes, amigos, enfim...

Os 37 anos chegaram mansamente, com dois presentes na medida: uma delícia de abacaxi, esse negócio que o sujeito não pára de comer, e um calção de banho novo, verde, porque o azul, com listras brancas, pela mãe do guarda, estava pela hora da morte. Desconfio que os tubarões não me atacaram em Boa Viagem, temendo problemas de saúde com o estado lamentável do calção. Vou agora de verde, para meus mergulhos arrojados de ex-nadador da AABB que nunca ganhou uma medalha.

Dia do aniversário é bom porque a data fica toda cheia de charmes e surpresas. Como já morei em muitas cidades e tenho amigo pra xuxu, nunca sei quem vai dar um “olá” ou mandar um email. Aviso aos distraídos que o celular agora só serve para ver as horas e me despertar. Só porque não paguei algumas contas, a OI resolveu unilateralmente cancelar meu direito de ligar e receber. Francamente, isso é o que minha amiga Grão chama de “grosseria generalizada”.

Depois, recebi uma carta linda de uma criança do Poço, aquelas com um coração desenhado, e um “ti amo”, com “i” mesmo. Dona Ermira, que foi a responsável pela gestação deste jovem aqui, chegou hoje de manhã, toda animada, e veio com uma carrada de agrados, começando pelo bolo mole, feito pela minha tia Beta, o melhor bolo mole do Brasil. Ganhei também duas camisas de manga comprida que adoro, um calção meia-boca (que ela não saiba), uma bermuda jeans e os tradicionais, fundamentais e infalíveis tubos-de-shampoo-para-cabelos-secos -desta vez da marca Elséve.

Na bagagem, minha mãe trouxe também a história da família: feijão verde, carne de charque e pequi, uma coisa deliciosa que colocamos no feijão, no arroz, e dá um sabor espetacular a qualquer rango. O produto é tratado como ouro puro por nossa família (desconfio que por todo cearense), e quando chega aquele saquinho congelado, com os carocinhos amarelados, os olhos brilham. Então devo almoçar, hoje, feijão verde com pequi, arroz e alguma surpresa mais. Para sobremesa, delícia de abacaxi.

Pretendo dar um bom cochilo à tarde, porque que ninguém é de ferro.

Mais tarde, à noitinha, vamos tomar umas cervejinhas em Seu Vital, nada de pompa ou circunstância. Por questões financeiras que não vale a pena aprofundar, a conta vai ser na base do racha mesmo, cada um pagando o que consumiu, ou até o que não consumiu mesmo.

De modos que só posso agradecer por ter amigos, gente que gosto e que me quer bem, essa coisa maravilhosa da amizade, do afeto, do amor.

Professor Davi acabou de ligar, querendo ir ao Mercado da Boa Vista no almoço para "tomar umas de leve", que nunca é de leve. Falei da farra à noitinha, mas ele me veio com esta:

"Malandro bebe de dia".

Desconfio que estou cercado de malandros de primeira linha, o que é muito bom para a vida.

Não posso negar que uma vitória no dominó, com o Garotinho, uma bela buchuda em alguém muito arengueiro no jogo, deixaria o dia completo, redondo, perfeito. Vamos ver.

terça-feira, 2 de maio de 2006

Relato sobre a tradiconal "festa surpresa" para Vital e Severina

Como acontece há uns quatro ou cinco anos, aqui no Poço da Panela, fizemos no Primeiro de Maio a tradicional "festa surpresa” para Seu Vital e Dona Severina. Para quem não sabe, Seu Vital é o dono da venda-boteco-abrigo emocional para nós, moradores aqui do Poço. É nosso pajé, apesar de muita gente só conhecer ele como brabo. Dona Severina é sua esposa ou “sócia”, como ele costuma chamar. Quem organiza a festa somos nós, uns malucos da Confraria dos Amigos do Poço, integrantes do que denomino “sociedade civil desorganizada”.

Sim, porque fazemos as coisas mais malucas na base do improviso, fazemos cotas entre os amigos, passamos o chapéu, vamos tocando a pelota de canela, aos trancos e barrancos, e tudo parece funcionar como aquelas coisas do budismo, sempre dá certo no final, e se não deu certo, era porque não era o final, não sei onde li isso.

O dia começou chovendo muito. Lá pelas tantas, o céu clareou e chegou o carro do Bptran, para iniciarmos o “tradicional passeio ciclístico”. Sim, porque depois de dois anos, tudo vira tradicional por aqui. Este ano, se inscreveram 154 pessoas da comunidade, sendo 73% crianças, 12% adultos, 7% velhos e 8% organizadores.

O passeio foi até o Parque da Jaqueira, e o único problema foi o carro do Bptran, que atolou o pé para terminar o trabalho logo. Resultado: o passeio acabou sendo uma acelerada corrida até a Jaqueira, cruzando sinais vermelhos os mais diversos, até o retorno ao Poço, todos com a língua de fora. Informo que registramos quatro bicicletas quebradas.

De volta ao Poço, tivemos o tradicional discurso de Vital e Severina. Avaliaram que Seu Vital está cada vez mais parecido com Miguel Arraes. Depois, tivemos o tradicional sorteio da tradicional bicicleta, e quem ganhou foi Teresinha, esposa de Nana, gerando suspeitas de uma grossa marmelada, afinal, Nana é um dos integrantes da Confraria. As suspeitas foram desfeitas após consultarmos os nomes nas fichas. Tinha o nome de Teresa somente uma vez mesmo, foi intriga da oposição.

Encerradas as atividades criançais, passamos às garapas mais diversas, enquanto o dominó comia solto dentro da venda. Nos foi servida uma feijoada suculenta, e Seu Vital lamentou profundamente estar com uma inflamação nos olhos. Ficou só olhando a feijoada, que estava supimpa, lambendo os beiços. Se vingou na cerveja.

Acusamos a presença do médico de Seu Vital, que esqueci agora o nome, um fato da maior importância. Afastando definitivamente os rumores de que Seu Vital tem algum problema grave de saúde, o médico fez um brinde com nosso mais famosos habitante, e temos registro fotográfico. Vital andava bebendo escondido dele mesmo, diante das pressões familiares, mas ontem ficou aliviado. Na verdade, recebeu um salvo-conduto para as cervejinhas, e agora vai ser fogo segurar o velho.

O dominó foi disputadíssimo e joguei novamente com o Zinho, nosso Garotinho. Ao contrário do domingo, quando metemos 11 x 0 em Vital e Santino, não estivemos bem, eu confesso que estava desatento, e amargamos um 6 x 5, num final dramático, quado errei um lance. Não foi de todo mal, porque não levamos uma buchuda com casa cheia. Do lado de fora, debaixo do pé de cajá, dominó corria frouxo, um dominó esquisito, todo vermelho e banco. Era o dominó do alvirrubro Tony, que ele ganhou quando era pirralho, presente do ilustre jogador Jorge Mendonça.

Tony repetiu 122 vezes que o dominó foi presente de Jorge Mendonça, que morreu outro dia. “Chorei muito quando recebi a notícia”, confessou. Tony só foi embora quando Cioba prometeu guardar o dominó e entregá-lo no dia seguinte.

“Esse dominó ganhei de presente do Jorge Mendonça”, repetiu pela 123a vez.

Duda, como sempre, estava chatíssimo. Não registramos arengas, a não ser um mal entendido entre a professora Lucidélia e Zé Luis, porque a professora ficou empurrando o jornaleiro, já bicado, para cima de Zé, enquanto ele jogava dominó. Zé perdeu a peleja e ficou chamando a professora de "criança". O Professor Davi não trouxe o violão, mas bebericou bem. Lulu desfilou com sua eterna alegria e levou presente para os aniversariantes.

A roda de samba que João Valadares prometeu trazer, em arroubos de empresário, ficou mais uma vez na conversa fiada. Exibimos várias vezes o pequeno documentário feito por Andréa Ferraz com Marcelo Barreto, sobre o aniversário de 2005. Todo mundo adorou. Hoje, será exibido na sede da Associação de Moradores. Os oito litros de Pitu que Gugu trouxe, foram consumidos sem maiores dificuldades. O jornaleiro tricolor terminou a noite sentado na calçada, conversando com o chão. Teresa separou algumas latas de “Pitu Cola” na geladeira, para o lanche do neto Gabriel. Hoje, depois do recreio, era para o menino estar mamadinho, mas Nana percebeu e alertou:

“Teresa, isso aí é cachaça com Coca Cola!”

Hoje será o dia de relembrar a boa festa, que só terminou ao anoitecer, com todos mamadinhos e felizes. É a pequena arte da amizade, da partilha, da cumplicidade amorosa. Amanhã já temos um novo rund, porque o taurino turrão aqui completa 37 anos. Hoje à noite, dona Ermira, chega ao Recife. Deve vir com a sacola cheia de cremes para meus cabelos. Já estou é vendo, na hora em que ela me ver, no desembarque.

“Mas meu filho, seu cabelo está tão seco...”

Ao chegar em casa, vai olhar minhas roupas, dizer que estou "sem roupa nenhuma" e reclamar porque ainda não casei.

Já conheço a fera. Se amanhã algum leitor me ver em lojas pelo centro, fazendo um crediário, é porque dona Ermira está no pedaço. Como dizem por aí, "mãe é mãe".