quarta-feira, 24 de maio de 2006

Ponderações imediatas sobre os cajás

Começou a festa dos cajás no Recife. O fenômeno cíclico da generosidade nos oferece pés abarrotados. A árvore, da família das anacardiáceas, é muito freqüente nas várzeas e nas matas de terra firme argilosa do Amazonas, informa o digníssimo Aurélio, à página 317. Não estamos nas terras do Amazonas, mas aqui tem cajá pra chuchu. As folhas são compostas de muitos “folíolos oblongos”, “flores insignificantes e agregadas em inflorescências racemosas”. Não sei o que são “folíolos” e também não vou ficar consultando o dicionário a manhã inteira, mas discordo em um ponto: não existe flor insignificante. Agora: “agregadas em inflorescências racemosas”, é poesia pura, em pleno dicionário.

Aqui ao lado, onde moro, há duas gigantescas árvores, que espalham a fruta pelo chão, desde as primeiras horas. Às seis da manhã, é possível ver o senhor Rabaçã passar com seu andar leve, seu cigarro no canto da boca, catando atenciosamente o fruto que, segundo o Aurélio, é “uma drupa elipsóide amarela, aromática, muito sucosa e fortemente azeda, própria para refrescos e sorvetes”. Não sei o nome de Rabaçã. Sei que ele viajava muito, parecendo uma ave de arribação, e ganhou o apelido. Todo mundo só o conhece como Rabaçã mesmo, e ele é o pai de Raimundinho e Sprite. Também não sei o nome de Sprite, mas não sou tão burro, sei o nome de outros vizinhos, como Naná, que é Evaldo Gomes de Moura.

Não sei o que é uma elipsóide, mas no meio da minha burrice sobre a botânica e frutânica, lembro ao senhor Aurélio que ele esqueceu de uma coisa – o cajá é a fruta própria não apenas para refrescos e sorvetes, mas para boas lapadas de cana. Um bom e reluzente cajá pede, incontinente, como diz o mestre Davi, uma dose. Era a fruta oficial do nosso finado amigo Barrabás. A essa hora, Barrinha, como era conhecido, já teria consumido uns seis cajás, com a mesma quantidade de cachaça. Onde hoje passa Rabaçã, estava sempre Barrabás, rondando, com seu óculos de basculante, sem camisa, com uma eterna bermuda quase até os joelhos, à procura da fruta para “uma lapadinha”. De Barrabás, sei apenas que era Severino, e nada mais. O apelido Barrabás veio do teatro. Na Paixão de Cristo, ele se destacou no papel do citado personagem, e o nome seguiu para a vida.

Hoje, a fruta é a cara de Zinho, mais conhecido por aqui como “Garotinho”, nosso ex-taxista, que agora se dedica ao esporte nacional da Pitu. Também não sei o nome de Zinho, mas sei que ele joga um bom dominó e que bebe uma latinha da aguardente ao meio dia, outra à noite. Com a chegada da safra de cajás, o garotinho anda rindo à toa, mas está sem freios. À noite, aqui em Vital, pode ser visto bem vermelho, suado e com os olhos brilhando. É muito aperitivo, meus amigos, haja fígado e disposição para enfrentar o tranco. Do meu pequeno reduto, lanço a proposta: que o cajá seja a fruta oficial dos caneiros do Recife. E tomara que a safra não dure tanto, porque zinho já não é mais esse garoto todo.

Lembro que voltei ao Recife em 2000, depois de seis anos em São Paulo, e estava no tempo dos jambos. Meu deus, era jambo para tudo que era lado! Mas o que eu gostava mesmo era de umas ramagens avermelhadas, que o jambeiro solta, que formam um tapete pelo chão em várias ruas e calçadas. Acho uma espécie de delicadeza da natureza, enfeitar as ruas para a gente, isso tudo de graça. A beleza mata outras fomes.

Há a safra de mangas, quando meninos fazem a festa, e passam com sacos imensos, abarrotados da deliciosa manga-espada. Só aqui no meu quintal, caem em média de cinco a seis por dia, na época mesmo da safra. Dona Jane, a proprietária, já ameaçou cortar a mangueira umas três vezes, por motivos ainda não muito claros, e fiquei meio atormentado. Usei argumentos diversos, falei do efeito estufa, lembrei da importância das frutas, até que parti para o reles dramalhão mexicano. Fiz cara de choro e disse, num tom melancólico:

“Tudo bem, dona Jane, mas deixe para cortar a mangueira quando eu estiver viajando, porque vai ser muito triste”.

Acho que isso mexeu com ela. A árvore ainda está lá. Fui dar uma olhada pela janela do meu quarto. Está frondosa, cheinha de mangas, ainda verdes. Daqui a pouco, começam a cair, para a nossa festa. Não há nada mais delicioso do que acordar, pegar uma boa manga-espada no quintal, sentar num tamborete, sob o sol matinal, e comer a fruta, se lambuzando um bocado.

Mas confesso um medo secreto e não revelado: voltar de viagem e encontrar somente o cotoco da árvore.

Como diz o velho e bom Nana, “vai magoar”.

10 comentários:

Anônimo disse...

As frutas são deliciosas. As pessoas vendendo frutas no asfalto são um presente para nós. E os carrinhos espalhados pela cidade que vendem frutas cortadas, mistas ou separadas, por R$1,00, são uma deliciosa e barata refeição.

Anônimo disse...

Já ia protestar logo que comecei a ler o texto! Como pode haver flor insignificante?
Mas logo veio a sua correção, felizmente!
Pense numa época boa essa das safras. De todas essas gosto mais da safra das mangas! Além de ser uma fruta deliciosa me faz lembrar parte de minha infancia vivida em uma casa no Bairro de Afogados. Fase boa onde ficavamos subindo nos pés de mangas do quintal... alias tinha pé de manga espada e manga rosa, pé de goibada, coqueiro, carambola, bananeira...
Tiravamos as frutas e comiamos ali mesmo, no alto da árvore!!
Que saudade...

Anônimo disse...

as flores são belas
as frutas são boas
a fome atormenta
inúmeras pessoas.

caju, abacate,
cajá, melancia,
fartura na feira
e barriga vazia.

Anônimo disse...

Hummm... para esta moradora do asfalto este post faz lembrar férias em casa da avó, lá em Goiás. Um quintal cheio de frutas e a majestosa mangueira em cima da qual eu passava horas do meu dia. Manga de supermercado jamais vai ter aquele gostinho.

Anônimo disse...

Vi aí na coluna da direita uma recomendação para o "Cartas para o Juca". Fui lá, gostei do post sobre Joaquin Nabuco e quis postar um comentário, mas não consegui, pois parece que é preciso ser usuário do Blogger. Como faço para comentar as "Cartas"?

Anônimo disse...

Chamo atenção para um aspecto: você se refere as mangas da sua vizinha. Tenho a nítida sensação que as frutas do pé da casa do vizinho são sempre melhores que as da nossa casa. Caso concorde,essa pode ser mais uma de suas "teorias".
Ps: Estou viciada nas crônicas desde que descobri o blog através de sua visita a Unicap. Virei leitora de carteirinha!

Anônimo disse...

Sama,

apanhei, apanhei, apanhei, mas consegui fazer o meu blog (he he he). O endereço é http://aquiaa.blogspot.com/
Espero que goste e divulgue para os amigos e leitores. Abração do mano PH

Anônimo disse...

Bem, cresci numa casa com 04 pés de manga, 04 coqueiros, 01 de pinha, 01 de jambo, 01 de carambola, 01 de abacate e 02 de goiaba. As mangas a gente não dava vencimento, os cocos caiam nas telhas, quebravam e no inverno era massa as goteiras, o de pinha dava 01 pinha ao ano, o de jambo tinha uma bifurcação que se transformava em 2, a melhor parte "caiu" quando derrubaram um dos coqueiros (que além de derrubar os cocos, estava perfurando uma caixa d'água com suas raízes), a carambola era azeda até dizer oi, o abacate eu não lembro de ter visto nunquinha, os de goiaba atraiam os meninos que subiam no muro e que se caíssem dariam de cara com um singelo Hotweiller.

Depois disso tudo só tem um detalhe: a gente AMAVA aquelas plantas, TODAS e em parte a casa foi comprada por isso.
Segundo painho e mainha, seus netos brincariam nesse jardim.

E sim ... aqueles filetes cor de rosa que caem do jambeiro são lindos, deixavam o piso rosado e só pra não perder a linha do texto de contar as "mazelas", se não fossem varridos, no outro dia viravam lodo e enfim .. levei muita queda por conta disso! =)

Beijo!

betita disse...

Saudade do pé de jambo. Não era vermelho, era branco. Matava nossa fome de aventura e de fome mesmo. Não havia nada melhor do que "guerra de jambo". Aqueles jambos caídos no chão ganhavam vida na palma da nossa mão. Era um atrás do outro, nas costa, no rosto. Às vezes doía. Às vezes até lágrima caía, mas era um coisa boa, eita, saudade. Agora, não há mais jambo, sobrou apenas o toco e a velha saudade. beijos.

Anônimo disse...

sensível, honesto, delicado.

Gustavo
seu gandula.