domingo, 30 de setembro de 2007

Anotações inúteis sobre a seriedade



Regina Medeiros, ou a "Palhaça Satélite", numa Caravana do Unicef que acompanhei. A foto é do Mateus Sá. Nenhum dos dois é sério.

Ando com um problema existencial da menor importância para a humanidade. É que estou ficando sem paciência com gente séria. O sério, aquela figura que anda com a testa enrugada, que pede para levarmos o assunto a sério, o País a sério.

Descubro, cada vez mais, que adoro trabalhar e estar perto de gente que não prima pela seriedade. Não é por acaso que nos meus trabalhos, atualmente, estou cercado de gente que de sério não tem nada. O Iramarai, por exemplo, brinca com o motorista, o porteiro, a ascensorista, com nossa chefa, enfim. O leitor sério vai dizer:

"Mas não existe a palavra 'chefa' na língua portuguesa..."

Menos, meu querido leitor, bem menos. Assim minha vida fica difícil.

Outro que trabalha comigo, ou que trabalho com ele, é o gordinho Naná, com a sabedoria de seus cento e vinte quilos. Só o chamo de "Montanha", porque ele parece com uma montanha. Quando alguém chega muito sério, sabendo de tudo, ele pergunta:

"Meu irmão, tu tá com algum problema em casa?"

Depois comenta, na surdina:

"Eu acho que esse cara não teve infância".

Nunca, em sete anos, vi Naná de mau humor. Nem nas piores derrotas do nosso clube.

Por fim, Boy também chegou no projeto. Juntando Maraí, Naná, Boy e eu, já podemos dizer que temos uma trupe de circo, que poderia ser levado pelo Circo Thianny, que é o famosão da minha época. Estamos até pensando em organizar um espetáculo circense - Zé Bobão, Montanha e Girafa. Girafa é o pateta aqui. Boy ainda está sem papel.

O Gildázio, que também trabalha comigo - ou trabalho com ele, sei lá - é outro anti-exemplo de seriedade. Na verdade, já é um caso a ser estudado pela ciência. Para se ter uma idéia do sujeito, um de seus grandes sonhos é ter um Gurgel, aquele carro brasileiro que está sumindo do mapa. Antes de qualquer discussão importante, análises da realidade de nosso mundo, efeito estufa, a nova tara nacional, que é o combate aos saquinhos de plástico dos supermercados, ele precisa discorrer longamente sobre o Santa Cruz Futebol Clube e as chances de classificação para a Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro, sejam elas as mais improváveis e incertas.

Meu amigão Valdemir Leite, com seus quarenta e poucos anos, está com planos de aprender a andar de bicicleta. Um cara dessa idade que ainda planeja o futuro em duas rodas, não tem jeito de ser sério.

Nessas horas, vejo que o mundo tem solução.

O sério de carteirinha atrapalha muitos sonhos, gosta de dizer "mas isso é um delírio", "esse projeto não vai ser aprovado nunca", "está na hora de você pensar no futuro", coisas desse tipo.

Trabalhei em consultorias com meu amigo Inácio França, em um lugar conhecido internacionalmente, o Unicef, imagine a importância que é "fazer a humanidade avançar", especialmente quando falamos de crianças e adolescentes. Muitas vezes, olhava o meu amigo por debaixo da mesa, e lá estava o camarada, descalcinho da vida, com os pés no chão, como um belo moleque de rua. Pode estar falando com um ministro, algum assessor importante de alguém importante, mas com os pés no chão. Informo que meu amigo Inácio às vezes perde a sobriedade administrativa e fica de mau humor, mas lembro que ataque de mau humor é bem diferente da seriedade.

O sério mesmo, de carteirinha, não relaxa. Me lembro extrema ternura dos meus melhores professores. Não era gente séria. Ajudavam a educar com leveza, as aulas tinham outro tempo. Um professor da sexta ou sétima série, já não lembro, chegava numa ressaca terrível na aula da segunda-feira, acho que era OSPB, pedia uma trégua e cochilava um pouco, depois começava a falar algo sem importância, que eu gostava muito. A Flávia Suassuna, que é minha professora predileta de Literatura, dá aulas nada sérias, é uma contadora de histórias, e aprendo tudo, junto com os alunos dela do pré-vestibular.

Meu monitor, na Oficina da Palavra, se chama Ailton Guerra. O apelido? "Peste". Você acha que um sujeito com o apelido de "Peste", é um homem sério? Imaginem o que esse rapaz fez na infância, na escola...Ele já me contou vários episódios, é de arrepiar os cabelos.

Para reuniões sérias, tenho sempre um caderninho, onde fico rabiscando eventuais temas para crônicas, um pedacinho de um poema etc.

O Gustavo, meu dileto e enterno amigo, faz muitas peraltices na vida, apesar do doutorado, dos livros publicados etc. Uma de suas maiores façanhas foi ter levado um carrinho de supermercado, em plena Avenida Angélica, em São Paulo. Uma vez, no mesmo supermercado, encontrou a Ana Paula Arósio, aquela atriz bem bonitona, pensou em pedi-la em namoro, mas desistiu por excesso de timidez. A Arósio iria se dar bem, porque o Gustavo é um sujeito e tanto. Ultimamente está se dedicando somente à poesia. Fica longas horas lendo e escrevendo. Mais recentemente, mandou duas lesmas de presente para o Manuel de Barros. "Um dia elas chegam, ele sabe".

Aos leitores, uma semana nada séria. No trânsito, nas reuniões, nos planejamentos, nas conversas.

E quando eu estiver começando a escrever coisas sérias, buzinem aí, que me corrijo a tempo.

Assinado: Girafa.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

O pouco de hoje

Não sei o que está acontecendo com o mundo ou comigo. Tudo está assim, meio de repente, sem tempo de preparação. Saio de casa, olho minha tia-avó, de 80 anos, deitadinha, dormindo, e penso que há uma despedida no ar, e chego à escola em que ensino, sou informado que um aluno de 19 anos acabou de morrer, vítima de infarto. Vou ao cemitério, os alunos estão lá, os familiares choram, e meu colega de trabalho me confessa, ao final da cerimônia do adeus:

"Semana passada enterrei minha avó aqui".

Robertinho, um camarada boa gente, dono de uma delícia de bar, o Empório Sertanejo, sofreu um acidente e também deu adeus, com 45 anos. Assim, num segundo. Lembrei de meu período "dono de bar", quando fechava o La Prensa ou Garraffus, depois ia relaxar do trabalho, e de vez em quando conversava com ele, sobre esse ofício de dono de bar, um tipo de trabalho que consome tudo da pessoa. Passei ontem pelo Empório, estava fechado.

As pessoas morrem, bares fecham, perdemos parentes, nascem novas criaturas. Há pouco, recebi um email da Naire, falando do nascimento da neta, Felipa. Dias antes, ela, a mesma Naire, tinha mandado um email, comemorando um ano de pós-câncer.

Naná, meu velho amigo, foi com sua Kombi surrada pegar um material no Poço da Panela, e de repente estava diante de três ladrões, armados com as terríveis "Calibre 12". Levaram tudo de dez pessoas, mas Naná ainda conseguiu guardar, nas intocas, cinquenta mangos de algum trabalho.

Às vezes penso que somos todos sobreviventes, e que os mapas, bússolas, roteiros, são apenas sublimações, tentativas.

Meu amigo Peste diz que agradece a Deus por todas as merdas que acontecem em sua vida. Lembro de um trecho de "Pequena Miss Sunshine", em que o estudioso de Proust conta a série de fracassos do escritor, e todo o sofrimento que foi sua vida. Deu tudo errado, e no final, ele deixou um montão de belezas para o mundo.

"A vida é assim: a gente perdoa quando perde", diz Peste.

Meu amigo Inácio participou de um evento com os povos da floresta, em Brasília. Lá pelas tantas, uma pessoa disse o seguinte:

"Está na hora de a gente buscar os velhos. Eles são nossa biblioteca".

Não sei o que há. Estou desistindo de alguma coisa, que não sei ainda o nome. Os projetos agora são menores. Não estou pensando muito na vida, estou pensando nos dias. Recebo de presente, e com honra, os cadernos de um velho sábio, com seus 77 anos. Antes, ele escrevia e tocava fogo, a la Ernesto Sábato. Adoro escritores incendiários, mas nem sempre consigo ler as cinzas alheias.

Não acho que as pessoas amadurecem, elas cansam. Ando cansado de um bocado de bobagens. Vejo que quero bem menos coisas do que dez anos atrás. Espero querer cada vez menos. Quero ver se não machuco ninguém, se acerto meu caminhar sem pressa. Estou escrevendo um livro, olho para ele, nunca fica pronto, então fico rindo. Às vezes dá vontade de queimá-lo também, só pelo exercício das cinzas.

Bem, a crônica de hoje não tem muito a oferecer. Fiquem com meu pouco.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Esse fiapo chamado vida



Cleverson, na primeira semana de aulas

A notícia chegou de repente, como se uma corda fosse cortada por uma espada. No intervalo das aulas da Kabum!, fui informado que Cleverson morreu.

Cleverson Soares, 19 anos, aluno de Computação Gráfica na escola, e da Oficina da Palavra, comigo e com o meu monitor, Ailton Guerra. Morava na Iputinga e tinha muitos sonhos a caminho.

Não foi morte violenta, como centenas de centenas de mortes de jovens no Recife, todo mês. Foi algo súbito, um problema de saúde, e o fim chegou antes mesmo que o começo se tornasse pleno.

Há pouco mais de um mês, ele comunicou a saída da escola. Conseguiu ser aprovado no Pro-Uni, e foi cursar a Unibratec. No dia da despedida, reuni a turma em círculo e falei sobre o Cleverson para os demais jovens da turma. Uma criatura mansa, calada, discreta, com um raro sentimento de ética e cuidado com os outros. Saiu da escola debaixo de uma salva de palmas. Estava namorando a Gabriela, também aluna da Kabum! No sábado, completaram um ano de namoro.

Tudo nele, em 15 meses de convivência, foi sereno, como uma marca da índole, uma forma de estar no mundo. Um jovem sem alarde, sem ostentação, honesto na postura, nas críticas. Na sexta-feira, encontrou com alguns alunos da escola. Exalava alegria. As coisas estavam indo muito bem.

Hoje está sendo um dia muito, muito triste. Com os demais professores da escola, tive que dar a notícia da morte de alguém queridíssimo. Não tivemos mais aulas. Muitos ficaram perplexos. De lágrima em lágrima, a escola mergulhou no imenso silêncio, que parecia impossível, quando juntamos 75 jovens. Me rasgava a alma ver olhos desamparados dos jovens, olhando para o vazio.

O enterro será hoje. Nunca estive em um enterro de um aluno, na flor da idade.

Olhei a ficha de leitura do Cleverson, agora há pouco. O último livro que pegou emprestado foi de Fernando Pessoa, "Quando fui outro".

Como o livro era meu, dei de presente.

A vida, esse fiapinho...

A gente nunca sabe quando está se despedindo de alguém, ou quando esse alguém vira outro.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Doutor Cyro, ou "O o sonho de ser gente - (Parte I)

Tenho feito algumas coisas muito sem futuro nesta vida, mas aqui-acolá, faço meus golzinhos de fora da área. Pequenas ações, pequenas decisões, pequenos movimentos d´alma. E na essência, no coração de tudo, está o encontro com gente. Pessoas que chegam trazendo humanidade, algum facho de luz, coisas acumuladas na estrada. É quando se dá o reconhecimento.


Há 15 dias, em meio a um churrasco, conheci um senhor de 77 anos, cabelos branquinhos, chamado Cyro de Andrade Lima. Ele me conquistou com uma frase:


“O ser humano não revoluciona, ele desabrocha”.


Meu primeiro sentido percebeu claramente que aquela alma tinha algo diferente. Colei nele. Durante quase uma hora, filmei a conversa serena daquele homem que exalava sabedoria. Em quinze minutos, deu para perceber: esse homem está transcendendo.


No sábado, uma equipe da Secretaria da Saúde foi conhecer o trabalho desenvolvido pelo doutor Cyro no Programa de Saúde da Família (PSF), em Vitória de Santo Antão. Aproveitei o bigu, levei uma câmera digital para registrar o encontro.


Encontramos a criatura à entrada do PSF. Tênis da Nike, calça jeans, camisa creme. Levava uma sacola de couro.


“É para o despojamento”, disse, com aquele sorriso sereno que foi conquistando durante a vida. Ele, que foi um dos médicos mais conhecidos do Recife, hoje faz um trabalho de formiguinha com seu grupo de técnicos da saúde. Ele nega que seja médico. É somente um agente de saúde.


Nos juntamos na cozinha do PSF. Médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, técnicos da saúde. A gente queria apenas escutar o que ele tinha para dizer.


O despojamento é uma cerimônia simples, mas não estamos muito acostumados com isso. Despojar-se de coisas que já foram importantes, mas que agora vão para outras mãos, outros olhos, outros corações.


Da bolsa de couro, Cyro tirou várias coisas. Um livro de Eça de Queiroz, que não cheguei a anotar o nome. Para Cyro, melhor que Eça, só Camões. Então, ele recitou trechos de Camões. Depois, “Alma Gêmea”, do Deepak Chopra. A cada livro despojado, comentários. Todos atentos, quietinhos, bebendo conhecimentos. “Psicologia da Alquimia” foi o livro seguinte.


“Tento saber o que é a alquimia. Para o povo brasileiro, é descer à lama e pegar caranguejo”.


Lembrei agora do livro do Eça: “A ilustre casa de Ramires”, que nunca li.


Quando assumiu o primeiro mandato, depois da democratização do País, Miguel Arraes foi à casa de Cyro e disse:


“Doutor Cyro, vou levar o senhor para levar uma surra”.


Era o cargo de secretário da Saúde. Ele aceitou e foi levar as pancadas da vida. Coisa para uma prosa demorada.


Doutor Cyro foi falando. Em cima dele, um quadro com a imagem de Gandhi.Mostrou outro livro, “O médico quântico”, escrito pelo físico Amit Goswami. A editora é a Cultrix, que tem uma pá de livros bons sobre a humanidade.


“Um dia vocês vão entender que a grande coisa da vida é o sonho”, disse.


Diante daquela imensidão, dei um jeito de passar a filmadora para o Martim Palácios e peguei meu bloquinho de notas. Só entendo as coisas quando anoto, desconfio inclusive que meu cérebro está nos dedos.


“Me sinto um gafanhoto nos saltos quânticos”, prosseguiu aquela criatura que mais lembra um menino, descobrindo as coisas do mundo por uma gramática nova, um dicionário que um dia leremos, no futuro. Ele mostrou o livro de Ismael Marinho Falcão, “Direito Agrário Brasileiro”. Desceu a lenha no Tratado de Tordesilhas, e esculhambou de norte a sul a Igreja Católica, apesar de ser católico.


Da sacola, retirou “O símbolo da transformação na missa”, de Jung, que gosta muito. Cyro só não chamou Freud de santo, mas são outros quinhentos.


A cada livro, o mesmo ritual. Uma explanação sobre a vida, o sonho, as buscas humanas. Pegou “O fenômeno Humano”, de Theilard de Chardin, que descobriu o “ponto ômega”. Eu, aos 38 anos, ainda não sei o que vem a ser o “ponto ômega”, mas tenho fé e sou persistente. Um dia chegarei lá. Por último, um livrinho simples, desses do Ministério da Saúde: “Política Nacional de Atenção Básica”.


Não sei se alguém perguntou algo, se não perguntou, fica perguntado agora.


“Cheguei aqui seguindo um sonho – o de ser gente”.


Uma torrente de humildade. Um tufão de singelezas. Um redemoinho de sabedorias misturadas, coladas em muitos cadernos, que ele vem colecionando.


Cyro abriu um caderno repleto de notas, depois uma agenda. Leu alguns trechos para o grupo. O médico vendo a vida pelo olhar do todo, do completo, natureza e vida, numa ciência do desabrochamento. Arregalei os olhos e ouvidos. “Uma divagação: o sentido da vida dos seres humanos rumo ao desconhecido”. “Em defesa dos dementes”. “A revolução pelo sonho”. “Não vamos parar nunca, rumo à libertação”.


“A armadilha da globalização”, de Hans-Peter Martin & Harald Schmann (Editora Globo), e “Os 7 tipos humanos”, de Roberto Assagioli”, e “Cura energética pelo Quijong”, dos mestres Gao Yun e Bai Yin, completaram os despojos. Tinha também um livro sobre apicultura e outro sobre auto-suficiência, envolvendo plantas e coisas do campo, mas não anotei por pura preguiça.


“Prefiro ver a vida como um circo, e Carlitos como o grande mágico genial, humano. É pelo caminho do sonho que cada um chega a realizar sua própria missão”.


Como será que Cyro pretende fazer isso?


“Pela observação, diálogo, mansidão”.


Upa la-la...


Da bolsa, ainda saiu o Guerra Junqueira, a poesia lírica de “Os simples”. Cyro leu uns trechos. Leu “O caminho” e disse que passou muito tempo sem saber o que era um frouxel. Ele explicou, mas esqueci.


Por último, ele entregou uma pedra grande, pesada, bonita. Há, meus amigos, em algum lugar deste mundo, um homem de 77 anos que faz uma cerimônia do despojamento, e inclui nisso uma pedra.


Antes de uma longa caminhada pela Cidade de Deus, onde fica o PSF, Cyro me mostrou seu consultório. Três quadros na parede: dois de Charles Chaplin, outro de Dom Hélder. Leu trechos de “O último discurso”. Conversamos sobre seu trabalho. Depois fomos conhecer o projeto “Cabra leiteira” e o “Canto da Saúde”, idéias que ele está realizando, graças ao trabalho da equipe de saúde e doações.


Foi uma longa conversa-vivência, repleta de emoções, que só terminou no final do dia.


Se eu não fosse tão burro com tecnologias, botaria no ar a filmagem de Cyro fazendo Tai-Chi Chuan no alto da Cidade de Deus, em cima de uma enorme pedra.


Vou continuar esta prosa amanhã. Estou aqui, com três cadernos de anotações, que o doutor Cyro me cedeu, para ler e pensar.


Decidi que vou atrás de gente que entenda de edição de imagens para gravar uma série de depoimentos com essa criatura, esse amante da humanidade e da humildade, que tem apenas um grande projeto – ser gente.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Essa mania de andar pelo mundo me trouxe tanta gente linda...

Essa mania de andar pelo mundo me trouxe tanta gente linda, que às vezes me pego pensando, numa sexta-feira à tarde, enquanto espero o ônibus:

"O que estará fazendo o Josmar, neste exato momento?"

O melhor jornalista do Brasil deve estar telefonando para suas fontes, dentro de presídios, em gabinetes, no Ministério Público, ou recebendo mais alguma denúncia de violência policial nas prisões, de algum familiar de preso.

O incansável Josmar. O magricela barbudo, que anda malamanhado, com uma caneta Bic e um bloquinho na mão, que já foi confundido com um morador de rua, por uma delegada. O homem que já olhou para um coronel, que não queria deixar a Imprensa cobrir uma catástrofe, com a seguinte frase: "Coronel, a época da ditadura já passou". O homem que não deixa uma boa história escapar nunca. Agarra-a com as duas mãos, e bem forte, e só respira aliviado quando o texto é publicado, de preferência uma página inteira. Avesso às badalações, Josmar só pediu uma coisa, quando lançou seu livro sobre o PCC - não ter que dar entrevistas.

Tomamos muitos porres no Mutamba, em São Paulo, até que um dia ele resolveu parar de beber. Chegou ao extremo de morder seu próprio cachorro, numa dessas bicadas. Achou que o animal estava olhando-o atravessado. Está há quatro anos invicto.

Selma Nunes, a Selminha, onde andará?

No lançamento de "Zé", em 1998, ela fez tudo, organizou a pequena encenação, foi a única amiga de Sampa a viajar comigo para Belo Horizonte. Sempre dizia que seria a minha agente literária, e quando algum livro meu vender muitos exemplares, vou ligar para ela, cobrando seu trabalho.

Hoje recebi um email da Solange, a Sol, que trabalhou comigo no Diário Popular, em São Paulo. Uma mulher imensamente linda, afetuosa, doce, que sempre vinha saber o que eu estava escrevendo. Que bom que ela encontrou este Blog e entrou em contato.

Alguns amigos sei que dificilmente encontrarei, como o Agenor, amigo da quinta-série, carne e unha comigo. O que fez o Agenor da vida? Será médico, doutor, padre ou policial? Casou, teve filhos? Mora ainda em Fortaleza?

São pessoas que entraram na minha vida e agora estão distantes, mas tenho na memória como algo definitivo.

A Camila Vinhas, o que faz agora? Morava num prédio bem próximo ao meu, na Santa Cecília, e lembro que ficou exultante com um livro do T.S. Eliot, que dei de presente no seu aniversário. Será que conseguiu fazer a transição do jornalismo para a dança, que tanto queria? Creio que sim.

Todos os dias lembro do velho Daniel Raton, aquele velho burlesco e intrigante, com seu humor sarcástico e ódio aos turistas, que chamava "carne em trânsito", no albergue de San Telmo, em Buenos Aires. Nos vimos a última vez há três ou quatro anos, ele acenando de longe, com um cachecol no pescoço, quando tive a impressão de que não mais nos encontraríamos.

Um cubano que conheci nas andanças pela Argentina. O velho índio que comandou uma cerimônia naquele final de ano incandescente, que foi 1999. A mulher que leu minhas mãos, no deserto de Atacama. A Socorro, que primeiro conheci como personagem do livro "Zé", e depois se tornou amiga, ou que estará fazendo neste setembro de 2007? Será que continua sua pajelança pela vida?

Dizem que no Orkut, você pode digitar o nome da pessoa e encontrá-la facilmente, porque metade da população brasileira tem conta por lá. Mas eu sou uma criatura arredia a certas coisas. Não sei, é modernidade demais para o meu gosto. Prefiro alisar as lembranças, espaná-las com paciência e deixar o tempo agir. Qualquer hora, vou a São Paulo passear, perambular, esbarro na Selminha, vejo o Josmar tomando um café, enquanto especula sobre uma nova reportagem nova.

Agradeceria muito se alguém desse notícias do Daniel Raton, mi viejo amigo. Chama-se Daniel Zahra. Vai ser difícil encontrá-lo, já sei. Gustavo é minha esperança.

Mas como essa vida é cheia de mistérios e penumbras, sei que vou encontrar muita gente maravilhosa pela estrada. A vida é cheia de inaugurações e acenos. Cada criatura dessas me trouxe um pouco de devoção à vida, e só me resta agradecer.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Livro num sebo do Rio e do desabrochar do doutor Ciro

Estou aqui pagando meus pecados. Na aula de ontem, de Jornalismo Literário, disse todo eloquente aos alunos que o desafio do escritor é escrever, mesmo sem inspiração, por força do ofício.

Estou aqui na escola, já dei aulas, já corrigi textos com os jovens, já caçamos palavras no dicionário, vi email, respondi, tomei café, perambulei, conversei com uma aluna para tentar convencê-la a fazer um pré-vestibular, e nada.

Definitivamente, não tenho a crônica do dia.

Sou salvo pela minha chefa na escola (sei que não se usa chefa, mas ela é a chefa, fica por isso mesmo), que me telefone do Rio de Janeiro.

"Estou num sebo, no Flamengo, e encontrei o Clamor", diz, exultante.

Fico em estado de graça, pergunto pelo preço.

"Quinze reais", me diz.

Perguntei se o ex-dono tinha anotado seu nome e a data. Infelizmente, não.

"Mas tem umas partes riscadinhas", me informa a chefa.

Então fico muito feliz, porque o livro, que custa R% 35,00 na livraria, sai por R$ 15,00 num sebo do Rio de Janeiro.

O ruim para quem mora no Recife é o gasto com as passagens.

Não tem nada a ver uma coisa com a outra, mas no sábado, em meio a uma confraternização de novos amigos, conheci o doutor Ciro, pai da Bebete, outra chefa minha, porque sou um homem cercado de chefas por todos os lados.

Aos 77 anos, ele é um sábio que circula pelo mundo, com um jeito manso, gestos de Tai-Chi e palavras que deslizam como sereno pelos telhados.

Das muitas coisas lindas que falou, guardei uma frase:

"O ser humano não revoluciona, ele desabrocha".

Depois dessa, a palavra revolução mudou completamente de sentido na minha cabeça.

Fico por aqui. Vou dar uma volta, em busca de inspiração.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Essa gente cheia de chuvisco nos olhos...

Fim da viagem ao Sertão. Não sei quantos quilômetros percorridos em carros diversos, a pé, em ônibus surrados pelo chão quente. As estradas solitárias, ao lado do velho e bom Iramarai, o asfalto devorado a bordo das rurais, D-20 e outros carros do interior, que cabem sempre velhos, crianças, mães amorosas, filhos netos, com suas outras andanças, compras, mantimentos, na manutenção da vida e dos sonhos.

Como sempre, ao final de cada viagem, a paisagem fica agarrada à memória, como uma planta reinventada, que cresce a cada silêncio. Mas são as pessoas que invocam presença, que se instalam em definitivo, este humano que está por aí, espalhado na imensidão do nosso país. É delas que lembro, ao fim de cada jornada. Rostos, sorrisos, palavras, acolhimentos, olhares. Gestos mínimos que são encantamentos. Perguntas sobre nossa peregrinação, com o sentimento da identidade, do “também queria seguir com vocês”. Trocas de idéias, reflexões, sonhos, projetos. No fim de cada viagem, parece que a gente encontra quem a gente busca.

Gente como Janemeire, a brava professora na Chapada do Araripe, que tem a filha Jordana como aluna, e não admite que ela tenha mau comportamento, para “não dar exemplo ruim para as outras crianças”. Gente como Paulo Sérgio, seu marido silencioso, um homem que convive com seu roçado, mas capaz de ir ao guarda-roupa, muito discreto, e pegar um agasalho para o Maraí, que estava tremendo de frio. Quantos gestos semelhantes, mínimos, não transformariam o Recife numa outra cidade...

Gente como Ricardo, secretário de saúde de Moreilândia, um jovem de 31 anos, que encontramos duas vezes na viagem, capaz de falar apaixonadamente sobre seu trabalho, as dificuldades, durante todo o tempo em que ficamos juntos, na praça central do Crato, naquela manhã de sábado. Não era apenas um jovem secretário municipal de saúde, com pretensões futuras, era um homem querendo fazer as coisas, tomando iniciativas, enquanto esperava o retorno de um sujeito que consertava o aparelho de radiografia de sua cidade.

Gente como Patrícia, que conhecemos no ônibus de Ouricuri para o Exu, e que nos presenteou com os doces que faz em casa, saborosíssimos. Ela, que perdeu sua irmã em um acidente de ônibus três anos antes, na mesma estrada que percorríamos, fez questão de mostrar a cruz azul, no local do acidente. Eu, que anotei os nomes de todos os mortos durante a viagem de ida, tinha comentado com meu parceiro de viagem que aquela cruz azul não tinha nome. Na volta, coube à irmã me dizer que se chamava Jacqueline, a única estudante a morrer naquele acidente de ônibus, que levava 65 pessoas.

Gente como Vicente Bernardo do Nascimento, um homem na casa dos 70 anos, duro, inteiro, forte, resistente, com seu chapéu de Sertanejo, que estava indo do Sítio Juá, em Santa Cruz, para visitar uns amigos em Salgueiro. A bordo da boléia da D-20, aquele homem quieto, calado, que teve 12 filhos, contou que certa vez teve que passar três meses no Hospital da Restauração, no Recife, cuidando de um dos filhos, que paralisou o corpo inteiro, por causa desconhecida.

“Foi um tempo muito difícil”, contou, o suficiente para imaginar como deve ter sido a vida deste homem do Sertão, ligado à roça, ao ter que viver dentro de um hospital, com o filho imóvel, sem que o mundo ou os médicos soubessem explicar o que acontecia.

Por esses milagres do mundo, após três meses o menino simplesmente ficou bom, e voltou com o pai ao Sítio Juá.

Gente, gente, gente. Tantos nomes. Islândia, a brava coordenadora do Programa de Saúde da Família de Exu, Elma, a secretária de Saúde que ainda acredita na militância. Neide, a diretora da escola Barão de Exu que percorre orgulhosa mostrando as salas organizadas, o jardim, a galeria dos ex-diretores, uma mulher incansável na luta pela educação.

Gente tanta, gente acolhedora, gente que me dá esperança, que percorre outros caminhos, que não me deixa desanimar, de acreditar na vida. Gente que está longe desse massacre diário da cultura da corrupção, dos vícios da política, de tanta ganância e maldade.

Gente que me faz lembrar do meu velho Guimarães Rosa, quando diz que merece de a gente aproveitar mesmo o que vem e que pode, “o bom da vida é só chuvisco...”

Tenho encontrado gente cheia de chuvisco nos olhos nessas andanças.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Anotações da travessia Exu-Crato, parte III e o Projeto Um Milhão de Orvalhos

Recapitulando o capítulo II da saga:

Pocot, pocot, pocot, seguimos nossa jornada. Olhei para o relógio, eram sete horas e cinco minutos, e tínhamos um desafio imenso pela frente - atravessar a Floresta Nacional do Araripe – a 1a do Brasil, fundada em 2/5/1946, e chegar ao Crato, onde nasci.

Passamos por umas acácias, uns galos tardios ainda cantavam vantagem, quando passamos por mais uma cisterna de placa, aquele projeto maravilhoso de aproveitar água da chuva. Lembrei da minha época da assessor de comunicação do Projeto 1 Milhão de Cisternas no Semi-Árido, o P1MC. Na época, parecia um delírio, acho que não tinham conseguido construir sequer 30mil cisternas, e de repente vi a placa: 210 mil cisternas construídas.

Maraí começou a falar sobre um projeto seu, de aproveitamento do orvalho no Sertão.

"Será que não tem um sistema de aproveitamento do orvalho?"

Dito isso, começou a filosofar, e como conheço a fera, na próxima viagem fará o primeiro experimento.

Passamos por mais uma cruz: Edmilson de Oliveira (5/6/64 a 10/12/94).

Às 9h24 cruzamos a placa:

"Seja bem-vindo ao Ceará".

"Olha aí a jurubeba selvagem! Parece coisa de Perdidos no Espaço", comentou Iramaraí, e achei a frase muito fora de tom, para o momento sublime em que o sujeito pisa em sua terra natal. Além disso, não entendi nada a mistura de jurubeba com Perdidos no Espaço.

Fomos informados por Dona Maria, em meio a copos d´água, que estávamos a 18 km do Crato, enquanto trabalhadores de uma empresa davam um duro dos diabos, cavando buracos e cravando postes.

"São 326 postes para levar energia para esta região", me explicou um senhor barbudo e atarracado, com chapéu de proteção na cabeça. "Só faltam 40".

Fiquei em silêncio e me deu um cansaço. Ele olhou assim de jeito e completou, como se falasse de um amigo:

"É do Governo Federal".

Prosseguimos no silêncio.

"Estamos há dois meses e meio nessa empreitada".

Depois chegou outro e completou:

"Hoje eu vou tomar banho nem que seja de cuspe".

O do Governo Federal emendou:

"A gente aqui toma banho do jeito que gato limpa os olhos".

Lá pelo meio-dia, encostamos numa casa simples, onde estava uma senhora já bem entrada nos anos, que chamam velhice. Ela foi buscar água e depois ficamos sentado, sentindo o cansaço e o calor. O cachorro Sheike nos olhava com simpatia. Conversa vai, conversa vem, perguntou se a gente gostava do Lula. Ficamos calados. Ela falou com uma certa veemência, parecia mandar um recado para os povos dos mais distantes:

"Pois eu voto nele até morrer!"

Maraí deu corda, que ele é assim com Lula e amigo de Eduardo Campos. Alzira completou:

"Na última eleição, me disseram que eu não precisava mais votar. Pois eu respondi que fazia questão de votar e vou votar nele na próxima eleição".

Olhei para o teto, tinha uma lâmpada já pendurada, mas faltava a energia.

"Vai já chegar", respondeu, com um sorriso.

Compramos óleo de pequi a R$ 5,00 (para dor na garganta, esquente o óleo com um pouco de sal, gargareje e esfregue o restante na goela).

A única cruz que não anotei, por cansaço, estava a 200 metros de Alzira. Era a do filho dela, Geraldo Ribeiro de Lima, que morreu atropelado há três anos.

Ela também fez o percurso a pé, entre o Exu e o Crato, mas há muitos anos, e foi por motivo de promessa. Um dos filhos vivia bêbado, ela foi ao túmulo do marido e pediu ajuda.

"Tonho, meu filho, me ajuda, que eu não aguento mais o Zoca".

À tardinha, o Zoca chegou para a mãe e falou:

"Mãe, pode anotar. Mais nunca eu bebo".

Parou de beber no mesmo dia. Disse que tinha recebido uma mensagem do pai. Esse "Alcoólatras Anônimos" espiritual aconteceu há 12 anos, e Zoca segue invicto, igualzinho ao tio Ademar, que está sem bicar há dois anos.

"A gente tem que confiar nos defuntos", observou Alzira, que torce pelo Flamengo e tem vários quadros de times dos anos 80 pendurados na parede da sala.

Mais adiante, Maraí pega uma madeira queimada, e diz que vai fazer uma nova exposição, intitulada "O nada queimado". Aguardemos.

Mais uma cruz: "Olávio Nunis Soari. Naceu 7 do 5 de 75. Faliceu no dia 10 de 10 de 2004".

Na Floresta Nacional do Araripe, a parada para constatações óbvias: a primeira bola no pé, no meu dedo mindinho.

"Se a pé a gente chega em todo canto, para que tanta velocidade?", pergunta Marai.

Boto uma sandália e o mundo fica lindo. Recomeçamos.

"Isso é uma segóia", diz meu comparsa. Se João Valadares estivesse na caminhada, diria logo:

"Mais fresco!"

Paramos no Ibama para mais água. Fazemos uma assembléia ali mesmo e decidimos tocar em frente até o Crato, porque faltam apenas 7 ou 8 quilômetros. O guarda do Ibama diz para a gente pegar um atalho pela floresta.

Foram 2h30 dentro da floresta, até que chegamos ao Belmonte, bem longe do centro. Aí, já estávamos cansados e mal pagos. Descemos para o Crato de carona. Às 17h30 estávamos na Praça da Sé, onde meu pai comemorou o tri-campeonato da Canarinha, comigo nos braços, segundo ele.

Ficamos bestando no cansaço.

"É só pegar duas placas, botar em cima da casa e arrumar um jeito de canalizar o orvalho", prosseguiu ele, já desenhando o Programa 1 Milhão de Orvalhos.

À noite, dormimos na casa de uma amiga e não tivemos forças para perambular. Não anotei nada no caderno. A travessia estava feita. Sonhei muitas coisas boas, creio. No dia seguinte, Maraí deu um pulo da cama, parecia um garoto.

"Rapaz, estou novinho em folha", disse, antes de tomar um banho gelado.

Perambulamos pelo Crato, mostrei a igreja, fui na rua da minha avó. Defronte, a casa da família de Miguel Arraes. Ele, como não tem jeito, pediu para entrar. Conversamos com dona Alda, irmã do velho Arraes.

"A senhora conhece dona Zeneuda?", perguntei.

"Minha comadre?", respondeu ela.

"E Dona Ermira?"

"Minha afilhada?"

Zeneuda é minha avó, Ermira é minha mãe.

Então arrisquei a última ficha:

"E Flocely"?

"Muito inteligente".

Flocely é minha tia-avó.

Arrisquei dar uma volta em Seu Almir, reduto da velha guarda da boemia cratense, onde meu pai gastou muito o fígado. Ele estava lá, sozinho, com a eterna camisa do Flamengo, boné etc.

Proseamos um bocado, ele falou dos times de futebol do Crato, do meu pai, que jogava um bolão. Maraí cismou com um banco de madeira, queria saber quem fez, o ano, ficou especulando a marca da madeira, essas coisas dele. Seu almir cheirou rapé, Maraípediu e mandou ver, eu também. Daqui a pouco, os dois espirravam os pulmões para fora.

Seu Almir disse que agora só bebe aos fins de semana. Nos despedimos com um abraço e ficamos na Praça da Sé, lendo e escrevendo.

Não precisamos de uma palavra para saber que estava concluída a travessia, que estava na hora de voltar. A jornada Exu-Crato estava concluída com reencontros sentimentais não previstos.

Senti o cheiro da minha terra e do meu povo.

É outra forma de juntar milhões de orvalhos.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Anotações da travessia Exu-Crato - parte II

Informo que quem não leu a crônica anterior, não vai entender o restante da série.

Pois bem, como eu vinha dizendo, a Janemeire, que mal tinha nos conhecido, ofereceu dormida em sua casa. Entardecia, na Chapada do Arararipe, quando caminhamos para sua casa. Já ventava e fazia frio. O sol se escondia mansamente, e chegamos à casa da Jane. Lá de dentro, ela mandou entrar. Uma casa simples, com dois quartos, sala, TV 29 polegadas, antena parabólica, tudo organizado, bonitinho, com zelo.

“Meu marido chega já”, disse.

Me surgiu um medo clássico: os roncos do Iramarai. Tudo bem que ele tinha parado de beber desde o dia anterior, mas pulmão não se limpa assim, como se fosse uma panela de alumínio. Olhamos para o lado. Uma capela azulada, a mini-igreja da comunidade, no meio de um descampado. Jane resolveu nos mostrar.

Abriu, estavam lá os santos todos, um altarzinho, os bancos. Um lugar pequeno, para trinta pessoas, no máximo.

“Temos missa a cada dois meses”, explicou a cicerone. “Se quiserem, vocês podem dormir aqui”.

Fiquei exultante. Já dormi em muitos lugares no mundo, mas numa igreja, no meio do Sertão, era novidade.

Numa operação que durou no máximo dez minutos, Maraí varreu tudo, cortou cordas, pendurou as redes, protagonizou nós os mais diversos, o que me levou a suspeitar que ele foi da Marinha. Daqui a pouco, chegou o marido da Jane, Paulo Sérgio, que estava no roçado, um sujeito manso e bom, que parecia achar muito simples a mulher chamar dois desconhecidos para dormir em sua casa. No caso, agora, na morada de Deus. Ele olhou assim, atravessado, e disse que as redes poderiam deslizar.

Maraí puxou as redes de tudo que era lado, faltando pouco para derrubar o telhado da capela, e nada. Os nós estavam perfeitos.

Entrou em cena a Jordana, filha do casal, de dez anos. Uma dessas criaturas lindas, doces, puras. Fizemos amizade rápido. Em minutos os três já eram confidentes da infância: ela, eu e Maraí.

Não sei de onde surgiu a coragem para um banho de cuia, com a água gelada. Estávamos um bagaço com a subida da serra. Era preciso reagir. Fui na frente. Passei pela cozinha, a Janemeire preparava uma sopa cantando algo, e a coragem aumentou.Brrrr.

Eram sete da noite quando sentamos diante de um caldeirão de sopa tinindo de quente, a comida mais deliciosa do ano. Deus é grande e o povo sertanejo é de uma santidade inexplicável. Jane começou a falar de coisas da vida, as mudanças que aconteceram na vida nos últimos anos. É professora numa escolinha na comunidade, cuida de 25 crianças, entre elas, a filha. O marido é uma dessas pessoas caladas, que consentem ou negam as coisas com os olhos, ou com um menear da cabeça. Acima de tudo, um homem educadíssimo. Vendo Maraí se tremer de frio, foi lá dentro e trouxe um agasalho, sem dizer uma palavra. Delicadeza não precisa alvoroço.

Olhei ao redor. Estávamos jantando algo delicioso, na casa de uma professora primária, casada com um agricultor, no Sertão de Pernambuco. Ao lado uma cisterna, para guardar água da chuva. Ciscando por ali, umas galinhas de capoeira, fogosas e sem imaginar o futuro. A casa estava arrumada, tinha as coisas do essencial: fogão, geladeira, TV, antena parabólica. Na parede da sala, duas pinturas do Van Gogh e aquela famosa “1a missa no Brasil”, celebrada pelo bispo Sardinha, creio, recortadas de alguma revista. Parece que o bispo virou sopa dos índios, mas não sei, porque faltei a essa aula na 5a série.

Jane está no quinto mês de gravidez, e semana que vem vai fazer a ressonância. A filha usa um celular que ganhou da madrinha. Não havia fome, tristeza ou lamento. A vida vai para frente, Jane estava preocupada mesmo com o ônibus que leva os meninos para estudar no Exu, porque não têm um bom acompanhamento, e alguns estão gazeando a escola. Falou sobre educação, discutiu coisas sobre agentes de saúde, é mais politizada que muitos militantes que conheço e tem algo singular: é daquela gente raçuda, que briga pelas coisas de sua vida e de seu povo. Pedi para a Jordana anotar o nome dela no meu caderninho de anotações, ela escreveu bem bonitinho Jordanna Yngrid Lima, e o número do celular dela, que é para a gente ligar depois. Isso já é amizade.

Comemos sopa até enjoar, depois chegou um amigo para conversar água e também comeu. Bebemos o café que o Paulo Sérgio fez. Depois ficamos na sala, a Jordana brincando num negocinho eletrônico, até que deu cansaço e fomos dormir, na capela.

O Paulo levou uma vela de sete dias e acendeu no altar. Acendi três velas menores: uma para meus ancestrais, que vieram do Crato e Exu, outra para as gentes queridas, espalhadas, e outra para que a viagem seguisse em paz.

Então chegou ele. O frio.

Andarilhos de meia tigela, não lembramos que estávamos em cima de uma serra. O frio foi chegando, atacando por todos os lados. Paulo trouxe edredons, mas havia uma enorme fresta, por debaixo das portas da igreja, e ficamos enrolados, gemendo um pouco. Aos poucos, fomos descongelando, e dormimos.

Já eram quase cinco da manhã, quando Marai resolveu mijar – do lado de fora da capela, claro -, e começou a me chamar.

“Vem ver o céu, vem ver o céu”.

Acordei atordoado e vimos um céu majestoso, salpicado de estrelas, que estavam a pouco mais de vinte metros de nossos olhos. Maraí, que conhece plantas, que é escultor, que estudou na Academia da Polícia Militar, que já foi plantador de mamão no Sertão, que trabalhou em comunidades de base, com a turma de Dom Hélder, que fez parte da Brigada Portinari, que já perdeu um pivô no meio de um debate sobre criança e adolescente, também é astrônomo.

Ele me mostrou as galáxias, nuvens de poeira cósmica, citou os eventuais meteoros, disse onde estavam as ursas maiores e menores, enquanto o frio me consumia os ossos. Depois ele me mostrou a lua minguante, amarelinha, pendurada por um cordão invisível, no céu já por amanhecer. Antes de voltar para a capela, peguei um pouco de terra, porque ainda estávamos em Exu, a terra da minha tia-avó Flocely, e coloquei num saquinho. Vou levar a terra dela de presente, foi o que pensei.

Voltamos para a capela e tudo era santidade. Dormimos mais um pouco, sem provar as dores do mundo. Nesta noite, Maraí não roncou, e tive sonhos bons.

Só conseguimos sair da casa da Jane quando aceitamos tomar um café da manhã com tapioca e queijo derretido, leite e banana. Eu já estava com saudades da Jordana, um dos risos mais lindos e puros da viagem.

Nos abraçamos, agradecemos. O Paulo emprestou o casaco para o resto da viagem. Dei um pequeno presente para a Jordana, uma besteirinha, que é segredo nosso.

Seguimos andando para uma jornada de muitos quilômetros, e os três ficaram à porta de casa, acenando.

Fiquei lembrando de um artigo do meu amigo Inácio França, sobre os dois brasis que não se conhecem. Na noite anterior, enquanto conversávamos sobre mudanças na vida e o que precisa ser melhorado, os noticiários na TV só mostravam corrupção, a eventual cassação do presidente do senado, violência e tragédia.

Esse Brasil de Janemeire, Paulo Sérgio e Jordana, eu quero conhecer cada vez mais.

Pocot, pocot, pocot, seguimos nossa jornada. Olhei para o relógio, eram sete horas e cinco minutos.

Tínhamos um desafio imenso pela frente - atravessar a Floresta Nacional do Araripe – a 1a do Brasil, fundada em 2/5/1946, e chegar ao Crato, onde nasci.

Vai ser a postagem de amanhã, se tudo seguir nos conformes.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Anotações da travessia Exu-Crato

De vez em quando, preciso de um louco para me acompanhar pela vida. Meu louco predileto é o Gustavo, mas ele mora longe, fica difícil convocá-lo. Ultimamente, tem surgido um maluco sensacional, que é o Iramarai. Do nada, proponho algo sem sentido, e ele topa na hora, antes mesmo de pensar. Louco bom de verdade responde as coisas sem pensar.

Estávamos em Exu, nosso trabalho tinha terminado, perguntei assim, num átimo, se ele toparia fazer comigo a travessia Exu-Crato, a pé.

"Vai ser uma delícia", respondeu ele.

Todos da nossa equipe de trabalho nos chamaram de doidos, enquanto arrumávamos as bagagens. Era necessário mandar todo o excesso para o Recife, e seguir apenas com o mínimo vital.

Na quinta-feira, às 8h, botamos as patas na estrada. Poucas coisas e a vontade de sair do ar, esquecer trabalho, problemas, ficar quieto, andar, mas andar muito. Previsão: 48km em três dias.

Maraí (melhor chamá-lo assim, porque o nome é muito grande) começou sua febre nacional, que é apontar as plantas, animais e outras coisas da natureza, e dizer o nome.

"Aqui é um mulungu. Vê ali um pé de cedro".

Damos dois passos:

"Eita! Eita! Um ninho de Casaca de Couro, que é do tamanho de um Curió", segue.

Descubro que o Casaca de Couro bota até coisa de plástico em seu ninho.

Fico na minha, caminhando, chateado por não ter estudado bem Biologia, ou não prestar atenção aos documentários sobre animais e plantas. Lá pelas tantas, ele me mostra uma planta e pergunta:

"Tu sabe que planta é essa?"

"Uma arenosa", digo, inventando na hora uma nova espécie, para não viajar tão marginalizado das coisas da natureza.

"Tô achando que é uma angica. Mas é não...angica tem espinho".

Acabo de criar uma planta nova, a "arenosa", vou registrar no Ibama.

Andamos um tanto, resolvemos parar para molhar a goela. Somos recebidos pela Dona Ana e Seu Luis, um sertanejo aprumado com chapéu protegendo o cocoruto. A filha se chama Rochele, mas depois vão chegar a Janine e o João Victor. O cão, simpaticíssimo, se chama "Dog".

Bebemos água, conversamos água. Maraí tira dúvidas sobre uma planta, que levava no bolso. O Luís informou, mas esqueci de anotar, fica o registro. Lá pelas tantas, Maraí dá uma tosse de cachorro doente, Dona Ana fica preocupada. Eu também. Vai na casa da irmã, buscar mel e pimenta do reino. Também bebo, que é bom. Em troca, damos os biscoitos afanados de uma confraternização do pessoal da Saúde, umas rosquinhas deliciosas. Antes de sairmos, somos informados que o pai dela, adoentado, não tem recebido assistência da Agente de Saúde. Ele, o pai dela, que esqueci de anotar o nome, dá uma tosse, e achei-o muito melhor que meu colega de viagem.

Agradecimentos gerais e olhamos para frente. Tem a subida da Serra do Araripe pela frente. Dá uma moleza, mas o bom de quem gosta da estrada é caminhar. Lá vamos nós. Vou registrando os mortos pelo caminho. Os nomes são anotados na cruz, à beira da estrada. O primeiro morto é Vicente Inácio de Oliveira (21/01/41 a 09/06/97). Cem metros depois, está a homenagem póstuma ao Antônio A. da Silva (18/11/57 a 30/04/06) e José A. da Silva (08/08/94 a 30/04/06). Depois de um breve colóquio e cálculos, concordamos que são pai e filho.

Vamos subindo e a peleja é grande. Maraí me informa que a folha da castanhola serve para os rins. Só concordarei depois de consultar doutor Rafael Pacífico, o nefrologista predileto de tia Flocely.

"Olha um visgueiro", diz Maraí.

Chega o início da tarde e estamos num povoado ermo, parece que todo mundo foi ou está indo embora. Já caminhamos 16 km. Paramos, pedimos água, um menino vem puxar assunto com a gente. Tem 12 anos, o Denilson.

"Tu pensa em sair daqui?", pergunta Maraí.

"Penso não. Eu quero e vou sair. Aqui é lugar de gente velha", responde, e eu já nem gosto muito dessa zanga toda.

Depois de uma breve enquete, descobrimos que o negócio do pai faliu, por motivos ainda obscuros, e que o menino pegou desgosto do lugar. O Menino Indócil fica ali, puxando assunto, mas vamos embora, que gente indócil maltrata o sentimento. Cochilamos num bar falido, com uma sinuca velha parecendo um navio abandonado, e pegamos a estrada. Maraí parece uma mula, eu não menos.

A parada seguinte é lá nos meados da tarde, quando chegaram juntos fome e sede. O cansaço fica para mais tarde. Ficamos à sombra de uma árvore, de identidade incerta. Dois homens esperam um carro. Maraí começa a perguntar sobre uma "jurubeba selvagem" que encontrou no caminho, e tem início um colóquio internacional sobre as bondades da jurubeba.

"Cura até câncer", diz um dos especialistas.

"Nasci e me criei aqui, há 39 anos", diz um dos irmãos, quebrando o ritmo científico da conversa.

"E a casca?", segue Maraí.

"A gente faz remédio com ela".

"O cambão faz alguma coisa?".

"Faz. Só não sei o que é".

Não sei qual dos três está mais amostrado. Cutuco Maraí. Ele se levanta e solta um "Uôôpa" e a coluna estrala de cima abaixo. Ele ainda tem coragem de perguntar de onde é a água que o povo dali bebe.

"Tem cisterna, tem barreiro", e por aí terminamos a conversa.

Galopamos já no sol forte queimando a moleira. Cruzamos com a cruz do José Jr. Suassuna (6/12/61 a 06/10/2006), e com uma cruz de madeira sem nome. Fica aqui a homenagem ao morto desconhecido, na Serra do Araripe.

Paramos pela exaustidão na mercearia de dona Fátima e Seu Luís, que Deus os tenha. Pedimos água, que vem nos canecos de alumínio. Na pista passam carretas, ambulâncias de prefeituras, carros a duzentos por hora. Começam a perguntar de onde somos. Estamos caminhando, olhando as plantas, responde Maraí, e aproveito para botar meu silêncio em dia.

Então chega um carro lotado, que vai para o Recife. São cinco pessoas.

"É só uma, visse?", diz a mulher para o motorista, que usa uma camisa do "Parque Dona Lindu",que vão construir algum dia em Boa Viagem.

Maraí pergunta sobre o uso do "pau de ferro", e começa um seminário regional sobre plantas e curas. Pau de ferro, para quem não sabe, é bom botar no leite, o pozinho, que é bom para anemia. Cambão serve para animal. Jatobá também. Há uma discussão interna, sem questão de ordem, sobre a "jurubeba-de-fora". A resposta é que "manguará da banana e juá" são as melhores coisas para lambedor.

"Vou mandar para São Paulo, para meu menino", diz dona Fátima.

Ela tem dois filhos em São Paulo. Em julho, foi de avião visitar os dois, e se deu mal com o frio. Eu sei bem o que é Sampa naquele frio de rachar os ossos.

Raspa de juá, só se ferver e tirar nove espumas, para tirar o amargo. Surge um remédio universal, para todos os males, com capim-santo, crista-de-galo, jatobá, cebola branca, pau-ferro, angico. Eu e Maraí, que estamos com os pulmões meio cansados, bebemos boas goladas, e já sentimos um renascimento espiritual.

"Angico não coloquei não. Mas leva limão e folha de Eucalipto", diz a cientista Fátima, disparado a mais sabida da turma.

O motorista só toma uma mesmo, coitado, e fim do seminário. Todos partem felizes. Dona Fátima oferece um café, que bebemos felizes. Depois oferece chá, que vem com duas tapiocas e um pedaço de queijo, numa bandeija bonita, essas singelezas do povo. Bebemos o chá como dois lordes cansados. Ela pergunta de que é o chá.

"Erva doce", diz Maraí, convencidíssimo.

"É não", responde ela.

"Capim santo", chuto.

Ela diz que acertei, e me sinto um pouco sabido, pela primeira vez na viagem. Como já diz o sábio Iramaraí, "a gente tem que fazer umas estripulias para compensar a deficiência".

Daqui a pouco coçamos a cabeça. Vai entardecer e não temos onde dormir. O vento em cima da Serra do Araripe é frio e cortante. Não temos agasalhos e somente dois lençóis finos. Chega a Janimeire, grávida, o filho vai nascer em janeiro. Conversa vai, conversa vem, descobrimos que ela é professora da escola, muito politizada, esteve na "Marcha das Margaridas". Nos dá uma pequena aula de política, mobilização etc. É das nossas.

A conversa fica no ar, está esfriando, fazemos aquel cara de órfãos do destino, parecemos desalentados, então ela diz a frase mágica:

"Vocês podem dormir lá em casa".

Quando saímos, para a casa de Janimeire, perguntamos quanto custou o café, chá e tapiocas.

"Não foi nada, moço".

Essa bondade do povo sertanejo me deixa tonto.

Daqui a pouco conto sobre a noite gelada e estrelada, e o sono acolhedor na capela azulada, ao lado de sua casa, entre as imagens de santos.

Meu tempo na lan house esgotou, há jovens alucinados para entrar no orkut, e ainda teremos muito chão pela frente. Até daqui a pouco, quem sabe no Crato.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Francisco, o menino-engraxate

Estou em Ouricuri com o meu amigo Iramaraí, o "homem-Árvore". Tomamos uma cerveja num boteco de esquina, depois de um dia batendo pernas pelo Sertão. Estamos cansados, mas banhados e à beira de uma janta. Conversamos nossas águas, quando chega um menino de sorriso bom, um jeito manso. Tem uma caixa pendurada no ombro e pergunta se a gente quer engraxar os sapatos. Iramaraí está de sandálias. Uso um sapato, mas nunca quis que ninguém engraxasse meus sapatos. É uma besteira minha, uma dessas recusas da vida que é da pessoa, já nasce com ela.

Puxamos papo com o menino, que revela uma doçura e pergunta se pode sentar. Conversa vai, conversa vem, vou direto ao assunto de adulto, e pergunto o que ele quer ser quando crescer.

"Médico".

Havia uma certeza inabalável no menino, como se estivesse contando um segredo a dois novos amigos.

Então comecei com aquela conversa de que ele vai ter que estudar muito, que gostar dos livros, se dedicar na escola, essa coisa toda. Ele escutou de olhos atentos.

No final da sessão de aconselhamento, ele pediu para que eu anotasse o nome da gente num papel. Anotei "Samarone e Iramarai" e coloquei a data.

Então aconteceu o mistério, e é por isso que quero muito andar pelo mundo e conhecer gente. Sou viciado na espécie humana.

O menino abriu a caixa de sapateiro dele, um porta-óculos vazio e um pequeno frasco de Seiva de Alfazema. Dobrou o papel, botou duas gotas de perfume, guardou e disse que estava na hora de ir embora. Ficamos em silêncio. Essas coisas que tocam a alma, só no silêncio.

No dia seguinte, voltamos ao boteco. Do nada, aparece o nosso Francisco. Então, somos amigos de infância, já não temos o que esconder. Pego o caderno e faço minha enquete.

"Nome e idade?"

"Francisco Luís de Almeida da Silva, 12 anos".

"Série na escola?"

"Segunda série, na parte da tarde".

"Quanto arrecadou ontem, engraxando sapatos?"

"Cinco reais. Completou a conta da luz, que era R$ 48,00 e iriam cortar".

"Onde mora?"

"Favela Nossa Senhora de Fátima".

"Tás namorando?"

"Tô apaixonado pela Claudiane, lá da escola".

"Já se declarasse?"

"Ainda não".

Sim, um amante silencioso. Iramaraí adverte do perigo de não contar logo, mas acho que o Francisco é um menino sem pressa. Deixa o menino, Maraí, deixa o Francisco, que uma hora ele vai deixar a água do amor correr para o seu mar verdadeiro.

"O que foi que nós te falamos ontem?"

"Para estudar muito e gostar dos livros".

"O que tem dentro da tua caixa de sapateiro?"

Ele abre a caixa e vai botando na mesa. Duas latinhas de Nugget, escova de sapato, pano, e um vidrinho de Seiva de Alfazema.

"Pra que serve esse perfume?"

"Pra eu passar n´eu quando estiver fedendo".

Olho a caixa de sapateiro. Tem a marca da Óptica Camilo, "De olho nos seus olhos", e o telefone: 3874.2854.

"Por que tem o nome da óptica na tua caixa?"

"Foi o dono da ótica que me deu a caixa de presente".

"Cadê aquele papel que te demos ontem, com nosso nome?"

Ele pega a caixinha de óculos com muito cuidado, com zelo, com carinho, quase com doçura, abre e me entrega o papel.

Vejo nosso nome e dou uma cheirada no papel. Está com cheiro de Seiva de Alfazema.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

O homem-árvore

Estou trabalhando com um homem-árvore.

Ele sai caminhando comigo para um almoço barato, em algum botequim perto da Secretaria de Saúde, e enquanto vou pensando em algo sem futuro, ele me cutuca:

"Já visse que copa mais linda?"

Então olho para a copa de uma árvore que não tinha reparado, que está sempre ali, talvez há décadas. Talvez décadas sem um olhar que a proteja.

Estamos comendo algo, dois dias depois, quando ele olha para o lado de fora e arregala os olhos:

"Sama, vê as árvores!"

Encerra momentâneamente o afã de comer e comenta:

"O que mais me impressiona nelas é de onde surgem".

"De onde?", pergunto tontamente, como se não soubesse desde o jardim da infância que árvore surge do chão.

"Da terra".

Ele fica me olhando com aquela cara de descoberta, mas a primeira descoberta minha é sobre o valor das palavras. Chão é uma coisa muito dura. Terra é algo acolhedor.

"Parece que a terra não dá nada, e ao mesmo tempo propicia o solo para crescer uma coisa tão dura e forte como uma árvore".

Dias depois, saímos para um passeio sentimental pelas ruas bucólicas do Poço da Panela. Vamos eu, ele e Naná, o meu gordinho predileto. Enquanto a conversa segue frouxa sobre alguns amigos nossos que resolveram adoecer, dou chutes em pedrinhas, e penso como a vida é breve.

O meu amigo olha para uma árvore, cheia de franjas, e diz o nome.

Tenho muitos problemas de memória, esqueci o nome.

Depois ele arranca um pedaço de uma planta que sai de algum muro, leva para nossa amiga Bebete, que se recupera de uma pequena cirurgia.

Chegamos para a visita com uma planta de presente.

O homem-árvore virou homem-planta.

Bebete promete plantar o galhinho em algum lugar da casa. Quando a gente planta coisas, algo muito pequeno vai nascendo, mas depois cresce, e às vezes fica muito grande, como uma árvore. Às vezes fica miúda, como uma flor, mas o tamanho das coisas não tem importância, o que vale é a beleza.


Para Iramarai, que olha e sabe das árvores.