segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Anotações da travessia Exu-Crato - parte II

Informo que quem não leu a crônica anterior, não vai entender o restante da série.

Pois bem, como eu vinha dizendo, a Janemeire, que mal tinha nos conhecido, ofereceu dormida em sua casa. Entardecia, na Chapada do Arararipe, quando caminhamos para sua casa. Já ventava e fazia frio. O sol se escondia mansamente, e chegamos à casa da Jane. Lá de dentro, ela mandou entrar. Uma casa simples, com dois quartos, sala, TV 29 polegadas, antena parabólica, tudo organizado, bonitinho, com zelo.

“Meu marido chega já”, disse.

Me surgiu um medo clássico: os roncos do Iramarai. Tudo bem que ele tinha parado de beber desde o dia anterior, mas pulmão não se limpa assim, como se fosse uma panela de alumínio. Olhamos para o lado. Uma capela azulada, a mini-igreja da comunidade, no meio de um descampado. Jane resolveu nos mostrar.

Abriu, estavam lá os santos todos, um altarzinho, os bancos. Um lugar pequeno, para trinta pessoas, no máximo.

“Temos missa a cada dois meses”, explicou a cicerone. “Se quiserem, vocês podem dormir aqui”.

Fiquei exultante. Já dormi em muitos lugares no mundo, mas numa igreja, no meio do Sertão, era novidade.

Numa operação que durou no máximo dez minutos, Maraí varreu tudo, cortou cordas, pendurou as redes, protagonizou nós os mais diversos, o que me levou a suspeitar que ele foi da Marinha. Daqui a pouco, chegou o marido da Jane, Paulo Sérgio, que estava no roçado, um sujeito manso e bom, que parecia achar muito simples a mulher chamar dois desconhecidos para dormir em sua casa. No caso, agora, na morada de Deus. Ele olhou assim, atravessado, e disse que as redes poderiam deslizar.

Maraí puxou as redes de tudo que era lado, faltando pouco para derrubar o telhado da capela, e nada. Os nós estavam perfeitos.

Entrou em cena a Jordana, filha do casal, de dez anos. Uma dessas criaturas lindas, doces, puras. Fizemos amizade rápido. Em minutos os três já eram confidentes da infância: ela, eu e Maraí.

Não sei de onde surgiu a coragem para um banho de cuia, com a água gelada. Estávamos um bagaço com a subida da serra. Era preciso reagir. Fui na frente. Passei pela cozinha, a Janemeire preparava uma sopa cantando algo, e a coragem aumentou.Brrrr.

Eram sete da noite quando sentamos diante de um caldeirão de sopa tinindo de quente, a comida mais deliciosa do ano. Deus é grande e o povo sertanejo é de uma santidade inexplicável. Jane começou a falar de coisas da vida, as mudanças que aconteceram na vida nos últimos anos. É professora numa escolinha na comunidade, cuida de 25 crianças, entre elas, a filha. O marido é uma dessas pessoas caladas, que consentem ou negam as coisas com os olhos, ou com um menear da cabeça. Acima de tudo, um homem educadíssimo. Vendo Maraí se tremer de frio, foi lá dentro e trouxe um agasalho, sem dizer uma palavra. Delicadeza não precisa alvoroço.

Olhei ao redor. Estávamos jantando algo delicioso, na casa de uma professora primária, casada com um agricultor, no Sertão de Pernambuco. Ao lado uma cisterna, para guardar água da chuva. Ciscando por ali, umas galinhas de capoeira, fogosas e sem imaginar o futuro. A casa estava arrumada, tinha as coisas do essencial: fogão, geladeira, TV, antena parabólica. Na parede da sala, duas pinturas do Van Gogh e aquela famosa “1a missa no Brasil”, celebrada pelo bispo Sardinha, creio, recortadas de alguma revista. Parece que o bispo virou sopa dos índios, mas não sei, porque faltei a essa aula na 5a série.

Jane está no quinto mês de gravidez, e semana que vem vai fazer a ressonância. A filha usa um celular que ganhou da madrinha. Não havia fome, tristeza ou lamento. A vida vai para frente, Jane estava preocupada mesmo com o ônibus que leva os meninos para estudar no Exu, porque não têm um bom acompanhamento, e alguns estão gazeando a escola. Falou sobre educação, discutiu coisas sobre agentes de saúde, é mais politizada que muitos militantes que conheço e tem algo singular: é daquela gente raçuda, que briga pelas coisas de sua vida e de seu povo. Pedi para a Jordana anotar o nome dela no meu caderninho de anotações, ela escreveu bem bonitinho Jordanna Yngrid Lima, e o número do celular dela, que é para a gente ligar depois. Isso já é amizade.

Comemos sopa até enjoar, depois chegou um amigo para conversar água e também comeu. Bebemos o café que o Paulo Sérgio fez. Depois ficamos na sala, a Jordana brincando num negocinho eletrônico, até que deu cansaço e fomos dormir, na capela.

O Paulo levou uma vela de sete dias e acendeu no altar. Acendi três velas menores: uma para meus ancestrais, que vieram do Crato e Exu, outra para as gentes queridas, espalhadas, e outra para que a viagem seguisse em paz.

Então chegou ele. O frio.

Andarilhos de meia tigela, não lembramos que estávamos em cima de uma serra. O frio foi chegando, atacando por todos os lados. Paulo trouxe edredons, mas havia uma enorme fresta, por debaixo das portas da igreja, e ficamos enrolados, gemendo um pouco. Aos poucos, fomos descongelando, e dormimos.

Já eram quase cinco da manhã, quando Marai resolveu mijar – do lado de fora da capela, claro -, e começou a me chamar.

“Vem ver o céu, vem ver o céu”.

Acordei atordoado e vimos um céu majestoso, salpicado de estrelas, que estavam a pouco mais de vinte metros de nossos olhos. Maraí, que conhece plantas, que é escultor, que estudou na Academia da Polícia Militar, que já foi plantador de mamão no Sertão, que trabalhou em comunidades de base, com a turma de Dom Hélder, que fez parte da Brigada Portinari, que já perdeu um pivô no meio de um debate sobre criança e adolescente, também é astrônomo.

Ele me mostrou as galáxias, nuvens de poeira cósmica, citou os eventuais meteoros, disse onde estavam as ursas maiores e menores, enquanto o frio me consumia os ossos. Depois ele me mostrou a lua minguante, amarelinha, pendurada por um cordão invisível, no céu já por amanhecer. Antes de voltar para a capela, peguei um pouco de terra, porque ainda estávamos em Exu, a terra da minha tia-avó Flocely, e coloquei num saquinho. Vou levar a terra dela de presente, foi o que pensei.

Voltamos para a capela e tudo era santidade. Dormimos mais um pouco, sem provar as dores do mundo. Nesta noite, Maraí não roncou, e tive sonhos bons.

Só conseguimos sair da casa da Jane quando aceitamos tomar um café da manhã com tapioca e queijo derretido, leite e banana. Eu já estava com saudades da Jordana, um dos risos mais lindos e puros da viagem.

Nos abraçamos, agradecemos. O Paulo emprestou o casaco para o resto da viagem. Dei um pequeno presente para a Jordana, uma besteirinha, que é segredo nosso.

Seguimos andando para uma jornada de muitos quilômetros, e os três ficaram à porta de casa, acenando.

Fiquei lembrando de um artigo do meu amigo Inácio França, sobre os dois brasis que não se conhecem. Na noite anterior, enquanto conversávamos sobre mudanças na vida e o que precisa ser melhorado, os noticiários na TV só mostravam corrupção, a eventual cassação do presidente do senado, violência e tragédia.

Esse Brasil de Janemeire, Paulo Sérgio e Jordana, eu quero conhecer cada vez mais.

Pocot, pocot, pocot, seguimos nossa jornada. Olhei para o relógio, eram sete horas e cinco minutos.

Tínhamos um desafio imenso pela frente - atravessar a Floresta Nacional do Araripe – a 1a do Brasil, fundada em 2/5/1946, e chegar ao Crato, onde nasci.

Vai ser a postagem de amanhã, se tudo seguir nos conformes.

21 comentários:

Anônimo disse...

pensei em gritar, pular, dar cambalhotas, mas preferi comentar a crônica repetindo as tuas palavras: "delicadeza não precisa de alvoroço".
com admiração, un petit bisou pour toi

Anônimo disse...

Samarone,

Faça sempre isso... buscar inspiração na fonte humana.
Beijos,
Eu

Anônimo disse...

Sama,

Tenho uma inveja sadia de você.

Anônimo disse...

"Delicadeza não precisa alvoroço". É assim que se escreve.
Adri

Anônimo disse...

precisar - ter necessidade, carecer, necessitar. as maravilhas da nossa língua portuguesa. pode ser transitivo direto ou indireto Adri. não precisa correção, ou não precisa de correção.

Anônimo disse...

Parabéns. Eu adorei

Anônimo disse...

é impressionante a facilidade que os seus textos têm de colocar um sorriso no meu rosto.

Gabriela disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gabriela disse...

Que coisa mais linda meu Deus!
Deu saudade do sertão...

Anônimo disse...

O que foi que tu desse de presente a Jordana?? Diz aí, Sama,por favor...

Anônimo disse...

Sama,
aguardo os proxímos passos... Pocot, pocot, pocot... estamos todos com saudades.
Um grande abraço e que Deus abençoe vocês e todos que cruzarem os seus caminhos.

Magali Godoi disse...

beijos para voce e Iramarai

Anônimo disse...

Samarone,

suas crônicas são de uma delicadeza, e sem alvoroço.

Beijo na alma

Anônimo disse...

rsrsrs... é assim que se escreve, Poeta.
Adri

Anônimo disse...

Sama,

quero um Imaraí como amigo. Já tenho um irmão como vc. Abração do mano PH

Anônimo disse...

Beleza, beleza pura.

Anônimo disse...

Belo texto. O verdadeiro sertão está na alma do sertanejo.

Um abraço,

Dimas Lins
www.estradar.com

Samarone Lima disse...

Por que tanta gente deixa mensagem como anônimo?
Abraços,
Sama

Anônimo disse...

Sama, ser� que a Janemeire n�o iria fazer uma ultra-sonografia pra ver o beb�?? Provavelmente, sim.
T� linda essa viagem!!!
Um abra�o
Els amorim

Anônimo disse...

Oxe, Sama, porque saiu esses quadradinhos nas letras que tem acento???
Els

Anônimo disse...

As pessoas deixam comentario como anonimo porque da um trabalho do cao "fundar" um blog so pra deixar mensagens. Mas pode tambem deixar como "outro" e ai botar o nome. Estas viagens a gente devia fazer uma vez por ano, seria como ir a Meca. No caminho, nos purificamos, no fim, encontramos a graça divina, que sao os seres humanos sadios e belos.
Ana Paula