terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Mini-lembranças familiares

Meu pai botava bem alto o som, às sextas-feiras, o Altemar Dutra ocupava a casa inteira, e ele tomava sua bicada. Teve uma época em que a Alcione fez muito sucesso, e dominou tudo. “Não posso mais alimentar a esse amor tão louco, que sufoco...” Era um sufoco mesmo. Eu acho que ele sentia alguma dor muito íntima, que só cabia a ele sentir, mas o som era alto demais, e não dava para ver direito.

Meu tio Ademar morreu bem moço, com 32 anos, creio. Era caminhoneiro, e de longe, o tio mais bacana, junto com tio Ademar (só que tio Ademar sempre foi muito malucão). Ele dirigia o caminhão frigorífico da Transportadora Polar, que a gente subia em cima e ficava brincando. Eu não subia muito, porque tinha medo de altura. Quando tio Ademar morreu, eu fiquei triste, mas acho que não entendia ainda o que era a morte, porque não sofri. Tristeza é uma coisa, sofrimento é outra.

Meu irmão, o Tonho, fugiu para casar. Viajou para Brejo Santo, uma cidade onde moramos. Fui lá dar o apoio, e quando ele foi avisar à família, por telefone, começou a suar muito, parecia uma bica. Nunca vi uma pessoa ficar tão suada sem fazer um exercício. As emoções molham, creio.

Treinei futebol de salão, karatê e natação, em épocas distintas. A melhor época, porém, foi quando comecei a correr de manhã com o Neto, nosso vizinho. Encontramos um coroa maluco, que resolveu ser nosso treinador, e era cada carreira que eu vou dizer. Um dia parei minha carreira de futuro maratonista, o Neto continuou. De vez em quando ele corre uma maratonazinha, aquele puto. O nome disso é inveja retroativa (e o Neto é bem dizer da família, então vale).

Meu pai era totalmente contrário à história do karatê, tanto que não liberou para a compra de material esportivo. Minha mãe foi economizando da feira, tirando um trocado daqui, outro dali, escondendo, fazendo mágicas, até que conseguimos comprar um kimono. Foi com ele que passei da faixa branca para amarela, depois para a vermelha. Se eu fosse disciplinado, hoje seria faixa preta, uma besteira inacreditável.

Minha tia Antonieta só consegue dirigir buzinando. Daqui na esquina ela já teria dado três buzinadas. Não sei o motivo.

Minha tia Beta faz o melhor bolo mole do Brasil. Tia Beta é viúva do tio Ademar. Quando vou a Fortaleza, sempre tem bolo mole me esperando.

Acho que tem uns vinte anos que não vejo a tia Ideusuite, também conhecida como “Tia Bibi”. Não sei o motivo do apelido.

Meu primo Rogério, quando era pequeno, foi apelidado de “Din Din”. O apelido tinha tudo a ver.

Meu pai tinha a mania de conferir todos os ítens das compras, depois de chegar do Romcy, que era o Bompreço de Fortaleza. Eu nunca entendi aquilo, mas essas coisas de família são assim mesmo, a besteira é querer ficar entendendo.

Meu irmão, o Paulinho, sabia todas as capitais do Brasil antes mesmo de falar “casa”. Aquilo era uma comoção na família, mas eu achava uma besteira imensa. Hoje ele nem sabe as capitais todas e é muito mais inteligente.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

Cada papelzinho, uma vida

Nas muitas viagens que fiz à Argentina, Chile e Uruguai, para pesquisar sobre ditaduras e solidariedade, que resultou no livro Clamor (2003), escutei dezenas de histórias, que não entraram no livro, mas guardei com carinho em muitos cadernos, e passo a compartilhar.

Lembro que a pesquisadora Claudia Feld, que participava comigo e outros 15 jovens pesquisadores da América Latina do projeto “Memória e Repressão”, me entregou uma pesquisa que tinha feito sobre o julgamento dos militares argentinos, em 1985. Era uma longa pesquisa, mas uma pequena história foi a que mais me interessou.

Era o depoimento de um homem. Na verdade, pouquíssimas frases, de uma pessoa que foi ao Tribunal, dar seu testemunho. Das 833 pessoas que deram seu testemunho, cerca de 500 havia sido afetadas pelo terrorismo de Estado: sobreviventes de centros clandestinos de detenção e familiares de desaparecidos.

Alberto Amato contou para Claudia um episódio que ocorreu no Tribunal. Um dia, uma testemunha apareceu com uma pasta laranja debaixo do braço, sentou-se e contou sua história. A pasta estava grudada ao corpo. Ao final, o juiz perguntou:

“A senhora tem alguma prova?”.

“Sim”.

“As trouxe?”

“Sim”, respondeu a senhora.

“Estão nesta pasta?”

“Sim, estão nesta pasta”.

“Por favor, entregue-a ao Tribunal”, pediu o juiz.

O juiz pediu a pasta e a mulher foi se desprendendo dela “como quem se desprendia da única amarra que tinha com a vida”, como disse Amato. O único que conseguiu dizer, foi:

“Por favor, não percam nenhum papelzinho”.

Lhe disseram:

“Fique tranqüila, não vamos perder nenhum papelzinho”.

Atrás dela, um jornalista disse a Amato:

“Te dás conta? Cada papelzinho é uma vida”.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Mínimas, de minha coleção de belezas

"Cada palabra dice lo que dice y además
más y otra cosa".
(Alejandra Pizarnik)

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"Miro hacia adentro para no ver
ojos de ciego me miran".
(Carlos Vitale)

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"Curiosa gente que se dice encontrarse en el África y no está en ninguna parte".
(Yorgo Seferis)

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"A veces me divido para juntarme".
(Carlos Vitale, de novo)

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"A força da semente está em sair-de-si".
(Gustavo de Castro e Silva)

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"É difícil defender só com poemas a vida".
(O João Cabral)

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Acordei hoje preocupado: o que faz uma andorinha só, essa eterna acusada de nunca fazer verão?

E não me ocorreu nada para escrever, aquele vazio de idéias, palavras, observações.

Descobri que já temos palavras demais no mundo.

Por hoje, fico por aqui. Amanhã, quem sabe...

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Envelhecimento precoce em pleno Carnaval e a beleza do Frevo Jazz

Definitivamente, estou envelhecendo. Hoje, terça-feira de Carnaval, estou no Cabo de Santo Agostinho, batucando esta pequena crônica. Há um silêncio completo ao redor, um silêncio bom, calmo, desejado. Aqui-ali, um passarinho solta uns gorjeios, porque gorjeio é uma palavra ótima para o texto ficar mais bonito. Há pouco, o amigo José Neves me ligou. Conversamos uma aguazinha e deu para escutar o canto de um sabiá que ele tem. O Sabiá já foi vice-campeã em dois torneios e participou de concursos na Paraíba e outros estados que não lembro.

Conversas sobre pássaros num dia como hoje, é sinal da passagem do tempo. Em outros anos, já estaria feito um danado, pinotando nas ladeiras de Olinda, gritando pela milésima vez “Olinda/Quero cantar/A ti/Esta canção”, a história dos coqueirais, o teu sol, o teu mar, faz vibrar meu coração, a sonhar, etc. Mas não sei, hoje deu cansaço, preguiça, ou uma mistura em doses iguais das duas coisas.

Descobri também que gosto muito de ficar olhando o povo, aquela alegria acelerada e visceral. O encanto da multidão chegando. Este ano, esbarrei na turma da Naire, que olhava o Galo da Madrugada, de uma bela sacada. Me chamaram, e como não precisava de credencial para subir, fui lá, dar uma olhadinha. Tinha cerveja gelada, tira-gosto e bom papo, fora o Tom, neto dela, fazendo arruaças mil. Conversa vai, conversa vem, acabei ajudando a criar o Blog da Naire, que merece uma lida:(www.turbantedanaire.blogspot.com).

Fiquei um bom tempo olhando o povão passar, voltando do Galo, lá pelas 3h21 da tarde. É um troço que me encanta, essa ausência de padrão nas belezas e feiúras. Mulheres gordinhas, com suas minúsculas bermudas (não sei como se escreve short no plural), pouco ligando para as gorduras, as estrias, a barriga proeminente. Estão ali é para a diversão, a festa, não querem saber se ficou tudo em cima, se vão comentar. Vi fantasias lindas, feitas somente com o improviso, o delicioso exercício da criatividade.

Há, é claro, uma tara recifense, que é querer aumentar o tamanho das coisas, mas isso é o de menos. Outro dia, cismaram que o Galo da Madrugada levava um milhão de pessoas às ruas, cantaram loas porque o negócio entrou para aquele chatíssimo Guiness Book, como se fosse a coisa mais importante do mundo. Este ano, vi em um dos jornais daqui, que eram dois milhões de pessoas acompanhando o bloco, e achei que estão tendo surtos. E não fica ninguém em casa não, é?

Do baixo da minha prosopopéia, eu peço: menos. O Galo é feito de milhares de singularidades. Querer contar é olhar pelo vício dos números, esquecendo do lirismo fundamental de toda grande festa coletiva. Famílias inteiras passam fantasiadas, sorrindo. Há pais bêbados que se tornam crianças. Surgem apaches de todos os lados, caboclinhos em cada esquina, guerrilheiros com suas boinas, burrinhas as mais diversas.

Talvez por isso, por causa deste meu envelhecimento precoce (37 anos e meio), me esbaldei em um dos mais belos momentos da programação cultural deste ano: o Recife Frevo Jazz, na tarde de sábado, logo após o Galo.

Eu estava me deslocando para o “Acho é Pouco”, quando esbarrei em um amigo, com seu inseparável Rum Montilla.

“Vamos aqui, ver uma coisa”.

Como sou amante do acaso, fui com ele. Estava começando uma apresentação daquelas, naquela rua onde fica o Bar Central, que esqueci. Caramba, velho esquece das coisas mesmo, visse? Sete grandes músicos (só lembro do Nando Rangel e do maestro Edson Rodrigues) entraram num jazz que me deixou sem voz. Aceitei que estou ficando velho, deixei o “Acho é Pouco” para outro dia, puxei um banquinho e fiquei, curtindo um dos melhores show do ano, num palco no meio da rua.

E então aconteceu o momento mais lindo da festa. Centenas de pessoas voltavam do Galo, absolutamente mamadas. Homens sendo equilibrados pela esposa, crianças no ombro, bem vermelhas, quatro amigos com os cabelos pintados de loiro, homens barrigudos usando fraldas patéticas, aquela coisa louca.

Eles esbarravam no Jazz, misturado com Frevo, e começavam a dançar.

Fiquei fazendo o que faz uma pessoa que envelhece: olha, em silêncio.

Lá pelas tantas, um velhinho chegou perto do palco. Estava descalço, sem camisa e usava uma calça verde, mais antiga que seus cabelos brancos. Era o mais bêbado que todos do Galo. Ele ficou dançando, em êxtase. Ao seu lado, cinco moças negras, daquelas bem gordonas. Elas estavam disfarçadas de policiais da Roccam, com boina, óculos escuros e tudo o mais que a Roccam adora. Quando vinha chegando gente, elas davam um famoso “baculejo”, à procura de nada, só de folia.

O velhinho escapou da polícia feminina, mas não escapou do Frevo Jazz. Ele se esbaldou, dançando muito. Eu aceitei a chegada sutil da minha velhice carnavalesca.


Para Beto Rezende, um amigo que vejo pouco, conspirador do Frevo Jazz.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Naná Vasconcelos: quando a chatice se institucionaliza

Amigos, fiz um trabalho e tanto. Depois de prometer ficar cinco dias sem escrever, para me dedicar à vadiagem do Carnaval do Recife, fui atingido por um surto psicótico da maior intensidade: resolvi ver de perto a abertura oficial da nossa grande festa. Pior que isso: resolvi beber pouco, durante o dia, para estar lúcido e escrever sobre a festa. Coisa mesmo de quem não tem o que fazer.

Foram horas de expecataiva, 4.500 tambores de maracatu, gente pra dedéu no Bairro do Recife, e depois de uma longa espera, só posso dizer que o Naná Vasconcelos está virando o nosso Carlinhos Browm. Fica por ali, se torna o rei da cocada, caminhando para a chatice, e todo mundo acha lindo, porque é o culturalmente correto, uma derivação do politicamente correto.

Sei que vai vir gente com aquele papo de resgate da cultura, aquela conversa da importância dos valores da cultura afro, mas o Naná Vasconcelos, a cada 10 segunsos só fazia gritar "Maracatu", e todo mundo respondia "Maracatu", e 569 batuqueiros entravam solando. É lindo meia hora, quarenta minutos, mas cacete, a noite inteira é para fazer a onça beber no tronco do juremá.

Teve uma hora que eu só pensavam em uma coisa, de forma obsessiva, doentia, que era o show da Maria Bethânia. Comprava uma cerveja, pensava nela. Olhava para uma moça bonita, pensava nela. Escutava pela trigésima vez o Naná Vasconcelos dizer "Maracatu", e pensava nela. Sim, a Maria Bethânia iria me redimir. Uma baiana, me salvando na abertura do Carnaval do Recife.

Justamente na hora em que saí para comer um sanduba, o velho sanduba do Carnaval, de procedência duvidosa, a velha baiana entrou. Engoli um cachorro quente em 27 segundos e meio e vim correndo. Ela cantou três músicas acompanhada por quem?

Pelos batuques do Naná Vasconcelos. Aquelas músicas de Iansãn, Oxalá, Baobá, típicas do Recife.

Depois ela saiu e entrou uma orquestra de frevo, que ficou de prontidão. Naná Vasconcelos:

"Maracatu!"

Cacete, eu já estava ficando puto com aquele negócio, apesar de gostar relativamente de Maracatu, coisa de vinte a cinco minutos por semana.

Tome maracatu no quengo. Mais duzentas alfaias por bairro. Lá pelas tantas, volta a Maria Bethânia. Cantou o Frevo do Recife Número 1, do Antônio Maria. Cantou meia-boca, mais lento que o necessário, lendo a letra e esquecendo partes, mas o meu lirismo engoliu tudo. Pelo menos as alfaias estavam quietas um pouco.

"Ai, ai, saudade, saudade tão grande
saudades que eu sinto do Clube das Pás do Vassouras..."

Terminou e zupt! ela foi embora.

Naná Vasconcelos voltou rasgando:

"Maracatu!"

Nâo deixaram nem a gente pedir bis, porque quem vai pedir bis com 3458 tambores tocando?

De formas que se a abertura do Carnaval do Recife de 2008 for com Naná Vasconcelos e suas 3.888 alfaias, ficarei lá pelo Cabo mesmo.

O bar do Amaro, mesmo com aquele charque meio gordo, é mais interessante.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Nota de Carnaval

O autor deste blog está de licença-Carnaval até a quarta-feira de cinzas.

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Gostaria de saber que rumo tomou minha leitora Fabiana Jones, mãe do Tiger, que morou na Inglaterra durante tantos anos,e que me mandou lindos cadernos e livros de presente. Dá para dar notícias, Fabiana?

Gostaria saber também de saber que destino tomou o meu amigo Agenor Soares da Silva, colega de 5a série no Salesiano de Fortaleza.

A todos, bom carnaval e próspero ano novo.

sama

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Já pendurei as chuteiras!

Fiquei sabendo que meu livro de crônicas, Estuário, está à venda na Livraria Cultura, aqui no Recife. Fui dar uma olhada, esbarrei nele fácil, uma prateleira bem localizada, a oeste da entrada principal. Olhei, cheirei, passei na maquininha de preços. Está por R$ 25,00 o mesmo preço de Seu Vital, só que Seu Vital, aquele do Poço da Panela, só me cobra 10% de taxa.

Em segundos, veio uma moça educadíssima, com uma voz mansa. Me deu a mão e disse que era funcionária da Livraria.

Meus delírios literários cresceram: 1)Poxa, ela lê o blog, viu o livro e veio cumprimentar; 2) Ela já viu um livro anterior, o Clamor, deu uma lidinha e notou que a edição de Estuário ficou boa.

A realidade foi um pouco dolorosa.

"O Senhor escutou um barulhinho quando entrou na livraria?"

"Não, eu sou meio distraído".

De uma forma muito educada, ela explicou que eu poderia ter entrado com um livro que tinha o sinal eletrônico da livraria.

"O senhor por acaso andou comprando algum livro aqui, nos últimos dias?"

"Moça, eu geralmente sou pego quando saio com livro sem autorização da livraria, mas um flagrante logo na entrada..."

Ela riu. Explicou de novo tudo, eu revirei a bolsa, tinha realmente dois livros comprados dias antes. Caramba, se eu soubesse que o sistema não estava funcionando naquele dia...

Ela trouxe uma máquina, explicou que certamente o sistema não tinha liberado o troço. Eu iria perguntar o motivo de a maquininha não ter apitado na saída, mas a coisa ficaria muito complicada, e ando querendo descomplicar as coisas.

Me mostrou a maquininha. Se ela encostasse no livro, apitasse e acendesse a luz verde, o livro ainda estava sem a liberação. Pensei em perguntar se eu poderia ligar para o meu advogado.

Ela encostou em "Balthasar", do Quarteto de Alexandria. Luz verde e buzinaço.

Encostou em "No centro sentimos leveza", do Bert Hellinger, a luz ficou verde e o pipipi aumentou. Pensei logo no camburão, algemas, tudo aquilo do sistema policial anti-ladrão-de-livros aposentado.

Foi o meu primeiro caso de ser flagrado entrando de forma indevida, com os amados objetos de leitura. Ela explicou que não era nada do outro mundo, mas já era tarde. Fui flagrado da forma mais inocente.

Me deu uma tristeza, esqueci até de Estuário. Com essa, pendurei as chuteiras de vez. É a famosa marcação homem a homem. No caso, foi uma moça educada.

Ela me deu inclusive um cartão da Cultura. Ela se chama Maria Gersonita R. de Souza. O R. deve ser de Ramos.

Gersonita, vai o aviso: pendurei as chuteiras.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Um quase amor de Carnaval

Ônibus Rio Doce/Dois Irmãos, domingo à noite. Defronte ao Centro de Convenções, uma multidão nas paradas de ônibus. Esou absolutamente sozinho, no ônibus, e o cobrador cochila com vontade.

Entram três jovens. Dois rapazes e uma moça, belíssima.

Ele sentam. Ela está com o pé ferido.

"Ai, está sangrando".

Um rapaz senta no banco de trás e fica segurando o pé da moça, uma das mais belas do Recife.

O outro senta ao seu lado, a segura, fica alisando seus cabelos, como se cuidasse de uma criança. Ela está meio bêbada e fica repentindo "está doendo tanto".

Os dois rapazes ficam nessa disputa. Um segurando o pé, o outro alisando seus cabelos. O do pé está em ligeira desvantagem.

Lá pelas tantas, o rapaz dos cabelos começa a avançar na pontuação. Os breves alisados caminham para carinhos. O outro solta o pé, se dando por vencido.

Saem beijinhos de leve. Ela esquece o ferimento e o ônibus segue. O cobrador, a essa altura, está totalmente acordado, aguardando um final feliz.

E então, o ônibus passa defronte a um supermercado, e a moça tem um tilte. Dá um pulo, como se o pé estivesse perfeito, e tudo fosse somente manha.

"Minha parada!"

Ela dá um pulo, dá o sinal, o ônibus pára quase imediatamente, ela desce assim, de sopetão.

Menos de cinco segundos, e fim de um caso de amor.

O rapaz que alisava seus cabelos fica perplexo. Pela cara, acho que nem o telefone da moça ele anotou.

O que segurava seu pé, olha e diz:

"Mas tu é muito tabacudo".

Eu e o cobrador nos entreolhamos, achando o desfecho meio doloroso para os dois rapazes.

E terminou assim mesmo, aquele final brusco, quando mal termina o filme, e acendem a luz na cara da gente.

E ainda nem chegou o Carnaval...

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Carta ao meu amigo Antônio Maria

Querido Antônio Maria,

Você iria adorar essa notícia. Sua estátua foi colocada na rua do Bom Jesus, no Bairro do Recife. Estás sentado, defronte a uma mesa, esperando um garçom eternamente ausente. Como a estátua fica defronte à escola que ensino, meus alunos já sabem da tua existência. Um dia, saimos da sala e fomos te ver. Alguns cantarolaram:

"Ai, ai/saudade/saudade tão grande..."

Você só não iria gostar de saber que seu nariz já está quebrado, coisa de quem se expôe demais. Mas o nariz, meu velho Antônio, nunca foi teu forte.

Creio que gostarias muito do Recife, às vésperas deste Carnaval de 2007. Algum gênio inventou uma história de que o frevo está completando 100 anos, e você sabe bem como a mídia adora essas coisas. Estamos aqui a reinventar a roda. Até um dia foi descoberto para o centenário do frevo, e o dia é hoje, 9 de fevereiro.

Mas a cidade está supimpa. Em todo canto tem música, o pernambucano está meio virado mesmo. Quase todos os meus amigos tocam maracatu, com excessão de Fred Jordão e Inácio França.Eu, com uma alfaia, sou um ótimo jogador de dominó.

Como acontece há 100 anos, Naná Vasconcelos vai fazer a abertura do Carnaval. Ele e mais 25 mil tocadores de maracatu.

Bem, amigo, estou sem muito assunto, vou encerrando por aqui.

Nos vemos a qualquer momento. Mas, como estás do lado de lá, não tenha pressa.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Nota carnavalesca

A tradicional Troça Carnavalesca Mista "Os Barba", fundada há seis anos no Poço da Panela, fará sua famosíssima prévia carnavalesca no próximo sábado, 10 de fevereiro. O local da concentração, obviamente, será defronte à mercearia de Seu Vital, defronte à Igreja do Poço, ou vice-versa.

O horário é incerto, entre 12h03 e 13h33.

Por milagres que nem os astros conseguem explicar, conseguimos uma orquestra, a do Maestro Dedé, que promete entrar rasgando, além de uma quantidade de Pitú suficiente para deixar todos bem mamadinhos não só antes, mas durante e depois da festa. Agradecimentos ao senhor Alexandre Férrer.

As camisas já estão sendo vendidas. Custam R$ 10,00 e foram pintadas pelos artistas plásticos do Poço.

Tá bom, que a nota carnavalesca está virando matéria.

Ah, Seu Vital este ano será o "Rei Barba" 2007. Dona Severina será a Rainha.

E apois.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

"Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa..."

Foi minha mãe quem descobriu outro dia:

“Meu filho, você já está há vinte anos no mundo”.

E de repente, sem que eu percebesse direito, o filme passou na cabeça. Lembrei até daquela música do Belchior - "Há tempo muito tempo que eu estou longe de casa". Um belo dia, em 1987, enchi uma sacolinha com algumas roupas, peguei uma caixa e meti os poucos livros dentro. Vim ao Recife, em busca de outra vida, que é essa que eu tenho.

Consegui trabalho na loja de um parente distante, aquela história do marido do primo da sobrinha da cunhada da tia-avó, um negócio que se a gente for contar direito, é apenas uma pessoa conhecida, que sabe da sua existência através de conversas ermas, em algum momento vago do Natal, quando todo mundo está empanturrado de peru.

Fui trabalhar contando vidros numa empresa, ali na Estrada do Encanamento, Casa Amarela. Até hoje, numa olhadela, sei todos os tamanhos de vidro. Aprendi também a montar e desmontar aquelas prateleiras moduladas de farmácia, aquelas de vidro, usando um martelinho com borracha nas pontas. Se o cara bater errado, puft!, o vidro esmigalha, e o patrão fica muito zangado. Sou meio desenrolado com algumas coisas, e rapidinho sabia como a coisa funcionava. Pec, pec, pec, com mais dois camaradas, e a gente montava estante como o quê. Acho que quebrei dois ou três vidros, no máximo, naquele “tempo dos vidros”, que dá até nome bom para livro.

Foi nesse período, em 1987, que descobri o fascínio pelo Recife, que vai permanecer até minha última respirada neste mundo. A turma de funcionários almoçava no Mercado de Casa Amarela, eu pegava carona com o Almir, aquele típico trabalhador brasileiro que gosta de trabalhar conversando. Santa Cruz doente, ele me levou ao Arruda e aconteceu este fenômeno: descobri somente aos 18 anos, que meu time de infância era o Santa Cruz. Quando dizem que sou Santa Cruz doente, eu digo que não, eu sou mesmo é muito atrasado.

Nesses vinte anos fora de casa, vivi muitas coisas, morei em dezenas de lugares, andei pelo mundo. Pelo meu ofício de jornalista, pude entrar em casas que nunca conheceria, saber das outras vidas, que às vezes passam paralelas ou anônimas. Pisei tapetes dos muito ricos, aqueles lugares que a gente não sabe nem onde sentar, para não incomodar o sofá, que custou mais que todo o meu salário do ano. Pisei em muitas casas com chão de terra, onde o café era o mais delicioso, servido por gente que tinha algo de mais fraterno, essa gente que dá o que nem tem. O pior café da minha vida lembro até hoje, no presídio do Carandiru.

Sou muito ruim de prêmio jornalístico, mas algumas matérias que escrevi me deram mais alegrias que o troféu e a grana dos concursos. Lembro particularmente de uma entrevista que encerrei pela metade, porque a pessoa estava chorando muito e sofrendo. “Não dá, né?”, foi o meu comentário, antes de desligar o gravador.

Naquele dia, compreendi que nada compensava aquela dor. Eu não tinha o direito de mexer tanto com a vida daquela mulher que lutou tanto contra a ditadura, que teve amigos mortos, torturados, desaparecidos. Escrevi um livro sem seu depoimento, e no dia do lançamento, enquanto um ator lia alguns trechos, ela estava de olhos fechados, segurando as mãos do marido, com lágrimas escorrendo. Esse é o grande prêmio.

Já fui contador de vidros, vendedor de cruzetas (que aqui chamam “cabide”), ajudante de várias coisas, auxiliar na Biblioteca Central da UFPE, secretário da ANPOLL (Associação Nacional de Pós Graduação em Letras e Lingüísticas), estagiário de uma penca de coisas, até que esbarrei nas redações de jornais, e achei que ali era meu lugar. Por duas vezes, consegui sobreviver com o seguro-desemprego. Uma vez, meu amigo Gustavo foi meu seguro-fim-de-mestrado. O meu bem material mais precioso é feito de papel: minha biblioteca.

De longe, o pior lugar que já trabalhei na vida foi a revista Veja. Isso merece outra crônica, mas é melhor deixar para outro dia. Não, melhor é deixar para lá mesmo. Lembro do alívio quando consegui ser demitido, e a alegria com o tamanho da indenização (a palavra aqui cabe muito bem). Tomei vários porres para comemorar. De longe, os dois lugares mais divertidos que trabalhei foram: a redação do Diário de Pernambuco (1992 a 1994), e do Diário Popular, de 1996 a 1998.

Cheguei ao Diário de Pernambuco só o osso, sobrevivendo dos rangos do Restaurante Universitário, o famoso “RU da Federal”, que alimentou muitas almas e sonhos, na época das vacas esqueléticas. Cada vez que viajava a Fortaleza, minha mãe providenciava um crediário (sim, leitores, esse negócio de crediário é uma invenção antiga e persistente da minha mãe) e eu voltava com roupa nova. O Vieira, repórter de Economia, não podia me ver entrar na redação, que soltava um grito, despertando a redação inteira:

“Quem era Samarone...”

Vinha para o meu lado, e começava:

“Esse rapaz chegou aqui usando uma sandália havaiana vermelha, outra azul, a camisa escrita “love” faltando o “v”, agora já está de camisa nova, perfume (me dava uma cheirada), usando até cinturão...”

Graça Prado se juntava e a coisa ficava uma cena de teatro. O bordão “quem era Samarone” ficava sendo repetido pelos dois. Eu, vermelhíssimo, tentava me esconder atrás de alguma pilastra inexistente.

Na Cristal, ali na rua do Imperador, conheci a velha guarda, que bebericava no intervalo, em qualquer intervalo. O velho José Maria Garcia, no seu cantinho, tomava suas doses, jogava no bicho e fumava. Como gosto muito dos velhos, fiz logo amizade e tive direito a entrar no livro preto do fiado logo na primeira semana de Cristal.

No Diário Popular, virei jornalista de verdade. Percorri São Paulo dos pés à cabeça. Fiz matérias sobre enterros, crimes, golpes, violações de direitos de todos os tipos, chacinas, estive em velórios, IMLs, hospitais, delegacias imundas, presídios, vi presos-bichos, amontoados, tuberculosos, entrevistei coveiros, mulheres de presos, promotores, juizes, ladrões, assassinos, delegados, policiais, tudo o que a espécie humana tem de melhor e pior.

A volta para a redação representava um bálsamo. O clima era muito divertido, amigável, animado. Josmar, o inseparável “Valente”, o melhor jornalista que já vi trabalhando, tinha uma piada atrás da outra, e costumávamos jogar futebol com um pedaço de jornal, que se transformava em uma bola. Ao lado do jornal, funcionava o velho e bom Mutamba. Dizem que o Adoniram Barbosa bebeu muito lá, fez uns sambinhas, mas não sei se é verdade. Ali tomávamos nossas garapas e discutíamos, inconformados com a situação do Brasil e outras coisas que não lembro.

Sim...mas onde eu estava mesmo?

Ah, lembrei. Estava começando uma reflexão filosófico-existencial sobre os meus 20 anos na estrada, mas acabei misturando os assuntos e não sei como terminar a crônica de hoje.

Fica assim mesmo, sem conclusão, vai um texto falando mais de mim, já que muitos leitores sabem apenas que eu existo, sou cabelodo-barbudo, tenho três livros publicados, várias árvores plantadas e nenhum filho. Foi bom porque lembrei de algumas coisas boas que fiz, e isso é motivo de alegria.


ps. Voltei a atualizar meu blog de poesias (www.quemerospoemas.blogspot.com). Amanhà escrevo uma crônica decente, que a preguiça está batendo à porta...

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Blocos, troças e outras paixões do Carnaval recifense

Ah, o recifense, esse eterno apaixonado pelo Carnaval.... Olhe para o lado, veja se alguém do seu trabalho, de sua família, da escola, não tem um bloco, uma troça. Alguém no Recife sempre está vinculado afetivamente a algum bloco, troça, algo que se movimenta, agrega, reúne, imortaliza, antes e depois da grande festa.

Aquele senhor muito sério, de cara dura, enigmático, antipático para uns, um mistério, para outros, poderá ser visto em alguma rua transversal, de algum bairro longínquo, carregando um estandarte a meio pau e dizendo que este ano ninguém segura o rojão da turma dele. Ele estará com os óculos devidamente embaçados pela neblina do àlcool, mas ninguém vai comentar que aquele é o homem sério da Compesa, porque ele estará protegido pela turma do "Bloco do Cachorro Manso", ou "Não sai do canto", ou nomes que a criatividade humana permite.

Quem não fundou um bloco ou troça, um dia vai fundar. Quem não ajudou a criar uma letra para ser cantada naquele dia do Carnaval, ainda vai criar. Em algum bar do Recife sempre haverá alguém com aquele peito estufado, olhos vazando luz, e um comentário:

"Ajudei a compor o hino do Sobe e Desce, do Alto Santa Isabel", em abril de 1975.

Bloco, troça, essa paixão tipicamente recifense. Uma paixão que envolve rifas, os famosos bingos de janeiro, confecção de camisas, o acerto com a orquestra do ano, a feijoada do dia, o pedido de patrocínio em ofícios meia-boca para Pitú e Prefeitura.

Bloco e troça, paixão que gera discussões acaloradas sobre o percurso, a falta de organização, mas cá entre nós, triste da troça que ganha diretoria.

"Meu bloco sai no sábado, na frente do bar de fulano, na Várzea", diz um camarada em um boteco.

Subitamente, ele tem algo que é seu. Pode não ter nada, mas tem algo. O seu bloco.

"Minha troça esse ano não está fraca não, visse?", diz outro, já renovado de algum fracasso recente. Se a sua troça não está fraca, como a vida vai ficar mais ou menos?

E no fundo, o que gera a paixão pelo bloco ou troça é justamente isso. Algo que se compartilha com amigos, que se perpetua nos bairros, nos lugares de trabalho, que dá uma volta no quarteirão, e na volta, já estão todos bicados. Bem diferente das confraternizações de dezembro, os blocos confraternizam sem as barreiras das mesas e o inusitado do amigo secreto. No Carnaval, o chefe do setor pode ser recebido com um bom abraço do contínuo, com o breve aviso:

"Já aprendesse a dançar frevo?"

A partilha da alegria, a certeza de que com muito pouco se faz uma festa. Uma bermuda, a camisa da troça, um estandarte, uma orquestra. Não é preciso jurados. Ninguém se apresenta para outros olhares, os legitimadores. Ninguém quer saber se tirou dez, em nenhum quesito. Todo bloco ou troça que consegue sair, mais um ano, apesar dos pesares, tira sempre dez. É apenas aquele porre de alegria, as ventas soltando fogo, quem achar bonito, que ache, quem não achar, problema seu.

É isso, talvez. Em cada bloco ou troço, tem um pedacinho quase invisível de cada um. É a beleza e a grandeza das coisas pequenas.

E cada um deles é um pedacinho precioso do belo Carnaval do Recife, que vai chegando como aquela grande onda, mas por enquanto só vemos e sentimos as marolas.


ps.Como não sou de ferro, outro dia ajudei a fundar a "Troça Carnavalesca Mista Os Barba", que sai da frente da mercearia de Seu Vital, no Poço da Panela, há seis anos. Esse ano, estamos mais esculhambados e atrasados que nunca, o que é uma virtude, para qualquer troça que se preze.