terça-feira, 31 de outubro de 2006

Investigações paralelas numa reunião dos Alcooólatras Anônimos

Desde que fiz as pazes com o meu pai, as viagens a Fortaleza têm tido este tom mais fraterno. Acabou aquela saia justa do filho-rebelde-que-enfrenta-o-velho x pai-achando-que-foi-injustiçado. Da vez passada, tomamos uma cana troncha e rimos muito, num forró meia boca, daqueles em que um tiroteio é a coisa mais natural do mundo nos próximos minutos.

Nesta nova viagem, meu pai veio com essa. Encontrar o meu tio, que está frequentando os Alcoólatras Anônimos (AA). Olhem, se o meu tio está há um ano sem beber, meus amigos, o AA já pode ser tombado como patrimônio da humanidade. O camarada bebia e não era pouco, e era sempre. Fui lá para dar uma força ao meu velho tio, apesar de ele torcer pelo Flamengo, essas coisas esquisitas de família que eu, ao exemplo do Belchior, nunca entendi bem.

Chegamos lá. Não posso dizer o bairro nem o nome das pessoas porque o troço é anônimo. Meu tio estava lá. Mais envelhecido. Ao seu lado, o meu padrinho, que só vi uma vez na vida, e dizem que foi quando nasci, no longínquo 1969 (eu estava doido para escrever "longínquo", hoje). Meu padrinho é o caçula da turma: está há reles, magérrimos, quase não-registráveis 22 dias sem beber. Vai ter que passar uma sede monstra, se quiser se garantir no AA.

Um sujeito de uns 50 anos, um negão retinto, carioca, conta sua história. Só pela cara dá para perceber que ele conhece todos os botecos do Rio e agora, de Fortaleza. O cara é cheio de gírias, malandragens e artimanhas. "Não me preocupava nem comigo", diz. A história é longa, começa pela época de Madame Satan, que, segundo ele, virava até viatura da Polícial. Isso, pelos meus cálculos, faz um tempão. "Hoje, eu bebo é a sobriedade", diz. Daqui a pouco, passa a bandeijinha. Vejo meu tio tomar um inocente, bucólico, pacato, quimérico chá de erva doce, e acho que milagres acontecem. Bebo um também, em solidariedade, apesar do Flamengo.

O negão falava pra chuchu. Olhei no meu caderninho, tenho quatro páginas só com ele. Mas vamos matar logo a curiosidade: está há dez anos sem provar da malvada. Segue o lema do AA, que é evitar o primeiro gole.

Depois veio um militar da reserva. Esse fez merda pra cacete, brigou, arranjou confusão com vizinho, e lembrou as ressacas monstras que passou. Todos chamam o AA de irmandade. Passou outro chazinho e bebi mais. Meu tio faltava apenas a coroazinha na cabeça, para ser um santo. O militar já estava com uns 15 anos invicto. Nem aquela cervejinha no fim-de-ano. O perigo é constante.

O outro camarada, meio fanfarrão, contou uma história deliciosa. Estava noivo, na praia com sua beldade, comendo carangueijo, e fazia questão de ir buscar o produto lá dentro, na cozinha. Uma amiga comentou:

"Poxa, esse teu noivo é tão atencioso! Ele faz questão de ir lá dentro, escolher nosso carangueijo!"

Só que era artimanha do nosso amigo. A cada viagem, tomava uma lapadinha. Quando chegou a conta, ele tinha ido ao banheiro e a noiva ficou espantada:

"Botaram 16 doses de cana a mais em nossa conta!"

Deu errado, como diz o velho sábio Naná.

A última história foi dramática mesmo. Um advogado estava no primeito dia. O cara torrou uma herança que não era pequena. Fazia as petições com a caninha do lado. Estava decidido. Começava naquele dia sua longa batalha. Veio mais um chazinho, mas o meu tio encheu o saco de chá, bebi só para constar. O clima ficou emocionante. Todos davam uma força. Somados, os três que deram depoimento representavam uns 40 anos longe do copo. Não sei como estariam se tivessem continuado. O cara que chegou me pareceu sofrido, mas disse que estava se sentindo acolhido e amparado pelo grupo. Meu tio me segredou que desde setembro está sem fumar, e comecei a achar um exagero. Pena que o Santa Cruz esteja caindo pelas tabelas, porque mais tarde joga contra o Flamengo, no Maracanã, e podia dar uma boa lapada. Ôps, o trocadilho foi infame.

A reunião terminou às 21h e sete páginas de anotações a mais no meu caderno de investigação dos fatos paralelos. Saímos, conheci mais meu padrinho, que morou um tempão na Bahia e parece ser gente boa. Pela cara, acho que ele vai aguentar somente uns 30 dias. Dei um Estuário de presente para meu tio, outro para meu pai. Meu pai tem uns 63, torce pelo Fluminense, meu tio tem uns 60, é louco pelo Flamengo, mas quem está lascado mesmo é meu Santa Cruz, com 24 pontos, e matematicamente na Segunda Divisão do ano que vem.

No caminho de volta, meu pai perguntou onde a gente poderia tomar uma cervejinha.

"Não dá, pai. Depois de uma reunião dessas, o cara não tem clima para beber".

Terminei a noite tomando um inocente sorvetinho, com a dona Ermira e minha irmã.

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Um dia de votação em Fortaleza

Diretamente de Fortaleza, no Ceará.

Vim a Fortaleza com uma missão clássica: votar em Lula. Cheguei apenas com a cópia da justificativa do primeiro turno e a esperança de botar o 13 e depois o "confirma".

As coisas, para algumas pessoas, são mais difíceis. Amanheci o domingo com os amigos no jardim, saboreando a deliciosa Ypióka, enquanto a dona Ermira, que vem a ser minha mãe, preparava um cozidão. Água no jardim, cachaças e os petistos da mamma. O sujeito vai querer mais o que da vida? Eu queria mesmo era que Lula desse uma lapada.

No final da manhã, tia Lourdes, moradora aqui da frente, foi votar no Maracanaú. É como se uma senhora de 73 anos decidisse votar no Cabo, só para não perder o voto. Fui com o Neto. Na entrada, vem um velhinho.

"São dois votos de coração: no primeiro, e no segundo turno. Deixei o rosto dele aparecer para olhar ele direitinho e dizer - é você mesmo", me contou um velhinho. Usava um adesivo de Lula.

Tia Lourdes votou a jato. Voltamos com as bandeiras tremulando. Não sei como foi no Recife, mas Fortaleza estava toda vermelha.

À tarde, saí com o Pepo, Neto, Roncalli e meu irmão, o Tonho, para votarmos. Minha mãe já tinha votado em Lula. Com o dela, o de tia Lourdes, eu e meus amigos, Lula já começou o dia com sete votos. Depois vieram outros milhões. Minha irmã, Mônica, foi de Alkmim. Aqui, só chamavam ele de "Àlcool em mim".

Na primeira escola, onde estava meu título de eleitor, informaram que tinham mudado a secção. Fomos para outra. Comecei a entrar em dezenas de secções, e nenhuma tinha meu nome. Fomos para outra escola. Tinha uma faixa na frente:

"Mudamos para o Círculo Operário".

Eita, foi lá que aprendi datilografia: asd asd asd asd asd

O Pepo também lembrou da escola, e até da professora. Eu e o Pepo viramos jornalistas. Viva o curso de datilografia do Cículo Operário! A professora, creio, se chamava Miriam.

No Círculo Operário, bati todas as secções. Estava desistindo, quando o Pepo sentenciou:

"É aqui que tu vota".

Na última sala, o milagre. Meu nome estava lá. Foram quase vinte secções percorridas por este jovem que vos fala. Apertei o 13, vi o barbudo, esperei um pouco e confirmei.

Depois andamos pela cidade e derrubamos mais dois litrinhos, no Jardim. À noite, a festa foi na Avenida da Universidade. Eram milhares de pessoas.

Antes, passamos na casa da Mirtes, mas ela estava mamadinha.

Senti falta do mano, o Paulinho, que está em Minas.

Não lembro de muita coisa da festa, nas ruas. Eu já tinha tomado umas garapas, e não sou de ferro.

Dizem por aí que o senhor Inácio França vai ser convidado para a equipe de governo.

Sabem qual o lema da Prefeitura de Fortaleza?

"Fortaleza Bela: quem ama cuida".

Hoje estou telegráfico, mas escrever de lan house provoca isso.

Amanhã, já no Recife, botarei este blog em dia. Tem uma dezena de novas crônicas para postar, inclusive a que fala do dia em que virei frade franciscano, da ordem menor, no Agreste de Pernambuco.

Ah, a manchete do jornal O Povo, de hoje:

"É Lula de novo".

Bem original.

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

O amor do voto de Inácio e o desencontro dos brasis

Estava conversando ao telefone ontem á noite, com meu velho amigo Inácio França, quando o celular dele tocou. Era o chefe de gabinete da Presidência da República, o digníssimo Gilberto Carvalho. Ele pensou que era trote, claro, mas foi conferir. Disse que depois me ligava.

O Gilberto Carvalho disse que estava ligando em nome do Presidente da República, o senhor Luís Inácio Lula da Silva. É que Inácio escreveu um texto, há uns 10 dias, intitulado "O amor do meu voto", e postou para uns cinquenta amigos. O texto virou uma coqueluche da Internet.

Na segunda-feira, dia do debate da TV Record, o texto de Inácio acabou chegando à esposa de Gilberto, que repassou para o marido e, no começo da tarde, o próprio Lula recebeu uma cópia enviada pelo chefe do seu gabinte. Estava concentrado para o debate, certamente um pouco tenso, quando começou a ler essa pequena pérola, "O amor do meu voto".

"O presidente pediu para localizar o autor do texto, para dizê-lo que não apenas leu, mas se emocionou muito e chorou ao final", explicou Carvalho.

Mais que isso. Após a leitura, Lula sentiu uma imensa tranqüilidade. Estava pronto para mais um combate. Podia vir a besta-fera, que ele saberia enfrentar. Não era um material preparado por assessores, era um texto relativamente curto, produzido por uma pessoa que o presidente nunca vira.

"Ele pediu também o seu endereço, para mandar uma correspondência".

Inácio só fazia dizer "porra", "caralho", até que lembrou do velho amigo Laércio Portela, também jornalista, ex-assessor de imprensa de Humberto Costa, que mora em Brasília está trabalhando lá no Planalto.

"Isso é gréia de Laércio, não é?", perguntou Inácio.

Gilberto conhece Laércio. Jurou que não era nada de brincadeira, que Laércio não estava ao lado, dando risadinhas. Falava em nome do presidente. Repetiu a história. O texto está em tudo que é email, tem circulado muito pela Internte, acabou chegando ao presidente, e calou fundo.

"Teu texto foi a última leitura que ele fez antes do debate. Ele ficou tranquilo. Estava pronto", repetiu Gilberto.

Então a ficha de Inácio caiu. O pequeno texto enviado sem pretensão, para um grupo de amigos, acabou sendo a base sólida para Lula caminhar tranqüilo, no último debate.

Inácio me disse há pouco que já foi duas vezes à portaria do seu prédio, somente hoje, para ver se chegou a carta do presidente. Até a chegada da missiva, ele prometeu que vai repetir a pergunta:

"Meu querido, por acaso chegou uma cartinha do Lula para mim?"

Faltando quatro dias para o segundo turno, reproduzo o texto na íntegra, porque o amor do voto de Inácio é o mesmo amor do meu voto.

Samarone Lima, cronista recifense, declaradamente de esquerda, vai viajar domingo para Fortaleza, no Ceará, para votar em Lula.

**

O amor do meu voto

por Inácio França

Para se chegar a Olivedos de carro é preciso entrar à direita numa estrada de terra, 30 minutos depois de Campina Grande. Pouco mais de 3.300 pessoas vivem no município, a maioria em modestas casas construídas ao redor da pequena igreja matriz, pintada de amarelo. A caatinga que marca a paisagem dos Cariris Velhos, agreste paraibano, começa já no quintal das casas.

Numa viagem profissional às vésperas do feriado, passei algumas horas na cidade, tempo suficiente para cumprir a tarefa de acompanhar uma avaliação da gestão das políticas sociais do município. Tempo suficiente para as explicações racionais e ideológicas, que justificaram meu voto em Lula no primeiro turno, perdessem sentido.

Em Olivedos, pressenti que meu voto em Lula no segundo turno será um momento de intensa emoção. Um voto carregado de orgulho, um voto com amor.

Isso tudo porque cheguei cedo à cidade, uma hora antes do previsto. Aproveitei, então para perambular pela cidade e conversar com algumas pessoas que participariam da reunião. Logo me chamou a atenção o movimento diante de uma casinha pintada de verde, na verdade, uma espécie de garagem, com apenas um cômodo. Em fila diante da garagem, alguns homens simples, ao lado de jumentos que carregavam nas laterais aquelas enormes garrafas de alumínio para transportar leite. Dentro do imóvel, um enorme tanque, da altura de um homem adulto, com uns aparelhos modernos e um painel digital, algo improvável numa casinha simples, cercada de mandacarus, xique-xique, juremas e algarobas.

Uma senhora, que se apresentou como presidente da “associação”, explicou que aquele tanque era refrigerado, garantia a conservação do leite até meio-dia, quando um caminhão de uma empresa levava o alimento para a fábrica, em João Pessoa. Com a venda do leite, cada um dos pequenos criadores, donos de minúsculos lotes de terra e três ou quatro vacas, fatura até R$ 550,00 por mês. Até o ano passado, a principal fonte de renda dessas pessoas era o dinheiro da aposentadoria, um salário-mínimo, recebido geralmente pela pessoa mais velha da família.

Antes, esses criadores só tinham uma saída: percorrer a cidade em seus jumentos, vendendo diretamente para os moradores da cidade por R$ 0,30 cada litro. Às 10h, por causa do calor, o leite começava a estragar. O desperdício era grande. Hoje, a empresa paga R$ 0,70 por litro, dos quais R$ 0,05 fica na associação para pagamento dos impostos e do salário do rapaz que recebe o leite e faz os exames para controlar a pureza do alimento, antes de colocá-lo no tanque refrigerado.

O tanque foi comprado com recursos do micro-crédito de um programa do Ministério do Desenvolvimento Agrário. O rapaz aprendeu a testar a pureza do leite num curso na capital, pago com recursos federais.

Na mesma rua da garagem onde funciona a cooperativa de leite, está a Escola de Ensino Fundamental Monsenhor Stanislaw. Orgulhosa, uma funcionária da prefeitura me leva para conhecer as obras do auditório da escola, que está sendo construído no lugar de um galpão cujo teto já ameaçava os alunos. A obra também parece improvável naquela cidade: o auditório terá capacidade para 300 pessoas, 10% da população da cidade, e está sendo construído em forma de anfiteatro, com poltronas confortáveis que já chegaram e estão guardadas, prontas para serem instaladas. “Quando o auditório, ficar pronto os meninos da banda de Pífanos e do coral vão ter onde se apresentar”, antecipa a funcionária.

Perguntei de onde veio o dinheiro, a senhora se espantou, respondendo quase indignada com tamanha ignorância: “do Ministério da Educação”.

Mais adiante, buracos abertos no calçamento de paralelepípedos, na área em torno do colégio. A funcionária, grávida de oito meses, informou que aquelas eram obras do saneamento e da rede de esgotos. Segundo ela, até o final de 2007, Olivedos estará 100% saneada. Antes que eu fizesse mais outra pergunta besta, ela foi logo dizendo que o dinheiro veio do Ministério das Cidades.

À tarde, depois da avaliação, se desculparam porque eu não poderia conhecer o prefeito. “Josa (esse é o apelido do prefeito Josimar) foi em João Pessoa assinar um convênio para conseguir mais cisternas e banheiros pro pessoal da zona rural”. O convênio foi assinado na Fundação Nacional de Saúde., que já custeou a construção de dezenas de outras cisternas e banheiros que funcionam com água da chuva, captada por calhas, assim como as cisternas.

A caminho do Recife - onde vivo a mercê do noticiário da TV e da ótica de amigos que recebem salários razoáveis, vivem em apartamentos como o meu, com banheiros confortáveis, em ruas asfaltadas de classe média e filhos estudando em imensos colégios particulares – avaliei o quanto esses Brasis não se relacionam, não se conhecem. Compreendi o tamanho do abismo que nos separa e quanto está sendo feito para reduzir essa distância.

E entendi os motivos do ódio e da mobilização daqueles que sempre tiveram livre acesso aos recursos que correm nas veias do Governo Federal. Mais do que saber a origem do dinheiro, o que as elites brasileiras querem mesmo é mudar o destino do dinheiro, Afinal, para assegurar crédito para latifundiários e empresários (que nunca pagam o que conseguem nos bancos públicos), é necessário deixar de lado a construção de mais cisternas, novos auditórios em escolas sem estrutura, rede de esgotos e a ajuda para cooperativas de leite.

Mas, finalmente, compreendi porque os moradores de Olivedos se referem ao presidente da República como alguém da família. Luís Inácio Lula da Silva, para os olivedenses, é o “nosso Lula”. O Governo Federal está tão perto que o presidente é íntimo de todos eles.

terça-feira, 24 de outubro de 2006

Perambulações pelo Agreste - parte II (a missão)

Camocim de São Félix, Agreste de Pernambuco.

Sim, mas como eu vinha contando, minha expedição das forças desocupadas precisava de novas fronteiras. Depois de vasculhar São Joaquim do Monte e cheirar o túmulo de Frei Damião, era o momento de conhecer Bonito, ali na região, porque dizem que a cidade é bonita pacas. Botei meu tênis, catei a bolsa bolsa, o canivete, uma garrafa d´água e uma discretíssima maçã. Faltou-me uma bússola, para ficar igualzinho ao cinema, mas eu não me oriento nem com bússola.

No centro de Camocim de São Félix, sou informado que o ônibus acabou de sair. Não desanimo. O negócio é ir caminhando mesmo. Pocot, pocot, pocot, lá vou eu.

Daqui a pouco, à saída da cidade, passa a singela, bucólica e inenarrável figura de uma Belina, de ano incerto e não-sabido. Alguns de vocês, os mais velhos, devem saber do que falo.

“Vai para Bonito”, me pergunta o motorista.

“É carona ou é frete?”, pergunto.

“É só dois e cinqüenta”, me responde o rapaz.

Entro na Belina. Falta pouco para ela se desmanchar, de tão remendada. Vou na frente, e como tenho as pernas meio grandes, sempre fasto a cadeira para trás, puxando aquela alavanda. Temendo arrancar a cadeira do lugar, fico na minha. Daqui a poucos metros, mais três passageiros. Um com cara de agricultor, um com cara de contrabandista e uma senhora, com cara incerta, e um pandeiro imenso. A Belina gemeu, com tanto peso e o motorista sentou o pé.

Amigos, o povo no Agreste gosta de uma carreirazinha, visse? Daqui a pouco, a Belina voava rasante, e tive saudades da motoca do dia anterior (veja crônica passada). Como sou de puxar assunto, comentei o verdinho das plantações. O motorista informou, solene:

“Sabia que aí tem vinte e cinco mil pés de tomate?”

Sabia não, inclusive fiquei impressionadíssimo.

“E é tudo do mesmo dono”.

Eu quero é novidade, meu camarada.

Cheguei vivo a Bonito, para uma perambulação pela cidade. Fui por ali, voltei, cheguei a uma Igreja, lá no topo, tinha o busto de alguém. Fui lá, ver quem era. Acho que era o Barão de Bonito, creio, mas estava escrito somente “Priscila”, onde tinha a placa, outrora. Francamente, Priscila, francamente..

Ao lado da igreja, uma bela, mimosa, decente e bucólica casa azul, com aqueles pés de laranja ao redor, sombra para tudo que é lado, e a placa: "vende-se esta casa".

Imediatamente, me deu vontade de morar em Bonito. Bati palmas até cair o couro das mãos, mas nem um reles vira-lata apareceu. Não deixaram telefone, de sorte que não fechei o negócio, e continuarei morando, até ordem contrária, no Poço da Panela.

Desci, andei para um lado, para o outro, até que me veio aquele desejo antigo de ir à cidade vizinha, “Alto Bonito”, porque dizem que tem o rio Prata, a barragem, o povo tomando banho, e estou com meu calção de banho azul-desbotado por baixo, para o caso de aparecer algum açude ou barragem. Vou matar saudades dos banhos de açude da infância. Vou andando de novo. Pocot, pocot, pocot.

Lá pelo quilômetro três ou quatro, me dá um cansaço físico e espiritual. Paro à beira da estrada, como a maçã olhando a paisagem, bebo uns golinhos d´água e fico pensando na casinha, ao lado da igreja. Puxa vida, morar numa cidadezinha do interior, a duas horas do Recife, com cachorro fazendo festa na hora de passear e clima de montanha ao anoitecer! Ali sim, eu iria escrever umas crônicas supimpa. Melhor que isso, morar numa cidade chamada Bonito!

Fico pensando na minha burrice. Deveria ter perguntado a algum vizinho quanto custa a casa, para demonstrar o interesse, dar um sinal, algo assim. Vem aquele sentimento de ter perdido uma oportunidade de ouro.

Mas dá um vento contrário e caio na real. O sujeito só compra uma casa com dinheiro, e não estou com essa bola toda.

Volto para Bonito. No caminho, passo por um pequeno açude, estão três meninos brincando, pulando, jogando água um no outro. Vejo claramente Paulo, Antônio José e Samarone, muitos anos atrás, e me dá uma saudade imensa dos meus irmãos.

Chego vivo à rodoviária de Bonito e espero um ônibus para Camocim. Fico tomando suco de maracujá com canudinho, o melhor suco que existe no globo terrestre, olhando as pessoas na rodoviária. Anotei um monte de diálogos, mas o caderninho não está aqui, fica pelo menos o registro – anotei vários diálogos na rodoviária de Bonito.

Uma moça bonita, com aquele rosto forte de gente do interior, as pernas fortes, de galinha de capoeira, chega perto do namorado e comenta:

“Mas é parado aqui, né? Sou mais o Recife mesmo”.

O rapaz faz que sim com a cabeça. Não sei se o sim é sim ou se ele gosta mais dali mesmo, com aquele ventinho suave lambendo seus cabelos.

Volto para o convento mais cansado que no dia anterior. A moça me pergunta para onde fui.

“Para Bonito”.

“A pé?”

“Sim, a pé mesmo?”

Ela fica horrorizada.

“É que já fui maratonista, então tenho resistência”, digo.

“Vinte quilômetros para mim, é como ir ali na esquina”. Aí eu já estou mentindo de com força.

Em seguida, quase não consigo subir as escadas.

Terei que contar, mais tarde, do meu encontro no convento com as velhinhas de uma excursão, e de como me transformei em um frade franciscano num piscar de olhos, com viagens missionárias as mais emocionantes, para várias partes do Brasil e África.

Mas isso fica para amanhã, para criar um suspensezinho, que ninguém é de ferro...

segunda-feira, 23 de outubro de 2006

Perambulações pelo Agreste - I

Camocim de São Félix, Pernambuco.

Chego ao Convento das Carmelitas, aqui em Camocim, depois de viajar pela Borborema, saindo do TIP, que por sinal, anda meio derrubado. Ao lado, viajou uma freira, mas não me deu muita bola, e acho inclusive que ela era de outra ordem.

Vou chegando a alguma cidade, pergunto ao camarada da frente se ele sabe onde fica o convento. Ele informa que o ônibus vai parar mesmo na frente, e que me avisa. Cinco minutos depois, digo aquele "e então", e ele me responde com um "esqueci não, visse?". Pergunto se faz frio à noite. "É clima de montanha", informa, e lembro que esqueci meu cachecol e minhas mantas.

À entrada da cidade, veo que meu amigo está certo. "Bem vindo a Camocim de São Félix. Clima de montanha. Altitude: 723 metros". Eu, que tenho um medo ancestral de altura, já começo a ter vertigens. A cidade foi fundada em 1954, mas fizeram uma covardia com o fundador: sequer o nome completo dele colocaram na placa.

Chego ao convento. Um silêncio santificado no imenso espaço. Ganho um quarto confortável, com duas camas, uma mesinha e banheiro. Ao contrário de muitos conventos espalhados pelo mundo, este tem chuveiro elétrico com água forte e quente. Leio o aviso detrás da porta. Não pode fumar nem dentro nem fora do lugar. Como só tenho fumado ultimamente nos jogos do Santa Cruz, não terei problema.

Feito o reconhecimento do terreno, hora da primeira expedição. Vou ao centro, vejo a igreja, a praça, a prefeitura, as pessoas simples, e à saída da cidade, esbarro na imensa placa:

"São Joaquim do Monte - Santuário de Frei Damião".

Embico rumo a São Joaquim imediatamente. É uma caminhada longa, pela beira da pista, mas como sou bom no galope manso, vou seguindo, debaixo de um sol cortante. Os carros passam por mim tinindo. É cada fino do caralho. Duas horas depois, chego à cidade. A língua está por ali e os pés doem. Vou olhar qual é o problema: comprei um tênis 43, quando calço 44. Essas minhas distrações me lascam.

Olho a paisagem de São Joaquim do Monte. Farmácia Frei Damião, Mercadinho Frei Damião, Açougue Frei Damião, Foto Frei Damião, Lanchonete Frei Damião, Bomboniére Frei Damião, e por ai vai. Paro e peço uma água de côco. A senhora que me atende é de uma simpatia brutal. Olho na parede uma moldura de Miguel Arraes, com um baita sorrisão. Pergunto quem vai ganhar as eleições por aqui.

"É Lula lá e Dudu aqui".

Dudu vem a ser o senhor Eduardo Campos, candidato ao Governo. São as tais intimidades eleitorais.

Depois da água, tomo um café. O café é de grátis, e consegue ser mais doce que o de Seu Vital. Ela me informa que o prefeito da cidade também está com Lula.

O Santuário de Frei Damião está a um quilômetro. Vou me arrastando, com os pés doendo. Agora, na verdade, já estou até chateado com o Frei. Descubro que caminhei dez quilômetros com um sapato apertado. Vou devagar, reparando as propagandas políticas. Em toda esquina, tem uma foto de Inocêncio Oliveira. Depois de dez minutos, é impossível não decorar o número dele: 2233. Se a eleição fosse hoje, acho que eu erraria o meu voto para Deputado Federal, e o Paulo Rubem perderia meu singelo voto. Entraria na cabine, e marcaria o 2233 sem nem perceber. É o tal voto por osmose.

Estou a 500 metros do Santuário, cansado, com fome, os pés mastigados, então me vem uma pergunta: Mas que diabo de tanto esforço é esse, para ver o Santuário do Frei Damião?

Logo me vem aquela preguiça fundamental e descubro que nunca tive essas simpatias todas pelo velho frei (que ninguém na cidade perceba). Sou mais o Padim Ciço Mesmo, depois do amadíssimo São Francisco, Gustavo não me deixa mentir. Dou meia volta, esbarro na milésima propaganda de Inocêncio e paro em uma pracinha, para tomar minhas notas aleatórias.

Passo de novo na lanchonete, peço outro côco.

"Mas já visse o Santuário?", pergunta.

"Era só para rezar uma oraçãozinha e agradecer pelas coisas boas que têm acontecido", respondo.

De novo, café de graça.

Olho a paisagem e me vem aquele cansaço da metade da tarde. O sol ainda está rasgando. Inocêncio fica rindo para mim, e penso em como voltar para casa. Olho ao norte e vejo uma tuia de motoqueiros. São os famosos Moto-Táxi. A viagem de volta sai por R$ 7,00. Contrato o serviço, mas como o capacete não entra em minha cabeça, vou com o vento no focinho.

O motoqueiro tem um plano secreto de se suicidar comigo. Estamos voando pela pista, e de vez em quando ele se vira, para comentar alguma coisa. Olha pra frente, infeliz, penso em dizer. Se a moto virar, eu viro uma papa.

Chego ao mosteiro vivo, suado, cansado com número de Inocêncio na cabeça: 2233. Penso em ligar para Seu Vital, para ele jogar no bicho, mas preciso me desapegar do Poço, pelo menos por uns três dias.

Mais tarde, antes de dormir, coloco mais uma postagem. Descobri uma lan house com dez computadores, mas está invariavelmente entupida. A moçada do Agreste também adora um Orkut, então fico na linha de espera.

Ps. desculpem eventuais erros, escrevi na tora, porque o troço aqui cai direto.

sábado, 21 de outubro de 2006

Cronista on the road

Caríssimos leitores,

A partir deste sábado, estarei pelas bandas de Camocim de São Félix, nestas minhas perambulagens pelo mundo. Vou com o mochilão, alguns livros e cadernos, para me desatualizar do mundo. É trabalho e vagabundagem, em proporções iguais.

Se por acaso eu encontrar uma lan house perdida, mandarei crônica nova, tratando, obviamente, das minhas besteirinhas habituais.

Como ficarei num convento da Ordem Carmelita, certamente encontrarei histórias carmelitas para contar.

Caso contrário, somente na segunda-feira teremos novidades.

E la nave va.

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Anotações sobre o dia mais quente do ano e outras lorotas

Amigos, passei o dia de ontem pensando em uma crônica supimpa, algo inovador e criativo, mas ao final da jornada, depois de seis ônibus para destinos os mais diversos, o personagem da semana acabou sendo apenas um: esse calor miserável que está derretendo o Recife e seus milhares de habitantes. Não me furto em proclamar do alto da minha prosopopéia, que tivemos, nesta terça-feira, o dia mais quente do ano.

O pessoal da metereologia pode negar, apontar seus dados e números, mas dentro do ônibus da Transcol, na 17 de Agosto, voltando para casa, o menos suado tinha uma bica na cabeça. Ali pelas três da tarde se transpirava um calor infame, daquele em que a pessoa solta uns gemidos de vez em quando e implora por um ventilador no três, junto ao focinho. A camisa está devidamente colada às costas. Sonha-se com um banho de açude, com um picolé da Maguary-Kibom, sente-se inveja de quem passa naqueles carros macios e com ar-condicionado ligado no três. Nesse momento, dá saudades daquelas féias na Suiça.

Como o Recife é uma cidade muito temperamental, as coisas aqui aparecem e somem numa velocidade espantosa. Outro dia, tivemos a febre dos microônibus-com-ar-condicionado. Era o seguinte: o sujeito saía do inferno, aquele calor insano na parada de ônibus, e entrava num pequeno ônibus, delicadamente apelidado de “geladinho”.

Minto. O sujeito entrava era numa fria mesmo, porque o ar-condicionado do tal geladinho parecia ter vindo ali da Sibéria, com lufadas típicas do inverno Russo. Informo que os citados veículos não serviam vodka, para a turma se segurar. Desconfio inclusive que alguns velhinhos tenham sucumbido, diante dos problemas pulmonares causados pela mudança de um clima quente e úmido recifense, para o gelo de uma Europa oriental, numa questão de segundos.

Pois bem, depois da morte em massa dos velhinhos, os tais geladinhos de repente sumiram do mapa, pelo menos para as bandas de Casa Forte, onde vim a fixar minha residência, há quatro anos. A Transcol, do meu amigo Lucimério, parece que estava gastando muito com o ar-condicionado, e mandou recolher os coletivos. Resultado: voltamos ao velho ônibus comum. No lugar do microônibus, ficamos agora com um microondas. Rarara, hoje estou meio engraçadinho. Como ninguém reclamou, ficou por isso mesmo. São os modismos daqui. Depois do fenômeno, comecei a reparar a ausência de dezenas de velhinhos que faziam caminhadas na Praça de Casa Forte e adjacências. Deve ter sido a praga dos geladinhos, que matou muito vôvô, coisa para uma investigação jornalística posterior. Lamento informar, mas não vejo graça nenhuma em chamar os velhos de gente da "terceira idade". Velho para mim é velho.

Não sei como anda a questão nas demais cidades brasileiras, mas aqui praticamente não tem mais carro sem vidro fumê. É a moda da vez. O bom é que tem amigo que passa por você, de carro, com aquela cortina preta nos vidros. Ele vê você na calçada, tomando um sol de rachar, suado, e dá um aceno, supondo que você tem um olhar infra-vermelho. Aos amigos que têm carro com vidro escuro, informo que não adianta ficar me acenando de dentro para fora, quando eu estiver na parada de ônibus, que ainda não tenho o dom de ver as coisas através de vidros fume. Melhor que ficar acenando, é parar, baixar o vidro e oferecer uma caroninha básica.

Diante do calor recifense, me surgiu outra pergunta filosófica da maior importância. Quem é a criatura responsável pelas paradas de ônibus dessa cidade? Esse gênio da humanidade deveria ganhar um busto na Sorbonne, pela capacidade de fazer algo misterioso – deixar a sombra sempre na parede mais próxima ou a dois metros da calçada, onde passam os carros e ônibus, e não podemos ficar. O único momento do dia em que o Recifense tem sombra na parada é ao meio dia, sol a pino, debaixo daquelas marquizes de ferro.

O método mais utilizado pelas bandas de cá tem sido mesmo recorrer ao velho e salvador poste, esta composição do cenário que passa desapercebida, mas tem uma enorme função social, além de sustentar fios e ser mictório dos caninos. Quando o sol entra rasgando, fica aquela sobrinha estreita do poste, na calçada, e a turma vai se escondendo por ali. Ontem mesmo, perto do Clube Português, fiquei puto com um camarada que pegou minha vaga detrás de um desses postes. Quando fui caminhando para uma sombrinha mansa, ele zapt!, deu três passos gigantes e ficou lá, na minha vaga, dando umas risadinhas sonsas, igualzinho ao Scoobydoo. E o infeliz ainda estava com a camisa do Náutico! A vida de tricolor não anda fácil mesmo. Até vaga na sombra, atrás de um poste, estamos perdendo.

No último ônibus, já às 18h, eu estava meio desolado mesmo, arrependidíssimo de ter cochilado e batido meu velho Fusca. O Alto Santa Isabel, saindo do Recife Antigo, demora três dias e três noites para chegar à Praça de Casa Forte. Como estava com o volume I de “As Mil e Uma Noites”, comecei a ler, cochilei, li mais umas noites, dormi, sonhei, acordei, li a Sherazade com aquela conversinha fiada, e quando estávamos já chegando à noite de Natal, avistei a Praça de Casa Forte. Desci. Mais uma caminhada, até o Poço da Panela. Pocot, pocot, pocot, lá fui eu.

Cheguei em casa, tirei as sandálias, larguei a bolsa no chão mesmo e decidi: hora de um bom mergulho na piscina.

Piscina? Que piscina?

O chuveirão frio estava uma delícia.

**

Onde encontrar o livro Estuário?
1. Mercearia e bodega de Seu Vital, defronte à Igrejinha do Poço da Panela. Falar com Seu Vital. Fone: 3442.5473.
2. Locadora Altas Horas, do glorioso Vicente, que fica na Avenida 17 de Agosto, 1161, loja 03, Casa Forte. Fones: 3267.9800/3074.6567. Falar com Vicente, lógico.
3. Escola Kabum! de Arte e Tecnologia (mediante autorização especial da chefa Michela). Fica na Rua do Bom Jesus, é 147, no Recife Antigo. Quem quiser uma dedicatoriazinha básica, estou por lá toda terça e quinta, na parte da manhã. Informo que só posso fazer a dedicatória na hora do recreio, que é de 9h45 às 10h15, ou após as aulas, a partir das 12h10.

Nos três locais, a belezoca custa R$ 25,00.

sexta-feira, 13 de outubro de 2006

Somente mais um feriado

Não sei de onde saem essas minhas idéias. Quinta-feira, feriadão de Nossa Senhora, estou no Cabo de Santo Agostinho, um sol de rachar o cano, todo mundo está na praia. O que o pateta aqui resolve fazer, depois do almoço? Ir à livraria Siciliano, no Shopping Guararapes. Motivo: a lenda de que a citada livraria estaria com um queima generoso - 50% de desconto em todos os livros.

O Shopping é longe pra chuchu. O fato é que às 14h33 estava lá, cutucando as prateleiras. Amigos, informo que a promoção é uma balela: muito livro ruim. A muito custo, depois de horas de pesquisa, consegui comprar os dois volumes de "As mil e uma noites", que saíram por R$ 104,00. Com a promoção, as belezocas foram adquiridas por R$ 52,00.

Sobre o shopping, nada a declarar. A turma não tem do que reclamar do Lula, porque havia engarrafamento de gente. Acho que o mais liso ali era eu.

Saio caminhando pacificamente, com meu passo de camundongo, em direção à parada, e descubro que sou o homem errado na hora infame. São 16h22 e a praia inteira de Piedade está indo embora. Milhares de pernambucanos, à espera de um coletivo. Milhares bêbados e queimados do sol, por sinal.

Estou ali, de cara, no meio da confusão. É gente dando tapa em gente, para entrar no coletivo. Só há uma solução. Ir à praia, tomar uma cerveja, enquanto espero a massa partir.

Vejamos a cena. Sento na cadeirinha, o sol começa a morrer. Estou de calça jeans, com "As mil e uma noites" na bolsa. Tiro o livro, dou aquela lambida, cheiro, vejo as primeiras páginas.

O brega come solto. Há vários bêbados remanescentes, aqueles que esqueceram de ir para casa. Passa um menino com sua pipa. À minha esquerda, tremulando, uma bandeira esfarrapada do Palmeiras. Mas que diabos uma bandeira do Palmeiras faz aqui, em Piedade, em pleno feriado de Nossa Senhora? Onde estão as bandeiras do Santa Cruz?

"Caldeirada! Caldeirada!", grita um vendedor de caldeirada. Ninguém liga. Isso lá é hora de vender caldeirada!

Registro a presença de várias gordinhas charmosas, essas que não estão nem aí para academias, e curtem tudo. Uma criança mama uma Coca-Cola imensa e penso no arroto, a mais tarde. À minha frente, quatro camaradas derrubam mais um litro de Rum Montilla. Passa um vendedor de pulseiras. O camarada está mamadinho mamadinho. Ele pára, olha para mim, estende a mão.

"Barbudo... ô barbudo..."

Sinto que é comigo.

"É Lula ou não é?"

E eu lá sou homem de votar em tucano?

"Lógico. É Lula-la".

Apertos de mão os mais diversos. Ele comenta:

"Do caralho, do caralho".

Sai tropicando. Mais à frente, derruba um dos colares, pega, assopra, pendura na mão esquerda e segue.

Já estou com uma cervejinha. Olho o ambiente. A praia é de gente simples. Não tem aquelas bonitonas e gostosonas de Boa Viagem. Uma gordinha requebra muito, ao som de um brega. Está vermelhíssima, torrada pelo sol do feriado. Quer é curtir a praia, o sol, a cerveja, os amigos. Regime e academia o cassete.

Passa um casal por mim. Ele tem os cabelos pintados de loiro, é horrivel Está mamadinho da sila. Ela o arrasta.

"Vamos, Noé, já bebesse demais".

Um Noé em pleno feriado. Cadê a arca, meu querido?

Ali, a uns vinte metros de mim, um homem bebe sozinho. Usa um boné para trás, tem um saco de amendoim na mesa. Que solidão, amigos, que solidão.

O brega come solto.

"Não me mande embora/Não sou seu amante/Você vai por mim/Por bem ou por mal/Eu pego suas coisas e quebro no pau".

Eita poesia...

"Por isso eu quero e tenho direito de ter você/Um homem safado somente pra mim".

Todo mundo canta, principalmente os homens safados.

Passa um vendedor de algodão doce. Nunca mais eu tinha visto algodão doce. Dá vontade de comprar um saquinho, só pela poesia

"Tu morre pela boca, visse", diz alguém na mesa ao lado.

Ao longe, duas pipas no céu. Uma do Santa Cruz, outra do Sport. Já sonho com a pipa do Sport caindo, em alto mar.

"OIlha, Lula não ganhou não", diz a gordinha ao lado.

"Mas vai ganhar, que vou votar nele", responde um senhor, convicto.

Daqui a pouco, aparece uma pipa do Náutico. Que praia mais esquisita, meu Deus!

Um senhor de uns 40 anos dança. Usa uma tanga ridícula. Ele bebe, está animado, com sua turma, ri muito, me parece feliz. Quem sou eu, para achar sua tanga ridícula? Ridículo sou eu, de jeans e com "As mil e uma noites" em cima da mesa. O reles cabeça, em pleno feriado.

Passa um casal ajustado, de mãos dadas.

"Vamos tomar uma lá em João?"

"E apois", reponde ela.

Isso é que é um casal, pensando em tomar a saideira, depois da praia. Lembro do Joãozinho Peruca, meu amigo, que adora esse "e apois".

Os biquinis não são tão belos, as tatuagens são meia-boca, os corpos não são modelados pelas academias, mas há uma estranha e confusa felicidade por aqui. Há uma multidão de brasileiros, curtindo o feriado da quinta-feira. Vai entardecendo e ainda são milhares, na praia, curtindo uma roda-de-samba, curtindo algo. Estão sendo felizes por hoje.

É outra estética. As crianças não têm tantos brinquedos. Muitas famílias trouxeram o isonor, com a bebidinha básica.

Passa uma família por mim. Estão cobertos de areia.

"Mainha, quando é que a gente volta?", pergunta o menino, vermelhíssimo.

A mãe tem os pelos da coxa bem loiros, a la anos 80, quando era moda as mulheres passarem água oxigenada nos pelos. Dizem que o troço saiu de moda porque os pelos ficavam muito duros, e agradavam somente aos olhos.

"Vai depender de você", respondeu ela.

Cá entre nós, não gostei da resposta. Mas de calça jeans, com um livro cabeça na mesa, que direito eu tenho de gostar da resposta da mãe, neste final de tarde?

Tomo mais uma cerveja. A tardinha vai morrendo. Desconfio que ganhei uma crônica de presente.

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Sorte

Nunca ganhei nada em sorteios, rifas, loterias. Há muitos anos, numa distração divina, acertei uns números no jogo do Bicho, e levantei uma graninha. Coisa pouca, merreis, trocados, uns trinta contos. E foi só. Nunca me considerei um homem de sorte.

Uma vez, em São Paulo, fizeram um sorteio grande num jornal em que eu trabalhava. Tinha uma cafeteira linda, perfeita, acho que era italiana, e fiquei pensando: puxa, se eu ganho essa cafeteira, heim?

Eu estava com o número 147 na mão, creio, eu lá vou lembrar um sorteio de fim de ano em São Paulo, há dez anos? Fica o 147 para facilitar o andamento da crônica.

Lá pelas tantas, a mulher do sorteio chamou o número 147. Eu fiquei olhando o papel e não me caiu a ficha. Eu via outro número. Ela chamou o número três vezes:

"O cento e quarenta e sete, está ai?"

Como ninguém se apresentou, porque o 147 era eu mesmo, perderam a paciência e sortearam outro número. A pessoa sorteada deu um pulo e correu para pegar a cafeteira.

Um amigo ao lado viu o 147 e berrou:

"Ei, o Samarone aqui ganhou!"

Era tarde, a mulher já estava com a cafeteira na cozinha de casa, fazendo seu capuccino e torrando uma boa tapioca, para tudo ficar completo.

Eu estava distraído demais com a sorte. Voltei para casa e mandei ver no velho Nescafé. Tem um conto do Júlio Cortázar em que ele compara a miséria absoluta à falta do Nescafé. Quando nem isso o sujeito tem em casa, está mesmo fodido. Mas que aquela cafeteira seria uma maravilha na minha desértica cozinha, isso seria.

Há uns dois meses, a locadora perto daqui de casa, a famosa "Altas Horas", inventou uma promoção. A cada filme locado, o camarada poderia colocar a notinha numa urna, e concorrer a um DVD. A primeira coisa que pensei foi somente uma: jamais esse DVD vai lá para minha casa, porque não tenho sorte para essas coisas. Seria até uma boa ganhar o prêmio, porque meu aparelho está engasgando em tudo que é filme, e sempre na melhor parte. A última vez que passei por lá, Vicente me informou que a segunda urna já estava quase cheia. Essa é que não ganho mesmo, pensei.

Pois bem. Ontem, cheguei em casa cansado, escutei os recados na secretária eletrônica e tinha uma mensagem do Vicente, que vem a ser o dono da locadora.

"Samarone, passa aqui, que tu ganhasse o sorteio do DVD".

Né fogo?

Passei lá hoje de manhã, para ver se eu não tinha sonhado. Como abre às 10h, às 9h55 eu estava lá. Vicente me recebeu com aquele sorrisão e foi logo pegando a caixinha, que está aqui ao meu lado.

"Mas Vicente, eu quase nem coloquei cupom nenhum..."

"Você é um homem de sorte".

Puxa, a frase ficou assim, reverberando. Homem de sorte, homem de sorte.

Saí perambulando para o Poço da Panela. Iria tomar um táxi, para ir a uma ONG, receber meu salário de professor. Quando eu vou receber o salário, gosto de pegar táxi, porque o Recife está um festival de assaltos. Naná veio passando na Kombi e me ofereceu uma carona. Economizei uns dez reais, e ainda botamos nossa conversa fiada em dia.

Acho que isso é sorte também.

Tive algumas sortes na vida. Em algumas vezes, estava distraído demais, nem percebi o presente. Em outras, estava querendo demais o que julgava merecer, e não veio. Da última vez, eu nem lembrava que tinha arriscado um pouquinho de nada, e esse quase nada ficou lá, brincando.

Parece que é isso, a sorte. Esse quase nada, que fica brincando com a gente.

domingo, 8 de outubro de 2006

O homem dos olhos azuis, (ou A partilha das intensidades)

Ela trabalha como voluntária em um hospital que atende portadores do HIV e já me contou muitas histórias de amor, perdas, reencontros, frustrações, dores. Ontem, ela me ligou de Fortaleza, e conversamos longamente. Foi então que me contou a história do homem de olhos azuis.

Ele chegou ao hospital inconsciente. Era já um senhor de uns 70 anos, forte, aprumado, aqueles homens do interior, acostumados às lidas com a terra. Ficou em uma enfermaria sozinho, e naquela solidão, iria caminhar para os últimos dias.

Então, a minha amiga chegou para o seu plantão e ficou sabendo dele. Foi visitá-lo. Como faz habitualmente, se aproximou com aquela delicadeza das pessoas que convivem com a dor e começou a conversar com aquele homem. Não lembro agora o nome dele. Ela, a minha amiga, se chama Mirtes. É um tipo de gente que faz o mundo ser mais bonito, mais intenso, mais mundo.

Cada plantão, Mirtes visitava o senhor inconsciente, mergulhado em sua penumbra. Ela sequer sabia a cor dos seus olhos. Chegava mansamente e falava as coisas que sua intuição mandava, mesmo sabendo que não teria resposta. Dizia para ele não ter medo, que não estava sozinho, que tinha gente cuidando, que ficasse tranqüilo. Mais que falar, ela tocava em suas mãos, passava a mão no rosto. Acho isso uma reverência.

Até que um dia, Mirtes tomou um susto. Logo que chegou ao hospital, uma enfermeira a procurou.

“Ele voltou!”

Sim, depois de várias semanas naquela solidão da enfermaria, na solidão do próprio corpo, o homem despertara. Mirtes foi ao seu encontro. Olhou para aquele senhor e viu um par de olhos imensamente azuis, um azul que nenhuma literatura poderia definir. Azul-esquecimento, azul-saudade, azul-ternura, azulíssimos olhos de um senhor idoso, agora brilhando.

Emocionada, ela tocou em suas mãos e começou a falar:

“Amigo, que bom que você reagiu...”

“Eu reconheço essa voz. Era a pessoa que conversava comigo”, respondeu ele.

Ela confirmou. Sim, estivera várias vezes com ele. Conversaram longamente. Ele disse que só tinha medo de uma coisa. Era quando uma voz metálica chamava algum médico ou enfermeira, pelo auto-falante do hospital.

“Eu achava que a voz iria chamar meu nome, me chamando para o inferno”.

Riram um bocado. Ele repetiu várias vezes que reconhecia muito bem a sua voz, era a mulher que sempre falava com ele. A Mirtes contemplou aqueles olhos azuis sereníssimos com a felicidade dos extremos. Deve ter juntado os cacos das tantas perdas dos últimos meses, os olhares que fecham e não voltam a brilhar para o luminoso da vida.

Um belo dia, o senhor voltou para sua cidade, no interior do Ceará, e nunca mais se viram.

Mirtes me contou essa história ontem, ao telefone. Não sei o que há, mas ultimamente tenho escutado histórias assim, intensas.

Faço aqui a partilha das intensidades.


Para Mirtes Machado, que não lê coisas na Internet, mas lê a alma de tantas criaturas...

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

De peito aberto para a vida

Ano passado, escrevi uma crônica intitulada “Para uma amiga com câncer”. Era a história de uma vizinha, a professora Lucidélia, ou “Lucinha”, que descobriu o tal câncer no seio, e nos deixou apreensivos. Essa palavra câncer é muito, mas muito feia.

Depois da cirurgia, da primeira quimioterapia, ela ficou um bagaço. Os cabelos caíram, se alimentar era difícil, até que ela não teve mais ânimo (ou força) para cuidar de algo que adorava – seu jardim. Antes de sair para mais uma sessão, já muito baqueada, ela me deixou um bilhete:

“Samarone, não deixe minhas plantas morrerem. Conto com você. Te adora, Lucinha”.

Para mim, é o grau máximo da fragilidade: não ter forças sequer para cuidar de flores.

Cuidei de seu jardim sim, enquanto ele ficou na casa da irmã. O tempo passou, ela fez as quimio, as radioterapias da vida, aquela coisa brutal com o corpo, mas fez sua travessia.

Pois vocês não acreditam: a desgraçada está toda toda, boazinha. Os cabelos cresceram, o jardim nunca ficou manco, o tempo e a ciência dos homens foram curando a nossa professora. Está jogando um dominó de primeira e voltou a passar o jogo do bicho. Continua me chamando de Gambá, toda vez que me encontra, a pilantra.

Outro dia ela chegou lá em casa, com uma flor linda, e plantou no meu quintal. Não disse nada, foi só o gesto mesmo. Gestos falam muito.

Há algumas semanas, recebi a notícia de que uma grande amiga, mãe de um grande amigo, recebeu o mesmo diagnóstico. Primeiro, veio o baque, porque a palavra câncer, minha nossa senhora, é como um soco no queixo, acompanhado da contagem. Mas a contagem, neste caso, não é de um até dez, como no box: é de um até dois.

A minha amiga começou a sua travessia. Já fez a cirurgia, e tudo correu bem. Meu amigo ganhou até um apelido: Cagacinho. O cara tremeu na base mesmo.

Daqui a pouco vai começar o tratamento, a mesma peregrinação de Lucinha: quimioterapia, radioterapia etc. Aviso que vai ser pancada, mas basta ver isso tudo como uma travessia. Não sei se minha amiga tem plantas, mas se tiver já me ofereço para tomar conta. Entendo de poucas coisas na vida, mas de jardim eu entendo.

Depois da cirurgia, ela mandou um email para alguns amigos, falando de tudo o que está vivendo. Fiquei emocionado ao ver tanto amor à vida, tanta raça, junto com tanta delicadeza. Compartilho um pedacinho com vocês, porque certas coisas, depois de escritas, não pertencem mais a ninguém, são de um acervo da humanidade. Ela mesma é uma humanidade:

“Pensei muito nesses dias (falei pouco, como se isso fosse possível algum dia), vi e revi vários filmes, curtas, longas, tragédias, comédias, dramas e muito desenho animado, toda a minha trajetória.

Revi a minha maravilhosa infância, a minha revolucionária juventude. Lembrei das minhas ilusões, das minhas realizações e dos meus fracassos. E durante todo esse caminho nunca estive só. Lembrei das festas, na minha casa cheia a cada aniversário, a cada final de ano.

Lembrei do nascimento de cada filho, da maternidade lotada de flores e gente (naquele tempo, se permitia nos hospitais a gente receber afeto com flores), da morte da minha mãe, da minha casa na Torre, apinhada de pessoas. Dos meus trabalhos onde escolhi os melhores em cada canto, para partilhar o afeto, a amizade.

Hoje, agora, agorinha mesmo, vejo que sempre fui feliz e sabia.

Vamos em frente, vamos atravessar o caminho que resta. Que venham as "Quimios", as "Radios", a mama nova (o peito continua, este jamais será amputado), de seda, de plástico, da barriga, da bunda, seja lá do que for.

Eu estou aqui para recebê-los, para fazer uma festa com a casa lotada, a cada etapa, a cada gol.

Amo vocês de verdade, tenho vocês de verdade, o resto a gente traça”.

Ah, o ser humano, que maravilha é o ser humano...


Para Naire Valadares, guerreira da vida.

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Estuário, segunda edição: fim da novela

Caros leitores,

Informo que acabou a novela sobre a segunda edição do livro Estuário. O taxista Duda, certamente o mais mau-humorado do Brasil, trouxe a caixa com os 40 primeiros exemplares, no final da tarde. Não é por nada não, mas ficou linda, a segunda edição.

Estou iniciando as vendas, aqui em Seu Vital.

Aos que me mandaram email reservando, a mais tarde entrarei em contato.

Distraídos venceremos, já dizia o sábio Leminsky.

Samarone Lima

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Crônica de uma eleição

Iria escrever uma crônica sobre as eleições, mas não encontrei o que dizer. Há uma grande apatia em todos os que sempre estiveram comigo, nessas lutas democráticas. Na falta de inspiração, recorri ao meu diário de ontem, dia 1 de outubro de 2006. Como faço minhas anotações seguindo números, vamos pela ordem:

50

Não acordei logo cedo, como nas eleições anteriores, preocupado com a minha boca de urna, separando material de campanha, telefonando para os amigos, para marcar um ponto de encontro. Estava mais preocupado mesmo era com a minha pelada dos Caducos, aqui no Poço da Panela. Perdemos a primeira por 3 x 1, mas com Jacó no ataque, nem com um milagre. É como jogar com um a menos em campo. Na pelada seguinte, entrei em outro time, e saímos de um 3 x 1 para um glorioso 5 x 3. Foi a salvação do domingo.

51

Volto para casa. Em Seu Vital, há uma pequena concentração da turma de Eduardo Campos. Um amigo chega, estava caminhando. Está com uma ressaca monstra. Bebeu água lá em casa, depois ficamos conversando.

“Vou votar em Heloísa Helana, para dar um susto em Lula”.

Desconfio que o susto vai ser muito mais forte do que imaginamos.

52

Vou à Praça de casa Forte, local famoso de embates, a cada eleição. Lembro das duas últimas campanhas. A praça estava enfeitada, repleta de gente, as bandeiras tremulavam. Eu estava com a minha, porque sou homem de bandeiras. Havia alegria no ar, a militância era apaixonada e apaixonante. Foi assim nas duas últimas eleições. Tudo está diferente e triste. É proibido vender cerveja, uma mulher vende nas entocas. Eu, Nana e Serjão bebemos devagar. Um carro da Polícia chega, os caras descem, avisam à mulher que estão vendo tudo, aquela baboseira toda. Melhor ir ao Cabo, acompanhar tia Flocely, de 79 anos, que não abre mão de votar.

53

Venho até a Dantas Barreto, à procura do ônibus para o Cabo. O clima continua o mesmo. Um nada coletivo. Ao fundo, um velho cantor de brega canta “Sarah/Onde é que você se esconde/Sarah/minhas cartas porque não respondes”. Várias barraquinhas vendem cerveja, espetinho, cachaça, essas coisas todas do domingo. O ônibus para o Cabo está na parada, pronto para sair. Resolvo ficar. Peço uma cerveja, só tem Nova Schin, a dois reais. Fico bebericando. Defronte, do outro lado da rua, um carro da Polícia olha tudo. Eles, os tiras, olham as barracas, bovinamente. Todas vendem cerveja, mas eles não estão preocupados com nada. Como todo mundo que trabalha aos domingos, querem apenas uma coisa: que as horas passem. Na calçada da Farmácia dos Pobres, um animado jogo de dominó. Ao meu lado, um senhor preto lê uma Placar de 1976. A manchete não poderia ser mais irônica:

“O povo está na frente”.

Era uma matéria sobre a arrancada do Corinthians e do Flamengo, no Campeonato Brasileiro.

Reparo outro título:

“Ímpeto é bom e a gente gosta”.

54

Uma menina dorme, sentada em uma cadeira de plástico, remendada com pedaços de madeira. Acho que é a filha da dona da barraca. Tem os cabelos claros e parece que a alma ainda não foi perturbada pelas coisas da vida. O sorriso é muito vivo e tem os olhos verde. A fumaça do churrasquinho bate no seu rosto, mas ela não se incomoda.

55

Descubro que estou numa barraca sem nome, sem origem, e os espetinhos torram na brasa. A moça que atende tem olhos verdes e me diz os sabores dos espetinhos: charque, galinha, misto, de carne etc. Cada um custa um real. Homens passam de paletó quadriculado. São os evangélicos, ferrenhos dedicados aos cultos, nos domingos brasileiros. A moça que me atende tem inúmeras varizes, e sei que a menina da cadeira é sua filha, por causa dos olhos verdes. Uma canção ao fundo faz um pedido: “Verônica/Me sinto tão só/ Quando/Não estás junto a mim”. Sempre um nome de mulher, no coração dos homens. Ao lado, um rapaz com cara de aventureiro, com marcas já do destino, tenta esfaquear um pedaço de galinha. Ele não corta a carne, ele esfaqueia. Tem, pendurado à orelha, um singelo palito de dente.

56

São 13h07. Lembrei das últimas eleições em minha vida. Neste momento, eu não teria tomado café, não teria almoçado, estaria enlouquecido, com minha bandeira do PT, à procura dos votos indecisos. Teria feito boca de urna com vários amigos. Ajudaríamos a eleger alguém decente. Mais tarde, ao anoitecer, estaríamos no Marco Zero, para acompanhar a apuração, e faríamos uma grande festa, a exemplo dos anos anteriores. Teríamos lágrimas abundantes para a vitória dos bons, dos que acompanharam nossa esperança. Mas estou aqui, na Dantas Barreto, tomando uma Nova Schin, olhando um senhor ler a sua Placar, vendo um dominó na calçada de uma farmácia, enquanto espero do meu espetinho, preparado por uma moça com varizes e olhos verdes. C’est la vie.


Ps. No Diário de Pernambuco de hoje: quase 25% da populaçao de Caetés, cidade onde nasceu Lula, votou nulo sem querer, por conta do analfabetismo. C'est la mort.