segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Crônica de uma eleição

Iria escrever uma crônica sobre as eleições, mas não encontrei o que dizer. Há uma grande apatia em todos os que sempre estiveram comigo, nessas lutas democráticas. Na falta de inspiração, recorri ao meu diário de ontem, dia 1 de outubro de 2006. Como faço minhas anotações seguindo números, vamos pela ordem:

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Não acordei logo cedo, como nas eleições anteriores, preocupado com a minha boca de urna, separando material de campanha, telefonando para os amigos, para marcar um ponto de encontro. Estava mais preocupado mesmo era com a minha pelada dos Caducos, aqui no Poço da Panela. Perdemos a primeira por 3 x 1, mas com Jacó no ataque, nem com um milagre. É como jogar com um a menos em campo. Na pelada seguinte, entrei em outro time, e saímos de um 3 x 1 para um glorioso 5 x 3. Foi a salvação do domingo.

51

Volto para casa. Em Seu Vital, há uma pequena concentração da turma de Eduardo Campos. Um amigo chega, estava caminhando. Está com uma ressaca monstra. Bebeu água lá em casa, depois ficamos conversando.

“Vou votar em Heloísa Helana, para dar um susto em Lula”.

Desconfio que o susto vai ser muito mais forte do que imaginamos.

52

Vou à Praça de casa Forte, local famoso de embates, a cada eleição. Lembro das duas últimas campanhas. A praça estava enfeitada, repleta de gente, as bandeiras tremulavam. Eu estava com a minha, porque sou homem de bandeiras. Havia alegria no ar, a militância era apaixonada e apaixonante. Foi assim nas duas últimas eleições. Tudo está diferente e triste. É proibido vender cerveja, uma mulher vende nas entocas. Eu, Nana e Serjão bebemos devagar. Um carro da Polícia chega, os caras descem, avisam à mulher que estão vendo tudo, aquela baboseira toda. Melhor ir ao Cabo, acompanhar tia Flocely, de 79 anos, que não abre mão de votar.

53

Venho até a Dantas Barreto, à procura do ônibus para o Cabo. O clima continua o mesmo. Um nada coletivo. Ao fundo, um velho cantor de brega canta “Sarah/Onde é que você se esconde/Sarah/minhas cartas porque não respondes”. Várias barraquinhas vendem cerveja, espetinho, cachaça, essas coisas todas do domingo. O ônibus para o Cabo está na parada, pronto para sair. Resolvo ficar. Peço uma cerveja, só tem Nova Schin, a dois reais. Fico bebericando. Defronte, do outro lado da rua, um carro da Polícia olha tudo. Eles, os tiras, olham as barracas, bovinamente. Todas vendem cerveja, mas eles não estão preocupados com nada. Como todo mundo que trabalha aos domingos, querem apenas uma coisa: que as horas passem. Na calçada da Farmácia dos Pobres, um animado jogo de dominó. Ao meu lado, um senhor preto lê uma Placar de 1976. A manchete não poderia ser mais irônica:

“O povo está na frente”.

Era uma matéria sobre a arrancada do Corinthians e do Flamengo, no Campeonato Brasileiro.

Reparo outro título:

“Ímpeto é bom e a gente gosta”.

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Uma menina dorme, sentada em uma cadeira de plástico, remendada com pedaços de madeira. Acho que é a filha da dona da barraca. Tem os cabelos claros e parece que a alma ainda não foi perturbada pelas coisas da vida. O sorriso é muito vivo e tem os olhos verde. A fumaça do churrasquinho bate no seu rosto, mas ela não se incomoda.

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Descubro que estou numa barraca sem nome, sem origem, e os espetinhos torram na brasa. A moça que atende tem olhos verdes e me diz os sabores dos espetinhos: charque, galinha, misto, de carne etc. Cada um custa um real. Homens passam de paletó quadriculado. São os evangélicos, ferrenhos dedicados aos cultos, nos domingos brasileiros. A moça que me atende tem inúmeras varizes, e sei que a menina da cadeira é sua filha, por causa dos olhos verdes. Uma canção ao fundo faz um pedido: “Verônica/Me sinto tão só/ Quando/Não estás junto a mim”. Sempre um nome de mulher, no coração dos homens. Ao lado, um rapaz com cara de aventureiro, com marcas já do destino, tenta esfaquear um pedaço de galinha. Ele não corta a carne, ele esfaqueia. Tem, pendurado à orelha, um singelo palito de dente.

56

São 13h07. Lembrei das últimas eleições em minha vida. Neste momento, eu não teria tomado café, não teria almoçado, estaria enlouquecido, com minha bandeira do PT, à procura dos votos indecisos. Teria feito boca de urna com vários amigos. Ajudaríamos a eleger alguém decente. Mais tarde, ao anoitecer, estaríamos no Marco Zero, para acompanhar a apuração, e faríamos uma grande festa, a exemplo dos anos anteriores. Teríamos lágrimas abundantes para a vitória dos bons, dos que acompanharam nossa esperança. Mas estou aqui, na Dantas Barreto, tomando uma Nova Schin, olhando um senhor ler a sua Placar, vendo um dominó na calçada de uma farmácia, enquanto espero do meu espetinho, preparado por uma moça com varizes e olhos verdes. C’est la vie.


Ps. No Diário de Pernambuco de hoje: quase 25% da populaçao de Caetés, cidade onde nasceu Lula, votou nulo sem querer, por conta do analfabetismo. C'est la mort.

14 comentários:

Anônimo disse...

essa foi realemnte a votaçõ mais tranquila que já vi.

Anônimo disse...

Cara eu quero um Estuario. Manda um email pra gente combinar...

cadu@cancaonova.com

E como eu consigo o clamor? Quando estive no recife, procurei mas não achei...

Abraços!

Anônimo disse...

Samarone, meu filho
td bom? Olhe, tô precisando muito falar com vc. Estamos colocando uma entrevista de literatura a cada sexta-feira no Viver. E para essa, gostaria de falar contigo. Mas não consigo te achar. Por favor, me envie email pro carolinaleao@terra.com.br

agradecida

carol leão

Anônimo disse...

"Tranquila" não. Essa foi a eleição mais baixo astral q minha idade conseguiu ver. Mais do que nunca, votou-se por obrigação. Mais do que nunca, declarava-se um voto como a uma doença. "Vou votar em fulano" era como se fosse "Tenho catapora".

Anônimo disse...

Samarone,
Meu consolo é que essa apatia não foi só minha, foi geral. Não sei se consolo ou desolamento.
O percurso até minha zona eleitoral nunca foi tão monótono, sem sal e sem cor.
Concordo com Ivan, foi a eleição mais baixo astral que já presenciei.
Uma típica democrácia do "voto obrigado"

Anônimo disse...

ops, "democracia"

Anônimo disse...

Sama,

Estou aqui para reservar o meu Estuário. Nesse momento ler é o melhor remédio. Obrigada pelas palavras carinhosas e pelo Anjo da Guarda de barba e bandeira vermelha, ele foi um dos que me carregou nos braços nessa travessia.
Beijo de mãe para você.
Naire

Anônimo disse...

Carolina, mandei email pra tu. Naire, o teu estuário está separado.
Vamos que vamos.
Samarone

Anônimo disse...

entusiasmar-se como, numa eleição como esta? No Ceará o deputado mais votado foi o portador de dólares na cueca. Em Alagoas Collor se elegeu senador; pior ainda: vai apoiar Lula que aceitou prazerosamente o apoio e declarou, segundo li no Globo, que Collor "já teve o seu castigo e poderá, se quiser, fazer um trabalho excepcional no Senado."

Anônimo disse...

É. E pra completar, nossos irmãos paulistas, que foram decisivos para o encaminhamento do segundo turno, deram a Paulo Maluf o troféu de campeão de votos. O Congresso terá também Clodovil e Frank Aguiar como estreantes. Ah! o cara das rosquinhas Mabel, do PP de Goiás (Sandro Mabel, parece), também voltou! É dose !

Anônimo disse...

Apois eu, desde segunda-feira, sacudi a ressaca, fui buscar minha bandeira vermelha que eu mesma fiz ha algumas eleiçoes passadas e to na rua, fazendo campanha. Este resultado foi decisivo para perceber que o risco do retrocesso continua la, firme e forte com o picolé de chuchu paulista, extra numerario da Opus Dei, socio da Daslu e marido da mulher dos 400 vestidos (tudo bem, mais humilde que a Imelda Marcos, mas o cara ainda era governador...) PSDB, to fora!
Ana Paula

Anônimo disse...

Samarane,
Não esqueça de reservar o meu estuário.Diz como faço para recebê-lo?vc não aparece mais no Unicef?
Se for possível mande por Inácio eu vou deixar o dinheiro com ele.
Eu também regatei minha bandeira vermelha de 89.Minha filha (Moara) disse que foi azar, pq ela queria sair com a danada da bandeira no domingo e eu não permiti. (rsrsrsr)Mas, com a possibilidade de ter " álcool em mim", já estou nas ruas.
Um abraço,
Conceição Cardozo

Anônimo disse...

Samarone,

desculpe-me escrevi teu nome errado.

Conceição Cardozo

Anônimo disse...

Querido Samarone,

Adoro as suas escutas do nosso mundo tu pi ni quim... esse brega "Shara por que é que vc não responde..." é realmente a cara do povo, povo do Recife. Gosto dessa cara com pinturas excessiva e borrada de prostituta dançando as 05 horas da manhã com uma amiga, com suas calças coladas, blusa de alça tão justas marcando os excessos adiposos, de rostinho colado no bar da zona. isso é realmente a cara de Recife... uma charmosa decadencia que grita o seu gozo.
Beijos,
Eu