quarta-feira, 30 de agosto de 2006

Algumas aventuras nos ônibus recifenses e adjacências, com o povo em geral

Manhã de quarta-feira, 6h40, Cabo de Santo Agostinho, a 45 quilômetros do Recife, creio. Espero o famoso "Centro do Cabo", para ir ao Recife, pegar o Alto Santa Isabel e chegar ao Poço da Panela. Vivo agora entre duas cidades, ambas de quatro letras: Cabo e Poço. O sol da manhã é rasgante, o ônibus (R$ 2,45) não chega nunca. Uma senhora ao meul lado, irada, diz que o povo é muito besta, que só funciona mesmo quando tocam fogo em dois ônibus, só assim eles respeitam a gente. Eu reparo. Ela tem uns 50 anos, cabelos brancos, parece cansada de tudo. Cansada e indignada. A longa fila aguarda, bovinamente, pacientemente. O fiscal fala ao celular. Uma turma vende vale-transporte por 15 centavos a menos.

O ônibus chega com quase 20 minutos de atraso, fico no fundão, do lado da janela. Daqui a pouco, todo mundo vai chegando, todos vão se falando. Quando o ônibus sai, sou informado que ontem teve uma confusão no mesmo ônibus, envolvendo os passageiros, o motorista e o cobrador. O motorista andava aos solavancos, e a turma do fundão começou a esculhambar. Quase o cacete come, a sorte é que três camaradas, os mais brabos da turma, não estavam. "Foi Deus", diz um gordinho simpático e suado nas axilas. É o gordinho clássico, simpático, sorridente, que busca a harmonia do grupo. Ele diz que vai votar em Lula porque "Lula é como sardinha: ruim com ele, pior sem ele".

Começo a tomar minhas notas. Ônibus é meu laboratório de criação, Raimundo Carrero que me desculpe. Lá pelas tantas, a mulher ao meu lado, a mais conversadora, olha curiosa e comenta.

"Tua letra é muito miúda. Não dá para entender nada".

Quer saber o que faço. Digo que sou professor de literatura, ela quer saber o que é literatura, explico que é livro bom, ela acha bonito, diz que tenho cara mesmo de professor. É sempre assim. Se eu dissesse que era campeão nacional de boliche, diriam que tenho cara de jogador de boliche. Ela me conta a gênese do grupo. Todos se conheceram ali, no range range do ônibus, o que sai às 6h45.

"Fomos ficando amigos. Vai chegando um, fica amigo. Se tu viesse com a gente todo dia, entrava no grupo".

Eu acho lindo e bem menos orkutiano.

"Esse ano, vai ter amigo secreto".

Conversamos umas coisinhas. Conto sobre minha tia-avó, que mora no Cabo, e do período que morei por lá, entre 1992 e 1994. Ela escuta atenta. A viagem segue, sem solavancos. Há um sorriso frequente nas pessoas, uma alegria de estar vivo. Lembro da Adélia Prado, quando diz que "ser brasileiro me determina de modo emocionante". Falam que Maria Helena, candidata à presidência, é sapatão. Lula está eleito, para todos os fins. Ernesto, o nome do gordinho é Ernesto. O meu ex-cunhado, ele rasgou a Bíblia, diz minha amiga do lado. O mal se acaba por ele mesmo. O motorista de ontem é um papudinho. Ele veve bêbado e leva gaia. A mulher ao meu lado, a que estava olhando minhas anotações, se chama Eliuza. Na saída, ela me dá um alô:

"Ei, psiu, foi um prazer te conhecer".

Aceno e sorrio. O ônibus segue.

Desço no Forte das Cinco Pontas, pego o Alto Santa Isabel (R$ 1,65). Já são 8h13. Na Rosa e Silva, uma mulher passa a roleta, e deixa a sua mãe ou avó na parte da frente, que é onde as empresas de ônibus deixam os velhos. Pede ao cobrador para avisar, quando chegar ao "Agamenom", que vem a ser o Hospital Agamenom Magalhães.

Perto do Hospital, o cobrador avisa.

"Ó o Agamenom".

"Ei, avisa aí para ela descer!"

"Óia, ela tá aqui não, visse!"

A velhinha desceu, por conta própria, na parada anterior. Confusão no coletivo.

"Desce logo, mulher, vai atrás de tua mãe!", diz alguém.

A mulher desce, aflita. Alguém no Recife perdeu a própria mãe, em plena manhã. Dou testemunho do acontecido.

O ônibus vai chegando perto da entrada do Poço. São quase 9h. Desço junto com uma senhora de uns 60 anos, que mora na comunidade. Ela anda puxando da perna direita. Pergunto o que foi.

"Desde cinco horas estou no Agamenom, tentando marcar uma ressonância. Saí agora, sem conseguir nada", diz.

Vamos caminhando. Ela diz que chegou a ficar quatro meses sem andar.

"Parece que é a tosporose", diz, arrastando a perna.

Tenho que falar com Davi, vou quebrar à direita.

Ela vai caminhando lentamente, com o passo arrastado.

segunda-feira, 28 de agosto de 2006

O porre que faltou

Semana passada, nós freqüentadores assíduos da mercearia de Seu Vital, aqui no Poço da Panela, nos dedicamos a atualizar nosso obituário. É uma tradição que mantemos há algum tempo. Chegou alguém novo à turma, começa a ficar habitué, tem que preencher o nosso pequeno questionário, informando sobre as preferências, na hora do embarque final: comida, bebida, a música, quem vai fazer o discurso, texto para a lápide etc. Depois de respondidas as perguntas, as pessoas ficam aliviadas. Ninguém, pelo menos aqui, vai ser contrariado no momento fatal.

Um dos amigos escolheu a música “Naquela mesa”, para acompanhar seu último trajeto, e chamou a atenção. É uma música cheia de lembranças, a letra muito evocativa, falando de um filho que admira o pai, enfim. Cada caso é um caso. Meu amigo João, por exemplo, pediu o hino do Santa Cruz. Naná quer que cantem “Shalalalala/ Coisa boa é namorar”. Barrabás, o primeiro da nossa turma que partiu para outros mundos, nos deixou um baita problema: pediu que cantássemos “Eu bebo sim/estou vivendo/tem gente que não bebe e está morrendo”. Como sua família é evangélica, tivemos que pedir a autorização para realizar o derradeiro pedido.

“Podem cantar. Ele gostava mesmo de beber”, admitiu alguém da família, num sábado à tardinha, no cemitério de Casa Amarela. Os amigos, todos mamadinhos, cantaram a modinha, enquanto o coveiro fazia sua parte.

Mas voltando ao tema. No dia seguinte, perguntei ao meu amigo sobre a escolha de “naquela mesa”. Ele me respondeu o seguinte:

“Faltou um porre na minha vida”.

Foi com o pai dele, me explicou.

O fato foi o seguinte. Quando o pai bebia, o meu amigo era atleta, remador, ganhava mais medalhas que o satanás, e só bebia guaraná, suco, vitamina, essas coisas de atleta campeão estadual, nordestino, quase nacional. Depois, quando o meu amigo passou a beber (e muito), o pai tinha adoecido do fígado, e teve que parar. Resultado: os dois nunca tomaram um porre juntos.

Mas aquela frase ficou martelando. “Faltou um porre na minha vida”.

Só depois entendi o motivo. Há algumas semanas, estive em Fortaleza para rever a família, e fiz as pazes com meu pai. Sim, há muitos anos as coisas vinham meio atravessadas, aqueles desentendimentos mútuos, o conflito de gerações, as incompreensões, essas chateações todas, que muitas vezes resultam em uma perda de tempo absurda, para não falar da perda afetiva, que é irreparável.

Como estávamos há três anos intrigados mesmo, igual a dois meninos pequenos, o encontro foi cheio de mistérios e dúvidas. Coube à minha irmã, a Mônica, fazer a ponte. Me senti meio clandestino de mim mesmo, porque tive que ficar esperando um telefonema com o “sinal verde”, ou “sinal vermelho”.

Lá pelas tantas, apareceu a luz verde, e nos encontramos em um restaurante. De longe, vi a careca do velho. Por sorte, ele tinha colocado um litro de whisky em cima da mesa, e já tinha virado duas doses. Eu, que não sou chegado a whisky, achei a bebida linda. Mandamos ver. Não, não tivemos aquelas conversas longas e profundas, cheias de acertos de conta, revolvendo o passado, o que foi, o que foi, o que não foi, o que deixou de ser, você fez isso, eu fiz aquilo. Foi apenas uma noite divertida com meu pai e minha irmã. Há muito tempo não via o velho tão leve, tão sorridente. Parecia mesmo um menino. Eu, não menos.

De lá, fomos para um forró meio esquisito, aqueles forrós em que todo mundo está meio bêbado, dançando descalço, alguns já sem camisa, e você espera somente a hora da próxima confusão.

“Não deixe nossos copos ficarem vazios”, disse ele para a garçonete, e já estávamos na cerveja.

Não teve confusão nenhuma. Foi uma noite divertidíssima, alegre, leve. As armaduras de tantos anos ficaram de fora.

Na saída, dei um abraço no velho, e acabou um tempo de porta entreaberta em nossas vidas.

Acho que ele também estava querendo este encontro. Ainda bem que este porre não vai faltar nunca em minha vida - nem na dele.

Para o Zé Vicente, então, meu pai.

quarta-feira, 23 de agosto de 2006

De volta à CEU

Passei a manhã com o mestre Lourival Holanda, discutindo aquele camarada muito gente boa, o Michel de Montaigne, um texto belíssimo, intitulado “Da experiência”. Coisas de quem pretende voltar a estudar, e fica na moita, como ouvinte, na disciplina “A poética do Ensaio”. Gente chique é outra coisa.

Pois bem. Na volta, já saindo da UFPE, me ocorreu algo: visitar a Casa do Estudante Universitário (CEU), minha morada entre 1988 e 1992. Mais que isso: ir ao apartamento 312, meu abrigo no inverno da vida. Eu estava com 19 anos, meus caros, quando alguém me indicou aquele lugar, e foi lá que me agarrei com unhas e dentes. Foi graças àquela casa, que fiz o curso de Jornalismo e quase terminei a licenciatura em Artes Cênicas. Foi lá que me envolvi com o Movimento Estudantil, e por artimanhas e trapaças do destino, acabei presidente da Casa. Foi lá que me alfabetizei para muitas coisas da vida, num período fundamental da minha espécie, entre os 19 e os 23 anos.

Logo na entrada, os sinais das mudanças. Não tem mais a famosa portaria, com um vigilante enfadado ou amigo olhando o movimento. Cada morador tem sua chave. O quadro de avisos, onde eu costumava escreve notas de apoio, de repúdio, colar recortes de jornal, continua lá.

“Curso de libras”, diz um aviso.

“Haverão bolsas para os residentes das CÉU’s”.

Ôps, alguém andou maltratando a nossa língua, creio.

Riscado de caneta, por cima do cartaz, o aviso:

“Arimatéia, ligar para Clinston, em São José do Egito”.

O mesmo sistema da minha época, o de anotar recados no quadro.

Reparei na diretoria/2006. O presidente atual é o digníssimo Everton Rocha, o Gaúcho, o secretário é o senhor Admário, Ipubi. Na direção de esportes, o Jacinto Ângelo, mais conhecido como Jajá. Finanças está a cargo do monsieur Valdério Rodrigues, o Zé do Rádio. Para quem não sabe ainda, o dia de reunião da diretoria da CEU é segunda-feira, a partir das 22h, na sala da diretoria.

Enquanto eu tomava estas notas, chegou um colchão supimpa (da Ortobom), para ser entregue ao senhor Avanilson.

Então a tradição dos apelidos continua. Lembrei imediatamente de Tijolinho, Dragão, Fera Ecológico, Fera Janela, Negão 70, Moral, Tourão, Pé-Duro, entre as dezenas, centenas de apelidos da Casa. Tinha um sujeito que consertava tudo, e sempre tinha algo no bolso que resolvia os problemas da TV, do telefone. Ganhou o singelo apelido de McGiver, acho que alguém por ai, que anda lendo minhas crônicas, lembra. McGiver era o astro da TV que se salvava na base do canivete, desmontava bombas com um reles clips, escapava de um acidente puxando um fio do carro, enfim.

Perambulei um pouco. Tem quatro de hóspedes! Na minha época, a gente hospedava no quarto da gente mesmo. No primeiro andar, a sala de estudos virou uma biblioteca. Entrei, tinha um rapaz estudando, levantou a cabeça e continuou. A biblioteca é meio fraquinha, confesso, mas é melhor que nada. Devagar, no meu passo de camundongo, cheguei defronte ao apartamento 312. Senti aquela cosquinha no coração, como bem diz o velho professor Davi. Caramba, foram quatro anos entrando e saindo naquele lugar! Tinha adesivos de Lula, João Paulo e Jurandir Liberal (13113). Os moradores ainda têm fé na política, então já fiquei contente. A tradição da esperança precisa continuar.

Bati três vezes. Silêncio. Bati de novo. Nada.

Então aconteceu o seguinte: em cima da porta, num espaço que não lembro o nome (os arquitetos e restauradores sabem), estava o molho de chaves. Meu espírito de vagabundagem acendeu na hora. Peguei as chaves, fiquei naquele dilema: abro e dou uma olhada, só para dar uma alegria aos olhos ou deixo pra lá?

Meu anjo da guarda deu uma cotovelada. Disse que eu não deveria fazer aquilo, seria invadir o espaço dos outros, essas coisas todas.

“Que frescura, anjo, é só uma olhadinha! Vou arrancar pedaço de ninguém, rapaz...”

O desgraçado insistiu.

“E se o morador chegar?”

“Digo que vim visitar meu primo no 311. Ele vai dizer que errei o apartamento, e tudo fica lindo”.

A discussão foi longa, e perdi. Devolvi as chaves para o lugarzinho lá, imaginei o quarto, a bancada que me acolheu durante tantas madrugadas, lembrei de Alencar, Fera Janela e Maranhão, que dividiram aquele espaço comigo, e resolvi seguir. Próxima parada: o banheiro, que estão incrivelmente mais bonitos e limpos.

“Não urine no chão”, diz inutilmente um cartaz. Obedeci.

“Caguem dentro da privada”, pediu outro cartaz, e fiquei imaginando como o sujeito consegue errar o alvo nesta ação que ocorre todos os dias, em todo o globo terrestre, e me parece ser relativamente simples. Aliás, o sujeito que consegue cagar fora da privada, precisa ir urgentemente a um médico - da cabeça, claro.

Perambulei pelos corredores. Quase todas as portas fechadas, que pena. Sinal dos tempos? O individualismo? Havia silêncio e quietude. Nem o Zé do Rádio tinha acionado sua seleção. Antes, era comum as portas abertas, muito movimento, um entra e sai de gente, fora as brincadeiras. Dragão, por exemplo, gostava de soltar bombas rasga-lata, quando a gente estava estudando.

Desci, vi o salão de jogos, com sinuca e ping-pong. Atesto que a sinuca é nova e boa. Vi a sala de TV, reformada. Foi ali que assisti a Copa de 90, num liseu brabo, aquele time sofrível do Sebastião Lazaroni.

Saí pelo portão eletrônico, fui me aboletar num banquinho, debaixo de uma árvore imensa. Peguei um cigarro, aquele cigarro que fumo de vez em quando, só para concluir um pensamento. Perguntei a umas cinco pessoas se tinham fogo, ninguém tinha, estão fumando menos mesmo, os recifenses, foi o que pensei. Então deixei o cigarro pra lá, tirei os sapatos e esfreguei o chão, que é uma forma muito minha de matar saudades de um lugar.

Lembrei da eleição para a diretoria da Casa, em 1990, que perdemos por um voto, no meio de uns 250, creio. No ano seguinte, ganhamos com uma votação estrondosa, e entrei numa fria monumental. Na greve dos funcionários da Universidade, era o pateta aqui, com a diretoria da Casa, que gerenciava o funcionamento do Restaurante Universitário, o RU, com funcionários terceirizados. Manhã, tarde e noite. Uma vez, flagrei um camarada roubando um cesto de comida, foi triste aquilo. Lembrei das muitas horas na fila, à espera do bandeijão que segurava a onda. À noite, deixava minha carteirinha da Casa com algum colega, e me mandava para a Católica. Lá pelas 22h40, após cochilar muito no Cidade Universitária, a janta estava guardada. Era uma sopa gelada de doer, mas era o que tinha, e nunca tive problemas com comida. O ruim mesmo era a falta dela.

Lembrei dos amigos, das alegrias, das batalhas quase diárias com a Reitoria. Lembrei que aquele espaço, a Cidade Universitária, era minha casa. Minha singela mãe um dia resolveu me dar um “presentinho”. Mandou, do Ceará, uma caixa com 12 litros de Ypióka. Meu quarto, o 312, virou uma farra durante uns três dias. Lembrei do Adônis Karafilakis, o Grego, que acordava todo mundo, bem cedo no domingo, para a pelada. Lembrei do dia em que levamos a Orquestra de Câmara da Universidade para se apresentar para os moradores da Casa. Foi inesquecível ver o que a música faz com as pessoas - elas esquecem de comer.

Lembrei de muitas coisas que não cabem nesta crônica. Coisas da minha vida. Tristezas, alegrias, descobertas, quando eu reinventava minha vida, longe de casa, da família, longe de tudo.

O rapaz da biblioteca fechou as janelas. Entendi que meu tempo tinha acabado. Veio passando uma mulher com um vestido azul, muito azul, caxingando de uma perna. Se apoiava numa bengala. Estava triste e só, com uma bolsa pendurada no ombro. A bolsa me pareceu pesada. Para onde ela estava indo?

Caminhava no sentido do Restaurante Universitário, mas ele fechou há muitos anos. Pensei em avisar, mas era tarde.


Para os meus amigos da CEU, onde estiverem.

Nota pós-crônica: Fiquei sabendo pelo comentário do glorioso amigo Pabá, da velha CEU, que o companheiro de quarto Alencar, o manso Alencar, morreu de um acidente de carro, logo após se formar em Medicina. Então lembrei daquele camarada magro, camaradíssimo, que foi reprovado no primeiro vestibular e se dedicou durante um ano inteiro, estudando mais de 12 horas por dia para conseguir chegar à sonhada Medicina. É uma cena marcante, daquele apartamento 312: saía, Alencar estava estudando. Voltava, Alencar estava estudando. Ía dormir, Alencar estava estudando. Lembro que estava no Ceará, quando saiu o resultado do vestibular, e liguei para a CEU, para saber se ele tinha passado. "Alencar passou", me disseram. E fiquei feliz, muito feliz.

segunda-feira, 21 de agosto de 2006

Lembranças, comentários e outras coisas mínimas

Uma canção que eu adorava começava com um sopro, depois o sujeito entrava: "Eu sou nuvem passageira/que com o vento se vai/eu sou como um cristal bonito/que se quebra quando cai". Eu era ainda bem moço, e hoje de manhã acordei lembrando disso. Esqueci o nome do cantor, que nunca mais fez sucesso.

Meu irmão, o Antônio José, adorava o Gilliard: "Pouco a pouco/foi que eu pude perceber/que gostar é diferente de querer", e ganhava um disco do Gilliard no seu aniversário.

Meu pai tinha um costume. Na sexta-feira, botava discos de Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, e ficava tomando umas. As músicas eram colocadas num volume altíssimo, e lá pelas tantas, ele estava deitado. Às vezes chorava. A pessoa que chora deitada, está sofrendo muito, é o que penso, mas ele nunca comentou nada.

Duas vezes meu pai chorou muito por pessoas que não eram da família: na morte de Altemar Dutra, e do goleiro Castilho, do Fluminense.

Minha mãe sempre me pareceu uma traficante de esperanças.

Meu irmão, o Paulo, sempre foi o mais politizado da família. Uma vez, ele foi para o seminário, ser padre, e deixou o livro "Batismo de Sangue" de bobeira. Foi o meu batismo na literatura, pelas mãos do Frei Betto. Ironias da vida: anos depois, entrevistei Frei Betto em São Paulo, no mesmo convento dos Dominicanos, onde parte da história da queda de Carlos Marighella começou. O Paulo hoje faz doutorado em Minas.

Minha tia Flocely disse, outro dia, que nasceu para ser professora. Mais que isso, tinha certeza que sempre seria uma professora, era sua vocação mais profunda.

"Eu trabalhava tanto, que não tinha tempo de sofrer", comentou.

Mirtes, minha amiga infinita, gosta de dar nome às coisas.

"Tem que ter um nome, bichinho. Se você ama, tem que ter um nome".

Ontem escutei uma mini-história linda. O Santa Cruz foi campeão no ano passado. No dia seguinte, o filho foi ao cemitério, e colocou uma faixa em cima do túmulo do pai. Não sei se fez uma oração, mas a oração já estava feita. É amor, o nome disso.

Conversei com uma mulher que está casada há muitos anos com o mesmo homem. Tudo parece perfeito, até que fiz a pergunta:

"Qual é o segredo?

"Eu fecho os olhos".

Certas perguntas são absolutamente inúteis.

Certas respostas doem.

quinta-feira, 17 de agosto de 2006

Vazios cartográgicos e outras lorotas

Depois dizem que eu invento histórias. Se eu tivesse o poder de inventar tantas histórias, estaria escrevendo ficção, porque ficção dá muito mais dinheiro que a realidade, e ando num liseu brabo, previsto para encerrar agora em setembro.

Estava em Fortaleza, outro dia, e fui ao encontro de um velho amigo. Foi lá que encontrei o sujeito, que não lembro o nome. Pois bem, o cara trabalha no IBGE, aquele mesmo das estatísticas. Só depois entendi porque o órgão é chamado de Instituto Brasileiro de Geometria e Estatística.

Um dos trabalhos dele era excelente: encontrar “vazios cartográficos”. Ôps, isso aqui vai render uma crônica supimpa, pensei, já puxando uns guardanapos, para anotar a conversa toda. Ele me explicou, de forma bem articulada e detalhada, o que é um “vazio cartográfico”:

“Existe o lugar real, mas não existe no mapa”.

O cara viajou para os lugares mais remotos do Brasil, à procura do que não estava no mapa. Cafundós do Judas, Onde o Gato perdeu as Botas, Terras do Sem Fim, Última Fronteira, foi o que lembrei na hora.

A cerveja foi deslizando, e ele foi se empolgando. Eu caçei minha caneta e mandei ver. É hoje que faço uma crônica arretada, pensei, mas depois perdi os tais guardanapos, e só hoje, mais de um mês depois, os encontrei, nos bolsos de um bermudão.

“É como se você fizesse a base da casa e precisasse de um endereço”, disse meu amigo.

Numa cidade que não lembro o nome, perto de alguma fronteira ali, na Bolívia, creio, ou é perto do Acre, sei lá. Sim, nesta cidade, ele viu uma orelha pendurada e perguntou pelo troço. Foi um caso envolvendo um paulista.

“Ele chegou todo metido a boi e comeu a filha do coronel”.

Não entendi o “todo metido a boi”, mas não vou ficar perguntando todos os detalhes, que isso estraga qualquer conversa.

O coronel, soube deu uma prenda:

“Você vai casar com minha filha, mas vou me vingar”, e zapt! – passou a faca no escutador do rapaz.

Um certo dia, na Amazônia, estava num povoado tão ermo, tão fora do eixo temático do planeta, que nem sequer tinha uma caninha para a turma do IBGE. Pelo que vi na mesa, esse pessoal bebe pacas. Pois bem, eles pegaram o helicóptero da FAB e foram ali, dar um passeio em busca de uma lapadinha. Amigos, que cana cara do oeste! Minha preocupação era somente uma: e se o piloto do helicóptero ficasse bicado?

"Por precaução, compramos a cana e voltamos para beber na comunidade", me explicou o camarada já citado. Ufa! Eu sou um sujeito preocupado com os destinos da humanidade.

Depois da singela história, ele me informou que tinha mudado de setor. Está agora no setor de “gravimetria”, que é onde estão aqueles sujeitos encarregados, de medir a força gravitacional do planeta. Fiquei sabendo inclusive de algo da maior importância: a força gravitacional do planeta Terra é de 9,8 m2.

O programa utilizado para essa medição é o “Super”. Achei o nome muito simplório.

“Cada lugar tem uma força gravitacional diferente. Você vai lá e mede a força”, contou.

Eu, muito modestamente, e que ele não saiba, achei que o esforço é legal, mas não entendi direito para que tanta parafernália.

“A força da terra e geoidal”, detalhou.

Fui ficando cada vez mais impressionado com a importância das profissões que desconheço, inclusive espero despertar em alguns leitores mais jovens, o interesse pelos “vazios cartográficos e gravimetrias”.

“Através da força, consigo achar a superfície da terra”, explicou.

Pensei em dizer que acho a superfície da terra pisando no chão, mas podia complicar o papo. Depois ele explicou que os equipamentos utilizados são dos norte-americanos, uns troços dos anos 40, e que funcionam bem. Neste setor, ao contrário dos demais, eles estão mais desenvolvidos tecnologicamente que a gente, foi o que entendi.

O gravímetro, um instrumento de medição da terra, tem uma constante: é 50 graus.

Fiquei pensando muito secretamente: qual deve ser a força geoidal do Poço da Panela?

***
Nota: Hoje (sexta-feira), às 15h, estarei debatendo “Literatura contemporânea: circulando a letra, a voz e a imagem”, na Escola Kabum! Como a mesa tem nove participantes, minha esperança é ficar por último e fazer apenas os agradecimentos. Continuo um tímido que vai escapando pela tangente. Queria mesmo era estar na mesa "Elogio da Bobagem", na UFPE, dia 25, ao anoitecer.

segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Viveiro humano

Resulta que passei o final de semana em Cachoeira do Taepe, um povoado a 12 quilômetros de Surubim, que, por outro lado, fica a 127 quilômetros do Recife, no Agreste. Agreste, para quem não sabe, é uma região de Pernambuco que faz frio de noite, e a gente tem que dormir bem enrolado, é como um ar-condicionado ligado no três, bem perto de você, só que você não tem como desligar. Informo que a padroeira de Cachoeira é Santa Luzia, por conta de uma promessa, há muitos e muitos anos, tema para outra crônica, e a tradicional "Festa da Padroeira", este ano, ocorrerá a 16 de dezembro, inclusive já confirmei presença. O time local, o glorioso Cachoeira do Taepe F.C, empatou ontem no finalzinho da partida, e está em segundo lugar na classificação geral, de um campeonato regional.

Pois bem. No sábado à noite, fomos ver uma cantoria em uma casinha escondida bem longe de tudo. De um lado, o senhor João Juvenal, de Umari. De outro, monsieur Manuel Bezerra, de Surubim. Dois violeiros "rochedo", como diz César Maia. A casa de tijolos, sem pintura, cheia de molduras na parede, tinha a presença de Padre Cicero, uma imagem colocada em cima da TV. Quando chegamos, a cantoria já rolava alta, e consegui uma cadeira perto da dupla, para ver e escutar melhor. É o que chamamos por aqui de um "pé de parede". Doze pessoas se acotovelavam, fora as que escutavam do lado de fora e da cozinha. Um senhor muito aprumado, de óculos ray ban, parecedíssimo com o finado poeta Patativa do Assaré, acompanhou tudo de pé, silencioso. Depois me disseram que ele conta com 96 anos, e está comemorando um namoro recente, com uma senhora bem mais jovem que ele, de 80 anos.

A peleja começou, e para você pedir um mote, é preciso colocar um dinheirinho. Seu Paulino, que me convidou para conhecer a região, foi colocando uns trocadinhos e solicitando uns versos, que não dá para viver sem poesia. O negócio começou com um "mourão perguntador", que é um sistema de cantoria em que um cantador sai perguntando coisas para o outro. Foi pergunta até umas horas. Depois, seu Paulino pediu o mote "Foi meu pai quem me ensinou a gostar de cantoria" e os cabras mandaram ver. O negócio é muito bonito, muito cheio de sabedoria, eu fico impressionado com a ligeireza mental dos poetas do improvido.

Lá pelas tantas, os cantadores entoaram uma canção própria, era um lamento, que dizia:

"Lamento demais a minha vida/porque a pessoa que amo/não sei se gosta mais de mim".

Depois, um trecho que dói em qualquer coração:

"Cantar não resolve o meu problema/chorando não resolvo também
Por isso não digo o teu nome para ninguém".

Só fiquei aliviado quando, ao final da música, a mulher responde:

"Tenha calma, que meu coração é de nós dois".

Amigos, quem não se acalmaria com uma dessas?

Teve mote sobre Bin Laden e as guerras do mundo, mortes, amores, desgostos, animais, Iracema, aquela virgem dos lábios de mel (que lascou o Martins Soares Moreira - pelo menos na cantoria), mas o mote bonito mesmo foi "Eu não troco a vaca de seu Biu por dez cavalos de Raimundo".

Seu Biu, ao meu lado, muito sério, com um chapéu na cabeça, escutou tudo calado, mas me parece que ele gostou muito. Raimundo dava saltos de alegria.

Um apaixonado pediu o seguinte mote: "A mulher que mais amo está presente/Só não posso dizer o nome dela".

O clima esquentou, surgiram aqueles risos contidos, todo mundo querendo saber quem era a dama, então os violeiros mandaram ver, mas como violeiro é um sujeito respeitador, o nome da criatura não foi citado, e saí do recinto com uma pulga atrás da orelha. Quem era a mulher que arrebatou o coração daquele camarada?

Os temas se referiam ao universo do Agreste de Pernambuco. O vaqueiro desprezado, o choro de Maria, as vacas, os passarinhos, marrecos, o gado comendo pasto, a saudade de algo, a gemedeira pelas dores da vida, o falar com deus, não deixe o ódio invadir seu coração, a "sua dona", que é a mulher que toma conta do coração do sujeito, o bezerro que parece com um cabrito, a vaca que não pode com o chocalho, o papa da safadeza, o próprio Papa mesmo, o velho Tibiriçá, "eu me cobri com o lençol da natureza", Elizabete, que oferece uma canção para o seu pai, Tinda, que hoje completa 86 anos.

Um viveiro humano, abençoado por uma noite estrelada, num lugar ermo de Pernambuco, a luz se irradiando numa linha interplanetária, como disse um dos poetas. Uma dessas viagens para regressar mastigando, ruminando, cheio de poesia no peito e no coração. Dois dias longe de tudo da cidade grande, brincando com um cãozinho conversador, o Dorli, que por sinal, caiu na água e foi resgatado por mim. Dois dias de conversa boa, uma pelada na tardinha do sábado (meu time levou uma sova de 5 x 2, mas não fiz feio), de muitas lapadas de cana boa e um mundaréu de comida, especialmente a famosa galinha de capoeira.

Quero voltar logo, muito antes da festa da padroeira. Seu Paulino está contando com minha pequena ajuda para abrirmos uma sala de leitura no lugarejo.

Conte comigo, seu Paulino, conte comigo sempre.

quinta-feira, 10 de agosto de 2006

Como se recuperar de traumas

Quando eu era pirralho, adorava o Esporte Espetacular, dia de domingo. Era o programa mais aguardado da semana, porque sempre gostei de ver os detalhes dos jogos. Até hoje tenho esta mania. Vou ao estádio, mas no outro dia, preciso confirmar tudo pela lente da TV, e descubro que muitos lances eu não vi direito, por motivos os mais diversos.

Pois bem. Meu pai chegava, na metade do programa, apertava o pitoco da TV, desligava solenemente e me mandava lavar o carro.

Sinto muito, amigos, mas eu sou da época em que não havia o que se discutir com o pai. Era estranho e inexplicável aquela maldade, mas adulto, vamos e convenhamos, é um bicho esquisito. Daqui a pouco, lá estava o mané aqui, bastante infeliz, lavando o carro, doido para arranhá-lo todinho, mas não cairia bem, o velho iria descobrir, e o trauma seria pior.

Então, desenvolvi um Método Pessoal de Recuperação de Trauma (MPRT), em fase de sistematização. Dia de domingo eu começo sempre jogando uma pelada, no glorioso escrete dos "Caducos Futebol Clube", depois peço à Dona Fátima para fazer uma jarra de suco de maracujá e me deito na rede. Assisto ao Esporte Espetacular de cabo a rabo. A cada bloco do programa, o trauma vai passando. Diria que estou quase curado - deste trauma, claro.

Lá pelas tantas, meu pai (o velho não era fácil) inventou que eu e meu irmão, o Antônio José, tínhamos jeito para cantar. Empombou com uma música antiquíssima, que dizia:

"Teco, teco teco na bola de gude, era o meu viver..."

Amigos, que suplício. Eu cantava às duras penas, absolutamente tenso, e até hoje não me dei ao trabalho de perguntar ao Tonho se ele sentia alguma alegria. Parecíamos dois cantores caipiras, desafinados e envergonhados, cada um suando mais frio que o outro.

Me recupero do trauma de uma forma bastante simples, inclusive indico isso no meu método: hoje em dia, eu não canto nem Parabéns. Acho inclusive a invenção do Caraokê uma idéia maligna, e na minha lista de amigos do peito, desconheço algum que ouse pegar um microfone para acompanhar aquele troço.

Quando eu era pequeno (que infância, amigos!), comi um troço que saiu queimando a língua, a garganta, quase que me lasco todinho, era um negócio para usar em limpeza, fortíssimo, e pensei que fosse umas bolachinhas. Parece que era Soda Cáustica, e garanto que o negócio não é fácil de engolir.

Para me recuperar do trauma, passei a evitar ingerir venenos e produtos de limpeza em geral. Tem funcionado muito bem.

Tendo sobrevivido à infância, cheguei à fase posterior, que chamam adolescência. Um belo dia, o diretor da escola me convidou a "não continuar no colégio, no ano seguinte", e saí do convívio com minha turma maravilhosa. Foi traumatizante ir para outro colégio, longe dos meus amigos.

Além disso, o novo colégio tinha uma feira de ciências fraquíssima. No ano anterior, minha equipe tinha devorado todos os prêmios da escola, e logo em seguida, por conta da expulsão, me vi dissecando laconicamente um sapo, tentando mostrar um sapo dissecado, o que, obviamente, me resultou em comentários os mais perversos e notas baixíssimas.

Me recuperei deste trauma evitando visitar feiras de ciências. A partir daquele momento, também decidi nunca mais dissecar sapos. Como não tive recaídas, funcionou muito bem.

Já adulto, tive uma época traumatizante. Na Casa do Estudante, todos me achavam feio pra caramba. Olhando as fotos daquele período, acho que a turma estava certa, mas o ruim foi ter levado o assunto a sério. Chamava uma moça para dançar, e vinha sempre um não.

"É essa minha feiúra crônica", pensava, voltando para casa com as mãos nos bolsos, absolutamente desolado.

Foi muito difícil este período. Aqui vai uma sugestão: se você conhece alguém bem feio, não o chame de "feio", que magoa bastante a pessoa, e ela fica se sentindo mais feia ainda.

O trauma só foi passando com o avançar dos anos, quando a natureza cansou de me maltratar. O excesso de cabelos também me ajudou a tapear um bocado, e tenho seguido sem alardes, um pouco mais harmônico.

Vou parar por aqui. Tem dias que eu escrevo e falo tanta besteira, que está certa Dona Fátima. Ela de vez em quando me olha bem séria, depois que falo alguma asneira tremenda, e diz:

"Samarone, tu tem certeza que é um jornalista e professor?"

Eu tomo então uma golada boa do suco de maracujá, peço para ela sair da frente da TV, para eu ver o Esporte Espetacular, e respondo:

"E apois".

quarta-feira, 9 de agosto de 2006

Vivemos num estuário

Foi a Neusinha quem me sugeriu o nome "Estuário", para minha coluna no site "Aponte", em 2004, creio. Adorei o nome, e o adotei de imediato.

Só mais recentemente, depois de muitas conversas com o amigo Lira, fiquei sabendo mais detalhes sobre o tema, que passo a compartilhar com meus cativos leitores.

Estuário: zona de transição entre o mar e o rio. O estuário funciona juntamente com os mangues, como maternidades do mar.

Cerca de 60% dos organismos, inclusive peixes, vivem parte de suas vidas nos estuários, antes de ir viver no mar.

Então me veio esta definição de Lira que achei perfeita para hoje, num dia em que não consegui gerar nenhuma crônica nova, nesta maternidade da vida e da criação:

"Nós seres humanos vivemos num estuário sem água, regido por mudanças que a vida impõe. Ora somos fertlizados por ventos brandos, ora por tormentas mentais que destroçam o nosso viver".

Entre os ventos brandos, as tormentas mentais, as maternidades do mar, da terra e do coração, a vida segue.

Acho que por hoje é só.


Para Lira, um ser humano.

segunda-feira, 7 de agosto de 2006

O anotador

Então vai me chegando este sentimento novo, que é mais simples. Quando me perguntam se sou escritor, jornalista, sempre acho que a palavra “escritor” é muito forte, e que ainda não cheguei lá, e que “jornalista” não me define por completo, porque a realidade dos fatos não é mais a minha prioridade. Cansei do “lead”, do “sub-lead” e coisas do tipo, que as escolas de Jornalismo ainda teimam em ensinar. Além disso, a realidade brasileira é tão estúpida, tão brutal, que me comove muito mais encontrar os que não aparecem como personagens principais desta realidade, como os andarilhos, os poetas, os boêmios, os jogadores de várzea dos domingos, contempladores de belezas e caçadores de veredas.

Faltava-me uma definição melhor, que desse conta do meu ofício, e ela chegou agora há pouco: descobri que sou um anotador. Anoto histórias, pensamentos, personagens. Eu vivo anotando. A idéia de sair de casa sem um pequeno bloco no bolso e uma caneta, é como sair sem documentos, e vale lembrar que já encarei um camburão da nossa querida Polícia Militar, por estar sem a identidade. Difícil fazer o policial entender que eu estava sem o documento, mas continuava gente, ou um “ser humano”, como diz o velho e bom Lira.

Sim, eu anoto coisas. Descubro que há muitos anos faço isso. A imagem de um caderno e uma caneta por perto, é antiga e fundante. São meus objetos primários, constitutivos, minha ponte com o mundo. Lembrei da 5a série, quando tínhamos um time na sala que era um verdadeiro esquadrão. Ficávamos à porta da sala, como cães sedentos, esperando o toque para o recreio. Nosso time ficou umas 25 partidas invicto, e estava lá, ainda bem garoto, o anotador. Eu anotava os lances, a escalação do nosso time, os gols, registrava tudo em um caderno somente para isso. Não sei em qual prateleira da memória este caderno foi dormir. A memória tem milhares de prateleiras, algumas somem e só reaparecem mais tarde, talvez nunca.

Foi nesta mesma 5a série, que ficamos sabendo. A mãe de nossa professora estava doente, muito doente. Me encarreguei de escrever algo para ela, em nome da turma. Daria tudo para lembrar o nome dela agora, mas a prateleira da memória da minha 5a série está meio empoeirada e distante. Sei que ela era magra, cabelos pretos e muito firme. Então, deixei um bilhetinho em cima da mesa dela, falando algo do tipo “estamos sabendo do seu sofrimento, e estamos todos torcendo por você”. Lembro que ela chegou, botou a caderneta na mesa, os livros, e viu o bilhete. Leu e começou a chorar, escondendo o rosto. Era um choro silencioso e contido, possivelmente para não assustar seus alunos. Então, pela primeira vez, falou do que estava vivendo e agradeceu à turma pelo carinho. Essa recordação me enche de alegria.

Tenho uma estante entupida de cadernos de todos os tamanhos e cores. São como minhas memórias sobressalentes. Às vezes, nesses dias em que as coisas estão atravessadas, vou reler minhas coisinhas. É possível ver o camarada que chegou ao Recife, com 18 anos, naquele distante 1987, brigado com o pai e querendo viver as coisas. Mas está lá, o caderno de 13 anos depois, o já adulto, com 31 anos, ainda inseguro diante da possibilidade de ensinar no curso de Jornalismo da Universidade Católica. Depois, tudo fluiu, até as pazes com o velho, após tantos desencontros.

Outro dia, ganhei da Fabiana, uma caixa com pequenos cadernos de capa marrom. Ela mandou de Londres e os batizei de “Murmúrios”. São cadernos para pequenas frases. Já enchi quatro cadernos, viu Fabiana?

Cada vez que vou a Fortaleza, visitar minha família, encontro papéis com anotações minhas, cartas que escrevi para meus parentes, poemas absolutamente horríveis e infantis, pedaços de lembranças que eu já nem lembrava, e que parecem ter sido lembradas por outra pessoa. Então vou fazendo um contrabando de mim mesmo, vou recolhendo minhas anotações, velhas agendas, papéis soltos, trazendo para junto. É como se estivesse recolhendo os pedaços soltos de mim, completado ausências, tentando me completar.

Anoto frases inteiras de livros. Anoto frases e diálogos de amigos. Anoto idéias, sonhos, frustrações. Anoto idéias para crônicas, anoto toda palestra que assisto, anoto reuniões, frases dos amigos, sempre foi assim. Diria que anoto a vida.

Lembrei de um encontro com uma mulher maravilhosa, em Fortaleza, uma amiga incomparável, que se apaixonou por um homem portador de HIV. Quando eles se encontravam, ela contava muitas histórias.

“Era isso que eu queria ser para aquela pessoa, a sua Sherazade, para contar muitas histórias, e que ela não morresse nunca”, disse, lembrando do livro "As mil e uma noites".

Então anotei isso, e prometi compartilhar.

sábado, 5 de agosto de 2006

Pequenas histórias de amor, volume II (final da Blognovela)


Gerrá e Alessandra: futebol e amor.


Bem, como eu vinha dizendo, Gerrá e Alessandra passaram juntos o Carnaval de 2002, e descobriram que estavam mesmo namorando, aquele negócio de andar de mãos dadas, ir ao estádio juntos, comemorar abraçados, cada gol do Santa, e só depois se lembrar dos amigos.

Gerrá, que tocava zabumba, começou a acompanhar o sanfoneiro Chiló (com “ch” mesmo). Alessandra tocava triângulo, e completou o trio. Em pouco tempo, surgiu o trio “Custo Mínimo”, e o casal começou a juntar música, futebol e paixão, uma combinação realmente muito boa para qualquer casal. E assim, o tempo foi passando, porque o tempo sempre passa. Parece que desta vez os caminhos finalmente tinham se encontrado, e o casal não iria mais pegar atalhos, certo?

Certo. No dia 13 de julho de 2006, agora há pouco, perdão pelo salto no tempo, não vou fazer uma novela de 331 capítulos, Alessandra foi fazer outro exame de rotina, a exemplo do exame que detectou um aneurisma, e foi informada que tinha, na verdade, era um filhote crescendo no útero, com mais de um mês. Os exames dela são assim, tudo com novidade pauleira. No primeiro, um aneurisma, no segundo, uma gravidez.

“Fui fazer um preventivo e descobri que tinha um menino na minha barriga”, disse, como se fosse a coisa mais simples do mundo. Mas cá entre nós, para quem foi informada que tinha um aneurisma cerebral, receber a informação de que vai ser mamãe, é uma festa.

Novamente, o destino pregava uma peça. No dia 13 de julho de 2005, exatamente um ano antes, tinha sido fundada a Torcida Organizada Musical Sanfona Coral. A idéia era simples: cada jogo do Santa, haveria um forró nas arquibancadas. Quem tocava na Sanfona? Adivinhou, leitor sabido: Chiló, Gerrá e Alessandra. O projeto foi o maior sucesso, saiu matéria em todos os jornais, e o casal vivia momentos de felicidade. O êxtase veio com a conquista do Estadual de 2005, após um jejum de nove anos. Logo depois, o Santa subiu para a Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro.

Mas voltando ao assunto (caramba, hoje estou disperso paca), Alessandra recebeu o exame da gravidez e telefonou para Gerrá. Faltavam duas horas para o jogo Santa X Goiás, e toda a torcida estava nervosa. Aqui vai uma explicação de contexto: o Santa tinha feito uma péssima campanha antes da Copa, estava na lanterna do campeonato, com reles três pontos, e era o primeiro jogo depois da Copa do Mundo. Tinha que vencer de qualquer jeito, para sair do atoleiro. Alessandra ligou para Gerrá:

“Precisamos ter uma conversa séria. A gente se encontra no escritório do meu pai”.

Gerrá pensou: lá vem Alessandra com esse negócio de “conversa séria”. É que os dois tinham brigado no domingo anterior, e certamente haveria aquele negócio que mulher adora, que é “discutir a relação”. Ele, como bom tricolor, foi ao escritório, mas estava preocupado mesmo era com a hora. Faltavam duas horas para o começo do jogo.

Ele chegou às 19h, o jogo era às 20h30. Estava tenso. Iria concordar com tudo o que ela dissesse, para não chegarem atrasados ao estádio. Além disso, a Sanfona Coral iria tocar.

“Senta aí, que vou te falar logo”, disse ela.

Gerrá, obediente, sentou.

“Pensei que era conversa de relação. A gente tinha discutido, eu tinha certeza que ela iria querer chamar para discutir”, avaliou o malandrão.
Com o exame na mão, Alessandra começou a fazer perguntas.

“Tu gosta de mim, Gerrá? Vou precisar muito do teu apoio neste momento”.

Ele pensou: pronto, a mulher foi fazer um exame hoje, deve ter descoberto outro aneurisma, a mulher vai morrer justamente agora, que o time está na Primeira Divisão.

“Promete que vai cuidar de mim, Gerrá?”

Nosso amigo gelou. Pensou em perguntar quantos meses de vida o médico tinha dado, se não poderia fazer outra cirurgia. De qualquer maneira, se preparou para acompanha-la até os últimos dias, na saúde e na doença, como dizem no casamento, mesmo sem terem casado ainda.

Ela abriu o envelope e mostrou o exame. Gerrá olhou aquele negócio miúdo e pensou:

“Caralho, ela está com um caroço de feijão na tireóide!”

Depois de olhar o exame de tudo que é jeito, colocar contra a luz, observar palavras que não entendia, Gerrá olhou demoradamente para Alessandra e perguntou:

“Estás grávida, é?”

Alessandra, botou para chorar de soluços. Levantou a blusa e mostrou o desenho que tinha feito na barriga. Era um bebê e as palavras:

“Já sou tricolor”.

Se abraçaram, foi aquela emoção que não preciso nem descrever, mas Gerrá alertou:

“Estamos atrasados para o jogo”.

Chegaram ao Arruda em cima da hora, os amigos estavam já nas arquibancadas, o time estava em campo, Gerrá não tinha como chegar para um amigo, entre um ataque e outro do clube e dizer:

“Óia, Alessandra está gravida”.

Ficou com aquilo entalado.

O Santa terminou o primeiro tempo perdendo de 1 x 0. Gerrá e Alessandra tinham certeza de que o filhote iria dar sorte ao time. Lá pelas tantas, veio o empate. Perto do final, o gol da vitória: 2 x 1.

“O menino nasceu vitorioso”, comemorou Gerrá, à saída do estádio.

Nos jogos seguintes, o Santa enlouqueceu. Ganhou de 4 x 1 do Fortaleza, 3 x 0 do Flamengo, e 1 x 0 do Corinthians.

Gerrá e Alessandra juram que é por causa do menino. Eu concordo.


Ps. No dia 9 de setembro, eles vão casar, em Bezerros, interior de Pernambuco. Pensaram em casar na Igreja de Santa Cruz, no bairro onde nasceu o clube, e batizar o menino na piscina do clube, mas lembraram da família, e família sofre muito com esses acessos de loucura dos pais.

sexta-feira, 4 de agosto de 2006

Pequenas histórias de amor, volume III (uma Blognovela)

Ela o conheceu há muitos anos, no bar Segunda sem lei, e comentou com a irmã, sem pensar duas vezes:

“Eu vou casar com ele, e hoje vou dançar com ele”.

Parecia uma premonição. Não dizia quando iria casar com ele. Para aquele momento, se contentava em dançar com ele. Então, Alessandra Lisieux de Holanda Lins chamou Geraldo Ferreira de Lima Júnior, o Gerrá, para dançar. E dançaram. Mas ficou por ali a gestação do amor. Muitos anos depois, ao me contar a história, com os olhos brilhando, ela lembrou o que a fez dizer aquela frase tão decisiva.

“Era o jeito, a boca, isso sempre me chamou muito a atenção”.

Mas a vida é cheia de atalhos, e como é muito comum na vida, os dois desencontraram. Sejamos mais simples: foram viver o que precisavam viver, antes do reencontro. Ela virou advogada, casou, ele se formou em administração, virou técnico do Judiciário, saiu namorando pela vida com outras garotas. Em 2001, aos 29 anos, ela fez uns exames de rotina, e descobriu que estava com um aneurisma cerebral. Fez uma cirurgia no cérebro, me mostrou até as marcas da operação, saiu do circuito, quatro meses recolhida.

“Por isso curto mais a vida. Todo momento agora é importante”, diz Alessandra.

Neste período, ela decidiu separar, e eles seguiriam por aí, ao deus dará, se não tivesse aparecido no caminho dos dois uma outra paixão – um time de futebol. Sejamos mais específicos, o Santa Cruz Futebol Clube.

Gerrá, neste momento, fazia parte de um grupo que tentava, inutilmente, refazer os caminhos administrativos do clube, conhecido por viver um estranho paradoxo: um clube de massas, com um estádio com capacidade para 80 mil pessoas, nunca consegue sair do vermelho. Bem, mas isso é assunto para outra crônica.

Pois bem, Alessandra é apaixonada pelo Santinha, como chamamos aqui, Gerrá não menos. Recuperada, separada (de um rubronegro, diga-se de passagem), ela voltou a fazer algo que é parte de sua vida: ir ao estádio, ver seu time jogar. Ficou sabendo do grupo que estava tentando reorganizar o clube e decidiu participar.

“Quando fui à primeira reunião, descobri: é ele”.

Quantos anos haviam se passado? Eles não sabem. Ah, meus amigos, deixemos a razão de lado. O tempo do amor não se conta assim, com o passar dos anos. Para ela, poderiam ter passado somente alguns segundos, desde aquele encontro no bar.

“Só me lembro dele, as datas não. Quando as pessoas são marcantes, a lembrança fica”, diz Alessandra. Mas ela não fez alarde sobre aquele rapaz falante, simpático, e que começava a tocar zabumba.

Começaram a ir para o estádio juntos, depois, um lançamento de livro, aquelas aproximações serenas, sem muito alarde, essas que vão pegando a pessoa sem ela nem perceber. No final de 2001, após vários jogos, comemorações, vitórias e derrotas, o primeiro beijo. Mas o malandro do Gerrá ficou por ali, tapeando. “Só aquele rolinho de vez em quando”, contou ele. Ela bateu o pé. Não queria esse negócio de rolinho. Disse até uma frase que eu nunca tinha escutado:

“Não gosto desses parraxaxá não”.

No Reveillon, ela foi para o Marco Zero (para quem não conhece o Recife, é uma praça na parte mais antiga da cidade), ele foi para a praia de Boa Viagem. Pelo andar da carruagem, cada um pegaria um novo atalho, certo?

Errado. Entrou aí o que meu amigo Gustavo chama de “concomitâncias”, que traduzo parcamente como “simultaneidade”. Coincidências não existem.

Amanhecia o dia, o primeiro dia de 2002, Gerrá estava saindo de Boa Viagem (não perguntei se estava cheio dos quequéus, mas creio que sim), e Alessandra tinha saído do Marco Zero, para encontrar as amigas em Boa Viagem. Foi ele dando a primeira acelerada, e ela aparecendo no calçadão. Não perguntei, mas acho que ela estava de vestido, os cabelos desgrenhados, cheia dos paus e descalça, como um bocado de mulher daqui do Recife e do resto do mundo, após o Reveillon.

Ele parou. A primeira frase do casal que começava a nascer foi linda:

“Vou ao Mercado da Madalena comer. Quer ir?”, disse ela.

“Quero”, respondeu ele.

O Mercado, que nunca fecha, estava fechado. Acabaram no poético Posto Nassau, perto do Aeroporto. Antes mesmo de ficarem juntos, já saiu a primeira arenga. Gerrá comentou que uma amiga dela tinha “muita saúde”, um recurso baixo do ser humano masculino, para dizer que uma mulher é muito da gostosa.

“Era para eu ter dado uma surra nele ali mesmo”, conta Alessandra.

Mas ela não deu a surra. Deu foi o ultimato:

“Só me ligue se quiser namorar comigo”.

À noite, o malandro ligou, desconfiado.

“Alessandra...”

“Que é?”, respondeu ela, já enfezada. “Olhe, saiba que se for pra ficar junto, é pra ficar junto mesmo”.

Começaram a namorar. Veio o Carnaval, que é um teste de fogo para qualquer casal que está começando ou terminando. Eles não só passaram a folia juntos, como ajudaram a criar o bloco “Ou esfola ou arrebenta”, que continua esfolando e arrebentando até hoje.

(Amanhã eu conto o que aconteceu de 2002 a 2006, para criar aquele clima de suspense. A Globo não tem sua “Páginas da Vida?” Então eu também posso ter minha blognovela).

Aguardem. É a melhor parte, garanto.

quarta-feira, 2 de agosto de 2006

Um ano de Estuário

Queridíssimos leitores,

O Blog daqui a uns dias completa um ano. A boa notícia é que a Editora Bagaço resolveu fazer uma reedição do livro "Estuário, crônicas do Recife", para lançarmos no Festival Literário do Recife, no final do mês. Vai ser uma reedição revisada e reduzida, prometo.

Como vai ser uma edição maior (uns 300 exemplares), prometo sair devolvendo todos os Estuários que roubei das pessoas queridas, para compensar este péssimo hábito de surrupiar gente querida, nas horas descuidadas...

A todos que andam dando uma reparada por aqui, um abraço.

Samarone.

terça-feira, 1 de agosto de 2006

As histórias de dona Ermira, Volume II

Dona Ermira trabalha muito (é auxiliar de enfermagem) e adora fazer cursos. Já fez curso de jardinagem, telepatia, modelagem, corte e costura, primeiros socorros, fenômenos paranormais, inglês, artesanato, reciclagem, e agora pretende fazer o curso de linguagem dos sinais, para se comunicar melhor com os surdos do espírito.

Além disso, dona Ermira é voluntária desde as primeiras horas. Já foi voluntária do CVV (Centro de Valorização da Vida, aquele sistema que você, desesperado, não tem com quem falar, então liga gratuitamente de um orelhão, e Dona Ermira estava lá, pronta para escutar todos os seus dramas). Dona Ermira também é voluntária em mais dois ou três hospitais, casas de apoio, orfanatos etc. Sinto muito, amigos mas a Madre Theresa de Calcutá não chega aos pés.

Outro dia, Dona Ermira terminou um plantão e saiu às carreiras, para emendar em um curso, depois um trabalhozinho voluntário, que ninguém é de ferro.Dona Ermira chegou ao vestiário dos funcionários, viu duas calças penduradas, da mesma cor, e pegou a sua.

Começou a vestir, e sentiu um aperto. Ficou preocupada: será que dei para engordar durante o plantão?, pensou. Puxou daqui, apertou dali, até que a calça entrou, e descobriu que as canelas tinham aumentado um palmo de tamanho. Mas, pensou bem, o que é uma reles canela, diante do curso e do trabalho voluntário. Saiu apressada, apertadíssima, mas chegou à parada de ônibus.

Dona Ermira pegou uma lotação e estranhou quando sentou. A calça começou a rasgar em várias partes. Teve medo de ficar nua. Por precaução, parou de respirar e desistiu de comer aquela coxinha com café. Parou também de pensar, para não cansar os músculos. Às duras penas, chegou ao final do dia. Chegou em casa com a calça se desmanchando. A filha disse um "mamãe, você está quase nua!"

Ao sair do plantão, sua amiga Sandra vestiu a calça e estranhou aquela imensa folga. De repente, um palmo de cintura a mais. O tecido se espalhava pelos pés. Olhou para o corpo, para ver se algo tinha acontecido durante o plantão, mas acabou descobrindo que aquela calça não era dela.

Conversa vai, conversa vem, as auxiliares de enfermagem chegaram à conclusão que Dona Ermira tinha aprontado mais uma: vestiu a calça da amiga, por engano, e deixou a sua.

A Sandra amarrou a calça com um cordão improvisado e voltou para casa, sentindo-se ridícula.

No dia seguinte, o hospital inteiro já sabia da história da troca de calças, realizada pela Dona Ermira.

"Mas mulher, tu não tem jeito, né?", foi o primeiro comentário de Sandra, entre risos. Dona Ermira ficou corada, mas já tinha providenciado os remendos nos lugares rasgados.

"Foi a pressa, minha filha", respondeu, entre risos.

Minha mãe é fogo!