segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Desde Cuba


La Habana, Cuba.



Último dia do ano. A sorte e o acaso se juntaram, e consegui uma Internet mirabolante, numa casa na periferia de Habana.

Pensei em mandar postagens constantes, mas a Internet é carissima e mais para os turistas, em hotéis.

Encho meus cadernos de notas, sobre tudo o que vejo e sinto em Cuba. Será mais saudável escrever um livro, e creio que será o mais provável.

Lá fora, a música cubana corre solta, junto com o rum e os charutos. Durante todo o dia, o que mais escutei foi a palavra felicidade, um desejo profundo de todos os que vivem e sofrem muito por aqui.

Aos meus leitores e amigos, um abraco imenso e um ano novo cheio de coisas boas.

Samarone.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Sabonetes Vinolia e canetas Bic


Da esquerda para a direita: Ze Vicente, Paulo, Tonho e Samarone.


El Malecon, Havana, Cuba (Foto: Rob Stradling)


Crianças jogando futebol em Havana (Foto: Chris Bury)

Teve um reveillon que passei em Buenos Aires, outro no Uruguai, outro no Chile, num povoado chamado Chiu-Chiu. Desconfio que, por conta da tradição andarilha do meu povo, eu tenha herdado esta mania de muitos lugares. Estou novamente na estrada. Na foto acima, estamos fazendo a travessia Imperatriz-Crato, em mil novecentos e setenta e seis. Meu teclado continua sem escrever certos numeros e acentos, perdão.

Daqui a pouco, estarei embarcando para Havana, retornando somente o ano que vem. Há pouco, terminei a cerimônia de preparação da mochila, que já me acompanhou por tantos cantos do planeta. Ela, a mochila, tem o azul e o amarelo do Boca Juniors, mas prefiro o Vélez Sarsfield, desde um jogo maluco que assisti acompanhado de um garoto francês, de sete anos, que levei ao estádio, numa rara imprudência dos pais e minha, há seis ou sete anos.

Consultei amigos, liguei para meus contatos em Cuba. Descobri que algumas coisas são muito boas de levar de regalo: boligrafos, que são canetas, chaveirinhos, artesanias de Brasil, sabonetes Vinolia e caramelos. Fui hoje ao mercado do Cabo e mandei ver. Enchi minha mochila de canetas Bic, principalmente as de cor preta, um lote bom de sabonetes, e um saco grande de caramelos.

Falei com Nilda, que vai me receber, e no primeiro contato, viramos amigos de longo tempo. No aeroporto, terei que dizer que vou ficar na casa de uma amiga intima. Ela disse que vão me pedir plata logo que eu chegar, e terei que dizer que sou um brasileiro pobre, que veio conhecer Cuba. Como não tenho muito dinheiro e cara de turista mesmo, vai ajudar. Depois do aeroporto, terei que pegar os “Camelos” , que são ônibus muy largos, que levam milhares de pessoas. Irei ao bairro de Vedado, onde ficarei, pela graça divina.

Estou levando o notebook, na esperança de escrever muito sobre as pessoas, o cotidiano, a vida, os sonhos e esperanças dos cubanos. Se a Internet não for tão cara, postarei algo.

Aos meus leitores, bom Natal e ótimo reveillon. Vi hoje no jornal que aboliram os toldos da praia de Boa Viagem, o que me pareceu justo. A praia tem que ser de todos, não de toldos, perdão o trocadilho infame.

Estou levando a camisa oficial do Santa Cruz, que causará, obviamente, um enorme tumulto nas imediações do Malecon, com todos querendo ficar com a camisa do Mais Querido. Trocarei por algo da mesma nobreza, como a camisa oficial da seleção cubana de Vôlei, ou cinco caixas de charutos e dois litros de rum.

Nos demais, fica o registro das coisas minúsculas. O sabonete Vinolia, que nem damos bola, faz um enorme sucesso entre os cubanos. O mesmo serve para as canetas Bic.

Levarei cheiros e tintas para os irmãos cubanos. E meu coração já começa a bater mais forte.


samalima@gmail.com

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Homens e não

Vai um trecho do livro do Elio Vittorini (Cosacnaify), minha sugestão para os finais de 2007, com tantos homens e tantos nãos.

***
"De quem é aquele vestido? Ele olha para ele, e eu também olho. Uma vez chegamos a tocar nele.
"Não o deixo sozinho", digo-lhe. "Não sou seu amigo?".
"Sim, ele diz". "Obrigado".
"Eu posso fazer muito por você".
"Sim", ele diz.
"Sim", digo-lhe.
"O que é?", ele me diz. "Tenho necessidade de descansar".
E me olha. "Sabe o que eu gostaria?"
"O quê?", eu lhe pergunto.
"Um dia da minha infância".
"Não é difícil tê-lo".
"Metê-lo dentro da cabeça".
"Não é difícil", digo-lhe. "Quer?"
"Com uma diferença".
"Que diferença?"
"Com a coisa que há entre mim e ela".
"Como?", pergunto-lhe. "A sua infânci e essa coisa juntas?"
"A minha infância e essa coisa juntas".
"Mas não é real".
"É duas vezes real".
"Você de antes?", digo-lhe. "E você de agora?"
"Eu na minha infância", ele diz-me. "E ela também na minha infância. A nossa coisa em um dia então".
"Mas você", digo-lhe, "não a conheceu menina".
"Eu conheço tudo dela".
"Você estava na Sicilia e ela na Lombardia".
"Eu estava também na Califórnia".
"Mas vocês nunca se encontraram nas suas infâncias".
"E não podemos nos encontrar agora?"
"Vamos tentar", digo-lhe. "Podemos ver".
"É para enfiar dentro da cabeça", diz ele.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O sonho de Cuba

Desde que me entendo por gente, quero conhecer Cuba, passar uns dias batendo pernas, andando sem rumo, procurando nada, a não ser pessoas e cenários. O mais próximo que cheguei da ilha foi uma noite de muito frio, em São Paulo, que cheguei com um litro de rum barato, e Gustavo adentrou com o CD novinho do Buena Vista Social Club. Escutamos aquela maravilha extasiados, bebendo goladas infernais, tragando um charuto formidável, e fomos dormir chumbados. Até hoje não sabemos qual dos dois ficou mais mamado.

Desde esta época, tenho juntado dinheiro com o objetivo intenso de passar uns dias em Havana. Quero tomar uns runs e fumar uns charutos, anotando minhas besteiras de sempre.

Uma vez, fui apresentar um trabalho num congresso em Miami, numa dessas sortes da vida, com passagem e hospedagem tudo pago, e estava a maior confusão por causa do pequeno Elian, um garoto que sobreviveu em uma balsa, e virou celebridade. De Miami para Cuba era um pulinho, mas eu não tinha muita grana, não era tão simples assim, acho que perdi mesmo foi uma boa chance de viajar por um precinho bom. São esses vacilos da vida. O menino, depois de uma batalha judicial, voltou para Havana.

Há uns três anos, cheguei muito perto de viajar. Juntei a grana, estava tudo nos conformes, mas me caiu no colo um bar quase falido, para tomar de conta, uma dessas coisas de família e de dinheiro que nunca entendi bem. O dinheiro de Cuba foi para imobiliária, funcionários, Ambev e milhares de outros cobradores, que me localizavam com uma facilidade incrrível. Fui ser dono de bar pela segunda vez na vida. Desde essa época, nunca mais passei para o outro lado do balcão, nem para pegar um abridor de garrafas, para não dar azar. Quando escuto um amigo dizer que quer ser dono de bar, mando rezar uma missa e passo dois dias dando conselhos.

Me recuperei bem, consegui vender o bar, passei a reduzir os gastos com coisas supérfluas, como sapatos, roupas, imóveis, carros, jóias, iates e noitadas, e de repente descobri que poderia sonhar novamente com a viagem. Entonces, no meio das muitas mudanças que faço na vida, o passaporte sumiu, junto com vários outros documentos.

Cheguei à situação cômica de ter dinheiro para a passagem e estadia, mas faltava o passaporte. Me avisaram para tirar outra via, mas seria a terceira, e todos os documentos necessários para a terceira via, estavam no envelope com o passaporte. É, eu admito que sou meio complicadinho mesmo, mas todo mundo tem seus defeitos. Tenho uma questão mal resolvida com documentos em geral.

Esse inferno terminou outro dia, quando fui separar livros para doar. No meio das dezenas de caixas, eu não sei nem para que tanto livro, estava lá, belíssimo e novinho em folha, o meu passaporte, verde como a floresta amazônica. Olhei-o com o carinho necessário, comemorei como se fosse um gol e senti o cheiro de Havana.

Comecei os contatos com os ex-guerrilheiros que já entrevistei, e que são meus amigos. Quero saber os caminhos de Cuba. O Zarattini, pra variar, só vai me dar as dicas na véspera da viagem, possivelmente em Código Morse, dentro de uma pasta de dentes, que nunca conseguirei decifrar.

Não sei ainda como funciona esse negócio de Lan House por lá, mas o fato é que pretendo mandar umas boas notas sobre a vida na ilha, compartilhando as descobertas com meus cativos leitores.

Iramarai ciscou, dizendo que iria, mas negou fogo, só por causa do preço da passagem. Gustavo também declinou, por questões familiares.

Mal comprei a passagem, começaram os pedidos – uma boina do Che Guevara para o Inácio, uma caixa de charutos para um amigo. Sei que alguém pediu um litro de rum, mas não lembro bem. Outro me pediu uma bandeira de Cuba, mas acho que dá para comprar pela Internet. Tudo bem, eu compro, não tem nada a ver o camarada comprar a bandeira de Cuba pela Internet, quando tem um amigo viajando pra lá nos próximos dias.

É, mas pelo que sei, tudo isso é pago, e a turma nem se liga.

Começaram também as dicas sobre o que levar. Não sabia eu que uma caixa de Bic faz o maior sucesso. Vou levar umas duzentas, então.

Não contem comigo, pois, para as inúmeras confraternizações, ceias de Natal, amigos os mais secretos e a atividade sócio-psicológica-frenética do Reveillon, que não curto há um bom tempo.

Pela arte do destino, estarei em Cuba, retornando somente ano que vem. Aceito de bom grado dicas de quem andou por lá, em tempos recentes ou remotos.

Prometo voltar.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Imagens da viagem ao sertão da Bahia

Estou sem tempo para textos. Compartilho as imagens da caminhada a Canudos, feitas por Iramarai.




segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Em Canudos

De Canudos, Bahia, e usando um computador sem varios acentos.



Esta foto foi tirada no Mirante de Canudos, onde tem uma estatua de Antonio Conselheiro. Embaixo, esta o acude Vaza Barris. Debaixo d´agua, restos de escombros do que restou de quatro batalhas.

Encontramos seu Altino Soares de Oliveira numa esquina erma, em Chorrocho, com a poeira comendo no centro, o calor derretendo o tempo. Ali, dizem, passam os onibus com os universitários, que vão para Canudos. Seu Altino puxa conversa, fumando seu cigarrinho de palha, os dedos cheios de calos da agricultural. Falamos que estamos a caminho de Canudos, ver a cidade fundada por Antônio Conselheiro, ele conta que seu avô se chama Pedro Calixto de Oliveira, foi um jagunço forte, brigou como o diabo, isso era para estar entre aspas, mas nao sei onde estao as aspas. O avo dele se esbaldou pelo mundo e nunca mais foi encontrado, depois aguardou a poeira baixar e retomou a vida, sem muito alarde. Seu pai, o de Altino, se chama Amancio, e costumava pegar restos de armas de Canudos, serrar e fazer novas armas. Ele fala de um resto de artefato da guerra, que guardou em casa, e pedimos para ver.

Ele entra em casa e traz um troço feito de aço, pesadíssimo, enferrujado, parecendo um bomba em miniatura. Foi usada pelo Exercito em Canudos, diz. Depois explica o formato e funcionamento de algumas armas, como a Lazarina, que era leve, e empregada como soca-soca. Depois, a Combrea, espingarda de controle de agulha, que para mim permanece um misterio, e finalmente a Carabina, de dois canos, que chamam tambem de Rifle quarenta e quatro, porque o teclado esta com problemas nos acentos e nos numeros. O quarenta e quatro pode ser chamado tambem de rifle papo amarelo, entre aspas. A Manu Licha era a arma que mais rompia, porque a cabeca da bala era de aco.

A conversa foi interrompida pelo onibus que vinha de Belem de Sao Francisco, entupido de universitarias. O primeiro refugou, mas o segundo nos abriu as portas, e economizamos cento e cinquenta quilomentros, creio.

No caminho, conhecemos as criaturas mais adoraveis do planeta, estudantes da Cevasf, como a Neide, da Historia, Jaqueline, Gabriela, Jaadi e Jeiza, de Letras, Adila, da Historia, e Adriana, Letras, e mais a Fernanda, de Geografia. Conversamos muito, a viagem inteira, e fico sabendo pela Neide, que estuda historia, que o acude Vaza Barris, entre aspas, foi feito pela ditadura, para encobrir a historia.

Ao entardecer, estamos em Canudos, e descobrimos que a cidade esta vivendo um pequeno frenesi, que e a peça Os Sertoes, dirigida por Ze Celso. Todos os hoteis e pousadas estao ocupados, muitos moradores alugaram quartos etc. Ficamos de bobeira, e somos salvos pelas meninas da viagem, que oferecem banho. Tomo banho na casa da Gabriela, Marai vai para outra casa, Ailton Guerra para outra.

Vamos tentar assistir a peca, que vai abordar a luta em Canudos, parte I. Converso com a produtora, digo que vou escrever textos para o Estuario, ela recebe a noticia com o desdem necessario, depois pergunta pela minha carteira de jornalista, acho um saco isso de usar carteira de jornalista para entrar nos cantos. O ingresso foi vendido de manha a um real, e a revenda chega a vinte mangos por bilhete. Quero ver a peça somente por um motivo - estão apresentando em Canudos, palco da guerra.

Iramarai e Ailton não dão muita bola para a peça. Todos estamos exaustos. Fico por ali, por ali, olhando o povo, então me chega um rapaz e oferece três ingressos por vinte e um mangos, ofereco vinte, acaba saindo por dezessete, lembrem que o teclado não tem numeros, e amanhã consertarei o texto. Na entrada, a produtora acha ruim porque comprei de cambistas, eu quase volto.

Assisti três horas de Os Sertões, fiz um esforço intelectual e afetivo sem limites para sentir algo que cheirasse a emoção, mas faltando vinte minutos para o intervalo, vi que o Sertão do Ze Celso não passa nem perto do meu. Encontramos um espanhol e uma baiana, gente cabeça, eles disseram que era preciso esperar uma cena linda no final da peça, mas fica para a próxima, em três horas, dava para ver algo lindo.

Dormimos no box de um mercado e na manhã seguinte, a feira de Canudos estava espalhada pelas ruas. A diversidade das cores, gentes, produtos, preços, me lembrou a feira que tinha aos sábados, na casa da minha avó, no Crato, e foi melhor que a peça.

Então conhecemos dois personagens impagaveis, no meu primeiro domingo em Canudos. O Antônio Mergulhador, ou Antônio da Cruz Silva, e seu Cândido Pereira da Silva dos Santos, de sessenta e três anos.

Escreverei sobre eles e sobre outras criaturas que esbarramos, durante o dia, quando achar um computador que tenha acento e numeros, porque estou ficando impaciente.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Reverenciando Canudos

De Chorrochó, Sertão da Bahia.

Algumas sincronicidades me fzeram voltar à estrada, desta vez para a terra onde Antônio Vicente Mendes Maciel, mais conhecido como Bom Jesus Conselheiro, criou um mundo à parte chamado Canudos, aqui na Bahia. Primeiro, o desejo antigo de reverenciar lugares que foram palco de lutas. Um lugar que reuniu 30 mil pessoas, em 1897, e foi sucessivamente atacado pelo Exército, em quatro grandes e sangrentos combates, até que nada restou do lugar, na última investida militar, aniquilando por completo o que era a segunda maior cidade da Bahia, atrás apenas de Salvador.

Primeiro, um encontro com Herik Hoover, produtor da peça "Os Sertões", no meio do nada, em uma pequena cidade no interior do Ceará. Isso há mais de um mês. Ele me falou da peça, que seria encenada em Canudos, no final de novembro. Dias depois, ganhei o precioso livro do historiador Frederico Pernambucano de Melo, intitulado "A guerra total de Canudos". Ele descreve de forma preciosa e numa linguagem saborosa, a guerra que levou ao sertão, "em etapas sucessivas, 12 mil homens da melhor tropa de linha - veteranos, em boa medida, da Guerra do Paraguai, da Revolta Armada e da Revolução Federalistas - dos quais 5 mil não regressaram".

Caminho para Canudos a partir do sertão de Pernambuco com Iramarai e Ailton Guerra. Atravessamos de balsa até Ibó, depois caminhamos. Só depois de olhar as distâncias, descobrimos um erro crasso na jornada. As cidades da Bahia ficam a uma eternidade de distância. Para chegar em Chorrochó, onde estamos agora, tivemos que dormir num descampado, e sofremos tentando carona.

Passam milhares de caminhões pela BR 116, mas nenhum é capaz de parar. Torramos no sol, e já sem esperança de nada, com a próxima cidade a 46 quilômetros, esbarramos no Paulo, um motorista que está terminando o segundo grau e pretende fazer o curso de Letras, em Belém de São Francisco.

É final da manhã, quando Paulo chega em seu ônibus desgovernado, faltando o vidro dianteiro. Puxa assunto, diz que já trabalhou com índios e negros, quer saber o que fazemos. Para sair, temos que empurrar o ônibus, que tem bancos descolados, vidros que não abrem, espelhos arrebentados, mas faz o principal em qualquer viagem - anda.

Somos acompanhados pela Daiane, que deve ter uns 14 anos, e diz que vai morar em Salvador, ano que vem, para terminar o segundo grau, fazer "direito ou medicina".

No caminho, o papo é bom, o vento entra selvagem pelo não vidro, até que Paulo pegunta se estamos lendo algum livro bom.

Pego um Fernando Pessoa que chegou ao acaso, um livro de bolso com o melhor de Álvaro de Campos, o que mais gosto.

Fazemos uma dedicatória, entregamos ao Paulo, que olha e passa para Daiane. Ela fica lendo, sentada na parte da frente do ônibus.

Procuro a máquina, para fotografar o ônibus sem vidro, e a menina lendo o Fernando Pessoa, mas está descarregada, e perdemos imagens lindas. Leitores, me perdoem essa minha falta de talento com as imagens. Imaginem o ônibus, por favor.

Nos despedimos de Paulo e sempre levo aquela sensação que dificilmente nos veremos novamente. Mas ele anotou meu email, quem sabe. Espero que ele seja professor de literatura, porque adoro isso.

Chegamos aqui, mas o ônibus para Canudos saiu de manhã. O próximo, só amanhã de manhã. Tentaremos carona com os universitários, que voltam de Belém ainda hoje.

Faz muito calor, estamos exaustos, mas até a tardinha, chegaremos a Canudos, que tombou, mas resiste na memória.

Vou acabar. Meu tempo na Lan House esgotou.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Esse tão pouco que preciso

Resulta que em mim, há uma necessidade que vem das entranhas, essa de escrever. Me agonia a distância de um caderno, uma caneta, um lugar quieto para escrever, que é meu jeito de falar com o mundo. Porque em mim, escrever é ser. Sou o que a minha expressão permite. É tão orgânico, que me faz submisso. Não escrever é como um desamor, uma solidão. É o lugar do maior abandono.

Às vezes, ao dia só resta atravessá-lo. Toma-se decisões, o telefone agiliza processos, a sobrevivência vai nascendo de atos que levam a alguma coisa, talvez precária. O labirinto da existência. Quando entardece, este excesso de vida prática exige novos rumores. Uma biblioteca, um café silencioso, um lugar de armistício. É possível colher alguns louros em meio às prateleiras, repleta de autores amados.

Mas falta a escrita. O momento silencioso de elaborar as perdas, ganhos, fracassos, gentilezas. Aquietar a alma e deixar a mão seguir, tateando alguma cegueira nova, desconhecida.

Procuro então uma biblioteca. O silêncio das bibliotecas me lembra catedrais fechadas, igrejas sem padres. Anoitece quando esbarro na biblioteca da Universidade Católica, onde estive tantas horas de minha vida. Sou barrado, porque no período das provas, só alunos e professores podem entrar. Não esboço reação. Sou um ex de quase tudo na vida: ex-aluno, ex-chepeiro, ex-professor, ex-repórter, ex-tantos.

Chego a um café no pátio, onde o vento é bom. Não há tanto silêncio, mas a mesa vazia me acolhe bem. Por deleite espiritual, uso uma caneta bico-de-pena, comprada após um longo dia de trabalho. Um prêmio para meu dia, por não ter esmorecido ante aos seus rumores.

Aqui, sentado, escuto as buzinas impacientes no trânsito. Talvez os motoristas não tenham descoberto que buzina não abre espaços nos engarrafamentos. Melhor vender o carro e comprar uma ambulância. Seria lindo o Recife, num desses dias de sol, com mil ambulâncias loucas, cortando sinais e causando alarde. Há, de fato, gente que vive como se a sirene estivesse ligada, a caminho de algum hospital que sequer existe. Talvez sejam as doenças da alma.

Vou por aqui, anotar outras besteiras. Mas só este tempo destinado ao rascunho dessas minhas notas esparsas, que não constarão em nenhum jornal de amanhã, me acalmam o suficiente para ver o silêncio com outros olhos. Me aquieto, me acomodo, realinho algum cômodo interno. Minha paz está em minhas mãos.

Sempre soube que viveria do que escrevo. Não sabia que sobreviveria do que vejo e penso, já sem os males do pudor, do excessivo cuidado com o mundo. Só me arrumo quando coloco as palavras para a vida, soltando-as em desabalada carreira.

Minha ordem é outra. Minha salvação tem outras veredas. Minha bênção é esta escravidão das letras. As palavras me abençoam, me lavam. É tão pouco o que preciso, que às vezes tenho a vertigem de ser livre.

Aos meus queridos leitores, estendo as mãos. Estou de volta ao nosso diálogo.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Cronista de férias

Caros leitores,

Depois de três anos de crônicas, resolvi me dar umas férias temporárias.

Breve retornarei. Um pouco de silêncio e descanso fará bem.

Abraços,

Samarone

sábado, 3 de novembro de 2007

Pequeno inventário das minhas grandes invejas

Inveja infinita de quem toca um sax alto durante o ano, e no Carnaval toca em alguma pequena orquestra somente para dar uma força à turma;
Inveja de certos homens que ficam sentados uma manhã inteira, olhando para o tempo, uma tarde inteira, olhando para o vento, e chegam à noite com os olhos ainda virgens;
Inveja de quem sabe contar piadas, mas não passa a noite enchendo os amigos de piadas;
Inveja de quem não tem medo de altura;
Inveja de quem ganha de presente cadernos de papel reciclado e canetas bico-de-pena;
Inveja de quem tem um Fusca 68 azul e nunca o bateu em um Honda Civic;
Inveja de todos os jogadores de futebol que já entraram no Arruda e foram saudados pela torcida do Santa Cruz, em qualquer época da humanidade;
Inveja de quem nunca foi dono de bar;
Inveja total de quem chuta com as duas pernas e sabe cabecear bem;
Inveja de quem sabe usar a linguagem dos sinais e usa, sem ser surdo-mudo;
Inveja de quem joga bem dominó e faz um lá e lô no final decisivo do jogo;
Inveja de quem assistiu um show ao vivo da Elis Regina;
Inveja de quem tem uma casa própria, embora miúda;
Mais inveja ainda de quem tem uma casa própria no Poço da Panela;
Inveja de quem sabe recitar os próprios poemas para os amigos, e, especialmente, para a mulher que ama;
Inveja de quem recebeu um adiantamento da editora para escrever seu próximo livro, e vai passar seis meses só no fulozô;
Inveja de quem está viajando hoje para Cuba e depois Venezuela;
Inveja de todos os textos de Osvaldo Soriano, o argentino maravilhoso que escreveu “Uma sombra logo serás”;
Inveja de quem sabe dançar bem e tem disposição para dançar bem, como Luciana;
Inveja de quem tem um programa de rádio, de madrugada, coloca músicas lindas e lê as cartas enviadas pelos desconhecidos;
Inveja de quem conheceu a América Central numa longa viagem, cheia de amigos;
Inveja de quem toma um porre e se lembra de guardar os óculos num lugar seguro;
Inveja de quem não fica nervoso para falar em público;
Inveja de quem passou a tarde hoje num café, conversando com seu melhor amigo ou amiga;
Inveja de quem anota na agenda a data do aniversário dos melhores amigos, e lembra de telefonar no dia certo;
Inveja de quem tem disposição para fazer seu próprio aniversário;
Inveja de quem tem paciência para escolher e comprar roupas;
Inveja de quem toca “Carinhoso” no sax ou em qualquer instrumento;
Inveja de quem sabe cantar uma música de Lupicínio Rodrigues bem afinado;
Inveja de quem sabe o nome das plantas e flores, como Iramarai;
Inveja de quem conheceu Antonio Porchia, no subúrbio de Buenos Aires;
Inveja de quem tem uma máquina fotográfica manual e tira fotos dos amigos, crianças e velhos há muitos anos;
Inveja de Carlos Pena Filho, pelo “Soneto do Desmantelo Azul”;
Inveja de quem salta de pára-quedas e fica gritando lá do céu um monte de palavrões;
Inveja de quem foi feliz na infância;
Inveja de quem encontrou seu amor tranqüilo;
Inveja de quem conviveu muito tempo com os avós;
Inveja de quem sabe recitar os poemas de Manuel Bandeira;
Inveja de quem tomou um porre com Antônio Maria;
Inveja de quem sabe o nome de todas as pontes do Recife;
Inveja de quem vai passar o sábado inteiro numa rede, lendo algo maravilhoso;

Invejas, simplesmente algumas invejas.

Recife, 30 de setembro de 2005.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Viagem solidária

São 6h22, estou no terminal do Centro do Cabo, para viajar ao Recife. O "semi-expresso", que é mais rápido, porque vai pela BR, nem deu sinal de vida. Pego o ônibus comum mesmo, fico rezando para o sujeito que está passando a roleta não pegar a janela, na cadeira que fica logo depois do cobrador, o melhor lugar do ônibus para ler e esticar as pernonas que tenho. "Sai, sai", fico repetindo baixinho, mas o cara se aboleta no meu lugar. Ressentido, fico do lado oposto, com minha mochila e outros apetrechos das andanças.

O ônibus sai cheio, pego meu livro do momento e começo a ler. Sei que vou cochilar, porque estou cansado, dormi pouco, estou com uma mania feia de acordar no meio da noite e ficar direto, lendo e escrevendo. Então acontece o fenômeno que muita gente de classe média não conhece - o ônibus lotado, parando rigorosamente em toda parada.

Começo a cochilar, acordo, cochilo de novo, como faz minha mãe, em tudo que é viagem. Herança de família é coisa que o sujeito carrega até cochilando.

Então acontece o fato da viagem: a chegada da grande família. Uma senhora negra, certamente a mãe de duas outras senhoras negras, cada uma com três filhos, todos também negros, um deles visivelmente irritado com algo, deve ter uns 11 anos, está com uma cara péssima. Não contei direito, mas eles juntos somam nove pessoas. Uma das mulheres leva uma criancinha nos braços e fica de pé, na minha frente. Dou uma enrolada, quero ler somente mais uma página, mas estou com o coração mole, olho para ela, pergunto se quer sentar. A mulher, claro, quer sentar.

Não estamos nem na metade do caminho, faltam uns vinte minutos para as sete da manhã, o ônibus está entupido, perdi a cadeira, é a vida.

O menino de 11 anos começa a passar mal, está meio pálido, a avó manda ele sentar. Todos fastam, ele vai para um canto, está irritado, não quer sentar, a avó é linha dura, fica repetindo "senta, menino, senta ai", me olha assim e diz:

"Ele está com dor de cabeça direto".

São todos bonitos, fortes, simpáticos, só o menino está assim, mas com dor de cabeça o cara não fica nada legal.

Uma moça do lado dele puxa a mão.

"Tira a mão de fora da janela, que é perigoso".

O menino tira, então senta, a viagem se acalma. Olho para as cadeiras, tem passageiro dormindo com o filho no colo, gente escutando fone de ouvido, muitos ainda cochilam, há um rapaz ao meu lado com uma pastinha transparente, cheia de documentos, uma Carteira de Trabalho, creio que ele descolou um trabalho novo, está com uma cara boa. Ao lado do cobrador, de pé, um rapaz cochila. Sim, uma cochilada em pé mesmo, que é como a vida permite, certas vezes.

Olho para o lado. A menina que ajudou o negrinho está com a cabeça baixa, rezando um terço, com a ajuda de um terço miúdo, que a gente coloca no dedo, uma vez ganhei um desses de uma aluna.

Quase não tem conversa, é um ônibus silencioso e cansado, feito de trabalhadores brasileiros, que moram a 45 quilômetros do Recife. Surge mais uma vaga ao meu lado, a outra mulher negra, possivelmente a mãe do menino que passa mal, senta, com uma menina no colo. Vamos caminhando para sete horas, falta a Imbiribeira inteira, mais meia hora, pelos meus cálculos.

Olho para o lado. Dezenas de carros ciscam impacientes, rumo a algum lugar, desta cidade interminável, que é o Recife. Não consigo entender o motivo de haver tanta impaciência entre as pessoas que têm um carro só para elas, com ar-condicionado e som ambiente. A essa altura, esqueci da importância da minha leitura, o livro fica para depois. Em seu lugar, ficou a imagem da avó, dura e carinhosa, mandando o menino sentar, no chão do ônibus, o menino resistindo, a voz amorosa de uma passageira que não sei o nome, que usava um broche falando algo de Deus ou Jesus, não lembro, sei que era um dos dois.

Desço no Cais de Santa Rita, são 7h25, deu exatamente uma hora de viagem, pareceu mais. Vou caminhando para a escola, olhando a beleza das pontes, uns barquinhos que chegam com peixes magros. Lá na frente, encontro Pedro, meu aluno, que é sempre o primeiro a chegar. Me conta do último fim de semana em Tejipió, o bairro onde mora. Tiroteio, briga de gangues, violência policial, essa epidemia de violência que tomou conta de nossa cidade. É de doer.

Prefiro ficar com a imagem daquela família, numerosa e muito agarrada dentro de si, como se todos protegessem todos. Uma família silenciosa que foi protegida com poucos gestos, nessa silenciosa viagem matinal de todos os dias.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Relato sobre a vida e a morte no Mercado de Casa Amarela

Tive o prazer de conhecê-lo há cerca de 15 dias, ali no Mercado de Casa Amarela, aquela cidade de gente, barracas e produtos, onde costumo ir, especialmente aos sábados, dia recomendado por todos os terapeutas do Recife para um divertimento sadio, que é tomar umas cervejinhas e contemplar o povo se bulindo.

O Mercado (perdão, mas é com maiúscula mesmo, em sinal de respeito) é reduto de inúmeros “boêmios do dia”, como é o caso do professor Davi, que pode ser encontrado na barraca de Mary, com a singela e esfarrapadíssima desculpa de que vai “almoçar”. Ora bolas, nunca vi almoço demorar três, quatro horas, nem o sujeito ter o telefone da proprietária do estabelecimento, para reservar a mesa e encomendar suas Brahmas. Mas isso são outros 500, voltemos ao assunto.

Estava eu quietinho, bebericando de leve, mansamente, qual um bem-te-vi em seu galho, quando ele sentou ao lado, pediu um quartinho e dois pedaços de passarinha. Para quem não sabe, quartinho é um copo americano repleto de aguardente. Não sei de onde, nem como, nem onde, nem por qual o motivo, mas a conversa nasceu, cresceu e vicejou, até que ele me falou do Cemitério de Casa Amarela, que fica por detrás do Mercado, cemitério este que só tive oportunidade de entrar duas vezes – uma no enterro do amigo Barrabás, e outra para colocar uma florzinha em seu túmulo, tudo no ano passado, que Deus o tenha.

“O cemitério fechou de novo”, lamentou meu amigo. Depois de um silêncio pesaroso, completou. “Tá foda, visse? O que está morrendo de gente, não está no gibi”. Na seqüência, deu uma bicada de com força naquela garapa que passarinho não bebe, e mordiscou a passarinha, oleosa como o quê. É assim: quando o cemitério enche, fecha para evitar transtornos. Ah, sei lá, não pedi muitos detalhes.

Meu amigo se chamava Adão Pinheiro de Carvalho, (pelo menos foi o que me disse) e trabalhava num escritório de contabilidade, além de ganhar um extra fazendo as declarações de renda dos amigos. “Sei como funciona isso tudo. De leão eu entendo melhor que domador de circo”, completou, com um sorriso de convencimento.

Mas qual foi a minha surpresa, quando Adão Pinheiro me confessou que tinha como principal atividade, aos sábados, acompanhar os enterros no cemitério de Casa Amarela. Achei esquisito, mas da espécie humana espero tudo.

“Não é nenhuma obsessão, eu sou normal”, contou ele, com uma cara meio triste e aquele bigode a la Cantinflas, mal pintado e mal aparado. Eu realmente nasci para escutar essas histórias malucas, foi o que pensei. “Mas é que eu gosto de ver o último capítulo da vida. Ao final do dia, volta para casa muito mais humilde”, completou.

Ele me olhou nos olhos, acendeu seu Oscar, um cigarro que, segundo Vital, é falsificado no próprio Paraguai, e me disse assim em segredo:

“Professor, a vida é por um triz”.

Ele sabia os detalhes do funcionamento do cemitério, conhecia os coveiros pelo nome e apelido, explicou os setores, informou sobre as mulheres que cuidavam dos túmulos muitos anos após a morte dos respectivos maridos, enfim. Sabia de muitas histórias.

“Um dia, cinco coveiros botaram uma farinha no almoço e estava envenenada. Os cinco morreram horas depois, inclusive um que estava no primeiro dia de trabalho. Desse foi que eu tive pena. A imprensa não publicou uma linha, eu não entendo esses jornalistas”, disse.

Ele sabia também os preços das coroas de flores, o tempo que a família tem para desocupar uma gaveta, as taxas do cemitério. Depois de muitos anos de convivência com o mundo dos mortos, disse que o enterro mais triste de sua vida aconteceu há coisa de cinco anos, num sábado de chuva forte. Até desabamento de casa teve. O que chamou a atenção do meu amigo, naquele dia, foi que o carro da funerária levou o caixão e o deixou em cima da pedra. Nenhum parente ou amigo fora ao velório.

“A gente acha tanta coisa ruim na vida, mas ruim é morrer só, professor”.

Fiquei paradinho. Ele bebeu mais um gole, pediu outro quartinho e afastou a passarinha. “Perco até a fome quando lembro disso”.

Ele percebeu meu interesse e se aproximou.

“Fiquei ao lado, para dar uma força, esperando chegar alguém. Mais de uma em pé, ao lado do morto, e ninguém”.

“E ai?”, perguntei.

“E aí, professor, o senhor deixaria uma pessoa ser enterrada sozinha?”

Bem, ele tinha razão. Ligou para a irmã, Jésssica, que morava por perto, ali na avenida Norte. Explicou a situação, pediu que ela também acompanhasse o enterro, era um ato de compaixão.

“Estás ficando é doido”, respondeu a irmã, antes de desligar o telefone.

Quando o coveiro chegou, perguntou se meu amigo era o irmão do morto. Adão não soube me explicar o motivo, mas, num impulso, respondeu que sim. O coveiro, de nome Venceslau, também chamado de Lalau, disse que iria terminar logo, porque estava chovendo muito e teria tempo de jogar um dominó ali perto. Adão pediu cinco minutos e comprou uma coroa de flores, dessas de vinte e cinco reais. Acompanhou em silêncio o cortejo solitário até a gaveta (2234, jogou no bicho, mas não deu).

Enquanto o coveiro fazia seu trabalho, olhou pela primeira vez o rosto do morto. O que teria feito para ser enterrado sozinho? Mesmo sem crenças, ele rezou duas ave-marias. Aprendeu que se reza aos mortos. Depois, sentiu uma tristeza imensa, como se tivesse de repente alguém da família morrendo, e comentou com o coveiro:

“Ninguém merece morrer sozinho”.

“Ruim mesmo é viver sozinho”, respondeu Lalau.

Adão voltou do enterro, encostou numa barraquinha e mandou ver na sua garapa. Me contou que na época do enterro do solitário, estava intrigado do irmão mais velho, por causa de uma confusão envolvendo um dinheiro emprestado. “Coisas de família”, disse.

Saiu do mercado e resolveu telefonar para o irmão.

“Eu tinha perdido alguém que nem conhecia, então achei que era justo reencontrar um irmão que estava perdendo”, contou. O irmão de Adão ficou surpreso com o telefonema, mas também disse que vinha pensando em fazer um contato. Dois dias depois, se encontraram e tudo ficou resolvido. O irmão morreu ano passado, mas sem intrigas, graças ao morto de ninguém.

Depois de me contar sua história, Adão fez um silêncio, acendeu outro cigarro e ficou olhando para o nada, longe, com aqueles olhos perdidos, talvez lembrando que a morte é mesmo por um triz.

“Sei que é ruim viver sozinho, mas ninguém merece morrer sozinho, professor. Escreva o que eu digo, ninguém merece morrer sozinho”.

Então, eu escrevi.

Recife, agosto de 2005.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Pequenos sonhos

Estou à procura de um helicóptero para um vôo de uma hora sobre o Recife. Quem souber o preço do aluguel, por favor, me informe.

É que estou começando a realizar os sonhos dos meus amigos. Belém, motorista da Secretaria de Saúde, sonha em dar um vôo de uma hora sobre nossa amada cidade, e isso não deve custar muito caro.

Isso de realizar sonhos é uma coisa sem fim. Minha sugestão é simples: começar pelos sonhos miúdos, depois passar para os médios, até chegar aos graúdos.

Sempre sonhei em passar defronte a um campo de várzea, e ver um jogador fazendo um gol. Outro dia aconteceu. Um cruzamento da lateral, o cara emendou na pequena área, a rede estufou. Quase desci do ônibus para comemorar.

Davi, meu dileto amigo, sonha em ganhar na Mega Sena apenas para realizar o sonho de tirar todos os amigos do trabalho, indenizá-los, alugar uma Van e levar todos para beber, de segunda a sábado. No domingo, ficar com a família, que ninguém é de ferro.

Minha mãe sonha em ter um abrigo para ajudar os portadores de HIV. Minha mãe, se fosse muito rica, se fosse da elite, iria ajudar muita gente. Eu tenho uma gastura imensa de quem tem dinheiro, muito dinheiro, e não ajuda a quem pode, do porteiro à vizinhança.

Naná tem o sonho de ver a filha formada. Enquanto isso não acontece, usa sua Kombi enferrujada para levar as crianças do Poço da Panela para a escola.

Os sonhos miúdos são os que mais me encantam. Gustavo sonha apenas em ser poeta e viver com o pouco. Valdemir Leite sonha em aprender inglês e andar de bicicleta.

Sonho com uma cidade cheia de livros, biblioteca lindas e imensa.
Sonho com uma cidade inundada de leitores compulsivos, especialmente os jovens dos bairros mais pobres. Mais romances, menos repressão. Mais crônicas, menos violência. Mais poesia, menos mortes. É um sonho imenso. Por via das dúvidas, comecei com meus 80 alunos.

E sonho outras coisas também, miudinhas da silva, um dia conto.

Ah, sonho em dar uma festa bem bacana e chamar todos os meus leitores, só para ver a cara e o sorriso deles.

Dançaríamos todos de sapatos, até amanhecer o dia.

Depois, como diz o poeta, dançaríamos descalços o resto da vida.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Anotações sobre o Menino Ailton



Ailton, numa foto recente

Conheci Ailton Guerra em 2000, quando ensinava “Técnicas de Reportagem”, na Universidade Católica, e subimos o Alto José do Pinho, para desvendar os rostos do morro. Aquele camarada muito negro, estatura mediana, cabeça raspada, chamava a atenção pelo, carinho, o largo sorriso, um jeitão de criança. Era estranho o apelido de “Peste”, nascido da infância. O camarada parece que atormentou mesmo sua escola.

Foi ele, o “Menino Peste” a ponte entre os sedentos alunos de Jornalismo e a comunidade. Dali saíram várias belas reportagens e alguns bons jornalistas. A experiência humana da troca, tomando umas cervejas no Caldinho do Biu, gerou ótimas amizades. Desta época, lembro apenas que Peste era o baterista do grupo de punk rock “Matalanamão”. Depois dei uma oficina de Comunicação, e ele participou, com olhos atentos, tomando nota de tudo. Depois, passou em minha casa e pegou livros a título de empréstimo. E seguiu.

Ficamos algum tempo sem contato, depois nos vimos quando ele era educador do projeto Olinda Jovem, na periferia de Olinda. Matamos saudades, trocamos idéias, vi que o camarada estava tocando em frente. O velho e bom amigo caminhava pelos rumos da comunicação, dando oficinas para jovens.

O derradeiro encontro aconteceu há um ano, quando o convidei para trabalhar comigo na Oficina da Palavra, na escola em que ensino. Cheguei em sua casa e começava a tocar “O bêbado e o equilibrista”, com Elis Regina. Até hoje, não sei quem é o bêbado ou o equilibrista. Depende do dia, creio.

Por artimanhas do destino, estamos juntos até hoje. Toda terça e quinta, nos encontramos logo no começo da manhã. Ficamos juntos a manhã inteira, percorrendo os labirintos da Literatura, produção de textos, buscando poetas, romancistas, cronistas que consigam bater à porta dos jovens, para lhes mostrar novos mundos. Às terças, depois das nossas aulas, vamos juntos assistir as maravilhas da Flávia Suassuna, que é um presente de Deus. Na quinta-feira almoçamos num boteco roufento, ali por perto da Rua da Moeda, num calor de rachar , em meio ao populacho mais comum.

É mais que isso. Tomamos nossas cervejas, alguns aperitivos, avaliamos nossas vidas, projetamos primaveras, inventamos novos sistemas decimais, criamos tempestades em copos de geléia de mocotó Colombo, renovamos esperanças. Desabafamos passados alheios, rimos cósmicos, lembramos do que não aconteceu, descobrimos novos paradigmas filosóficos e amadurecemos a natureza das pétalas. A conta nunca passa de R$ 14,00. Somos boêmios e sonhadores modestos.

Nos últimos dias, resolvemos cair na estrada. Ele queria ir para Nazaré da Mata, sentir o cheiro dos ancestrais. O pai era um negro de olhos azuis, caboclo de lança do Maracatu. Fomos para Carpina, depois seguimos caminhando para Tracunhaém, olhamos toda aquela beleza da arte em barro, depois singramos para Nazaré. Antes de chegar à casa de sua tia Maria, saímos em busca do Engenho Cumbe, local onde seu pai tocava. É preciso mesmo ir em busca do cheiro dos antepassados, sentir a atmosfera dos mais velhos, botar os pés onde já viveram os nossos.

No caminho, o longo caminho, tivemos nossas conversas em quase-silêncio, ao som das sandálias arrastando pelo chão. Ele me falou das muitas perdas, num prazo de quatro anos. Pai, mãe, irmão, numa seqüência de despedidas. “O próximo serei eu”, disse ao telefone para a namorada, após mais um adeus. São essas coisas que a gente pensa quando tudo está tão triste e ruim, que a esperança vai saindo pela tangente. E ele está ai, vivo, cheio de planos, se preparando para enfrentar o Vestibular para Comunicação.

“Era para eu ser o policial da família, mas acabei virando educador”, lembra.

Sim, meu amigo tinha como destino a farda e as armas, mas preferiu outras armas. Primeiro, sua banda de rock, o som radical da banda. Depois, os livros, as palavras, a poesia, a beleza.

Não sei que tipo de policial ele seria, sei que é um maravilhoso professor. Mesmo sem a formação pedagógica formal, tem uma intuição afinadíssima, um raro senso de percepção de como trabalhar com os jovens.

Em nossa jornada, chegamos à casa da tia. Conheci dona Maria, sua tia amorosíssima, mãe de Joseíldo, mãe de Josemar, o “Mamá” (cabeleireiro que não aceita cortar o pelo de ninguém fiado), mãe de Jaílson, que é policial militar, e Jacilene, que vai tentar o 3º concurso seguido para a PM. Conheci, convivi, tomei sopa e suco de acerola e café com manteiga com todos eles, com as duas Karlas, filhas de Jaílson, uma de 11, outra de 14 anos.

Karla Mais Nova não gosta muito de estudar, mas bate um dominó de primeira, tanto é que Ailton levou duas buchudas, enquanto eu anotava minhas besteiras de viagem. Karla Mais Velha é uma leitora voraz, e por conta própria sabe tudo sobre “regimes totalitários”. Conversamos muito, ela foi lá dentro, pegou seus livros, suas redações, me mostrou. Ela quer cursar Psicologia e acho que vai longe.

E todas essas pessoas com uma amorosidade imensa, intensa, radiante. Uma educação rara, passando por uma mansidão de espírito, gentilezas da alma. Vi ali a matriz genética e espiritual do meu amigo, que é um desses mansos que fazem o mundo mais bonito.

A cada senhor que passava, com seu chapéu e seu cigarrinho de palha, Ailton dizia:

“Isso é a cara do meu pai”.

Voltamos da jornada num galope silencioso, vi que estava mais próximo do meu amigo.

Mas o melhor de toda viagem é mesmo essa troca de entrelinhas no silêncio dos passos.

Ao meu amigo Ailton, por supuesto.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Coisas miúdas

Não sei o que há, o mundo anda meio estranho, apressado, as pessoas andam se destratando e destratando o mundo. Há milhões de pessoas remexendo o Orkut, neste momento, milhares de mensagens estão indo e vindo, mas poucas vezes tenho escutado aquela pergunta sincera: "Você está bem?", feita pelo Siba, num dia em que eu corria para resolver algo que não lembro.

Tenho criado meus pequenos refúgios, abrigos, acalantos. Uma vez por semana, chova ou faça sol, vou ter com a minha amiga Flávia Suassuna, com suas aulas de Literatura. Ao lado do meu inseparável amigo Ailton, escutamos coisas que entram no coração, acalmam os tumultos. Como o Drummond, que diz que "cego é talvez quem esconde os olhos debaixo do catre". Lá, descubro com certa tristeza que a marca do Século XIX foi a palavra, e que a do século XX é a imagem. Mas a Flávia diz que um poema do Drummmond mudou a vida de sua irmã, então comenta:

"Se o Drummond mudou uma pessoa, mudou o mundo".

Duas vezes por semana, o encontro com a turma de professores da Kabum!, onde ensino. Então chega a Ana Luiza, com seu abraço verdadeiro, a troca de olhares e esperanças, o que vamos fazer a cada manhã. Vejo os jovens lendo cada vez mais, e fico feliz porque algo que faço neste mundo vale a pena. Cada vez vai ficando mais claro para mim. De tudo o que fiz, dos livros, das viagens, dos projetos que participei, o que mais me comove, me realiza, me faz ser gente, é ver jovens se apaixonando pela leitura, pelos livros, pelo mundo sem volta que é o da Literatura.

Chega Beth, a doce Beth da Mata, com seu sorriso, seu olhar precioso para o mundo da arte, sua generosidade, então o dia fica mais calmo e bom. Chega Syrlei, que faz um lindo trabalho de teatro com os jovens, chega Walquiria, então o dia, às terças e quintas, começa bem, precioso..

Volto ao meu caderninho com as drummonianas:

"Minha criança salta na minha vida para restaurá-la".

O Drummond perdeu sua filha Júlia em 1987, ficou triste, muito triste, sobreviveu apenas 12 dias, depois foi enterrado junto com ela, que coisa.

Volto à Flávia. Ela começa a ler um poema para os alunos e chora, se emociona, pára a leitura. Fica aquele silêncio, penso em bater palmas, mas o silêncio é mais eloquente que as palmas, então as grosserias da vida, as chateações, ficam mais serenas.

Ah, meus amigos, hoje estou meio desaprumado, alguma nota mais triste tocou. Mas são as coisas, minha falta de afinação com o mundo, que escondo bem.

Uma frase do Rilke então me consola:

"Sou um desajeitado da vida".

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Um prêmio ao bom jornalismo, em meio à nossa matança



Ação dos jornalistas na Favela do Detran. O pai de Idalino, assassinado, acompanha a pintura do "basta"

Sempre achei meio esquisito a fissura de alguns jornalistas por prêmios, como se isso fosse a coisa mais importante da carreira. O mais importante, para mim, sempre foi a qualidade do trabalho, os compromissos éticos e sociais. Isso tudo num belo texto, claro.

Mas um prêmio sempre admirei e acalentei secretamente o desejo de ganhá-lo – o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos. Não sei, era algo meio sentimental, que eu achava um pouco o meu caminho, essas vaidadezinhas que todo mundo tem. Nunca cheguei nem perto. Inscrevi Clamor na categoria “livro-reportagem”, mas nem menção honrosa ganhou.

Ontem fiquei sabendo que o grupo de jornalistas que toca o blog PEbodycount (www.pebodycount.com.br) ganhou o Prêmio, na categoria Internet. É sobre eles a postagem de hoje.

Rodrigo Carvalo, 28 anos, João Valadares, 29, Carlos Eduardo Santos, 28, e Eduardo Machado, de 30, são jornalistas do Jornal do Commercio, e já fizeram muitas matérias sobre violência. Os homicídios, latrocínios, seqüestros, ou, como bem diz o Faces do Subúrbio, do Alto José do Pinho, “estupros, atropelamentos, assassinatos, esses são os fatos, que não impressionam, mas amedrontam”.

Eles já ganharam prêmios, são conhecidos, uma moçada jovem que tinha tudo para ficar naquele esquema bom de fazer matérias legais, mostrar a violência, textos bacanas, enfim.

Mas eles têm algo que diferencia um bom jornalista de um grande jornalista, que é o compromisso. Eles começaram a perceber que a violência em Pernambuco era muito maior do que se notificava. “A gente não tinha a real noção da matança”, como diz Rodrigo Lobo. Matança. Não existe palavra mais certa para o que vivemos.

Resolveram montar o blog Pebodycount. O nome é esquisito e às vezes até chato, mas a proposta era a seguinte: contabilizar todos os homicídios cometidos em Pernambuco, a partir de 1º de maio de 2007.

Vejam lá o Blog. De maio para cá, 1.866 pessoas foram assassinadas. Triste é saber que até o final do ano, cerca de 4.600 pessoas terão morrido. Estou falando de mortes no futuro que já sei que vão acontecer, e isso é triste, é terrível, é uma tragédia.

Todos os dias, por contra própria, sem usar a estrutura do Jornal, eles ligam para delegacias, IMLs, consultam fontes, conversam com outros órgãos de Imprensa, e atualizam o Blog. Ao meio-dia, eles atualizam os dados. Parece simples, mas não é. Todo mundo sabe que esconder dados é uma ótima forma de ir tapando o sol com a peneira.

Marcas – Em outubro, eles começaram outro projeto, intitulado “Marcas da Violência”. Durante todo o mês, eles estão indo a todos os lugares do Recife onde ocorreu homicídio, para deixar uma marca no chão, de tinta vermelha, com a palavra “basta”. Eles se acordam às 4h30 da manhã, vão por conta própria aos lugares mais ermos do Recife, onde a Imprensa só vai mesmo quando a Polícia prende um punhado de gatos pingados com uns papelotes de maconha, para mostrar serviço. Depois, eles, os presos, são exibidos com festa nos telejornais histéricos, com apresentadores que parecem gozar com mais violência.

Mais que deixar a marca no chão, eles conversam com a população, escutam sentimentos de impotência, dor, desespero. “Hoje, fomos ao Campo do 11, em Santo Amaro”, diz Rodrigo. Enquanto a pintura vai sendo feita, os jornalistas explicam o objetivo. “Eles sentem como se aquela morte tivesse alguma importância. A pessoa pode ter sido enterrada como indigente, mas foi lembrada”, diz João Valadares, um dos craques do time. A reação da população tem emocionado os quatro jornalistas, que de vez em quando são acompanhados por um craque da fotografia, o Rodrigo Lobo.

Segundo João, eles estão tentando “tirar a casca” que encobre a questão da violência em Pernambuco. Ir mais fundo, ver o sofrimento humano de perto, dar nome, encontrar rostos, semblantes, pessoas machucadas. “Queremos olhar, tocar, escutar essa gente, que não tem um computador em casa, e não acessam um blog”, explica João. De quebra, eles fazem algo que vai de encontro a um vício moderno dos jornalistas – fazer matérias por telefone, nas redações geladinhas pelo ar-condicionado.

Rodrigo lembra do caso de um pai que chamou a equipe do PEbodycount para mostrar o local exato que o filho tinha sido assassinado.

São muitas histórias que esses jovens camaradas estão vivendo. Em meio a essa nossa interminável tragédia pernambucana, a utilização da informação como forma de denúncia, de pressão, de reflexão. Não é todo jornalista que topa se acordar às 4h30 da manhã para ir às bocadas saber de mortes.

Do meu cantinho aqui na Internet, digo aos meninos: sigam, camaradas, sigam firmes nesta jornada. Tirem as cascas, mexam nas feridas. Conheçam mesmo os lugares onde nossos jovens são abatidos como lebres, nessas madrugadas de medo e espanto. Cutuquem, mexam, tirem o véu do medo, da paralisia, da hipocrisia.

Cada um de vocês representa o tipo de jornalista que acredito, a comunicação que tenho fé, e que infelizmente, está desaparecendo. Sigam neste jornalismo inquieto, atento, fuçador, que não se acomoda, que vai às ruas, que olha o povo e se emociona com suas dores.

Já desisti do Prêmio, mas ontem comemorei como se fosse meu. Mas não existe maior prêmio do que lutar pela vida, num tempo de tantas mortes.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Tempo, memória, encontros

Parece que o tempo tem sua própria memória. Não sei de onde me surgiu isso, quando iria escrever sobre minhas andanças pelo Sertão, e foi o suficiente para deixar o tema das caminhadas para outro dia. Acho que já caminhei demais com as palavras da estrada.

Talvez esta descoberta do tempo com sua própria memória tenha surgido no café da manhã de hoje, com minha tia Flocely, de oitenta anos, cabelos branquinhos, suas rugas e tantas coisas vividas. Ela tem resistido bravamente às dores na coluna, diálise peritonial, duas infecções em um ano. Está aqui, lúcida e doce como sempre, e cada dia mais caladinha, quieta, modestamente gente. Rosa, seu braço direito, que sabe dos remédios, rotinas, horários, que cuida com a maior das forças, que é amor, me disse que ela ultimamente vem falando muito dos parentes, da mãe, irmãos, confundindo o mundo dos vivos e dos mortos.

“É como se eles estivessem aqui”, disse tia, com lágrimas escorrendo.

Estão mesmo, de alguma forma. Tio Zelito, vovó Zeneuda, tio Paulo, seus irmãos, já estão em outro espaço. Sua mãe Elisa, que há muitos anos também morreu, está de volta, percorrendo a casa como uma nova visitante.

Um dia, procurando velhas fotografias da família, encontrei uma anotação de tia, quando morreu sua irmã Zeneuda.

“Morreu Zeneuda, nosso último traço”.

E por essas coisas que não entendo, cada vez mais estou viajando para os lados da Chapada do Araripe, de onde viemos. Minha tia é do Exu, mas morou muitos anos no Crato, de onde vim. Estou muito próximo dela e de nossas origens, ao mesmo tempo.

Na última viagem, trouxe num saquinho um pouquinho da terra de Exu, e dei de presente. Pensei que era um presente bobo, mas reparei que dias depois, a terra estava num copo de geléia, na estante, ao lado de sua imensa coleção de corujas.

Talvez agora eu esteja entendendo o sentido das minhas caminhadas. Talvez buscasse algo que não sabia, agora encontro o que não busquei. Ultimamente, minha mãe tem ligado, falando de uma saudade maior, querendo minha presença com uma urgência. Terei que ir a Fortaleza, abraça-la e saber de sua vida. Recebo cartas de tia Teresa, depois de longos anos sem vê-la, com fotos antigas da família, vejo meus retratos com sete anos, e revejo minha jornada.

Tomar o café da manhã em meio às lágrimas da saudade de uma pessoa que se ama muito é, de certa forma, entrar nesse mundo de reencontros, perdas, despedidas.

Vivo uma despedida lenta, como o aceno de quem vai em um trem, lentíssimo, acenando e sorrindo.

Lembro agora que o trem da minha infância, que fazia o percurso do Crato para Fortaleza, se chamava “Sonho Azul”. Desde esta época, tudo que é azul me remete a coisas lindas, paisagens cheias de animais e plantas, pessoas sorrindo, como nos melhores sonhos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Margeando o Velho Chico (Final)


Iramarai com as crianças do Sertão


Flor do Caruá

No segundo dia da caminhada, percorremos caminhos os mais diversos, por estradas ermas, onde cruzávamos vez por outra com motoqueiros de todos os estilos e idades. Foi o melhor momento da jornada. Só a paisagem do Sertão, o silêncio muito, pontuado pelo cantos das aves. A noite mal dormida fez estragos. Tive que parar, dormir um pouco, e criar coragem para seguir. Maraí fez fogo e aguardou, depois me acordou para o café. Só então voltamos à jornada.

A primeira coisa que avistamos foi um pé de faveleiro.

“Um pé de faveleiro, olhando microscopicamente, na ponta tem uma bolsinha, com uma ligadura”, explicou meu comparsa, um homem de muitas prosopopéias.

Seguimos devagar, com o sol do Sertão rasgando. O cheiro de lenha lembrava a infância do meu amigo. Aos sete anos, fazia cabana com jurema, um tipo de madeira. Ficamos analisando o nome “jurema”, que ele acha lindo, eu nem tanto. Não consegui me lembrar o que fazia aos sete anos. Sei apenas que era 1976.

A cada pedido de informação, olhares que nos analisavam. Na fala de cada um, a distância. Pelo bonito da fala, a gente sabe as distâncias. Cada entonação, uma légua a mais ou a menos. Pensei também nos pés, que têm tanta poesia quanto as mãos, e a gente nem repara direito.

Foi nesta segunda parte da viagem que reparei como o sertão é repleto de aves, dos mais diversos estilos. Desde o Carcará, que me lembra logo a voz da Maria Bethânia ("Carcará/Pega, mata e come"), passando pelo gavião e o urubu, que nunca voa batendo asas, fica apenas flanando, pegando bigu nos ventos, ele que não é besta nem nada. Surgiram jandaias, da família dos picitassídios, algo assim, que é a mesma turma dos papagaios, periquitos, tucanos etc. Elas ficaram de leve, bem quietas, olhando o movimento. Galos de Campina, Casaca de Couro, Concris, por ai vai.

Passamos por Areial, e neste momento, o joelho do meu amigo começou a doer. Diante da minha indigência sobre a fauna e a flora do Sertão, só me restou inventar uma árvore, “Vespertina”, que se junta à minha “Arenosa”, criada na viagem do Exu ao Crato, e que está sendo catalogada pela minha ciência. Cruzamos com uma planta chamada “caroá”, que é arrancada pelo talo, a gente mastiga, e mata a sede, igualzinho aos cangaceiros de outros tempos. Depois, Maraí descascou um mandacaru e comemos. Aos 38 anos, nunca tinha comigo mandacaru, deu tudo certo, estou vivo, mata mesmo a sede.

Passamos por Caraíbas. No Bar do Zé Preto, estava passando um jogo do Campeonato Alemão. Tomamos café, olhamos o tempo, estamos cansados mas inteiros.

“Quero ver se tem uma mulher que faça café melhor que eu. Pode ser solteira, moça, casada”, arrota Zé Preto, que é bem preto mesmo.

Para evitar problemas, não comentei que o café estava doce demais e meio arenoso.

Paradas servem apenas para deixar a alma chegar e olhar para o povo. Seguimos. Um rapaz pergunta se somos hippies. Antes de responder, ele diz que queria trocar uns dentes de jacaré com a gente, mas estamos sem paciência, a negociação finda por ali mesmo. Negócio de jacaré é mais para a turma do Pantanal, e a conversa aqui é mais seca.

A pescaria no Velho Chico, tão alardeada pelo Marai, desde o começo da viagem, foi de uma inutilidade completa. Confirmo minha sina: não nasci com o dom dos peixes, da pesca, o mistério dos anzóis. Eles, os peixes, sempre comem toda a isca, e me deixam feito tonto. Marai pescou somente água. Nosso almoço foi apenas a salada com pão e café.

Dormiríamos ali, à beira do rio, não fosse a chegada do Mauro, mergulhador de uns 64 anos, que veio fazer um trabalho em um canal, que serve para irrigação. Chegou numa D-20 desarrumada, usa óculos de basculante e viveu muito, conheceu gente demais, sabe poesias decoradas e se exibe com elas. Conversamos, e foi entardecendo. O barco que nos levaria até uma cidade perto de Orocó, nunca apareceu. Mauro nos olhou sério, ofereceu carona. Em minutos, estávamos dentro do carro do novo amigo. Ele, o velho marujo de cabelos brancos, não podia ver uma mulher à beira da estrada, que ficava doidinho. Passamos pelo “Assentamento Alegre”, do Movimento dos Sem Terra, e Mauro comentou:

“Isso é da tribo dos Sem Terra”.

Entardecia, quando chegamos a Orocó. O último barco tinha acabado de sair. Um pescador bêbado disse que nos levaria à ilha, falou de duas igrejas sabe-se lá onde, e o bafo nos deixou meio tontos. Tomamos um café à beira do rio, muito mais delicioso do que o do Zé Preto. Comemos pão com queijo de manteiga e o que sobrou da salada. O rio deslizava suave, com o sol dando tchauzinho com a mão. Veio aquele cansaço bom, da missão cumprida, de chegarmos a algum lugar.

Olhei para Maraí, sabíamos que a caminhada tinha chegado ao fim. Encontramos um hotel simples, o Beira Rio. Banho geladíssimo, soneca. Acordamos com um programa do Arthur da Távola, falando de Beethoven. Era um trio de Violoncelo, Violino e Piano, o número 65, feito quando o sujeito tinha apenas 34 anos e “ainda não era gênio”. O Yo Yo Me arrebentou no violoncelo. Parecia que ele iria entrar dentro do instrumento, tal era o êxtase. Marai ao meu lado dormia como uma criança. Lá pelas tantas, ele acordou, por causa da música.

Foi despertado pela beleza. Louvado seja.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Margeando o Velho Chico - I



O Velho Chico, fotografado pelo andarilho Iramarai Vilela

“Vai moiando os pés no riacho
que água fresca, Nosso Senhor,
Vai oiando coisa a grané
Coisas pra mó de ver
O cristão tem que andar a pé”.

Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, em "Estrada de Canindé”.


Inspirados no velho Gonzagão, vou com o velho Iramarai andar a pé, na esperança de olhar as coisas a granel. A convite de amigos, vamos de Ouricuri a Santa Maria da Boa Vista, porque terminamos um trabalho que consumiu vários dias, e agora é o tempo de percorrer estradas sem pressa, sem essa de turismo.

O time da despedida é de primeira: Belém, Boy, Nana e Iramarai. Ao meio dia e trinta e três, chegamos à cidade, procuramos um restaurante à beira do Rio São Francisco, que nós daqui conhecemos como “O velho Chico”. Entramos eufóricos, loucos para comer peixe. Sentamos, eu pergunto em voz alta se tem peixe no local, todos me olham de mal jeito. Depois do silêncio, olho para o cardápio. Está lá, em letras garrafais:

“Bar do peixe”.

Comemos, bebemos uma cachaça deliciosa, a Karibé, conversamos águas imensas, olhando para o Velho Chico. Mais tarde, nossos amigos pegam a estrada rumo ao Recife. Com meu comparsa Maraí, o mesmo da caminhada Exu-Crato, mês passado, vamos caminhar, para entrar em outra freqüência. É que a gente vê melhor a vida andando devagar. E o cansaço de uma longa caminhada é coisa que não se explica, coisa para longas conversas.

Antes de seguir, percorremos a feira de Santa Maria. Tem de tudo, quem conhece as feiras do interior do Nordeste sabe muito bem. Tem comida, roupa, sapato, cinturão, produtos de norte a sul das necessidades, remédios os mais diversos, curas a preços módicos. Olhamos, comparamos preços, não compramos nada. Avistamos um barco se preparando para sair, perguntamos para onde vai, o sujeito responde, não lembro bem, mas como custa apenas dois reais, vamos nessa. Vai ser uma hora dentro do Velho Chico, então já me sinto um felizardo.

São poucos os companheiros de jornada. José Aristeu, cinqüenta e dois anos, descobriu diabetes há um ano. Toma dois remédios por dia: Glicofor, de oitocentas e cinqüenta mg. Desculpem aí, mas o meu teclado não está pegando os números, mais tarde conserto. Olho o remédio, descubro que é Cloridrato de Metaformina, algo assim, posso ter anotado errado porque já tinha tomado umas garapas. Além disso, Glibenclaminda, de cinco mg. Os remédios foram pegos no hospital da cidade. Aristeu não sabe o nome do hospital da cidade, sabe apenas que ele, o hospital, é do município. Na farmácia, dez comprimidos custam dezesseis reais.

São quinze horas em ponto quando chegamos à Ilha de Deus. A canoa vai ser descarregada. Tem umas cinco sacas de adubo. Invento de ajudar, mas me arrependo rapidamente, as sacas são pesadas como o quê, e estou fora de forma. Depois, vem um dos quatorze filhos de Aristides, que esqueci o nome, o menino vem com um carrinho de mão. Os exagerados de plantão vão dizer que é trabalho infantil, mas para mim, ele está somente ajudando o pai, e filho gosta de ajudar o pai. Olhei agora direitinho minhas anotações, o menino se chama Edson, tem quatro anos, um problema no dedo mindinho, porque sofreu uma queimadura. O Gildázio [www.gildaziomoura.blogspot.com] vai me dizer que não é defeito, mas “pessoa com deficiência”, eu respondo “menos, Gildázio, menos”.

O timoneiro informa que vamos de Cupira para um povoado chamado Inhanhum, que fica a um quilômetro. Um quilômetro de barco no rio São Francisco é um presente da vida. O barco vai deslizando manso, parece que a gente está num útero. O José Aristeu tinha perguntado o que a gente fazia por ali, Iramarai respondeu que estávamos pesquisando sobre as plantas da região, para a Universidade Federal de Pernambuco, e ele comentou:

“À toa vocês não estão”.

O barqueiro, um homem negro e prestativo, se chama José Ernane Rodrigues de Souza, tem trinta e seis anos, e é barqueiro há trinta e seis anos, segundo suas próprias palavras. A falta dos números no teclado está começando a encher a minha paciência.

Chegamos em terra firme, pagamos dois reais cada, somos informados que vamos passsar em Cupira de Baixo, depois Anhum, um Nhanhum. O nome da cidade, por sinal, me provocou dores de cabeça as mais diversas, porque em cada boca, havia uma pronúncia, e meus ouvidos não passavam a mensagem direito para os dedos, que é onde se localiza meu cérebro.

Andamos em terras as mais diversas, passamos por casinhas, vilarejos, todos com suas respectivas antenas parabólicas, até que escutamos um som altíssimo, e descobrimos que estamos em Cupira. É o hino do Flamengo. A cada passo nosso, o hino fica mais forte, e descobrimos que vem de um bar vazio, com um enorme galpão, onde o povo dança forró. O proprietário é um obcecado, porque o hino termina e recomeça imediatamente.

“Uma vez Flamengo/ Sempre Flamengo”.

Só não fiquei mais chateado porque lembrei do tio Ademar e Seu Almir, fanáticos torcedores do rubronegro carioca. Lamentei profundamente não ter levado um CD com o hino do Santa Cruz, para ele ver o que é sinfonia, mas não vem ao caso, não quero arranjar briga logo com a torcida do Flamengo.

Paramos para pedir água. A contragosto, ele baixou o som. Aproveitei para ir ao banheiro. Usei o das mulheres, que é sempre o mais limpo, em qualquer lugar do mundo, a céu aberto, por sinal.

Enquanto ficamos no bar, escutei o hino do Flamengo treze vezes.

Voltamos à estrada, margeando o São Francisco, e paramos para um bom mergulho. Foi besteira parar no bar, porque o rio tinha muito mais água, com a vantagem de não ter o hino. Seguimos olhando a paisagem do Sertão, os bichos, as plantas, as gentes. Passam crianças saindo de uma escola, elas sorriem quando vêem dois cabeludos caminhando,com mochilas nas costas, perguntamos os nomes, se sabem escrever o nome, essas bobagens, tiramos fotos, fazemos rápidas amizades e seguimos sem rumo.

Escurece, pergunto ao Iramarai qual o nome daquela primeira estrela, ele é pego de surpresa, não sabe.

“Preciso esperar que elas subam”, diz, aproveitando para dar uma pequena conferência sobre constelações e a Via Láctea.

Nos perdemos em algum caminho, escureceu de verdade, não temos lanterna, então surge do nada uma fragata velha, fazendo o barulho de um tanque de guerra abatido por ima granada. É um ônibus escolar, que vem dando golfadas e pulos, como um sapo ferido. A cena é inacreditável: o motorista vem iluminando a estrada com a ajuda de uma pequena lanterna. Lá mais na frente, a carroceria velha pára, aproveitamos para perguntar o caminho de volta, ele explica, e os meninos nos olham assombrados. O ônibus então segue, iluminado pela lanterna do homem que dirige.

Ao contrário de outras viagens, não demos sorte de conseguir uma hospedagem com algum morador. Decidimos acampar ao lado de uma quadra de fuebol em construção. Catamos gravetos os mais diversos, Maraí faz um fogo em cinco segundo, preparamos um belo café, numa lata de leite Ninho, conseguida quilômetros antes, em Inhanum. Desconfio que a noite vai ser deliciosa.

De repentte, olho para o céu, que está coalhado de estrelas. Maraí mostra as constelações, lembro de Órion e outra que esqueci, e sei que ainda sou cego para estrelas. Ele vê formas, desenhos, figuras, meu olhar sem poesia, sem conhecimento,vê apenas estrelas, mas não é de todo ruim, porque acho bonito mesmo assim.

Abrimos o saco de comida. Atacamos uns damascos secos que nossa chefa nos deu, no começo da viagem, junto com banana desidratada, que fica uma delícia. Aqui-acolá, passa uma moto do nada. O Sertão de Pernambuco está cheio de motocas, antenas parabólicas e torcedores do Flamengo, Corinthians, Vasco etc.

Vencidos pelo cansaço, adormecemos. Acordo mais tarde, boto mais lenha na fogueira, porque faz frio. Então chega a figura ilustre da madrugada fria, um vira-lata doce e afetuoso. Maraí acorda feliz. Discutimos nomes os mais diversos para nosso primeiro amigo de viagem. Vence “Sertãozinho”. Depois Maraí dorme, fico brincando com o camarada, até que entrego os pontos.

Faltavam dez minutos para as cinco da manhã, quando fui despertado pelo meu comparsa de viagem. Estava pronto para mais um dia de caminhada.

“Vamos, que não estou para especulações não”, foi o que disse.

Apagamos o fogo, arrumamos as mochilas e botamos as patas na estrada.

Nem sinal de Sertãozinho, nosso mascote.

Não sei de onde surgiu isso, mas me ocorreu que a gente só vê as coisas quando as descobre.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Encontros e reencontros no Sertão de Pernambuco



Paulo Henrique, Janimeire e Jordana, na frente de casa, na Chapada do Araripe.

Há um mês, fiz uma travessia a pé do Exu para o Crato, com o meu amigo Iramarai Vilela. No meio do caminho, fomos acolhidos por Janimeire, seu marido Paulo Henrique e a amorosa filha Jordana. Janimeire estava grávida de cinco meses. Foi um encontro simples, desses que o Sertão permite, que os corações abertos proporcionam. Dormimos em redes numa pequena igrejinha azul e nunca foi tão bom estar no mundo.

As coisas da vida. Durante este período, me envolvi num projeto batizado de "Mãe Coruja", desenvolvido pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco. Eu e Iramarai, novamente, fazendo outros percursos. Semana passada, viemos novamente ao Sertão, para lançar o programa, uma das coisas mais belas que vi, nos últimos anos. Dezenas, centenas de pessoas mobilizadas, sonhando alto, querendo saúde, vida, desabrochamentos, como diria o mestre Cyro.

Num pequeno lampejo de esperança, sugerimos que Janimeire fosse escolhida como a primeira "Mãe Coruja" de Pernambuco. Falamos de seu perfil. Uma professora primária, morando na Chapada do Araripe, uma dessas guerreiras que o Brasil tem aos montes. Participou da última "Marcha das Margaridas", dá aulas para 25 crianças, tem um raro compromisso com educação.

Jordana, a amorosa filha, criou laços no primeiro instante. Fizemos aquela amizade pura e simples. Iramarai construiu com ela casas de papel. Dei um presentinho secreto que ela gostou muito. Paulo Henrique, o marido, um homem silencioso e aparentemente distante, envolvido com o mundo do roçado, acompanhava nossa chegada com pequenas gentilezas que revelavam quase uma candura.

Ontem, no lançamento do Mãe Coruja, em Ouricuri, o palco estava repleto de autoridades, políticos, secretários, representantes do Ministro da Saúde, enfim. Num cantinho, Janimeire, representando as mulheres grávidas do Sertão. Ao lado, Jordana, mais sorridente que nunca. Paulo Henrique, claro, preferiu ficar no seu canto.

Conversamos muito, falamos sobre o Programa, até que Jordana me pediu para ver o governador de perto. Foi, tirou fotos, depois voltou, e ficou comigo, colada o tempo todo.

Lá pelas tantas, perguntei se teria sopa novamente, quando voltasse à casa dela. Jordana respondeu que sim. Perguntei se teria rede para a gente. Ela disse que sim. Antes de perguntar mais alguma coisa, ela se antecipou:

"Vai ter tudo o que vocês gostam".

Janimeire vai ter uma filha. Jordana está cada dia mais linda. Esta foto de uma família do Sertão de Pernambuco nós deveríamos ter tirado antes, quando fizemos a travessia. Não desconfiávamos que voltaríamos para a arte do reencontro, nesse mundo cheio de desencontros.

Se o Programa Mãe Coruja funcionar bem de verdade, Janimeire brevemente saberá onde será seu parto, e ele deverá ser natural. Jordana vai ter uma linda irmã, que será amamentada, acompanhada, cuidada pela família e pelos serviços de saúde, e terá uma longa vida. E Paulo, aquele bom homem, seguirá cuidando do roçado e da família, sem muito alarde, cometendo suas pequenas gentilezas, suas delicadezas, como pegar um agasalho para um visitante que acabou de conhecer,, porque percebeu que ele está com frio.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

No Sertão, de novo

De Ouricuri, Sertão de Pernambuco.

De novo, estou no Sertão. É viajando que me renovo, que crio outras raízes. Na falta de tempo para escrever, coloco um pedacinho do Rilke, no maravilhoso "Cartas do poeta sobre a vida", que o Gustavo me soprou, desde Brasília.

Hoje à noite tem postagem nova, as postagens de viagem. Por enquanto, vamos com o poeta.

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"É necessário viver a vida ao limite, não segundo os dias, mas segundo a profundidade. Não é preciso fazer o que vem depois, se alguém sente que tem mais participação no que vem ainda depois, no longínquo, na mais remota distância. Pode-se sonhar enquanto os outros salvam, se esses sonhos são mais reais para alguém do que a realidade e mais necessários do que o pão. Numa palavra: é preciso tornar a mais extrema possibilidade que alguém traz em si o critério de sua vida, pois nossa vida é grande e acomoda tanto futuro quanto somos capazes de carregar".

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"Vivemos tão mal porque sempre chegamos despreparados ao presente, incapazes e dispersos em tudo".

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"A vida anda: passa por muitos ao longe e faz um desvio em torno dos que a esperam".

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Vou aqui, olhar os sertanejos, lembrando que hoje é o dia do meu querido São Francisco.

domingo, 30 de setembro de 2007

Anotações inúteis sobre a seriedade



Regina Medeiros, ou a "Palhaça Satélite", numa Caravana do Unicef que acompanhei. A foto é do Mateus Sá. Nenhum dos dois é sério.

Ando com um problema existencial da menor importância para a humanidade. É que estou ficando sem paciência com gente séria. O sério, aquela figura que anda com a testa enrugada, que pede para levarmos o assunto a sério, o País a sério.

Descubro, cada vez mais, que adoro trabalhar e estar perto de gente que não prima pela seriedade. Não é por acaso que nos meus trabalhos, atualmente, estou cercado de gente que de sério não tem nada. O Iramarai, por exemplo, brinca com o motorista, o porteiro, a ascensorista, com nossa chefa, enfim. O leitor sério vai dizer:

"Mas não existe a palavra 'chefa' na língua portuguesa..."

Menos, meu querido leitor, bem menos. Assim minha vida fica difícil.

Outro que trabalha comigo, ou que trabalho com ele, é o gordinho Naná, com a sabedoria de seus cento e vinte quilos. Só o chamo de "Montanha", porque ele parece com uma montanha. Quando alguém chega muito sério, sabendo de tudo, ele pergunta:

"Meu irmão, tu tá com algum problema em casa?"

Depois comenta, na surdina:

"Eu acho que esse cara não teve infância".

Nunca, em sete anos, vi Naná de mau humor. Nem nas piores derrotas do nosso clube.

Por fim, Boy também chegou no projeto. Juntando Maraí, Naná, Boy e eu, já podemos dizer que temos uma trupe de circo, que poderia ser levado pelo Circo Thianny, que é o famosão da minha época. Estamos até pensando em organizar um espetáculo circense - Zé Bobão, Montanha e Girafa. Girafa é o pateta aqui. Boy ainda está sem papel.

O Gildázio, que também trabalha comigo - ou trabalho com ele, sei lá - é outro anti-exemplo de seriedade. Na verdade, já é um caso a ser estudado pela ciência. Para se ter uma idéia do sujeito, um de seus grandes sonhos é ter um Gurgel, aquele carro brasileiro que está sumindo do mapa. Antes de qualquer discussão importante, análises da realidade de nosso mundo, efeito estufa, a nova tara nacional, que é o combate aos saquinhos de plástico dos supermercados, ele precisa discorrer longamente sobre o Santa Cruz Futebol Clube e as chances de classificação para a Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro, sejam elas as mais improváveis e incertas.

Meu amigão Valdemir Leite, com seus quarenta e poucos anos, está com planos de aprender a andar de bicicleta. Um cara dessa idade que ainda planeja o futuro em duas rodas, não tem jeito de ser sério.

Nessas horas, vejo que o mundo tem solução.

O sério de carteirinha atrapalha muitos sonhos, gosta de dizer "mas isso é um delírio", "esse projeto não vai ser aprovado nunca", "está na hora de você pensar no futuro", coisas desse tipo.

Trabalhei em consultorias com meu amigo Inácio França, em um lugar conhecido internacionalmente, o Unicef, imagine a importância que é "fazer a humanidade avançar", especialmente quando falamos de crianças e adolescentes. Muitas vezes, olhava o meu amigo por debaixo da mesa, e lá estava o camarada, descalcinho da vida, com os pés no chão, como um belo moleque de rua. Pode estar falando com um ministro, algum assessor importante de alguém importante, mas com os pés no chão. Informo que meu amigo Inácio às vezes perde a sobriedade administrativa e fica de mau humor, mas lembro que ataque de mau humor é bem diferente da seriedade.

O sério mesmo, de carteirinha, não relaxa. Me lembro extrema ternura dos meus melhores professores. Não era gente séria. Ajudavam a educar com leveza, as aulas tinham outro tempo. Um professor da sexta ou sétima série, já não lembro, chegava numa ressaca terrível na aula da segunda-feira, acho que era OSPB, pedia uma trégua e cochilava um pouco, depois começava a falar algo sem importância, que eu gostava muito. A Flávia Suassuna, que é minha professora predileta de Literatura, dá aulas nada sérias, é uma contadora de histórias, e aprendo tudo, junto com os alunos dela do pré-vestibular.

Meu monitor, na Oficina da Palavra, se chama Ailton Guerra. O apelido? "Peste". Você acha que um sujeito com o apelido de "Peste", é um homem sério? Imaginem o que esse rapaz fez na infância, na escola...Ele já me contou vários episódios, é de arrepiar os cabelos.

Para reuniões sérias, tenho sempre um caderninho, onde fico rabiscando eventuais temas para crônicas, um pedacinho de um poema etc.

O Gustavo, meu dileto e enterno amigo, faz muitas peraltices na vida, apesar do doutorado, dos livros publicados etc. Uma de suas maiores façanhas foi ter levado um carrinho de supermercado, em plena Avenida Angélica, em São Paulo. Uma vez, no mesmo supermercado, encontrou a Ana Paula Arósio, aquela atriz bem bonitona, pensou em pedi-la em namoro, mas desistiu por excesso de timidez. A Arósio iria se dar bem, porque o Gustavo é um sujeito e tanto. Ultimamente está se dedicando somente à poesia. Fica longas horas lendo e escrevendo. Mais recentemente, mandou duas lesmas de presente para o Manuel de Barros. "Um dia elas chegam, ele sabe".

Aos leitores, uma semana nada séria. No trânsito, nas reuniões, nos planejamentos, nas conversas.

E quando eu estiver começando a escrever coisas sérias, buzinem aí, que me corrijo a tempo.

Assinado: Girafa.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

O pouco de hoje

Não sei o que está acontecendo com o mundo ou comigo. Tudo está assim, meio de repente, sem tempo de preparação. Saio de casa, olho minha tia-avó, de 80 anos, deitadinha, dormindo, e penso que há uma despedida no ar, e chego à escola em que ensino, sou informado que um aluno de 19 anos acabou de morrer, vítima de infarto. Vou ao cemitério, os alunos estão lá, os familiares choram, e meu colega de trabalho me confessa, ao final da cerimônia do adeus:

"Semana passada enterrei minha avó aqui".

Robertinho, um camarada boa gente, dono de uma delícia de bar, o Empório Sertanejo, sofreu um acidente e também deu adeus, com 45 anos. Assim, num segundo. Lembrei de meu período "dono de bar", quando fechava o La Prensa ou Garraffus, depois ia relaxar do trabalho, e de vez em quando conversava com ele, sobre esse ofício de dono de bar, um tipo de trabalho que consome tudo da pessoa. Passei ontem pelo Empório, estava fechado.

As pessoas morrem, bares fecham, perdemos parentes, nascem novas criaturas. Há pouco, recebi um email da Naire, falando do nascimento da neta, Felipa. Dias antes, ela, a mesma Naire, tinha mandado um email, comemorando um ano de pós-câncer.

Naná, meu velho amigo, foi com sua Kombi surrada pegar um material no Poço da Panela, e de repente estava diante de três ladrões, armados com as terríveis "Calibre 12". Levaram tudo de dez pessoas, mas Naná ainda conseguiu guardar, nas intocas, cinquenta mangos de algum trabalho.

Às vezes penso que somos todos sobreviventes, e que os mapas, bússolas, roteiros, são apenas sublimações, tentativas.

Meu amigo Peste diz que agradece a Deus por todas as merdas que acontecem em sua vida. Lembro de um trecho de "Pequena Miss Sunshine", em que o estudioso de Proust conta a série de fracassos do escritor, e todo o sofrimento que foi sua vida. Deu tudo errado, e no final, ele deixou um montão de belezas para o mundo.

"A vida é assim: a gente perdoa quando perde", diz Peste.

Meu amigo Inácio participou de um evento com os povos da floresta, em Brasília. Lá pelas tantas, uma pessoa disse o seguinte:

"Está na hora de a gente buscar os velhos. Eles são nossa biblioteca".

Não sei o que há. Estou desistindo de alguma coisa, que não sei ainda o nome. Os projetos agora são menores. Não estou pensando muito na vida, estou pensando nos dias. Recebo de presente, e com honra, os cadernos de um velho sábio, com seus 77 anos. Antes, ele escrevia e tocava fogo, a la Ernesto Sábato. Adoro escritores incendiários, mas nem sempre consigo ler as cinzas alheias.

Não acho que as pessoas amadurecem, elas cansam. Ando cansado de um bocado de bobagens. Vejo que quero bem menos coisas do que dez anos atrás. Espero querer cada vez menos. Quero ver se não machuco ninguém, se acerto meu caminhar sem pressa. Estou escrevendo um livro, olho para ele, nunca fica pronto, então fico rindo. Às vezes dá vontade de queimá-lo também, só pelo exercício das cinzas.

Bem, a crônica de hoje não tem muito a oferecer. Fiquem com meu pouco.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Esse fiapo chamado vida



Cleverson, na primeira semana de aulas

A notícia chegou de repente, como se uma corda fosse cortada por uma espada. No intervalo das aulas da Kabum!, fui informado que Cleverson morreu.

Cleverson Soares, 19 anos, aluno de Computação Gráfica na escola, e da Oficina da Palavra, comigo e com o meu monitor, Ailton Guerra. Morava na Iputinga e tinha muitos sonhos a caminho.

Não foi morte violenta, como centenas de centenas de mortes de jovens no Recife, todo mês. Foi algo súbito, um problema de saúde, e o fim chegou antes mesmo que o começo se tornasse pleno.

Há pouco mais de um mês, ele comunicou a saída da escola. Conseguiu ser aprovado no Pro-Uni, e foi cursar a Unibratec. No dia da despedida, reuni a turma em círculo e falei sobre o Cleverson para os demais jovens da turma. Uma criatura mansa, calada, discreta, com um raro sentimento de ética e cuidado com os outros. Saiu da escola debaixo de uma salva de palmas. Estava namorando a Gabriela, também aluna da Kabum! No sábado, completaram um ano de namoro.

Tudo nele, em 15 meses de convivência, foi sereno, como uma marca da índole, uma forma de estar no mundo. Um jovem sem alarde, sem ostentação, honesto na postura, nas críticas. Na sexta-feira, encontrou com alguns alunos da escola. Exalava alegria. As coisas estavam indo muito bem.

Hoje está sendo um dia muito, muito triste. Com os demais professores da escola, tive que dar a notícia da morte de alguém queridíssimo. Não tivemos mais aulas. Muitos ficaram perplexos. De lágrima em lágrima, a escola mergulhou no imenso silêncio, que parecia impossível, quando juntamos 75 jovens. Me rasgava a alma ver olhos desamparados dos jovens, olhando para o vazio.

O enterro será hoje. Nunca estive em um enterro de um aluno, na flor da idade.

Olhei a ficha de leitura do Cleverson, agora há pouco. O último livro que pegou emprestado foi de Fernando Pessoa, "Quando fui outro".

Como o livro era meu, dei de presente.

A vida, esse fiapinho...

A gente nunca sabe quando está se despedindo de alguém, ou quando esse alguém vira outro.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Doutor Cyro, ou "O o sonho de ser gente - (Parte I)

Tenho feito algumas coisas muito sem futuro nesta vida, mas aqui-acolá, faço meus golzinhos de fora da área. Pequenas ações, pequenas decisões, pequenos movimentos d´alma. E na essência, no coração de tudo, está o encontro com gente. Pessoas que chegam trazendo humanidade, algum facho de luz, coisas acumuladas na estrada. É quando se dá o reconhecimento.


Há 15 dias, em meio a um churrasco, conheci um senhor de 77 anos, cabelos branquinhos, chamado Cyro de Andrade Lima. Ele me conquistou com uma frase:


“O ser humano não revoluciona, ele desabrocha”.


Meu primeiro sentido percebeu claramente que aquela alma tinha algo diferente. Colei nele. Durante quase uma hora, filmei a conversa serena daquele homem que exalava sabedoria. Em quinze minutos, deu para perceber: esse homem está transcendendo.


No sábado, uma equipe da Secretaria da Saúde foi conhecer o trabalho desenvolvido pelo doutor Cyro no Programa de Saúde da Família (PSF), em Vitória de Santo Antão. Aproveitei o bigu, levei uma câmera digital para registrar o encontro.


Encontramos a criatura à entrada do PSF. Tênis da Nike, calça jeans, camisa creme. Levava uma sacola de couro.


“É para o despojamento”, disse, com aquele sorriso sereno que foi conquistando durante a vida. Ele, que foi um dos médicos mais conhecidos do Recife, hoje faz um trabalho de formiguinha com seu grupo de técnicos da saúde. Ele nega que seja médico. É somente um agente de saúde.


Nos juntamos na cozinha do PSF. Médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, técnicos da saúde. A gente queria apenas escutar o que ele tinha para dizer.


O despojamento é uma cerimônia simples, mas não estamos muito acostumados com isso. Despojar-se de coisas que já foram importantes, mas que agora vão para outras mãos, outros olhos, outros corações.


Da bolsa de couro, Cyro tirou várias coisas. Um livro de Eça de Queiroz, que não cheguei a anotar o nome. Para Cyro, melhor que Eça, só Camões. Então, ele recitou trechos de Camões. Depois, “Alma Gêmea”, do Deepak Chopra. A cada livro despojado, comentários. Todos atentos, quietinhos, bebendo conhecimentos. “Psicologia da Alquimia” foi o livro seguinte.


“Tento saber o que é a alquimia. Para o povo brasileiro, é descer à lama e pegar caranguejo”.


Lembrei agora do livro do Eça: “A ilustre casa de Ramires”, que nunca li.


Quando assumiu o primeiro mandato, depois da democratização do País, Miguel Arraes foi à casa de Cyro e disse:


“Doutor Cyro, vou levar o senhor para levar uma surra”.


Era o cargo de secretário da Saúde. Ele aceitou e foi levar as pancadas da vida. Coisa para uma prosa demorada.


Doutor Cyro foi falando. Em cima dele, um quadro com a imagem de Gandhi.Mostrou outro livro, “O médico quântico”, escrito pelo físico Amit Goswami. A editora é a Cultrix, que tem uma pá de livros bons sobre a humanidade.


“Um dia vocês vão entender que a grande coisa da vida é o sonho”, disse.


Diante daquela imensidão, dei um jeito de passar a filmadora para o Martim Palácios e peguei meu bloquinho de notas. Só entendo as coisas quando anoto, desconfio inclusive que meu cérebro está nos dedos.


“Me sinto um gafanhoto nos saltos quânticos”, prosseguiu aquela criatura que mais lembra um menino, descobrindo as coisas do mundo por uma gramática nova, um dicionário que um dia leremos, no futuro. Ele mostrou o livro de Ismael Marinho Falcão, “Direito Agrário Brasileiro”. Desceu a lenha no Tratado de Tordesilhas, e esculhambou de norte a sul a Igreja Católica, apesar de ser católico.


Da sacola, retirou “O símbolo da transformação na missa”, de Jung, que gosta muito. Cyro só não chamou Freud de santo, mas são outros quinhentos.


A cada livro, o mesmo ritual. Uma explanação sobre a vida, o sonho, as buscas humanas. Pegou “O fenômeno Humano”, de Theilard de Chardin, que descobriu o “ponto ômega”. Eu, aos 38 anos, ainda não sei o que vem a ser o “ponto ômega”, mas tenho fé e sou persistente. Um dia chegarei lá. Por último, um livrinho simples, desses do Ministério da Saúde: “Política Nacional de Atenção Básica”.


Não sei se alguém perguntou algo, se não perguntou, fica perguntado agora.


“Cheguei aqui seguindo um sonho – o de ser gente”.


Uma torrente de humildade. Um tufão de singelezas. Um redemoinho de sabedorias misturadas, coladas em muitos cadernos, que ele vem colecionando.


Cyro abriu um caderno repleto de notas, depois uma agenda. Leu alguns trechos para o grupo. O médico vendo a vida pelo olhar do todo, do completo, natureza e vida, numa ciência do desabrochamento. Arregalei os olhos e ouvidos. “Uma divagação: o sentido da vida dos seres humanos rumo ao desconhecido”. “Em defesa dos dementes”. “A revolução pelo sonho”. “Não vamos parar nunca, rumo à libertação”.


“A armadilha da globalização”, de Hans-Peter Martin & Harald Schmann (Editora Globo), e “Os 7 tipos humanos”, de Roberto Assagioli”, e “Cura energética pelo Quijong”, dos mestres Gao Yun e Bai Yin, completaram os despojos. Tinha também um livro sobre apicultura e outro sobre auto-suficiência, envolvendo plantas e coisas do campo, mas não anotei por pura preguiça.


“Prefiro ver a vida como um circo, e Carlitos como o grande mágico genial, humano. É pelo caminho do sonho que cada um chega a realizar sua própria missão”.


Como será que Cyro pretende fazer isso?


“Pela observação, diálogo, mansidão”.


Upa la-la...


Da bolsa, ainda saiu o Guerra Junqueira, a poesia lírica de “Os simples”. Cyro leu uns trechos. Leu “O caminho” e disse que passou muito tempo sem saber o que era um frouxel. Ele explicou, mas esqueci.


Por último, ele entregou uma pedra grande, pesada, bonita. Há, meus amigos, em algum lugar deste mundo, um homem de 77 anos que faz uma cerimônia do despojamento, e inclui nisso uma pedra.


Antes de uma longa caminhada pela Cidade de Deus, onde fica o PSF, Cyro me mostrou seu consultório. Três quadros na parede: dois de Charles Chaplin, outro de Dom Hélder. Leu trechos de “O último discurso”. Conversamos sobre seu trabalho. Depois fomos conhecer o projeto “Cabra leiteira” e o “Canto da Saúde”, idéias que ele está realizando, graças ao trabalho da equipe de saúde e doações.


Foi uma longa conversa-vivência, repleta de emoções, que só terminou no final do dia.


Se eu não fosse tão burro com tecnologias, botaria no ar a filmagem de Cyro fazendo Tai-Chi Chuan no alto da Cidade de Deus, em cima de uma enorme pedra.


Vou continuar esta prosa amanhã. Estou aqui, com três cadernos de anotações, que o doutor Cyro me cedeu, para ler e pensar.


Decidi que vou atrás de gente que entenda de edição de imagens para gravar uma série de depoimentos com essa criatura, esse amante da humanidade e da humildade, que tem apenas um grande projeto – ser gente.