segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Anotações sobre o Menino Ailton



Ailton, numa foto recente

Conheci Ailton Guerra em 2000, quando ensinava “Técnicas de Reportagem”, na Universidade Católica, e subimos o Alto José do Pinho, para desvendar os rostos do morro. Aquele camarada muito negro, estatura mediana, cabeça raspada, chamava a atenção pelo, carinho, o largo sorriso, um jeitão de criança. Era estranho o apelido de “Peste”, nascido da infância. O camarada parece que atormentou mesmo sua escola.

Foi ele, o “Menino Peste” a ponte entre os sedentos alunos de Jornalismo e a comunidade. Dali saíram várias belas reportagens e alguns bons jornalistas. A experiência humana da troca, tomando umas cervejas no Caldinho do Biu, gerou ótimas amizades. Desta época, lembro apenas que Peste era o baterista do grupo de punk rock “Matalanamão”. Depois dei uma oficina de Comunicação, e ele participou, com olhos atentos, tomando nota de tudo. Depois, passou em minha casa e pegou livros a título de empréstimo. E seguiu.

Ficamos algum tempo sem contato, depois nos vimos quando ele era educador do projeto Olinda Jovem, na periferia de Olinda. Matamos saudades, trocamos idéias, vi que o camarada estava tocando em frente. O velho e bom amigo caminhava pelos rumos da comunicação, dando oficinas para jovens.

O derradeiro encontro aconteceu há um ano, quando o convidei para trabalhar comigo na Oficina da Palavra, na escola em que ensino. Cheguei em sua casa e começava a tocar “O bêbado e o equilibrista”, com Elis Regina. Até hoje, não sei quem é o bêbado ou o equilibrista. Depende do dia, creio.

Por artimanhas do destino, estamos juntos até hoje. Toda terça e quinta, nos encontramos logo no começo da manhã. Ficamos juntos a manhã inteira, percorrendo os labirintos da Literatura, produção de textos, buscando poetas, romancistas, cronistas que consigam bater à porta dos jovens, para lhes mostrar novos mundos. Às terças, depois das nossas aulas, vamos juntos assistir as maravilhas da Flávia Suassuna, que é um presente de Deus. Na quinta-feira almoçamos num boteco roufento, ali por perto da Rua da Moeda, num calor de rachar , em meio ao populacho mais comum.

É mais que isso. Tomamos nossas cervejas, alguns aperitivos, avaliamos nossas vidas, projetamos primaveras, inventamos novos sistemas decimais, criamos tempestades em copos de geléia de mocotó Colombo, renovamos esperanças. Desabafamos passados alheios, rimos cósmicos, lembramos do que não aconteceu, descobrimos novos paradigmas filosóficos e amadurecemos a natureza das pétalas. A conta nunca passa de R$ 14,00. Somos boêmios e sonhadores modestos.

Nos últimos dias, resolvemos cair na estrada. Ele queria ir para Nazaré da Mata, sentir o cheiro dos ancestrais. O pai era um negro de olhos azuis, caboclo de lança do Maracatu. Fomos para Carpina, depois seguimos caminhando para Tracunhaém, olhamos toda aquela beleza da arte em barro, depois singramos para Nazaré. Antes de chegar à casa de sua tia Maria, saímos em busca do Engenho Cumbe, local onde seu pai tocava. É preciso mesmo ir em busca do cheiro dos antepassados, sentir a atmosfera dos mais velhos, botar os pés onde já viveram os nossos.

No caminho, o longo caminho, tivemos nossas conversas em quase-silêncio, ao som das sandálias arrastando pelo chão. Ele me falou das muitas perdas, num prazo de quatro anos. Pai, mãe, irmão, numa seqüência de despedidas. “O próximo serei eu”, disse ao telefone para a namorada, após mais um adeus. São essas coisas que a gente pensa quando tudo está tão triste e ruim, que a esperança vai saindo pela tangente. E ele está ai, vivo, cheio de planos, se preparando para enfrentar o Vestibular para Comunicação.

“Era para eu ser o policial da família, mas acabei virando educador”, lembra.

Sim, meu amigo tinha como destino a farda e as armas, mas preferiu outras armas. Primeiro, sua banda de rock, o som radical da banda. Depois, os livros, as palavras, a poesia, a beleza.

Não sei que tipo de policial ele seria, sei que é um maravilhoso professor. Mesmo sem a formação pedagógica formal, tem uma intuição afinadíssima, um raro senso de percepção de como trabalhar com os jovens.

Em nossa jornada, chegamos à casa da tia. Conheci dona Maria, sua tia amorosíssima, mãe de Joseíldo, mãe de Josemar, o “Mamá” (cabeleireiro que não aceita cortar o pelo de ninguém fiado), mãe de Jaílson, que é policial militar, e Jacilene, que vai tentar o 3º concurso seguido para a PM. Conheci, convivi, tomei sopa e suco de acerola e café com manteiga com todos eles, com as duas Karlas, filhas de Jaílson, uma de 11, outra de 14 anos.

Karla Mais Nova não gosta muito de estudar, mas bate um dominó de primeira, tanto é que Ailton levou duas buchudas, enquanto eu anotava minhas besteiras de viagem. Karla Mais Velha é uma leitora voraz, e por conta própria sabe tudo sobre “regimes totalitários”. Conversamos muito, ela foi lá dentro, pegou seus livros, suas redações, me mostrou. Ela quer cursar Psicologia e acho que vai longe.

E todas essas pessoas com uma amorosidade imensa, intensa, radiante. Uma educação rara, passando por uma mansidão de espírito, gentilezas da alma. Vi ali a matriz genética e espiritual do meu amigo, que é um desses mansos que fazem o mundo mais bonito.

A cada senhor que passava, com seu chapéu e seu cigarrinho de palha, Ailton dizia:

“Isso é a cara do meu pai”.

Voltamos da jornada num galope silencioso, vi que estava mais próximo do meu amigo.

Mas o melhor de toda viagem é mesmo essa troca de entrelinhas no silêncio dos passos.

Ao meu amigo Ailton, por supuesto.

6 comentários:

Anônimo disse...

Nunca leu o mulato de Aloízio Azevedo?
Não existe negro de olho azul. é contra a genética atual/

Anônimo disse...

Sama,

Bela história da vida real. Esse Peste é uma peste mesmo.

Abraço aos dois.

Dimas

Anônimo disse...

Eita "peste",

que texto hein sama? me fez lembrar dos que perdi (pai, dois irmãos e uma cunhada-quase irmã) não em quatro anos, mas em quatro meses, a sensação é essa mesmo - quem será o próximo? - mas estamos aqui firmes e fortes.

Bjão pra peste e samarone.

Simone
simonepires77@gmail.com

Anônimo disse...

Estamos todos torcendo por Ailton Peste no vestibular. Boa sorte, camarada!

Mack disse...

O bom mesmo é perceber que naquela primeira vez, quando você nos levou naquele alto, nem imaginava o quanto tua vida iria estar ligada pra sempre àquela terra...

Beijo pra tu, que sabe buscar os presentes do mundo!

Unknown disse...

Peste é um dos melhores.
João Valadares.