sábado, 31 de dezembro de 2005

A pelada, Borges, a milhar e o Garotinho

O dia 31 de dezembro de 2005 me chegou com um grito de "Dinho Papeira", 46 anos, com 28 anos de contribuição com o INSS.

“Olha a pelada!”

Dei um pulo do colchão. Perder a última pelada do ano é um crime de lesa-humanidade, pelo menos a minha. Peguei a chuteira (costurada em Casa Amarela por R$ 7,00), o meião (num camelô, a R$ 3,00) e o calção muito antigo, que julgo me dar sorte nas pelejas futebolísticas.

Dinho estava na calçada, pronto para um clássico no Arruda. Chuteira, meião, caneleira. Perguntei pelas horas.

“Dez para as seis. É que hoje estou seco”, disse. Geralmente ele me chama às seis da manhã, a cada domingo, os dez minutos antes é a ansiedade para começar o jogo.

A última pelada do ano foi arrasadora. Levamos um sonoro 8 x 2, e confesso que joguei mal três quartos da partida. Me recuperei no final, tomei umas duas bolas importantes e comecei a dar berros com o time, pedindo raça, quando estávamos penando com um 7 x 1 nas costas. No finalzinho, dei uma entrada de sola em Dinho, que lhe deixou um calombo na coxa direita. Quem manda me acordar tão cedo?

Foi a costura na chuteira que deu azar, foi o que pensei, retornando para casa cabisbaixo com meu desempenho na zaga. Teve a confraternização dos Caducos, mas não fiquei. O fígado não agüenta, e é matematicamente, digo, humanamente impossível ir à confraternização dos Caducos e tomar guaraná. Não tenho vocação para herói.

Jadir veio, arrumou a prateleira que estava pensa, consertou uma porta quebrada no primeiro andar, desde que perdemos o título para o Náutico, ainda apertou o armador da rede. Não quis aceitar pagamento de jeito nenhum. Pagarei em vinhos Carreteiro, que ele adora, aqui em Vital, e escutarei ele cantar Lupicinio Rodrigues, quando estiver meio alto.

E súbito, me chegou aquela fleuma literária, aquele arroubo cósmico: tenho que ir a alguma livraria, neste último dia do ano, para terminar 2005, esse ano ranhento, de bem com a vida. Tomei banho, vesti meu bermudão creme, minha camisa Hering de sempre (branca, claro) e as havaianas azuladas, já meio gastas e fui num galope manso para o Shopping Plaza, lept, lept,lept, até que cheguei à Livraria Imperatriz.

Passo as mãos nos bolsos, a bolsa ficou em casa. Cutuco os trocados, tenho uns reles R$ 22,00. Então surge a missão, o último desafio do ano: encontrar um livro bacana, o último de 2005, com o limite de R$ 22,00. Fico lambendo as coisas boas, mas não tem livro no Brasil por menos de R$ 30,00, é uma safadeza isso, depois reclamam que o povo não lê.

A procura é longa, mas tenho fé. Vou por ali, me agacho, encontro umas coisinhas por R$ 20,00 mas não é “aquele” livro para terminar o ano. O ano foi duro, é preciso saber terminar com beleza, sem a beleza tudo fica inconsolável e distante.

Até que encontro o Jorge: “Elogio da Sombra”. Num átimo (ôps, Davi), meus olhos chegam ao preço: R$ 17,00. Quase dou um pulo dentro da livraria. Saio com o Borges e mais R$ 5,00 de troco, deus do céu, vou tropeçando nas pernas com as primeiras linhas, que leio do fim para o começo. “Chego a meu centro,/ a minha álgebra e minha chave,/ a meu espelho./ Breve saberei quem sou”.

Volto lendo, quase sem andar direito, até que um táxi pára com um baita de um negão de barba branca. Era Davi, com sua esposa Ana. Ele desce e diz:

“Entra aí, que vamos ali”.

Entro, porque sou um sujeito obedientíssimo. Mostro o Borges. Lá pelas tantas, sou informado da programação: Caldão, em Água Fria, depois o ateliê de Mila, coisa para a tarde inteira. Quero sossego, para ler meu Borges, cochilar e escrever a derradeira crônica do ano. Chega de farras. Penso numa desculpa urgente, tem uma visita chegando daqui a pouco em casa. Colou. “Não exageres o culto da verdade”, diz o Jorge Luis, à página 72. Desço do táxi, pego um ônibus e volto, lendo Borges, claro.

Desço na avenida, mas faço minha última fezinha no Jogo do Bicho em 2005:(7475/1225/1112/8584).

“Bota também a placa o Garotinho”, peço. Léo registra a milhar 6611.

Volto para casa cheio de esperanças. Vai ser lindo ganhar no Bicho no último dia do ano. Quando vejo, o Garotinho vai passando em seu táxi.

“Bora que eu te levo em casa”, diz meu fiel parceiro do dominó, já com a cara vermelha, de quem tomou umas garapas.

Mostro a pule do bicho com a placa dele.

“Também joguei”, diz.

“Vamos ganhar juntos”.

“Tavas trabalhando?” -, pergunto.

“Tava era tomando umas naquele bar do açude”.

O citado bar fica no açude de Apipucos, e é bom mesmo, garanto.

“Comesse o que de tira-gosto?”, pergunto.

“Uma manga que eu levei”.

“Aí ta certo”.

Desço, venho para casa, ler Borges. Antes, faço um café delicioso e acendo um incenso. Olho os email, um monte de gente bacana mandou mensagem, há uma humanidade linda que compartilha coisas comigo, isso é uma bênção.

Em homenagem ao Garotinho (o nome dele é Zinho), como uma manga espada, que caiu hoje de manhã, no quintal, enquanto eu dava botinadas nos atacantes adversários. O caroço é lambido até a exaustão. O mundo, com uma manga espada no quintal de casa, torna-se imediatamente mais gentil e doce.

Vai anoitecendo, e é tudo. Daqui a pouco vem a passagem do ano, estarei perambulando entre a casa de Seu Vital, Dona Fátima, Nana e adjacências. Meu reveillon é de casa em casa. Não troco esses afagos por queima de fogos nenhuma. Sou cada vez mais um homem de vizinhanças.

Borges me dá de presente um texto intitulado “Uma oração”. Compartilho um pequeno trecho:

“O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo.Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo”.

Por precaução, deixo o pule do bicho dentro do livro de Borges, com a leve impressão que vai dar a placa do Garotinho na cabeça.

ps. a todos e todas, um 2006 bem bacana, simples e feliz. Vai um poeminha de Borges para começarmos com o pé direito, ou esquerdo, para quem chuta com a canhota...

Os Justos
Jorge Luis Borges

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.

terça-feira, 27 de dezembro de 2005

Desejos para 2006

Está acabando 2006, agora são uns diazinhos, esses em que a gente já muda o andar, vai sentindo que algo está acabando mesmo, vai já se embalando para o “ano novo”, crente que vem uma vida nova, aquela loucura toda do dia 31, o branco, as festas, os abraços, os fogos, uma alegria desenfreada que já não é meu barato, confesso, tenho ficado quietinho na virada do ano, e tem sido bom sair do fuzuê.

Recebi várias frases, mensagens, de Natal e Ano Novo. Tentei retribuir aos leitores e amigos, obrigado pelo carinho, pelo amor, zelo, afeto, é mútuo, é uma troca permanente entre quem escreve, quem lê, quem comenta e quem silencia.

Eu desejo poucas coisas a vocês (e a mim), em 2006. São minhas besteirinhas de sempre:

Desejo mais lentidão. Vamos mais devagar em 2006. “Se avexe não, que a burrinha da felicidade nunca se atrasa”, já diz o cantador.

Desejo mais atenção às crianças. Menos inglês, natação, balé, escolinha, horas na Internet, reforço, mais amor, mais beijos, mais carinho, mais conversa, criança adora conversar e brincar.

Desejo mais amor, menos louvor à dor, saber quando estão te maltratando, te ferindo.

Que sejamos mais palhaços, menos sérios, que andemos mais leves, com um sorriso doce na algibeira, para o milagre do encontro.

Que tenhamos força, principalmente força amorosa. Andemos mais de mãos dadas. Saibamos reconhecer os nossos e estejamos por perto.

Andemos com as lamparinas acesas no velho coração, para o milagre do amor.

Desejo mais cumplicidade, mais conversa, mais conversa fiada, amemos e brinquemos mais, nos entreguemos ao fruir da vida.

Contemplemos a natureza, cuidemos dos jardins de casa e da vizinhança, mas cuidemos também de olhar nos olhos e compartilhar sorrisos.

Estarei aqui em 2007. Desejo que continuemos a nos encontrar.

Grande beijo e abraço igualzinho ao que dom Pedro Casaldáliga me deu, há muitos anos, um abraço amoroso e forte, que nunca esqueci.

sábado, 24 de dezembro de 2005

Aprendendo a perder

A frase mais importante que escutei em 2005 veio de uma criatura linda, muito linda, de alma generosa e coração imenso. Em um determinado momento da conversa, ela disse:

"Tem uma coisa importante em minha vida: eu sei perder".

E me contou das perdas familiares, amorosas, tantas para seus trinta e poucos anos. A ferro e fogo, foi aprendendo a perder, com mortes, separações, despedidas.

"Há coisas que não são para mim, então eu aceito e deixo seguir".

A gente nasce e cresce aprendendo que o importante é ganhar. A arte de perder, melhor, de saber perder, nunca entra em nossa lista de intenções. "Quero aprender a perder em 2006". Quem vai escrever isso?

Não sou tolo de escrever mensagens natalinas para meus poucos leitores. Se pudesse escrever algo, eu daria somente esta sugestão: aceitemos as perdas integralmente, com tudo que elas trazem.

Percebi, naquele momento, em uma simples conversa, que certas coisas não são minhas, por mais que eu as queira. Senti uma paz imensa, misturada com uma inveja calma. Não, eu ainda não sei perder com esta força interior, que empurra a vida para cima, sempre para cima, e deixa o coração suave, apenas pulsando em seu ritmo, até que venha algo definitivo e bom. Mas aprenderei.

A conversa foi sobre dores, mas desconfio que foi sobre amor.

Sim, foi sobre amor. Porque a gente só sente a dor da perda quando perde amor. Objetos vão e voltam. Amores, quando vão, nunca voltam, é lei universal.

E amor a gente perde, mas nunca pede.

Obrigado, dona Bianca.


ps. continuo publicando poemas no www.queremospoemas.blogspot.com

quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

Anotações sobre Eliete

A melhor cabeleireira do Recife chama-se Eliete, não sei o sobrenome, e seu pequeno salão, no Alto José do Pinho, é o lugar mais confortável para aparar uma vasta cabeleira, como a minha, por exemplo.

Lá, é possível escutar a tesoura fazendo zap, zap, zap, sabendo que ela, Eliete, não vai depenar a vasta peruca, como fez a Lucidélia, no final do ano passado, nem passar produtos de origem misteriosa, que podem transformar um quase black power, que é o meu caso, num Ronnie Von do subúrbio, que foi o meu caso, em 2002, eu quase choro.

Em Eliete, é possível ver as revistas todas de artistas, como Caras, Quem, Nova, referentes a 2003, e parece que os artistas só fazem mesmo é casar, jurar amor eterno e separar, meses depois, além de revistas misteriosas sobre coisas jurídicas e de arquitetura, que não sei onde ela arranja.

Só mesmo em Eliete é possível escutar Geraldo Freire, o “comunicador da maioria”, arranjar uma cadeira de rodas para alguém que precisa, de fato, de uma cadeira de rodas, enquanto ela diz "meu deus, o povo sofre tanto..."

Eliete é o melhor lugar do Recife para escutar as conversas das mulheres sobre amores, separações, reencontros e saudades, como se o salão fosse um grande espaço psicanalítico, onde todas dão palpites sobre tudo, e os homens ficam sabiamente calados, porque não entendem do assunto.

Só mesmo em Eliete, para saber que ela acabou de comprar um carro (um Siena, sei lá), e que agora, toda a família quer andar no seu veículo, "até para ir ao centro do Recife", uma coisa realmente muito chata.

Em Eliete, e somente lá, uma cliente gordinha pode informar que comprou uma Kombi há muitos anos, sim a famosa Kombi, e só usa uma vez a cada quinze dias para ir a Carne de Vaca, uma praia, com a família, e que nem adianta nenhum parente pedir o carro, porque só vai mesmo para a praia e ponto final.

É lá, em Eliete, que a mesma gordinha vai informar que a citada Kombi foi levada a uma oficina para ver algum problema, e o mecânico disse que o único problema do carro é que ele precisava rodar, porque estava ficando encruado, quem não souber o que é encruado, não é recifense, tem que ir ao Aurélio, o pai dos burros.

Só mesmo em Eliete para saber que ela perdeu seu grande amor no Carnaval do ano passado, um acidente de moto, e que ela só não morgou para a vida porque os amigos disseram que ela tinha que reagir, e ela reagiu na raça, mas sente falta, todos os dias, daquele negro alto, forte, que adorava se arrumar todo para ir dançar com ela na Aspás, que Deus o tenha.

Só ela, Eliete, pode passar um cremezinho no cabelo para “tirar as pontas secas” e mandar você esperar meia hora, e você vai esperar meia hora tomando uma cerveja no bar de seu Biu, que chegou ao Alto José do Pinho há 40 anos, e quem vai atendê-lo é Flávio, com uma voz de locutor de FM e AM, que tem um programa na rádio comunitária do Alto.

Só lá, no intervalo de Eliete, você poderá chamar Ailton “Peste” para tomar uma cerveja, e ele, um educador social em Olinda, vai contar como tem sido a vida na periferia, com aquele sorriso generoso e franco, que falta à elite rica do Recife fodido.

Eliete é o único lugar do Recife em que uma pessoa descreve a primeira lembrança de violência assim: um assassinato perto da sua casa, quando tinha 12 anos, por causa de um cachorro que mordeu o vizinho, e você vai escutar, incontinente, que o Alto José do Pinho se tornou um lugar calmo, pasmem, depois que a delegacia foi retirada dali.

Eliete, que ainda me chama de “professor”, apesar de eu estar há três anos longe das salas de aula, e subitamente, eu me sinto um singelo professor de escola primária, no subúrbio.

Eliete, que ainda não aprendeu a dirigir, mas vai aprender, pela graça divina.

Eliete, esta sonora composição do povo brasileiro, feita de raça, amor, simplicidade e beleza, construindo a vida em um pequeno salão, menor que uma garagem.

Eliete, que lava meus cabelos secos com um pequeno balde, mas olha as pessoas nos olhos e lava também o coração de toda maldade.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2005

O tempo é só um dia

Hoje faltou-me a inspiração mínima para algo decente, uma cronicazinha que passasse de ano, pelo menos carimbando um cinco. Fui aqui na esquina, tomei já uns dois cafés, vi a meninada voltando da escola municipal, todos estão felizes, passaram de ano, é incrível, mas hoje em dia ninguém fica mais reprovado, no meu tempo não tinha essa boquinha não, era osso passar por média, eu só passava me arrastando mesmo, era triste.

Fui ali, olhei os passarinhos, agüei o jardim do quintal, daqui a pouco cuido do jardim da frente, que está meio seco, nada. Inspiração zero. Essa vida de cronista de hora que dá um revertério da bobônica, parece que a criatividade escapole mesmo, ou fica arredia, intocada, sem querer parir nada. Quase fiz uma oraçãozinha, senhor, dai-me um temazinho sequer, um fiapo de assunto, nada.

Os velhos e novos cadernos de anotações salvam a lavoura. Então vou folheando, reencontrando minha gente. É com eles que vou caminhar, por hoje, este dia de sol lindo lá fora, no Recife de dezembro, que respira e transpira compras e confraternizações.

Lembro que um amigo me disse, outro dia:

“Quero desamadurecer, não sei o motivo. Já amadureci o suficiente, não quero mais essa história de tudo é aprendizado. Isso é uma invenção, Samarone. Tem coisas que a gente não aprende nada, apenas sofre, e querem que a gente entre nessa de estou aprendendo”.

Não concordei nem discordei, apenas escutei e anotei, que é minha função social, anotar e reportar. E recentemente, conheci uma criatura adorável. Lá pelas tantas, no meio de uma conversa sem rumo, bem ao meu estilo, ele disse que estava à procura de uma herança. Perguntei se ele tinha alguém rico na família, e que estivesse bem perto de bater as botas. Não, muito pelo contrário, a família era um amontoado de lisos e remediados.

“É só uma esperança. Eu sou louco para receber a notícia de que ganhei uma herança”, disse, animadíssimo, e tomou mais uma talagada. Sinceramente, ele merecia uma herança. Poucos no Brasil merecem uma herança como o Juca Baixinho.

E no meio daquele romance maravilhoso do Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser”, me veio o registro do começo do amor. “O amor começa no momento em que uma mulher se inscreve em nossa memória poética”. Nada mais precisava ser dito ou perguntado, até que Bachelard (ou Gaston, como o chamo) chegou sorrateiramente, com seu andar de esquilo, com sua longa barba branca, e acrescentou:

“O amor é o contato de duas poesias”.

Mas intimamente me faltava uma definição para o significado do amor. O meu amigo Zigmunt Bauman me forneceu recentemente, entre um cigarro e outro. “Amar significa abrir-se. Ao destino, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo numa amálgama irreversível”. Eu já estava mais que satisfeito, achei demais “o medo se funde ao regozijo”, quando ele completou:

“Sem humildade e coragem não há amor”.

Ele achou pouco e arrematou: “Não importa o que você aprendeu sobre o amor e amar, sua sabedoria só pode vir, tal como o memorial de Kafka, um dia depois de sua chegada”. Concordei com tudo e não o deixei pagar a conta do jantar.

E terei que escrever, um dia, a história de Vando, que aprendeu a andar de bicicleta aos 43 anos. O desejo particular, meu, era ver um homem já feito, com cabelos brancos, sendo orientado pelas duas filhas a se equilibrar, como a gente faz na vida. Então me veio a pergunta: terá ele usado rodinhas? Será que alguém sente falta dessas rodinhas da bicicleta da infância, na hora do desamparo? Será que ele levou as quedas que não encontrou na infância? Perguntas para a minha coleção "Perguntas inúteis, volume II".

Um conhecido distante sustenta uma tese: a de que Bin Laden inventou uma fábrica de tufões e furacões, só para foder os Estados Unidos. Com o Tota, não há o que discutir, é a coisa mais certa do mundo. Bin Laden deve estar por trás daquela confusão toda.

Fui reler Shakespeare, porque tenho essas crises de inteligência, leio algo rochedo mesmo, só não encarei o Dostoievski de frente, mas ainda chego lá. Então me apareceu este conselho, em luz néon:

“Dizer o que sentimos, não o que deveríamos dizer”.

Concordo com o Álvaro de Campos cada vez mais e em todos os pontos (estamos com este hábito de tomarmos um café, sempre à tardinha, e ele diz coisas que quero dizer, mas não tenho talento suficiente sequer para pensar). Ontem, ele me veio com esta:

“Estou cansado da inteligência. Pensar faz mal às emoções”.

Outro dia ele me falou de uma moça que amava muito. Tinha escrito num guardanapozinho esta declaração para ela:

“E não há recanto que não veja por ti, nos recantos de seus recantos”.

Foi dele a última frase da noite, que gravei na minha algibeira das emoções:

“Amemo-nos aqui. Tempo é só um dia”.


Para Naaty, minha vizinha de 10 anos, que passou para a 4a série e acabou de me trazer um cartão de Natal e um presentinho, embrulhado num papel vermelho: uma moldura do Santa Cruz.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

Das vantagens de estar liso

Ontem recebi a notícia em tom solene: meu dinheiro só vai entrar na conta dia 26 de dezembro, mediante a entrega do famoso “relatório”, o que significa mais dez dias de liseira completa, um mal que andou me perseguindo durante 2005, e que espero reparar em 2006, deus é grande.

Mas nesta entresafra, descobri algumas vantagens de estar liso, e passo a enumerá-las, bem no espírito de fim de ano, quando a gente anota as besteiras que fez e promete não repetir no ano vindouro. Vamos lá.

1. Um cabra liso não causa surpresa a nenhuma mesa, no final da farra. Quando chega a conta, tem 11 pessoas para rachar, alguém olha e diz: “O Sama está de fora, que ele está liso”. Não tem constrangimento nenhum, e ninguém reclama, a amizade se torna um bem da humanidade.

2. Você descobre que tem muitos amigos, e que eles gostam mesmo de você. Há ofertas de empréstimo do nada, gente que você achava meio mala chega com cinquentinha, e ninguém, absolutamente ninguém, cobra juros.

3. Você descobre também que a venda da esquina pode resolver todos os seus problemas, e que não é preciso cartão de crédito ou Hipercard para comprar o café, a farinha, um queijinho, a cerveja, produtos essenciais da cesta básica.

4. Um liso de cabo a rabo não fica nervoso quando ligam cobrando. A moça da Oi, sempre com um sotaque distante, liga para você, informa que você está atrasado em três faturas, e diante do irremediável, da pergunta idiota sobre o dia do pagamento, antes de cortarem a linha, você responde, com uma doçura que ela nem espera:

“Ah, meu anjo, é que estou sem dinheiro, mas estou louco para pagar essa conta, você nem imagina”.

Ela diz que vai “estar te mandando a cópia da conta”, e você ainda tira uma onda, dizendo: “evite os gerundios, querida, diga logo que vai mandar a conta”.

5. Outra vantagem de estar liso é que você não fica nervoso antes de olhar o saldo, no caixa eletrônico. Você olha para o banco e diz “tchau, guaranau”.

6. Estar definitivamente liso é ótimo porque vem aquele ceguinho batendo as paredes com aquele ferrinho, você coça os bolsos, olha que só tem o dinheiro da passagem e nem fica com peso na consciência por não ajudar um ceguinho.

7. Um liso de verdade fica muito feliz quando um amigo aluga um filme e telefone, perguntando: “Já visse aquele filme O Filho da Noiva?" Você não assistiu, vai pegar um bigu no aluguel do DVD e ainda vai dizer: caramba, em plena sessão da tarde, estou vendo um filminho.

8. Um bom liso descobre que é preciso bem menos para viver.

9. Outra vantagem de ser liso é que você entra numa livraria já tirando onda com os autores. Você olha, lambe, toma um café anotando trechos dos livros, passa os dedos nas lombadas dos livros, faz pesquisas de autores com os vendedores, mas volta para casa somente com o informativo da Livraria Cultura, que é grátis, e compra uma pipoquinha a R$ 0,25 num fiteiro da vida.

10. Quando você está liso, sempre chega alguém para dar um CD de presente e você almoça nos muquifos a R$ 3,50 achando tudo lindo.

11. No amigo secreto, ao invés de gastar uma grana, você vai a uma daquelas lojas que vendem tudo a R$ 1,99 e compra algo bonitinho, que faz o maior sucesso na hora da entrega, e todos ainda perguntam: onde encontrasse esse presente?

A única desvantagem de estar liso é que tem uma hora que você olha para um lado, olha para o outro e se pergunta: porra, esse liseu não termina nunca?

E quando passa o liseu, quando chega uma grana, você fica rico pra caralho e se pergunta:

"como uma pessoa pode sobreviver sem seu dinheirinho?"

E vai correndo para a livraria, compra aquele livraço que andou namorando semanas a fio e volta para casa de táxi, porque descobre subitamente que está cansado do Alto Santa Isabel...

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

O brega venceu Onetti

Saio do trabalho, um quase anoitecer no Recife, ali no Derby, uma espécie de pescoço do Recife, um lugar de eterna passagem de tudo, de gente, carro, ônibus, vendedores, anônimos, perdidos. Ninguém vai ao Derby para ficar, todos estão de passagem, como o sangue no pescoço.

Atravesso aquelas imediações de mal jeito, um dia esquisito, quem tem esses dias sabe, quem não tem dia ruim, louvado seja, ou é santo ou é besta. Nesses dias, eu respiro mal, hoje eu era um desses homens sem pulmões, atravessando o Derby devagar, como quem vai mas não chega, vai mas não vai. Cruzo o parque sem flores, sem nada, cruzo a Restauração, aquelas barracas mata-fome dos parentes dos doentes e transeuntes, um sujeito lava as salsichas numa bacia que pelo amor de deus.

Pego à esquerda, passo defronte ao Santa Joana, que hospital lindo, parece um hotel, mas é só para quem pode, e poucos podem, depois viro à direita, acho que era rua das Crioulas e continuo o mesmo, cadê o oxigênio do Recife para meus pulmões? Sem respirar, paro no Bacia D'Barro, assim mesmo, com apostrofe. Sento, pego o caderno e faço anotações sem rumo. Escrevo telegramas para os que amo, cheios de saudade e espanto. Quero saber o que aconteceu com o Agenor, meu amigo da 5a série do Salesiano, em Fortaleza, e se a Sandrinha, que conheci em Belém, em 1991, está feliz, depois daquele nosso romance de verão, e sinto que tudo em meu coração está mais ameno, se dissipando, é bom sentir isso.

Guardo a nostalgia na algibeira. Abro Onetti, o velho e bom Juan Carlos Onetti, com o maravilhoso "A vida breve", publicado em 1950 no Uruguai, e que só agora, anos depois, nos chega, o Brasil parece que lê tudo em braille. Leio, releio, tomo notas, tentando aprender. É minha Bíblia, meu Alcoorão, meus 10 Mandamentos, meu Torá, meu Evangelho Segundo o Espiritismo. Cada página, uma humanidade inteira.

O bar vai enchendo. Na TV, com DVD, "Calcinha Preta" e "Saia Rodada", essas maravilhas do brega. Onetti me fala de "corações sem esperança". "Quanto a mim, só podiam convir-me o júbilo e a inocência", diz, meu amado uruguaio, louvado seja.

Aos poucos, o ar começa a me chegar. A literatura, este balão de oxigênio, obrigado. Quero silêncio, um pouco de silêncio, um cálice de silêncio, para o anoitecer chegar nos ossos e nas pálpebras, nos olhos e na alma, para aceitar que tudo é assim mesmo, a alma não tem chão definitivo, só abismos e céus, um de cada vez, os dois juntos é um clarão.

Acaba "Calcinha preta", pela graça divina. Então o som é ligado, eu não sei quem canta em voz alta, um órgão nervoso e apressado, som de churrascaria sabendo a fumaça e carne tostada. Fecho Onetti, para que não sofra tanto. "Comoções sem esperança", tinha dito ele em algum parágrafo, lo siento, Onetti. O brega come solto no bar, estou mais para Ben Harper, "excuse-me mister".

Recolho tudo, me recolho, guardo Onetti, pago a conta, volto para casa no meu passo de camundongo. Antes, passo na Praça do Entroncamento, para ver o presépio gigante, eu não ligo para presépio, mas gosto de ver a manjedoura só por causa da palavra, manjedoura, que acho linda.

São oito da noite. Pego o ônibus. A cobradora me recebe com um sorriso exausto. Está trabalhando desde as cinco e meia da manhã, me diz, é a pisada de segunda a sábado, com a folga só no domingo. Na semana do Natal, nem o domingo vai escapar. Paramos numa ponto, um fiscal olha rasteiro e puxa assunto. "Ele quer saber se a gente cochila, depois de tantas horas de trabalho", diz, melancólica, exausta, e hoje antecipamos U$ 14 bilhões para o FMI, achando isso tudo lindo, somos bons otários pagadores.

O brega venceu Onetti, o cansaço venceu a cobradora, e no íntimo, perdão pela confissão, um sentimento de derrota, então o Onetti ressurge e diz: "E como nos falta a grandeza necessária para pôr outro objetivo no lugar da felicidade..."

meus poemas estão no www.quemerospoemas.blogspot.com

terça-feira, 13 de dezembro de 2005

Brasil, um país que não entendo

Desde que me entendo por gente, sou brasileiro, nascido nas entranhas do Ceará, uma cidade chamada Crato, vizinha a Exu, em Pernambuco, e por isso tenho esta alma assim, tão pernambucana. Isso foi em 1969, na Maternidade Santa Theresinha, creio, no terceiro dia de maio, e de lá pra cá, muita água passou por debaixo da ponte.

Nesses 36 anos, muita coisa aconteceu, mas continuo desenvolvendo um problema existencial de largas proporções: não consigo entender este País em que vivo, chamado Brasil.

Vi outro dia uma pesquisa da Reuters sobre a felicidade: 56% dos espanhóis se sentem “muito felizes” com suas vidas (creio que a torcida do Barcelona ajudou muito a subir o índice, com aqueles golaços do Ronaldinho Gaúcho). Os franceses são apenas 42% muito felizes, uma coisa de dar dó, os italianos são 49% e os alemães, 52%. Com esta pesquisa da AGF/Allianz, mudei inclusive minha visão de mundo sobre a Europa, porque achava aquelas criaturas meio entediadas com todo aquele bem estar, eu percebia, nas entrelinhas, um certo enfado europeu, deve ser inveja minha por não encontrar um hospital decente na rede pública.

Pois bem. E o Brasil?

Amanheci com esta dúvida filosófica latejante sobre a minha pátria. Como explicar o inexplicável? De vez em quando, na verdade, eu me pego com uma dúvida ainda mais profunda: como este País ainda segue funcionando?

Fiz um pequeno estudo de caso. Conversando com um amigo, ele me contou que levou a filha no hospital (ela tinha cortado o indicador da mão esquerda), foi feita a sutura, o médico assinou os papéis, ele foi ao plano de saúde, para ser ressarcido. A mulher do atendimento disse que o médico não tinha explicado, na papelada, o procedimento. Ele mostrou o dedo da filha suturado e explicou:

“Foi uma sutura na falange do dedo indicador da mão esquerda”.

Nada. Ela viu o dedo com esparadrapo, a assinatura do médico, mas se manteve incólume, essa palavra é boa. Davi, ôps, meu amigo, insistiu, explicou que teria somente o trabalho de atravessar a cidade para o sujeito escrever duas linhas, que ela mesma poderia complementar o documento, que foi apenas um esquecimento, um ato falho, como dizem os psicanalistas freudianos e lacanianos. Nada feito.

Então meu amigo desceu do prédio, procurou um boteco, pediu um chopp e escreveu:

“Procedimento realizado: sutura na falange do dedo indicador da mão esquerda”.

Tomou outro chopp, um quartinho, uma cerveja, que Davi não é de ferro, voltou lá, entregou o documento e a moça abriu um largo sorriso:

“Agora sim, está tudo corretinho...”

Certa vez, eu estava numa pindaíba danada, uma febre do rato mesmo, quando fui em busca do seguro-desemprego. Uma fila dos diabos, uma burocracia, aquela maravilha dos oito anos do Fernando Henrique, uma eternidade da qual milhões de brasileiros ainda não se recuperaram. Peguei minha ficha, acho que era um número acima de 200, 199 fodidos mais eu, olhei o número do atendimento, estava em 80, saí, tomei café, li um jornal, escrevi minhas besteiras e voltei, duas horas depois. Ainda tinha uns 20 na minha frente, quase todo mundo esperando em pé, com calor, sede e fome, eu tenho uma certa facilidade para reconhecer gente que está com fome, os olhos parecem ter neon avisando “fome, fome, fome”.

Na minha vez, a moça olhou a Carteira de Trabalho de trás pra frente, sacolejou, espremeu, baculejou, soprou, quase arrancou meu retrato com 17 anos, até que me olhou com aquele sorriso de gozo da burocracia e afirmou peremptória (hoje estou demais com o meu português clássico):

“Senhor, temos um problema na sua Carteira...”

Eu quase chorei de desconsolo. Era uma ONG que eu tinha trabalhado uns três anos antes, que tinha quebrado sem dar a famosa “baixa da carteira”. Expliquei tudo, disse que estava numa febre do rato desgraçada, ela não entendeu meu pernambuquês, eu disse que estava liso mesmo, quebrado, na lona, duro, na pindaíba, zerado, liso, ela escutou com aquela cara de cera de FHC e disse o famoso “não posso fazer nada”, uma das frases mais idiotas da língua portuguesa, porque você sempre pode fazer alguma coisa por alguém, até no jeito de falar você pode ser útil com qualquer pessoa, é o tal do afeto mínimo. Ela, a múmia de FHC, me disse que bastava eu ir à Junta Comercial, procurar o setor de falências, encaminhar meu processo, que em duas semanas saía a baixa na minha carteira, para eu entrar com o pedido, que sairia em duas semanas. Do meu lado, um sujeito sem dentes era informado:

“Senhor, em 1979 o senhor não deu baixa nesta empresa que o senhor trabalhou em Goiás”.

Eu quase choro por mim, por ele e por aquela desgraça toda, outro dia FHC veio receber o título de Cidadão Pernambucano, aquela Praga do Egito, boçalidade do sapato ao cocoruto, explicou tudo que estava errado, avaliou todos os erros, voltou a ser sociólogo, falou de ética na política, mas não disse que foi reeleito comprando voto de deputado, todo mundo sabe que cada picareta daquele custou R$ 200 mil, e tome mais quatro anos, deu no que deu.

Fui à Junta Comercial de São Paulo, imaginem. Era uma multidão de norte a sul. Fiquei na calçada esperando aquela ajudinha divina, aquele momento do desconsolo completo, que dizem também ser o momento do inconsciente maquinando. Olhei do outro lado da rua, tinha uma empresa de fazer carimbos. Pedi para fazer um carimbo com o nome da ONG, fui tomar meu chopp, que ninguém é de ferro, carimbei a carteira e levei para meu irmão Gustavo assinar. Ele assinou, deu baixa na minha carteira, voltei à fila do Seguro Desemprego, outra chatinha-FHC bonitinha me atendeu e encaminhou o seguro-desemprego. Salvo engano, fora cinco parcelas de 250 mangos, uma invenção do José Serra, que Deus o tenha, mas o mantenha longe da presidência.

De formas que comecei e terminei esta crônica sem entender o Brasil. Aqui na minha rua, vai passando agora uma Kombi vendendo aquelas bandejas de ovos com um megafone em cima:

“Direto da Granja Santa Luzia, de Paudalho, aproveita freguesa, aproveita freguesa, são trinta ovos por quatro reais”.

Não sei se isso tem na França, com seus 42% de muito felizes, mas eu adoro.

Ontem à noite, me ligou o amigo Ailton, vulgo “Peste”, do Alto José do Pinho. Eu disse o “olá” de sempre, e ele emendou:

“Olá, é Samarone Lima? Aqui é Peste Lima, seu conterrâneo da Terra do Nunca”.

Tive um acesso de riso e conversamos muito. No final, ele completou, dizendo:

“O Pastor Peste, da Igreja Universal Cadê o Meu, vai se despedindo”.

Peste, um negro sorridente, de coração imenso, que mora no Alto José do Pinho, ganha menos de um salário mínimo e faz um trabalho social na periferia de Olinda, com adolescentes em situação de risco. Agora, enquanto escrevo estas besteiras, ele está em Aguazinha, fazendo um trabalho com uma turma de filhos de catadores de lixo. Os filhos deveriam estar se ferrando no lixão também, ou fazendo coisas piores, mas estão em sala de aula, com Peste.

Então, viva Peste, viva os ovos da Granja Santa Luzia e viva a vida, que é melhor do que ficar tentando enteder o Brasil.


Para Naire Valadares.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

Coisas bestas para fazer no exterior

É muito bom viajar para o exterior, eu mesmo já viajei pra caramba, conheço um montão de países, se pudesse viajava o ano inteiro. Mas o que é bom mesmo é curtir com os lugares comuns, aquele negócio de ficar tirando onda com os chavões internacionais.

Lembro que fui a Paris em 1995, fiquei um mês inteiro perambulando, hospedado na casa de Luzilá, tomando aqueles cafezinhos bacanas, olhando a francesada passar, até que certo dia resolvi ir à Sorbonne. Puxa vida, o berço de um bando de gente sabida, esses caras que influenciaram parte da humanidade, aquela coisa toda, um glamour do conhecimento, das Ciências Humanas, que adoro. Fiquei olhando tudo, com uma inveja danada daquela moçada que circulava, alguns certamente com bolsas de estudo, eu sou um sujeito fissurado por bolsa, seja ela qual for, até bolsa a tiracolo.

Pois bem, não sei se foi a emoção ou uma baguette vencida, o fato é que senti uma dor de barriga devastadora. Quando menos vi, estava usando o sanitário da Sorbonne. Puxa, que dia glorioso! Que alegria, dar minha contribuição à legendária Sorbonne! Demorei bastante, me deliciando, rindo daquilo tudo. Procurei uma caneta para escrever alguma besteira, mas estava sem caneta, que vacilo.

Terminei, dei a descarga, me organizei e saí com o peito estufado. Já perguntei a vários amigos e nenhum deles usou o sanitário da Sorbonne. Inácio, único amigo que já leu e cita trechos de “Crime e Castigo”, de Dostoievsky, nunca freqüentou o WC da lendária Universidade. Fico pensando: pra que ler tanto?

Uns dois dias depois, fui ao Louvre, porque já fui chique. Andei, andei, era gente do mundo tudo, fui andando com meu passinho de camundongo, até que esbarrei numa multidão, olhando um pequeno quadro. Amigos, juro que não dava dois palmos da minha mão, uns 50 centimetros pra cima e pra baixo. Era ela, a famosa Monalisa, do Leonardo da Vinci, dependurada na parede.

Me aproximei, olhei a criatura, aquele quadro que valia uma verdadeira fortuna, que aparece em tudo que é de calendário desde que sou pirralho, vi bem de perto e senti mesmo foi uma enorme decepção. Mas isso é que é a Monalisa?

Informo a quem estiver interessado em comprar a Monalisa: é um quadrinho meia boca, chinfrim mesmo, pequeno. De perto, ela é aguadíssima, não pegaria uma ponta na novela das seis. Eu até tinha simpatia pela moça, mas de perto, olhos nos olhos, ela não faria sucesso nem no ônibus do Alto Santa Isabel. Me deu vontade de dar uma vaia, mas vaia é uma coisa que o sujeito precisa de muita personalidade para dar sozinho. De um lado, japoneses, de outro, americanos. Atrás de mim, mais japoneses ou vietnamitas, eu nunca sei, acho que eram os japas mesmo. Não, japonês não é um povo que sabe vaiar como o nosso, Pernambucano. Tive que segurar a vaia, para não causar problemas aos seguranças do Louvre. Usei-a depois contra os rubronegros daqui, no Arrudão.

Em 2000, fui ao Central Park, em Nova York. Sinceramente, é uma Parque da Jaqueira dez vezes maior, um Ibirapuera mais largo, com mais flores. Não vi nenhum famoso, como Woody Allen, Susan Saradon, ou aquela gostosona da Elizabeth Shue. Nenhum bacana jogando o pedaço de pau, para o cachorro trazer na boca, como acontece no cinema. Sequer um reles, um magérrimo, desdentado pipoqueiro. Fiquei perambulando, chateado com Hollywood, que vende tanto gado por lebre. Nem pedrinha para chutar tinha!

Na República Tcheca, visitei a casa do Franz Kafka. Puxa, o sujeito viveu num muquifo mesmo. Apesar de a rua ser bonitinha, o Franz teve uma habitação meio ordinária. Não tinha sequer um armador, para ele pendurar sua redinha. Por isso saíram aqueles livros angustiados, concluí. Tirei uma foto na frente, acho que já perdi a foto, mas hoje deve ter gente fazendo o mesmo que eu, dez anos atrás, buscando as pegadas do Franz, me perdoem a intimidade. Depois disso, nunca mais fui em casa de escritor. Melhor ver os livros mesmo.

Por falar nisso, fui visitar o túmulo do Proust, lá em Paris. Rodei, rodei, aquele Pére Lachaise é imenso, morreu muita gente mesmo, desde que criaram a França, acabei chegando lá e imediatamente me senti idiota. Primeiro, porque só li o primeiro dos livros dele, aquele “Em Busca do Tempo Perdido”, aquele em que ele come um biscoito e quase goza. Depois, eu fiquei me perguntando: que diabos estou fazendo aqui?

Há milhares de coisas para se fazer no exterior, como tomar uma cerveja num boteco velho, ir a um cinema na periferia, ver uma pelada no meio da rafaméia, assistir um jogo de dominó. Agora, o sujeito sai do Brasil e vai olhar o túmulo do Proust?

Sinceramente, tem épocas que a gente é otário e não sabe.

Uma das melhores viagens da minha vida foi para a Argentina. Ficávamos no andar superior do albergue, em Buenos Aires, os três patetas: eu, Gustavo e Daniel Raton. Começávamos a conversar inutilidades às 8h da manhã, e quando menos notávamos, já eram cinco da tarde. Enquanto isso, dezenas de turistas passavam, com seus guias de viagem, mapas de lugares obrigatórios, máquinas fotográficas.

Ficamos vários dias assim. No íntimo, sentíamos uma certa solidão naqueles bandos de turistas, sedentos por fotos e emoções. Eles falavam de lugares, não das pessoas. Não trocaria aquelas longas conversas dos três patetas, por nenhum passeio pela encantadora Buenos Aires.

Nesta mesma viagem, aconteceu algo encantador. Eu estava escrevendo um texto, estava um calor dos diabos e faltou energia no quarteirão onde funcionava o albergue. A faxineira, uma boliviana, me ofereceu a casa dela, que ficava ali perto, para que eu não interrompesse o meu trabalho. Aceitei, lógico. Ela me levou e me apresentou sua companheira, uma senhorita argentina, que me preparou um café. Sim, viviam juntas e se amavam muito, me contaram depois.

Fiquei ali, numa casinha apertada, o ventilador rangendo, na casa-da-esposa-da-zeladora-do-albuergue. No quarto delas, havia várias fotos de mulheres nuas.

Existe passeio mais lindo que esse, ser recebido no meio do amor de duas mulheres, no coração de Buenos Aires?

ps. obedecendo ordens superiores, continuo publicando meus poemas e poemas alheios no blog www.quemerospoemas.blogspot.com

quarta-feira, 7 de dezembro de 2005

Sobre a importância do copo americano

Estava ontem com o professor Davi em Mary, no Mercado de Casa Amarela, aquecendo os motores para o almoço, quando pedimos uma cerveja, sem intenção nenhuma de farrear, apenas para suavizar o instante, e a cerveja, de fato, veio. A moça trouxe uma cerveja contundida, com dois copos imensos, daqueles de tomar suco. Quando iríamos reclamar, ela já estava longe e ficamos a ver navios. Davi encheu as duas tinas muito a contragosto, eu fiquei olhando, meio desamparado, quando começamos nossa longa dissertação sobre a importância do copo americano para nossa humanidade.

Descobri que as pessoas têm afinidades eletivas, de sentimentos, mas é no detalhe que reside mesmo a grande afinidade. Só mesmo o velho e bom Davi para conversar comigo, despreocupadamente, por uns bons minutos, sobre a importância daquele copinho miúdo, que cabe exatamente a quantidade de cerveja que o sujeito necessita naquele instante. Muita gente conversa sobre a fazenda que vai comprar, o filho na Disneylândia, o Corola novo, essa besteirada toda, mas com Davi, posso me debruçar longamente sobre o reles copo americano. Isso sim, é que é uma criatura.

Depois de muito papo, me peguei numa dúvida existencial das mais fulgurantes: por que o nome do copo americano é copo americano, se ele de americano não tem nada?

Pela minha teologia, aquele copinho poderia se chamar muito bem copo “latino americano”, que ficaria ótimo. Como na Internet tem tudo, vou fazer uma pesquisa sobre o tema. Pensando bem, vou pesquisar nada não, deixemos a dúvida pairando no ar.

A conversa rendeu um bocado. Ficamos a repensar nos erros que cometemos durante o ano, e não foram poucos (Davi, para quem não sabe, acabou se tornando meu sócio acidental em um bar, que está finalmente sendo vendido). Ficamos pensando no que poderíamos ter evitado e como somos dois bobalhões até para fechar um negócio. Ele me saiu com essa:

“Prever o passado...eu sou ótimo nisso”.

Tomei nota, claro. Não é todo dia que se toma uma cerveja com um poeta.

E não sei exatamente para onde a conversa andou, porque vamos falando de tudo um pouco, quando ele me contou sobre um certo jeito de se arrumar, alguns anos atrás.

“Botava perfume Topazze, da Avon, English Lavander, da Atkinsons, e comia-se batata frita na Fans, na Conde da Boa Vista”.

Faltava algo.

“Com um chopp, claro”, completou ele.

Agora sim.

Na mesa ao lado, o sujeito disse que a esposa dele gostava de “comer tussindo”.

Tradução: ela adora uma pimenta. Coisas do Mercado de Casa Amarela, que Serjão, outro amigo, adora.

Voltamos a falar do nosso ex-negócio, das muitas horas que já esperamos para encerrar toda a negociação, quando Davi soltou essa pérola:

“Sou ridículo, tolo e bobo, mas detesto que me façam de ridículo, tolo e bobo”.

Me olhou meio invocado e completou:

“Quero sê-lo por opção”.

Concordei dos pés à cabeça.

A garçonete trouxe incontinente dois copos americanos maravilhosamente lindos, e algo ficou mais suave no Recife. Enchemos os ditos cujos e bebemos de gute gute.

Em seguida, Nana chegou, pediu um copo, contou alguma lorota e o almoço foi para o beleléu. Cheguei em casa às quatro da tarde.

É o que costumo dizer: tomar uma cerveja com Davi, antes do almoço, é um perigo.

ps. atendendo às inúmeras ordens do meu amigo Gustavo, estou deixando a timidez de lado e começando a publicar meus poemas no seguinte espaço: www.quemerospoemas.blogspot.com

domingo, 4 de dezembro de 2005

Apontamentos sobre o mês de dezembro

E súbito, chegou dezembro. Veio deslizando, serpenteando os dias, até que se instalou, o safado.

É o mais esquisito, patético, embolado e cômico mês do ano. Não sei como é nos outros países, mas nós do Brasil, essa gente da batucada, da bagunça e da eterna esperança, entramos numa espécie de frenesi coletivo com o derradeiro mês do ano. Parece que temos que expurgar tudo e celebrar tudo, comprar tudo e parcelar tudo, numa catarse estranha, feita de objetos e mudança de estados d'alma.

Dezembro, mês da solidariedade obrigatória, do “Natal sem fome”, como se pudéssemos ter o Carnaval com fome, o São João com fome, o 7 de Setembro com fome, como de fato temos, mas dá para ir segurando até dezembro.

Dezembro, mês de uma infame criação brasileira, a tal “Caixinha de Natal”, que nasce como capim em qualquer boteco, padaria, qualquer açougue, venda, boteco.

Dezembro, mês das confraternizações, do lendário “amigo-secreto”, que gostaria de saber quem inventou.

Levantamento pessoal: tenho confraternização do trabalho (1), que é muito boa, porque geralmente é num lugar bacana e a gente não entra no racha da conta. Confraternização com meus companheiros de pelada aos domingos, o Caducos Futebol Clube (2), que é uma farra de voltar para casa num carrinho de mão, sem hora para terminar. Confraternização com os amigos da torcida do Santa Cruz (3), meu clube que agora está na Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro, perdoem o charme. Por fim, tenho a confraternização do nosso Poço da Panela, em Seu Vital (4), que é um espantoso amigo secreto de umas 60 pessoas do bairro, uma farra monumental, com discurso e muita galhofa. Informo que nos dois primeiros anos, tirei Seu Vital no sorteio, mas perdi o tri-campeonato ano passado, na cerimônia da escolha dos papéis.

Graças a Deus, não sou mais dono de bar, porque teria a confraternização com os funcionários (5). Pior: eu teria que pagar a conta.

Dezembro, mês da neve no Brasil, especialmente em shopping-center. Está lá, o Papai Noel, aquele gordinho com cara de leso, e as renas prontas para um galope em cima dos flocos de neve. Se as renas saíssem do shopping e pegassem o mormaço do Recife, cairiam durinhas de choque térmico.

Dezembro, mês da obsessão pelas compras, e tome cartão de crédito, pré-datado, cheque especial. Lembro que nesta época, minha mãe fazia uma lista dos que ganhariam presente de natal. Entrava todo mundo que ela conhecesse ou que tivesse visto, durante o ano. O lixeiro, o sujeito da bodega, a caixa do supermercado que ela gostava, o carteiro, a cabeleireira, a filha da cabeleireira, a neta da cabeleireira, uma par de vizinhos, a empregada (opa, foi mal, agora a moda é chamar a empregada de “secretária”), enfim.

Dezembro, mês de uma caridade meio forçada. Todo mundo amolece de repente, quer fazer uma coisinha boa, ajudar um velhinho a atravessar a rua, dar uma cestinha básica uma família pobre, comprar brinquedo para alguma creche, coisas que foram esquecidas ao longo do ano.

Dezembro, mês das ruas do Recife entupidas de gente, com um “gingobel” fuleiro nas lojas abarrotadas.

Dezembro, mês da saudade para quem mora fora do Brasil.

Dezembro, mês ideal para repetir a velha frase: “Nossa, como esse ano passou rápido!”.

Dezembro, mês dos balanços e promessas para 2006. Milhares de brasileiros vão parar de fumar nestes dias de dezembro.

Dezembro, mês perfeito para dizer: “Eita, daqui a pouco vem o Carnaval”.

Dezembro, mês que sempre tinha um disco novo do Roberto Carlos, uma música que estourava e ninguém aguentava mais tocar, mas o Roberto Carlos já não é mais o mesmo, pela graça de Deus.

Dezembro, o único mês que a gente pode encontrar um amigo e perguntar:

“Tirasse quem no amigo secreto?”

Dezembro, o único mês que o amigo vai olhar e responder:

“O Serjão”.

E você sabe que ela está mentindo, mas tudo bem, é assim mesmo, é dezembro, um mês meio embolado, meio fuleiro, cheio de mungangas, das miçangas, das farras, das compras dos produtos do Paraguai, das encomendas para os produtos da Avon e da Boticário, da Sidra e do Panetone, último mês do calendário, que passe rápido...

...que não vejo a hora de me benzer e botar os dois pés em janeiro.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2005

Dois ceguinhos num dia ruim

Desço do ônibus no Derby, aguardo a vez de atravessar a rua, e ao meu lado, com sua bengala de alumínio, um cego. Fico observando. Se aproxima um ônibus, ele estende a mão para o vazio, acenando com o braço inteiro. O motorista sabe que o ceguinho vai entrar pela frente, pedir trocados e descer, então queima a parada.

Desisto de atravessar a rua para observar melhor.

O ceguinho aguarda. Pelo barulho do ônibus, ele sente a aproximação, estende o braço novamente, o motorista passa direto. O cego vira o rosto e fala zangado:

“Fila da puta!”.

Não sei como foi a aventura do meu amigo no restante do dia, porque tinha que ir trabalhar, mas o ceguinho ganhou minha simpatia imediatamente. Fiquei pensando em quantas vezes, nessa vida, deixei de soltar um "fila da puta" com algum sacana, por pudor ou vergonha mesmo.

No fim do dia, exausto e suado, um mormaço rasgando o ônibus do motorista ao último passageiro, outro ceguinho. Entra, vai até a cobradora e vem voltando, com sua bengalinha de alumínio.

“Um trocado para o ceguinho, quem puder me ajude, quem puder me ajude, que eu mereço”, repetia.

Adorei a constatação:

“Eu mereço”.

Ele para ao lado do passageiro, e repete seu mantra, com algumas moedas servindo como chocalho na mão calejada.

“Um trocadinho, que eu mereço”.

Fiquei pensando em quantas vezes deixei de dizer "eu mereço" por pura timidez.

Dois ceguinhos perambulando pelo Recife, os personagens principais desse dia ruim como o quê.

Receita de Viver

Publico um texto do adorável cronista Carlinhos de Oliveira, intitulada "Receita de Viver", de 1966. Por sorte, todos os seus livros estão sendo relançados pela editora Record. Informo que minha inveja por não ser o autor desta maravilha, é fundamental. Mas para viver bem, creio, é preciso admitir plenamente nossas invejas.
Samarone.
**

Para viver bem, é preciso chegar aos trinta anos com a satisfação de se ter permitido todas as loucuras imagináveis na juventude. Principalmente no capítulo mulheres. E só freqüentar os amigos que suportam os nossos defeitos.

Recomenda-se também uma boa gargalhada, a sós, no momento de se erguer da cama: “Quanta bobagem tenho feito neste mundo! Quá, quá, quá!” A serenidade imperturbável conduz ao fanatismo, e este dá câncer.

Nenhuma preocupação burguesa ou pequeno-burguesa, como por exemplo o medo de perder o emprego ou os bens; nenhuma ambição material, fora as indispensáveis (casa, comida, roupa lavada), ou então que seja gratuita: juntar dinheiro para algum dia comprar um iate ou passar dois anos zanzando pela Europa.

Nunca ferir uma mulher a ponto de fazer-se odiado por ela. O homem inteligente é o que sabe transformar antigos amores em sólidas amizades.

Estar sempre em condições morais de perder tudo e recomeçar tudo outra vez. Interessar-se por tudo, principalmente por aquilo que não nos diz respeito.

Amar apenas uma mulher de cada vez.

Dizer sempre a verdade, seja qual for e doa a quem doer.

Conhecer um por um os nossos defeitos, curar-se dos que não são naturais e cultivar aqueles que mais nos agradam.

Evitar ao máximo o paletó e a gravata, os chatos que falam ao ouvido, as mulheres que resolvem tudo pelo telefone, os bêbados que mudam de personalidade quando lúcidos, os vizinhos muito prestativos e todo papo do qual participem mais de três pessoas.

Longa caminhada solitária pelo menos uma vez por semana.

Não discutir preços – é melhor ir embora sem comprar.

Não guardar ódio a ninguém. Dormir oito horas e, acordando, continuar na cama enquanto puder. Recusar-se terminantemente a beber uísque que não seja escocês legítimo, preferindo a cachaça como alternativa. (Isto vale apenas para quem gosta de beber e bebe frequentemente, como é o caso do autor desta receita. Neste caso, a aceitação de qualquer bebida é moralmente inquietante, pois atravessa a fronteira que separa o prazer do vício.)

Ser condescendente com o comportamento sexual dos outros. Tentar compreender cada pessoa, evitando julgá-la. Saber exatamente o momento em que os amigos gostariam de estar a sós. Ter caráter bastante para reconhecer as qualidades positivas de um eventual inimigo.

Treinar, como quem faz ginástica, para ser sinceramente modesto. Saber contar com irreverência histórias em que faz papel de bobo, e que tenham acontecido realmente.

Viver tão intensamente que possa dizer à morte, quando vier: “Já veio tarde.”

Carlinhos Oliveira
Revista Manchete, 29.10.1966

Para Fabão, meu amigo baiano, que vira balzaquiano hoje.

terça-feira, 29 de novembro de 2005

Coisas que um sujeito faz para sobreviver...

Uma leitora pegou o livro “Estuário” e viu na orelha que eu já tinha trabalhado como autor de relatos eróticos para uma revista em São Paulo. Quis saber se foi verdade, e eu já confirmei. Sim, amiga, um sujeito faz muitas coisas nessa vida para sobreviver, e meu amigo Gustavo acompanhou essa história de perto. Ele riu muito com a aventura literária-sexual. Então vamos a ela.

Era o começo de 2000, e tinha acabado minha última fonte de renda, uma bolsa da Fundação Ford. Tinha viajado um bocado, ficara longos períodos no Chile, pesquisando para escrever Clamor, meu trabalho de mestrado, acabei participando de um congresso nos Estados Unidos, de formas que voltei para casa, depois de muitas viagens, liso como um gambá. Não sei se gambá é liso, mas a frase fica boa assim.

Tinha que terminar o trabalho de mestrado, não queria voltar a trabalhar em redação de jornal ou revista, meu amigo Gustavo garantiu o aluguel e o “de comer”, mas não daria para terminar o mestrado sem um tostão no bolso. Foi então que me ocorreu perguntar ao meu amigo Guilherme Salgado, botafoguense ilustre, se ele não conseguia um quebra-galho na editora que em ele fazia bicos. A editora só trabalhava com revista pornográfica. Pornográfica não, era putaria mesmo, com o pê maiúsculo.

No dia seguinte, Guilherme me telefonou.

“Tu topa escrever relatos eróticos?”

“Nunca escrevi isso”, respondi.

“Aprende”.

Fui à tal editora, um casarão encravado num bairro nobre. O dono da empresa me recebeu numa sala luxuosa, perguntou se eu trabalhava no ramo, respondi que não, mas que podia aprender a trabalhar no ramo, desde que não precisasse participar das histórias. Ele me resumiu o problema todo. A revista publicava as cartas dos leitores com relatos de suas sacanagens, mas era difícil chegar um texto razoavelmente bem escrito, pronto para publicação.

“Tem cara que não diz nem como conheceu a mulher, e já está tirando a roupa dela”.

Me deu umas dez revistas e uma tuia de carta, umas 30, acho. “Vê aí as expressões que a turma usa”. Eu ganharia R$ 30,00 por relato. O trabalho era ler as cartas e transformar tudo em coisa legível. "O que não der para aproveitar, inventa uma boa história", pediu ele. Antes de sair da sala, a advertência.

“Olhe, tinha uma mulher que fazia esse trabalho e era muito competente, mas teve que sair. Depois, contratamos um escritor, mas não deu certo, porque ele queria fazer literatura”.

Me olhou bem sério e completou:

“Não queremos literatura. O negócio é sacanagem”.

Caramba, voltei para casa lendo as histórias. Eu nunca fui nenhum coroinha, mas era cada relato mais exagerado que o outro. Falei para meu amigo Gustavo a história, ele bolou de rir.

Naquela liseira toda, não me restou outra alternativa. Sentei, li todas as cartas dos leitores, li as revistas, fiz um glossário pra lá de imoral e mandei brasa. Varei a noite contando histórias de neguinho que comia gente em tudo que era lugar do Brasil, as cartas inclusive dariam um ótimo estudo sobre o imaginário sexual do brasileiro.

No dia seguinte, estava com dez histórias prontas. Eu só pensava era nos 300 contos que poderia ganhar, para sair da pindaíba. Gustavo olhou algumas. Só fazia rir da cena toda, o velho Jacaré. O dono da editora mandou um motoboy buscar o disquete. Fiquei aguardando, nervosíssimo. Será que eu tinha exagerado? Será que não escrevi coisas muito cruas? Lá pelas tantas, tocou meu bip (sim, esse objeto de comunicação já existiu), com a mensagem:

“Ligar para a editora”.

Liguei. O editor estava eufórico.

“Rapaz, do caralho. Muito bom, muito bom mesmo. Tem certeza que nunca trabalhou no ramo?”
“Não”, respondi. “Eu só estou é muito liso e fiz o que tu pediu”.

Depositou o dinheiro no mesmo dia e mandou mais uns 50 relatos. Paguei a conta de Nabuel, o bar defronte, e acho que fiz alguma farra com Gustavo.

Durante alguns meses, a minha reta final em São Paulo, esse foi o ganha-pão. De manhã cuidava da dissertação de mestrado. À tarde, lia as histórias de sacanagem de um Brasil meio desdentado mas cheio de tesão, e transformava tudo em histórias com início, meio e fim. A revista se chamava “Brazil”, com "z" mesmo, e vendia como água. Outro dia vi numa banca do Recife. Teve tudo o que o ser humano possa imaginar no aspecto da sexualidade. É cada lapa de doidice, que eu vou dizer.

Com o dinheiro, consegui sobreviver, comprei a passagem de volta para o Recife, e sobrevivi bem, até chegar o primeiro salário da Universidade Católica. O editor queria que eu continuasse, mas pendurei as chuteiras.

Acho que escrevi uns 100 relatos. Estão todas arquivadas no meu computador. São totalmente impublicáveis. Se lessem, os leitores deste blog não me chamariam nem de safado, mas de tarado. São essas coisas que a gente faz na vida para sobreviver.

Tem a história do dia em que assinei TV a cabo, mas não tinha TV em casa (para instalar o cabo, lógico) e de como ganhei o visto para ir aos Estados Unidos mesmo estando desempregado, com o nome no Serasa, mais liso que o porteiro consulado dos Estados Unidos. Qualquer dia escrevo. São histórias divertidas, para a gente relaxar um pouco.

(Para o Guilherme Salgado, o maior botafoguense que pode existir no globo terrestre).

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

Um taxista e suas teorias

Não sei o que aconteceu esta semana, deve ser o efeito estufa botando pra gerar, porque senti o maior calor da história do Recife. Eu almoçava com o Inácio na Casa do Estudante (R$ 3,50 por cabeça e bem gostosinho), saía andando pelo Derby até a parada de ônibus, isso lá pelas 13h33, e o sol vinha rachando tudo. Cada passo, um grau célsio a mais no organismo. Na parada de ônibus, do lado do sol, todo mundo era suor puro, dava um desamparo tão grande, uma fraqueza no sentimento, que surgia até uma vontade de chorar. Descia na 17 de Agosto, e para vir caminhando até o Poço, era tudo um deserto quente, árido, eterno e infinito. Quando chegava em casa e ligava o ventilador, o paraíso tinha um nome: Britânia, ligado no três.

Pois bem. Na quarta-feira, olhei para os dois lados e pensei. Vou deixar de pirangagem. Mesmo liso, decidi que voltaria de táxi para casa. Chega de sofrimento! Arre! Dois livros publicados, um mestrado, campeão estadual pelo Santa Cruz, e sofrendo mais que retirante! Decretei a independência. Estendi gloriosamente a mão para o táxi. O carro parou. Não me arrependi, porque gastei R$ 11,20 e cheguei em casa menos cansado, menos suado, menos tudo.

Mas, como ninguém é de ferro, descolei uma historinha para compartilhar com meus leitores.

Eu, quando ando de táxi, vou logo puxando assunto com o motorista, porque acho um saco aquele negócio de cada um na sua. Eu gosto muito de conversar com os amigos, mas conversar com desconhecido, isso é que é bom mesmo, porque tudo é surpresa e a gente nunca sabe o que está por vir, cada ser humano é um grande mistério mesmo. Um dia, eu quase desci do táxi porque puxei assunto três vezes, e o camarada era monossilábico. Um chato, aquele cabra. Não desci por pura preguiça. Em sinal de protesto, vim cochilando o restante da viagem.

Mas na quarta-feira, o taxista que me trouxe era também um exagero. Fiz uma simples pergunta, um comentário sobre o calor, sobre o jogo do Santa Cruz no sábado, e o camarada soltou o verbo. Veio falando do Derby ao Poço da Panela. Conversou R$ 11,20, na bandeira 1. Teve um momento que não resisti. Peguei o bloquinho e anotei: “Um taxista e suas teorias”.

Primeiro, ele serviu ao Exército durante um ano, e só aprendeu duas coisas: matar gente e recolher corpo. “Ah, a gente faz amizade também”, completou. Ainda bem. Fui informado que qualquer país, até o Paraguai, pode invadir o Brasil, porque nossas armas são obsoletas e ninguém sabe nada de guerra.

“É só isso o que a gente aprende no quartel: matar gente e recolher o corpo. Não tem nada de cultura”.

Por sua vasta experiência em quartéis, ele defende a tese que os oficiais, ao invés de ficarem jogando dominó, porrinha, totó, baralho, deveriam assumir as crianças de rua do Recife (que, segundo ele, “não passam de 300”). Cada oficial seria um tutor.

“Está na rua? Então pega. Se está na rua é da nação”.

Nunca mais eu tinha escutado esta palavra, nação.

Ele disse que em várias outras cidades, não tem essa tuia de menino de rua nos sinais.

“Só no Recife tem essa fuleiragem”, completou. Caramba, outra palavra que eu não escutava há muitos anos. Fuleiragem. Acabei de olhar no Aurélio, tem sim.

A idéia do taxista é simples. Como tem gente ganhando um bom salário, sem ter guerra com nehum país (ele não citou nossa guerra civil interna), se não há estratégia nenhuma, se os norte-americanos ainda não cismaram de invadir a Amazônia, o Exército deveria cuidar das crianças de rua do Recife. Ele disse que são 300, e conhece todas. Eu não concordei nem discordei, eu só queria saber onde ele iria chegar.

Ele foi chegando. Disse que os galpões lá do Recife Antigo deveriam ser arrumados (não sei quem faria isso, se a Prefeitura ou o Governo do Estado), para abrigar os mendigos. Detalhe: a partir das 22h, todo mundo já recolhido, banhado e cheiroso, para dormir.

“A cidade ia ficar mais limpa”, assinalou. É cada lapa de doido nessa cidade, pensei.

Ele acha que é preciso mais ordem. Parece que foi assim que o Hitler começou, com esse negócio de limpeza, ordem.

“É um alisado da porra com esse pessoal”, justificou meu colega de trânsito. Pelo que ele vinha falando, o "pessoal" eram os meninos de rua e os mendigos.

Depois ele passou para a questão sexual, com a lapidar frase:

“Eu nunca escutei falar que existe um ex-gay”.

Rapaz, tudo bem que eu gosto de conversar com taxista, mas o camarada também não me deixava respirar. Tinha começado com o Exército desocupado, passou para os mendigos e agora entrava nos temas sexuais. Ele começou com a temática gay, mas não desenvolveu. Saiu falando de suas peripécias com as mulheres, e parece que eram muitas. É casado, tem dois filhos, mas não acredita nesse negócio de camisinha.

“Isso de camisinha não existe, tá ligado? Até hoje, tenho 43 anos, nunca usei camisinha. Facilitou, eu atolo o pé”.

O sujeito falava mais que o homem da cobra. Eu, por minha vez, não tinha tempo nem de dizer um ran ran. Esqueci até de olhar para o taxímetro, para ver o tamanho da bronca. Lá perto do Hiper de Casa Forte, ele parou ao lado de uma praça, que estava com uns cinco vendedores de CD pirateados. Ele olhou e me cutucou:

“Tás vendo? Os caras estão vendendo CD pirateados, tudo bem, eles precisam sobreviver. Agora me diga: eles precisam ocupar a calçada toda?”.

Caralho, que cara arengueiro!

Ele saiu falando que o País não investe em educação, que as escolas do Estado são todas umas tapeações, que não existe preocupação com o “futuro da Nação”, e neste momento, lembrei do Legião Urbana. Já perto da minha casa, ele arrematou:

“Não querem nada de cultura para o povo. Querem a população cada vez mais analfabeta e burra”.

Pela primeira vez, concordei. Desci, paguei meus R$ 11,20 mas esqueci de anotar a placa do carro, para jogar na milhar.

Faz mal não, ganhei uma pequena crônica, nesses dias de tanto calor. Liguei o ventilador no três e dei vivas à Britânia.

ps. o editor deste blog só poderá escrever algo decente amanhã. É que o seu clube, o Santa Cruz, classificou-se ontem para a Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro. É cachaça até umas horas...

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

"Se é para fingir que vivemos em uma democracia, vamos fingir direito"

Está na capa dos jornais de hoje, no Recife, a foto do comandante do Batalhão de Choque da Polícia Militar, o famoso Coronel Luiz Meira, dando uma gravata em um estudante, que leva a bandeira azul da União Nacional dos Estudantes (UNE). Quantas coisas são ditas, em apenas uma imagem: um jovem dominado pela garganta (de onde sai a voz, a indignação e a revolta), e a expressão transtornada de um coronel (com a boca torta, que range de raiva). Ah, mas quanto ódio desperta na PM de Pernambuco o movimento dos estudantes, dos moços, os Sem-Terra, os Sem-Teto, os Sem-Nada, que só estão esperneando minimamente, no legítimo direito de lutar, de protestar, de tomar as ruas...

É preciso ser meio de pedra, para não sentir raiva dessa polícia daqui, conhecida pela truculência com que enfrenta os movimentos sociais (é só na base da porrada, gás lacrimogênio e spray de pimenta), e famosa pela incompetência em lidar com a criminalidade (que lhe dá um banho de competência, todos os dias, e nós pagamos o pato).

Nessas manifestações, teve vidro de ônibus quebrado, teve exagero sim, mas nem de perto lembrou aquela revolta na França, onde a moçada botou pra quebrar, e incendiou uns 6 mil veículos. Não havia, nas ruas do Recife, um movimento articulado de vandalismo, é sempre aquele negócio de gente que se exalta, enfim. Aqueles carros incendiados na França me dizem muito do que está sendo gestado nos subúrbios das grandes cidades do primeiro mundo, e do que pode estar vindo aí, da periferia do terceiro ou quarto mundo, que é a periferia do Recife.

A impressão que tive, na segunda-feira, quando passei pela avenida Agamenom Magalhães, foi a de que um Batalhão do Ódio partia para cima dos rapazes e moças. Eu nem olhei muito, para não adoecer a alma. São as mesmas cenas que vejo nos estádios, nos acampamentos dos Sem Terra. Os caras batem, e batem bem, com raiva, em todo mundo. Sugiro inclusive a mudança do nome: de Batalhão de Choque para Batalhão de Ódio. Teve de tudo. Prisões arbitrárias, espancamentos, recolhimento de jovens em um quartel (com identificação no próprio quartel).

“A ordem era: teve baderna, a gente mete porrada, se não teve, a gente mete porrada para prevenir”, disse um PM ao jornal Diário de Pernambuco de hoje.

Precisa dizer alguma coisa, depois de um depoimento desse?

O relato da Ana Paula, estudante de Jornalismo (www.aostraeovento.blogspot.com), vale por muitas matérias publicadas nos últimos dias, que tratam os estudantes somente como “baderneiros” e “vândalos”, como se ali não estivessem ali os que sofrem calados ou resignados, fora os que não têm coragem de jogar uma pedra, quebrar um vidro, queimar um carro.

Encerro com uma frase da Ana Paula, quando ela pede que coisas desse tipo não continuem a acontecer.

“Se é para fingir que estamos em uma democracia, vamos fingir direito”.

E de pensar que o governador, Jarbas Vasconcelos, foi, longo tempo atrás, defensor das liberdades democráticas...

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

"O desconhecido é nosso bem" - parte final da entrevista com o poeta Rainer Maria Rilke

Somente ao entardecer desta segunda-feira (e me parece que o entardecer é um ótimo horário para encontrar poetas), reencontrei o meu querido Rainer Maria Rilke, no mesmo lugar da conversa anterior - ali num box do mercado de Casa Amarela.

Ele me pareceu ainda mais cansado do que no dia anterior. Seu semblante me passou uma impressão contraditória. Por mais que visse tristeza em seus olhos, exalava de sua alma uma certeza de que a vida estava em sua forma mais inteira, como se ele soubesse arrancar pontos de luz em sua escuridão mais profunda. Seu rosto transmitia uma bondade generosa, uma tranqüilidade que fazia da pressa, qualquer pressa, quase um desregramento dos sentidos.

Estava em silêncio, quando cheguei e o saudei. Usava um terno simples, puido, com aquele elegância sóbria que se reflete em seus poemas. Ele abriu um sorriso tímido, ofereceu-me a cadeira e fechou seu caderno, em sinal de respeito. Eu, por outro lado, abri meu caderno, também em sinal de respeito. Não poderia conversar com ele, talvez pela última vez, sem tomar notas para compartilhar com os meus leitores. Foi assim nossa última conversa.

Eu: Perdão pela intromissão, mas há algo de triste em teu semblante...
Rilke: Verias também a tristeza como algo negativo para a alma?

Eu: Não. Trata-se apenas de um comentário.
Rilke: Quase todas as nossas tristezas são, acredito, estados de tensão que experimentamos como que tolhidos, assustados por já não nos sentirmos viver. Pelejamos como se lutássemos com uma corrente de que tivéssemos de suportar as ondas. A tristeza também é uma onda. O desconhecido uniu-se a nós, penetrou no âmago do nosso coração, e já nem sequer está no nosso sangue, pois se mesclou com o nosso sangue e assim ignoramos o que se passou.

Eu: E como enfrentá-la?
Rilke: Quanto mais silenciosos, pacientes e recolhidos formos nas nossas melancolias, de forma mais eficaz o desconhecido penetrará em nós. O desconhecido é o nosso bem. Metamorfoseia-se na carne do nosso destino, ligando-nos a este quando foge de nós para se realizar, isto é, para se projetar no cosmo. E é preciso que assim seja. É preciso – e é nisto que consiste a nossa evolução – que jamais encontraremos nada que não nos pertença há muito tempo.

(Ele abriu o caderno, buscou entres as folhas algum poema e começou a recitar, de forma muito mansa, quase num sussurro)

“As folhas caem como se do alto
caíssem, murchas, dos jardins do céu;
caem com gestos de quem renuncia.

E a terra, só, na noite de cobalto,
Cai de entres os astros na amplidão vazia.
Caímos todos nós. Cai esta mão.
Olha em redor: cair é a lei geral.

E a terna mão de Alguém colhe, afinal,
Todas as coisas que vão caindo”.

Eu: E para quem quer escrever, como eu, quem peleja com a escrita, o que o senhor sugere?
Rilke: Uso uma velha expressão que cunhei há muitos anos – “Levar a termo e dar à luz” – eis tudo. É necessário deixar cada impressão, cada germe de sentimento, amadurecer em si, na treva, no inexprimível, no inconsciente – essas regiões herméticas ao entendimento. Espere com humildade e paciência a alvorada de uma nova luz.

Eu: O tempo, neste caso, se conta de outra forma...
Rilke: O tempo, neste caso, não é uma medida. Um ano não conta, dez anos não representam nada. Ser artista não significa contar, é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e resiste, serena, aos grandes ventos da primavera, sem temer que o verão possa não vir. O verão há de vir. Mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão sossegados como se tivessem na frente a eternidade.

Ele me olhou com atenção e falou quase como quem recita um mantra:

Aprendo todos os dias, à custa de sofrimentos que abençôo: a paciência é tudo.

Eu: Que conselhos terias a mais para quem segue pela vida, em busca de encontros mais profundos com a humanidade?
Rilke: Alegre-se da sua marcha em frente: ninguém poderá acompanhá-lo. Seja bom para os que ficarem atrás, senhor de si e tranqüilo perante eles. Não os atormente com suas dúvidas; não os assuste com a sua crença, com o seu entusiasmo, porque não poderiam entende-lo. Procure comungar com eles na simplicidade e na fidelidade: esta comunhão que não tem necessariamente de passar pelas mesmas metamorfoses por que passa a sua alma. Seja tolerante para aqueles a quem a idade faz temer essa solidão a que se abandona. Evite alimentar o drama sempre pendente entre pais e filhos, esse drama que exaure a força dos filhos e cansa o amor dos velhos, que não precisa de compreender para agir e para esquecer. Não lhes peça conselho. Renuncie a que o compreendam. Acredite somente nesse amor que lhe pertence como um bem de raiz. Tenha a convicção de que há nesse amor uma força, uma bênção que podem segui-lo tão longe quanto seus passos o levarem.

(Eu já não tinha mais condição alguma de comentar nada, diante daquela jorro de palavras e belezas, ditas de uma forma tão calma, quase como se estivessem tatuadas em sua alma. Ele me olhou, já como que se despede, e completou):

Quanto ao resto, tenha confiança na vida. Creia, a vida tem sempre razão.

Depois, segui-se um longo silêncio. A tardinha começava a migrar para a noite, em Casa Amarela. Ele bebeu o que restava do seu conhaque, pegou no meu braço direito e disse, como uma profecia:

“Seja alegre e tenha fé”.

E então partiu, com seu passo silencioso, e o vento da tarde assanhou levemente seus cabelos e espalhou folhas na calçada. Então percebi, ali, que nunca mais encontraria o senhor Rainer Maria Rilke em Casa Amarela. Então peguei o pequeno livro dele, "Cartas a um Jovem Poeta", e comecei a ler novamente, e me pareceu que tudo o que ele tinha dito, estava no livro. Então fiquei na dúvida se tivemos ou não este encontro, se foi apenas um sonho imenso e muito real, se tudo não passou da minha imaginação.

Voltei para casa sem querer definir isso claramente, e a frase ficou reverberando aqui comigo:

"O desconhecido é nosso bem".

sábado, 19 de novembro de 2005

Entrevista com o poeta Rainer Maria Rilke - Parte I

Encontrei ontem, ao final da tarde, com o poeta alemão Riner Maria Rilke. Ele estava sentadinho, numa mesa do mercado de Casa Amarela, com aquele seu bigode bem assentado num rosto que me pareceu suave, apesar de marcado por golpes da vida. As sobrancelhas eram mansas e seu olhar exalava uma perplexidade feliz, diante daquele movimento intenso no mercado.

Ele bebericava um conhaque, e não tive a ousadia de interroga-lo sobre a marca, porque cada um com seu cada qual. Como ficamos bem próximos, vi que ele anotava pequenas coisas em um caderno grosso, sempre pontuando as anotações por silenciosas e demoradas pausas. Eu também comecei a tomar notas esparsas, para completar o primeiro volume da minha coleção “Divagações e inutilidades”.

Lá pelas tantas, nos falamos sobre algo que não lembro, talvez um comentário sobre o calor, essas coisas que iniciam conversas. Ele perguntou se eu escrevia poemas, respondi que sim, mas para guarda-las em minhas gavetas, porque a poesia não poderia ser ferida pela indelicadeza da escrita ruim. Ele abriu um sorriso e me chamou para sua mesa. Depois de muitos conhaques, já com a tarde trespassando para a noite, perguntei se podia fazer uma entrevista para um blog na Internet. O Rilke me abriu um sorriso e disse que não tinha muito a dizer. Mesmo assim, me respondeu às seguintes perguntas:

Eu: O Senhor diz, em seus escritos, que a gente deve preferir o difícil. Nos dias de hoje, é um contra-senso, porque as pessoas querem cada vez mais o amor fácil, não querem enfrentar a dificuldade de construir coisas coletivas, enfim. Continuas a pensar assim, depois de tantos anos?

Rilke: Primeiro, faça-me o favor de não me chamar de senhor. Somos iguais, nesta grande aventura da humanidade. Respondendo à tua pergunta, diria que os homens possuem, para todas as coisas, soluções fáceis e convencionais, as mais fáceis das soluções fáceis. Entretanto, é evidente que sempre se deve preferir o difícil: tudo o que vive lá cabe. Cada ser se desenvolve e se defende à sua maneira e tira de si próprio, a todo o custo e contra todos os empecilhos, essa forma única que é a sua. Conhecemos muito poucas coisas, mas a certeza de que devemos sempre preferir o difícil nunca deve nos abandonar. É bom estar só, porque a solidão é difícil. Se uma coisa é difícil, motivo mais forte para a desejar.

Eu: Você fala sobre isso, naquele seu famoso livro, "Cartas a um jovem poeta", e fala muito sobre as dificuldades da vida, com uma certa tranqüilidade, quase como se tivesse uma certeza antiga de que é este o caminho...
Rilke: Se construirmos a nossa existência sobre o lema de que devemos sempre dar preferência ao mais difícil, tudo o que ainda hoje nos parece singular se tornará familiar e fiel. Como olvidar esses mitos antigos que se encontram no início da história de todos os povos, os mitos dos dragões que, no momento supremo, se transformam em princesas?

(neste momento, Rilke olhou para mim com uma expressão muito serena, e completou)

Todos os dragões da nossa existência são talvez princesas que esperam ver-nos, um dia, belos e audazes. Todas as coisas assustadoras não são mais, talvez, do que coisas indefesas que esperam que as socorramos.

Eu: E no amor, a gente deve ir pelo mais difícil?
Rilke: Amar também é bom, porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais superior testemunho de nós próprios, a obra absoluta em face da qual todas as outras são apenas ensaios. É por isso que os seres bastante novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam aprender.

Eu: É preciso aprender a amar?
Rilke: Sim. O amor é a oportunidade única de sazonar, de adquirir forma, de nos tornarmos um universo para o ser amado. É uma alta exigência, uma cupidez sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelo mais largo dos horizontes. Quando o amor aparece, os novos apenas deveriam enxergar nele o dever de trabalhar em si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos entregarmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles.

Primeiro, é preciso ajuntar muito tempo, acumular um tesouro. Quantos jovens existem que não sabem amar, que se limitam a entregar-se, como sucede habitualmente (e decerto a maioria limitar-se-á sempre a isto), e inclinam-se depois sob o peso do seu erro!

Eu: Amar é algo que vamos mesmo aprendendo durante a vida?
Rilke: Denomino o amor de “uma dura aprendizagem”. Em vez de nos dispersamos em brinquedos fáceis e levianos que permitem que os homens se furtem à seriedade da vida, talvez um progresso sutil, um certo alívio, possa então resultar para aqueles que nos acompanharem, muito tempo ainda depois do nosso trespasse. Isso já seria bastante.

Eu: E qual sua expectativa sobre o futuro do amor?
Rilke: O amor deixará de ser o comércio de um homem e de uma mulher para ser o de duas humanidades. Mais próximo do humano, será infinitamente amável e cheio de atenções, bom e claro em tudo o que realizar ou desfizer. Este será o amor que, combatendo duramente, agora preparamos: duas solidões que se protegem, se completam, se limitam e inclinam uma para a outra.

Os sexos estão talvez mais próximos do que se pensa e talvez seja a chave da grande renovação do universo: o homem e a mulher, libertos de todos os seus erros, de todas as suas dificuldades, não tornarão a procurar-se como contrários, mas como irmãos e como parentes. Unirão suas humanidades para suportar juntos, gravemente, pacientemente, o peso da carne difícil que lhes foi propiciada.

Neste momento, vendo já o poeta Rilke demonstrar um certo cansaço, perguntei se poderíamos continuar no dia seguinte. Ele aceitou, e será a segunda parte desta entrevista, que publicarei segunda-feira, se tudo der certo. Mas gostei muito disso, do "Unirão suas humanidades". Sim, foi uma bela tarde com o poeta. Espero que o segundo encontro seja também cheio de beleza e intensidade como foi o primeiro.

Informo que não o deixei pagar a conta.

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

Cada pessoa é seu próprio rio

Foi ontem de manhã, a caminho do trabalho, no Alto Santa Isabel. Ali no Derby, perto do Hospital da Restauração, subiu o rapaz, de uns 25 anos. Negro, com um boné, sorriso farto. Levava uma caixa cheia de canetas. Foi lá para a frente do ônibus, dizendo bom dia a todos com uma alegria inesperada. O camarada acordou o ônibus inteiro. Todos os pensamentos vagos, todos os problemas que estávamos alimentando, foram desviados para ele, o vendedor de canetas.

Ele começou a falar, e me chamou a atenção pela educação. Chamou todos de senhoras e senhores (a tal questão de gênero), pediu licença para mostrar seu produto (um vendedor de verdade), disse que iria tomar somente alguns segundos da atenção de cada um (o cuidado para não encher os outros com muita conversa). Educadíssimo, falava um português gramaticalmente perfeito, fora a articulação das palavras e a fluidez no discurso.

Fiquei preocupado, porque estava quase na hora de descer, e já não me interessava a caneta, mas o ser humano que estava ali. Queria saber onde tinha nascido, onde vivia, como teve a idéia de vender canetas de três cores, andando pelos ônibus do Recife, se tinha família, se tinha filhos, por qual time torcia, onde tinha estudado.

Mas eu tinha que seguir minha vida, ele tinha seu ofício para ganhar o dia. Só deu tempo comprar uma caneta, que me custou R$ 1,00. Estou aqui, com ela. São três cores, uma para cada estado espiritual em que me encontro.
**

Jorge, meu vizinho que é escultor, de vez em quando me chama para almoçar em sua casa, um casarão aqui no Poço. São sempre almoços calmos, sem pressa, arroz integral, salada, legumes, um peixinho etc. Ele manda brasa na birita, fuma um bocado, mas quando almoça, se alimenta bem.

Outro dia, preparei um rango e chamei meu amigo. Ele veio com Machado de Assis debaixo do braço. Nunca li Machado de Assis nem Eça de Queiróz, que parecem ser gigantes. Mas não me preocupo com isso. Então ele leu o seguinte trecho de "Esaú e Jacó":

"O tempo é um tecido invisivel em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo".

Ele me olhou com os olhos brilhado e completou:

"Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo e acaso do outro".

Nem precisamos sobremesa
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Lucidélia vai se recuperando bem do câncer, estou conseguindo finalmente vender o bar, fui informado ontem à noite que estamos na primavera. Acabou o meu dinheiro, a viagem para Cuba vai ficar para outro tempo, mas estou com aquele estranho e bom sentimento de que a vida está seguindo seu fluxo natural, que cada pessoa é o seu próprio rio.

O meu rio segue graças a essas pérolas que aparecem no cotidiano, essas "ráfagas de felicidade", como diz o chileno Hernán Rivera Letelier. O vendedor de canetas com seu sorriso, o almoço com Jorge, Machado de Assis na sobremesa, a primavera que eu não sabia, o rio que existe em mim, que me banho sempre, e que às vezes fica seco, um fiapo de água, mas depois enche novamente e transborda.

Essas coisas sem objetividade alguma, que tanto me interessam.

terça-feira, 15 de novembro de 2005

O triunfo da delicadeza

Urgente, vá ao cinema. Eu não sou crítico de cinema, não entendo de linguagem cinematográfica, não sei nada de enquadramento, penso em escrever roteiros para curtas brevemente, mas sugiro: desmarque o dentista, a cárie segura até amanhã. Cancele a reunião no condomínio, arranje um atestado médico, a instituição que mais funciona no Brasil. Deixe o bar para depois do filme. Vá sem falta ao cinema, assistir “Cinema, aspirina e urubus”, dirigido por Marcelo Gomes.

A história é simples e reproduzo o que saiu no Diário de Pernambuco, sexta-feira:

“No sertão pernambucano de 1942, um alemão, fugindo da guerra e desbravando o Brasil vendendo remédios, e um nordestino, que sonha em morar no Rio de Janeiro, travam uma relação de amizade”.

Fui à sessão das 20h40, no Cine Boa Vista, que sai mais barato (R$ 11,00). Eu, adoro trailler, fiquei impressionado. Passaram uns oito, pensei até que teríamos uma sessão só de trailler, o que também seria demais. Pois bem. Era tudo filme norte-americano, e os personagens engatilharam umas 30 armas, só para começo de conversa. Foi bala até umas horas. Eita povinho pra gostar de desgraça, meu deus!

Depois de tanta bala e arma, entra na tela a história do alemão, que fugiu da guerra, e viaja pelo Brasil, vendendo Aspirina, essa mesma que todo mundo consome hoje como se fosse água. Lá pelas tantas, o alemão, Johan, conhece o Ranulpho, que sonha em morar no Rio de Janeiro. Da carona, vai surgindo a amizade. E a amizade entre os dois segue prendendo a gente do começo ao fim. Tudo de um jeito delicado, com dois atores simplesmente irretocáveis.

Aviso logo que quem for nordestino e estiver longe de casa, vai se rasgar todo de saudades. O Ranulpho rouba a cena, é um personagem maravilhoso, com seu azedume, sua perspicácia, seus olhares reveladores, seu jeito de falar e se relacionar com o mundo. “Ô seu menino”, diz ele, para chamar um desconhecido. “Sai, tristeza”, fala ele com o alemão, quando está irritado. “Bicho cabuloso”, repete em algum momento.

A amizade entre os dois é construída de uma forma tão delicada e engenhosa, que é impossível não se envolver e emocionar com as duas criaturas. Na verdade, dois mundos acabam dialogando pelos caminhos intermináveis da amizade, em pleno sertão nordestino. Um alemão, que fugiu do seu país porque não queria matar ninguém, e um sertanejo, que fica com os olhos brilhando, quando fala no Rio de Janeiro, e vive esculhambando sua terra, “esse buraco”, “esse fim de mundo”, “esse lugar que nem guerra chega”.

Lembro com especial carinho de duas cenas: Numa delas, o alemão diz que guardou dinheiro por tanto tempo, e agora, não servia de nada. Ele resolve fazer uma grande farra com seu amigo. O motivo?

“Vou comemorar a vida”, diz.

O Ranulpho, por sua vez, toma uma decisão ou fala algo que não me lembro. Era algo que fugia completamente do seu jeito de ser. O alemão questiona a decisão, e o sertanejo responde, na lata:

“Eu mudei. Pode não, é?”

Amizade, comemorar a vida, as mudanças que uma pessoa acaba gerando na outra, por mais diferente que sejam os mundos, essas coisas bestas que o mundo tem perdido, e que um cineasta foi encontrar no calor e na aridez do Sertão.

Não sei escrever sobre cinema, que a Luciana Veras não me leia. Sei apenas quando tem um belo filme passando na cidade. Então, me sinto na obrigação de sugerir. Por sinal, só fui hoje ao cinema porque li um texto lindo da Luciana, na mesma edição do Diário. Em algum momento do belo texto, ela fala do “triunfo da delicadeza”, que acabou sendo o título desta breve crônica.

É só isso: O triunfo da delicadeza, com tanto filme cabuloso em cartaz.

segunda-feira, 14 de novembro de 2005

Pequenos mistérios

Olho aqui uma foto que tenho na época em que trabalhei no Diário de Pernambuco, em 1993/1994. Estou saindo da redação com uma pauta na mão, com um sorrisão imenso, usando uma camisa que não sei mais onde está, eu acho sempre um mistério esse: saber onde foram parar as roupas que nos acompanharam durante tanto tempo.

Lembro que uma vez eu e meu irmão abrimos um baú lá em casa, e encontramos umas camisas lindas, com gola, de clubes de futebol de salão que meu pai tinha jogado. Então, descobrimos que ele tinha sido um grande jogador, na época em que o Crato assombrava os clubes do sul com times que eram verdadeiras máquinas. Era o comecinho dos anos 70.

Passamos a usar as tais camisas do baú, e os amigos ficaram loucos, querendo saber onde tínhamos conseguido aquilo. Por muito tempo, usamos essas camisas, que eram relíquias do meu pai, até que elas foram rasgando, se perdendo, e nada mais restou, apenas a lembrança.

Então fica o primeiro mistério: por que as camisas dos clubes dos anos 70 eram tão lindas, todo mundo adora, e não fabricam mais? A beleza tem que ser coisa do passado?

Outro grande mistério que me intriga há muitos anos é o seguinte: por que o poder é tão destruidor?

Não sei o que é, mas algo no poder destrói muitas vidas, e desconfio que muita gente seria mais feliz se tivesse (ou desejasse) menos poder. Poder não, mas o desejo dele, o objetivo do poder, sustentando a vida. O sujeito, para ser governador, deveria a princípio não desejar ser governador, mas ir chegando, naturalmente, ao cargo.

Não sei se é uma coisa muito pessoal, mas na época em que trabalhei em redação de jornal, eu nunca quis ser editor, que ganhava bem melhor e tinha poder. Eu gostava mesmo era de ir à rua, escrever, ver a matéria publicada e sentir que tinha feito algo bacana. O editor tinha o poder dele, mas eu fazia o que mais gostava, que é mesmo o grande poder.

Mais um mistério: por que as pessoas brigam tanto?

Basta olhar o trânsito, para ver que as pessoas estão brigando por segundos. Se alguém está saindo da garagem e você para, para que a pessoa tenha tempo de sair, alguém atrás buzina feito louco. Mas se ele estivesse na garagem, diria: nossa, que pessoa gentil, me dando uma colher de chá em plena manhã de segunda feira!

Tive um bar defronte a um colégio de classe média, que é bem bacana, a forma de educar é cheia de coisas bonitas, as crianças estão realmente tendo uma chance maravilhosa de serem pessoas doces, educadas, de cultivarem inteligências e talentos. Mas nem queira estar na porta da escola ao final de cada turno. Os pais fazem da buzina armas poderosas, estão sempre berrando com suas buzinas, e acho que a escola bem que poderia chamar os pais para um workshop sobre “como pegar seu filho na escola sem fazer um escândalo”. Pior: quanto maior e mais luxuoso o carrão, menor a paciência. Será que esperar no ar-condicionado com um carrão luxuoso cansa?

Vai a minha sugestão para hoje: saia dez minutos mais cedo, e faça gentilezas com todo mundo no trânsito.

Outro mistério: por que tiraram a Fanta Uva do mercado?

É questão pessoal mesmo, perdoem. Eu adorava Fanta Uva e Grapette. “Quem bebe Grapette, repete”, era a propaganda.

Mistério número cinco: por que quase não tem mais circo visitando as cidades?

Tudo bem, teve um festival de circo aqui no Recife, coisa grande, convidados do mundo inteiro, mas a impressão que tenho é que o velho circo, com palhaços mal vestidos e divertidíssimos, com Globo da Morte e domador de leões, acabou. Os circos agora não são mais na periferia, para as pessoas de riso fácil, mas coisas muito gigantescas, para quem tem grana e pode pagar.

Mistério número seis: por que os encontros de ONGs têm que ter a famosa “integração?”

Não sei o motivo, mas tudo que é de encontro de ONGs, de gente que trabalha no terceiro setor, tem que ter uma história de abraços, histórias, confissões, a tal da "integração". Não sei por que as pessoas não podem ir se conhecendo aos pouco, num cafezinho, sem alarde, num sosseguinho básico. Fico pensando nos tímidos, na hora da integração. Eles sofrem, creio.

Sétimo mistério: sumiu das prateleiras as geléias de mocotó Colombo. Francamente, a vida ficou mais difícil sem as tais geléias, e seus copinhos admiráveis.

As cartas postadas e escritas à mão, cadê? Não, aí não tem mistério, é o e-mail mesmo, ocupando todos os espaços. É a pressa com algumas perfeições, mas semana passada recebi uma carta do meu irmão, e adorei.

Mistério nove: por que as comissárias de vôo andam tão enjoadas?

Não sei o que é, mas há dez anos, as comissárias de vôo eram umas deusas, delicadíssimas, amorosas, que nos amparavam de qualquer medo. O sujeito estava com medo da altura, elas abriam aquele sorriso, quase nos colocavam no colo, e tudo ficava ao pé do chão, parecia que estávamos num carrinho de roliman. Hoje, elas são duras, bravas, se você não pegar logo o sanduba, perde o rango, e quando elas mandam botar a cadeira na posição vertical, você tem que obedecer rápido, sob o risco de levar um cascudo.

Décimo mistério: por que essa fantasia em torno da velhice?

Eu não entendo. Chamar a pessoa de velha, para mim, é um elogio. “Velho” é uma palavra muito mais digna e bonita do que essa invenção amena da “terceira idade”. Pior: agora, inventaram o troço da “boa idade”. De quantas idades é feita uma pessoa? Quantos anos envelheci desde que cheguei ao Recife, em 2000? Quantos jovens envelhecidos no espírito não conheci? Quantos velhos amargos não estão por ai? Por que o sujeito que nunca dançou na vida tem que começar a dançar, depois de velho, numa nostalgia pálida do que não viveu por uma simples questão de opção? Boa idade pode ser qualquer idade.

Último mistério: o mistério do amor.

Por que, quanto mais você deixa livre a pessoa que você ama, mais ela é fiel ao sentimento, e mais te respeita?

Talvez esse mistério tenha uma mínima resposta, e vem do Humberto Maturana:

“O que é especialmente humano no amor não é o amor, mas o que fazemos no amor enquanto humanos”.

Para encerrar:

"O amor é inimigo da apropriação".

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ps. não deixem de assistir "Cinema, aspirina e urubus", de Marcelo Gomes. Um belo filme.

sexta-feira, 11 de novembro de 2005

Louvação aos que brincam

Outro dia, já chegando na avenida 17 de Agosto, vi dona Fátima, a gerente de organização da minha casa, caminhando em minha direção, com a cabeça baixa, talvez triste. Não tive dúvida: me escondi detrás de uma árvore, esperei um bocadinho ela se aproximar e dei-lhe um baita susto. Ela deu um pulo formidável, pareceu a Daiane dos Santos, e me soltou um carão:

“Ôx, tás doido Samarone? Tu não sabe que eu detesto susto?”

Eu sei que ela detesta susto, mas é que em certos momentos, não resisto à tentação. Levei uns carões, mas depois ela falou do filho que descolou um trabalho e prometeu me levar um suco de maracujá, à tarde. Saiu do susto rindo, e acho que fiz bem. Ela fez o tal suco, que adoro, e vou bebericando enquanto escrevo.

Uma amiga que mora na Inglaterra disse que seria complicado uma brincadeirinha desse tipo em Londres. Estranhariam muito. Creio que seria aquele famoso negócio de “perturbar a ordem pública”. Então eu fiquei pensando como seria difícil, para mim, morar numa cidade assim, tão séria, sem lugar para essas tabacudices essenciais para o bem viver, sem este verbo saborosíssimo: brincar.

Sim, porque apesar das broncas da vida, dos problemas, da falta de esperança nos rumos do País, da violência toda, nós aqui no Recife, brincamos pra caramba. Eu mesmo, posso me denominar um brincalhão, e tenho uma penca de amigos do mesmo tipo.

Brincar com a morte, aqui onde moro, já faz parte da vida, perdoem o trocadilho barato. Outro dia, duas amigas de São Paulo chegaram de viagem (ela se hospedaram aqui umas quatro vezes) e perguntaram pelo Walter, nosso grande amigo e vizinho, o sujeito que inclusive foi o primeiro rei do nosso bloco “Os Barba”.

“Soubesse não?”, completou Nana.

Elas:

“O quê?”.

“Morreu”.

Elas ficaram pálidas, tristes. Eu e Nana entabulamos uma conversa imensa, séria, com semblante triste, falando do problema que levou nosso amigo desta para a pior, e quanto mais mentíamos, mais ficávamos sérios. Por dentro, estávamos dando gargalhadas.

Fomos dormir e esquecemos de desmentir o óbito. Elas amanheceram arrasadas.

“Puxa, não conseguimos dormir pensando no seu Walter”.

“Coisas da vida”, respondi, quase com uma lágrima escorrendo, uma lágrima de cinema.

Quando elas encontraram Walter, à noite, mais vivo que todo mundo, tomaram um susto e ficaram bravas comigo. A brincadeira custou uma noite de sono para elas, mas não deu para resistir. Não sei quantos já matamos, e somente uma vez deu errado. Vamos aos detalhes.

Nosso amigo Severino “barrabás” fora internado às pressas, em um hospital. À noite, nossa turma foi visitá-lo e ele já estava quase recebendo alta. Quando todos retornaram, começou o converseiro. Quem chegava e perguntava por Barrinha, respondíamos quase chorando que ele tinha embarcado, que morreu mesmo, que o enterro seria no dia seguinte, um fuzuê danado. Ficamos nisso até umas 11h da noite, e esquecemos de desmentir.

O fato é que nosso amigo morreu de verdade, acho que umas 9h da noite, de um infarto. Quando começamos a dizer que nosso amigo tinha morrido, todo mundo acho que era brincadeira e somente quando o filho de Barrinha chegou chorando, acreditaram.

Informo que ninguém ficou com remorso de nada. É do espírito de quem brinca, brincar sem culpa.

Brincamos muito no dominó, esse esporte que cada vez me cativa mais, e merece uma boa tese de doutorado, eu queria muito saber quem foi o inventor do dominó, este gênio esquecido da humanidade. Tem gente que fica enfezada, se irrita muito com uma buchuda (uma derrota por 6 x 0), mas o bom do jogo é a brincadeira, aquela encenação toda, os blefes, as artimanhas de cada dupla, que refletem a personalidade de cada um. Quem fica do lado de fora, comentando o jogo, é o famoso “Peru”. Lucidélia, já quase boa do câncer, é a maior “Peru” aqui do Poço. Nunca ouvi ninguém chamar a pessoa de “Perua”.

Ontem mesmo, eu e Guga Mota fizemos um estrago nos adversários, só na base da brincadeira. Ganhamos três partidas seguidas. Me disseram que eu estava jogando muito bem, e me deu vontade de rir, porque eu só demoro a jogar para fazer a munganga mesmo. De dominó eu só entendo que tem que pegar seis pedras e ir jogando, e quando não tem a pedra, o sujeito toca. Sigamos.

Brincamos muito com as crianças. Não sei como é nos outros estados da Federação (incrível, o Brasil é uma Federação), nos demais países e continentes, mas aqui, quando chega um pirralho, vai ter sempre gente brincando, tirando onda, ensinando algo, mostrando o papagaio, ensinando uma palavra ou puxando a sardinha para ver se a criatura torce para o seu time. Fico me perguntando: será que na Croácia é assim? Será que nos Estados Unidos, que meio mundo de gente quer ir morar lá, as pessoas brincam no cotidiano? A impressão que tenho, assim de longe, é que se você botar a mão na cabeça de um pirralho norte-americano, pode rolar um processinho básico por assédio sexual. Botar no colo, então, algemam na hora e mandam para a prisão.

Eu só sei que nossa última brincadeira com Luisa, a adorável Lulu, de um ano e meio, foi ensiná-la a dar tchau com o pé direito. Então, quando alguém dá tchau, ela levanta o pé e fica balançando. Nana também ensinou Lulu a colocar areia no sapato das pessoas, e ela adorou.

Para quem gosta de brincar com crianças, vai a sugestão: aquela brincadeirinha de se esconder e aparecer, por mais patética que seja, faz o maior sucesso.

Brincamos muito com as palavras, isso é mesmo delicioso. Ontem fiquei aqui na venda de Seu Vital, sentado, bebericando uma Brahma e vendo o entardecer, essa coisa que adoro. Fiquei com meu bloquinho, anotando eventuais pérolas e a quantidade de pessoas que entravam na venda. Das 17h40 às 18h, entraram e saíram (lógico) na mercearia, 22 pessoas, para comprar pão, vela, fósforo, cerveja, cana, pirulito, queijo, mortadela, big-big (é antigo ping-pong, não sei porque chiclete tem que ter sempre duas palavinhas). Todo mundo fala com todo mundo, é incrível, e muita gente brinca com desconhecidos. Teve uma hora que a mulher perguntou se tinha pão e Vital respondeu, na lata:

“Você quer só do François Campeux ou do Califórnia também?”

Pelos meus cálculos, François Campeux é o pão doce, e o califórnia, o pãozinho francês. Posso estar equivocado, mas é que de pão eu não entendo quase nada, só entendo que um sujeito com a fama de brabo de seu Vital é um brincalhão de primeira linha, e vive fazendo pérolas com a língua portuguesa. “Lá vem o Capitão Sem Fronteiras”, diz com o filho. “Foi para a Iuguslávia”, diz, quando alguém morreu. A lista é grande.

Nos ônibus do Recife, a coisa mais comum do mundo é encontrar motorista inspirado, que gosta de brincar. Quando o motorista e o cobrador são amigos, prepare-se para a viagem. O ônibus todo acompanha a conversa, e tirar onda é com eles mesmo. Brincam com tudo. Quando para um amigo motorista ao lado, vem “arriação”, como dizemos aqui. Cuidado com a gaia, cadê teu urso, enfim, coisas da vida e dos chifres que ocorrem de vez em quando, e se o cara for levar a sério, endoida.

Fico imaginando os casais que não brincam, que ficam sérios. Eu não suportaria. Lamento muito, mas sem brincar, não dá para amar, eu penso que o amor deve ser uma grande e maravilhosa brincadeira, um passeio de bicicleta num sábado à tarde, como sugeriu outro dia uma criatura adorável. E aqueles casamentos sérios? Quando conheço alguém que tem a fama de ser "sério", já fico amuado. Não sei porque os políticos usam tanto isso em campanha: "Seriedade e competência"; "Um homem sério". Deveriam brincar mais e foder menos a gente.

Penso no sujeito que é sério, que não brinca, que não desarma. Caramba, como eu sofreria, se não pudesse brincar, se não tivesse aprendido a brincar. Pior, se tivesse vergonha de brincar.

Talvez seja por isso que eu goste tanto de uma canção que fala em “Brincar de Viver”, onde diz que ninguém é o centro do universo, assim é maior o prazer.

Informo aos meus distintos leitores que escrever essa crônica de hoje foi uma grande brincadeira, depois de uns dias meio complicados que andei tendo.

E dona Da Luz, uma senhora aposentada, que ganha uma pensão de um salário mínimo, acabou de me avisar que passasse na sua casa lá pelas 11h, para pegar um omelete que ela vai fazer. Vou almoçar omelete com luz, o que não é pouco.

Esta crônica vai para dona Da Luz, claro.