Outro dia, já chegando na avenida 17 de Agosto, vi dona Fátima, a gerente de organização da minha casa, caminhando em minha direção, com a cabeça baixa, talvez triste. Não tive dúvida: me escondi detrás de uma árvore, esperei um bocadinho ela se aproximar e dei-lhe um baita susto. Ela deu um pulo formidável, pareceu a Daiane dos Santos, e me soltou um carão:
“Ôx, tás doido Samarone? Tu não sabe que eu detesto susto?”
Eu sei que ela detesta susto, mas é que em certos momentos, não resisto à tentação. Levei uns carões, mas depois ela falou do filho que descolou um trabalho e prometeu me levar um suco de maracujá, à tarde. Saiu do susto rindo, e acho que fiz bem. Ela fez o tal suco, que adoro, e vou bebericando enquanto escrevo.
Uma amiga que mora na Inglaterra disse que seria complicado uma brincadeirinha desse tipo em Londres. Estranhariam muito. Creio que seria aquele famoso negócio de “perturbar a ordem pública”. Então eu fiquei pensando como seria difícil, para mim, morar numa cidade assim, tão séria, sem lugar para essas tabacudices essenciais para o bem viver, sem este verbo saborosíssimo: brincar.
Sim, porque apesar das broncas da vida, dos problemas, da falta de esperança nos rumos do País, da violência toda, nós aqui no Recife, brincamos pra caramba. Eu mesmo, posso me denominar um brincalhão, e tenho uma penca de amigos do mesmo tipo.
Brincar com a morte, aqui onde moro, já faz parte da vida, perdoem o trocadilho barato. Outro dia, duas amigas de São Paulo chegaram de viagem (ela se hospedaram aqui umas quatro vezes) e perguntaram pelo Walter, nosso grande amigo e vizinho, o sujeito que inclusive foi o primeiro rei do nosso bloco “Os Barba”.
“Soubesse não?”, completou Nana.
Elas:
“O quê?”.
“Morreu”.
Elas ficaram pálidas, tristes. Eu e Nana entabulamos uma conversa imensa, séria, com semblante triste, falando do problema que levou nosso amigo desta para a pior, e quanto mais mentíamos, mais ficávamos sérios. Por dentro, estávamos dando gargalhadas.
Fomos dormir e esquecemos de desmentir o óbito. Elas amanheceram arrasadas.
“Puxa, não conseguimos dormir pensando no seu Walter”.
“Coisas da vida”, respondi, quase com uma lágrima escorrendo, uma lágrima de cinema.
Quando elas encontraram Walter, à noite, mais vivo que todo mundo, tomaram um susto e ficaram bravas comigo. A brincadeira custou uma noite de sono para elas, mas não deu para resistir. Não sei quantos já matamos, e somente uma vez deu errado. Vamos aos detalhes.
Nosso amigo Severino “barrabás” fora internado às pressas, em um hospital. À noite, nossa turma foi visitá-lo e ele já estava quase recebendo alta. Quando todos retornaram, começou o converseiro. Quem chegava e perguntava por Barrinha, respondíamos quase chorando que ele tinha embarcado, que morreu mesmo, que o enterro seria no dia seguinte, um fuzuê danado. Ficamos nisso até umas 11h da noite, e esquecemos de desmentir.
O fato é que nosso amigo morreu de verdade, acho que umas 9h da noite, de um infarto. Quando começamos a dizer que nosso amigo tinha morrido, todo mundo acho que era brincadeira e somente quando o filho de Barrinha chegou chorando, acreditaram.
Informo que ninguém ficou com remorso de nada. É do espírito de quem brinca, brincar sem culpa.
Brincamos muito no dominó, esse esporte que cada vez me cativa mais, e merece uma boa tese de doutorado, eu queria muito saber quem foi o inventor do dominó, este gênio esquecido da humanidade. Tem gente que fica enfezada, se irrita muito com uma buchuda (uma derrota por 6 x 0), mas o bom do jogo é a brincadeira, aquela encenação toda, os blefes, as artimanhas de cada dupla, que refletem a personalidade de cada um. Quem fica do lado de fora, comentando o jogo, é o famoso “Peru”. Lucidélia, já quase boa do câncer, é a maior “Peru” aqui do Poço. Nunca ouvi ninguém chamar a pessoa de “Perua”.
Ontem mesmo, eu e Guga Mota fizemos um estrago nos adversários, só na base da brincadeira. Ganhamos três partidas seguidas. Me disseram que eu estava jogando muito bem, e me deu vontade de rir, porque eu só demoro a jogar para fazer a munganga mesmo. De dominó eu só entendo que tem que pegar seis pedras e ir jogando, e quando não tem a pedra, o sujeito toca. Sigamos.
Brincamos muito com as crianças. Não sei como é nos outros estados da Federação (incrível, o Brasil é uma Federação), nos demais países e continentes, mas aqui, quando chega um pirralho, vai ter sempre gente brincando, tirando onda, ensinando algo, mostrando o papagaio, ensinando uma palavra ou puxando a sardinha para ver se a criatura torce para o seu time. Fico me perguntando: será que na Croácia é assim? Será que nos Estados Unidos, que meio mundo de gente quer ir morar lá, as pessoas brincam no cotidiano? A impressão que tenho, assim de longe, é que se você botar a mão na cabeça de um pirralho norte-americano, pode rolar um processinho básico por assédio sexual. Botar no colo, então, algemam na hora e mandam para a prisão.
Eu só sei que nossa última brincadeira com Luisa, a adorável Lulu, de um ano e meio, foi ensiná-la a dar tchau com o pé direito. Então, quando alguém dá tchau, ela levanta o pé e fica balançando. Nana também ensinou Lulu a colocar areia no sapato das pessoas, e ela adorou.
Para quem gosta de brincar com crianças, vai a sugestão: aquela brincadeirinha de se esconder e aparecer, por mais patética que seja, faz o maior sucesso.
Brincamos muito com as palavras, isso é mesmo delicioso. Ontem fiquei aqui na venda de Seu Vital, sentado, bebericando uma Brahma e vendo o entardecer, essa coisa que adoro. Fiquei com meu bloquinho, anotando eventuais pérolas e a quantidade de pessoas que entravam na venda. Das 17h40 às 18h, entraram e saíram (lógico) na mercearia, 22 pessoas, para comprar pão, vela, fósforo, cerveja, cana, pirulito, queijo, mortadela, big-big (é antigo ping-pong, não sei porque chiclete tem que ter sempre duas palavinhas). Todo mundo fala com todo mundo, é incrível, e muita gente brinca com desconhecidos. Teve uma hora que a mulher perguntou se tinha pão e Vital respondeu, na lata:
“Você quer só do François Campeux ou do Califórnia também?”
Pelos meus cálculos, François Campeux é o pão doce, e o califórnia, o pãozinho francês. Posso estar equivocado, mas é que de pão eu não entendo quase nada, só entendo que um sujeito com a fama de brabo de seu Vital é um brincalhão de primeira linha, e vive fazendo pérolas com a língua portuguesa. “Lá vem o Capitão Sem Fronteiras”, diz com o filho. “Foi para a Iuguslávia”, diz, quando alguém morreu. A lista é grande.
Nos ônibus do Recife, a coisa mais comum do mundo é encontrar motorista inspirado, que gosta de brincar. Quando o motorista e o cobrador são amigos, prepare-se para a viagem. O ônibus todo acompanha a conversa, e tirar onda é com eles mesmo. Brincam com tudo. Quando para um amigo motorista ao lado, vem “arriação”, como dizemos aqui. Cuidado com a gaia, cadê teu urso, enfim, coisas da vida e dos chifres que ocorrem de vez em quando, e se o cara for levar a sério, endoida.
Fico imaginando os casais que não brincam, que ficam sérios. Eu não suportaria. Lamento muito, mas sem brincar, não dá para amar, eu penso que o amor deve ser uma grande e maravilhosa brincadeira, um passeio de bicicleta num sábado à tarde, como sugeriu outro dia uma criatura adorável. E aqueles casamentos sérios? Quando conheço alguém que tem a fama de ser "sério", já fico amuado. Não sei porque os políticos usam tanto isso em campanha: "Seriedade e competência"; "Um homem sério". Deveriam brincar mais e foder menos a gente.
Penso no sujeito que é sério, que não brinca, que não desarma. Caramba, como eu sofreria, se não pudesse brincar, se não tivesse aprendido a brincar. Pior, se tivesse vergonha de brincar.
Talvez seja por isso que eu goste tanto de uma canção que fala em “Brincar de Viver”, onde diz que ninguém é o centro do universo, assim é maior o prazer.
Informo aos meus distintos leitores que escrever essa crônica de hoje foi uma grande brincadeira, depois de uns dias meio complicados que andei tendo.
E dona Da Luz, uma senhora aposentada, que ganha uma pensão de um salário mínimo, acabou de me avisar que passasse na sua casa lá pelas 11h, para pegar um omelete que ela vai fazer. Vou almoçar omelete com luz, o que não é pouco.
Esta crônica vai para dona Da Luz, claro.
9 comentários:
Você além de brincalhão é um cara muito rico... não é todo mundo que é tão querido e tem uma dona Da Luz que liga chamando para comer uma omelete. Isso é que é um cara de sorte!!!!!
Brincar é mesmo a essencia de manter a vida viva. Isso mesmo.. porque quem não brinca acha qie vive, mas na minha opinião, apenas sobrevive.. e sobreviver, convenhamos, é bem diferente de VIVER. beijo com gosto de pique-esconde!
"A primeira menção ao jogo de dominó vem da China. Segundo lendas daquele pais, o jogo teria sido inventado por um funcionário do imperador Hui Tsung. Outra remete a invenção do jogo aos anos de 234 a 181 a.C, quando teria vivido Huang Ming, um soldado-herói."
http://www.jogos.antigos.nom.br/domino.asp
Sama,
Que maravilhosa brincadeira vc escreveu, como sempre, na verdade. E vc falou de Lulu e me lembrei que ganharei em breve dois sobrinhos (espero que um deles seja uma menina)os amarei de qualquer forma. E vou querer brincar muito, ficar bobona mesmo diante deles, feliz...
Obrigada!
bjs
"dále, dále, dále noiva,
com muito orgulho,
com muito amôo.."
hj acorde rindo, lembrando das brincadeiras de ontem.
Gerrá.
Samarone! Linda crônica, realmente tocante... Dá para imaginar que lindo que deve ser o Poço... Muito sucesso para você e que as próximas semanas possam ser bem melhores do que as que passaram.
Priscila
Sama querido,
Experimenta brincar de "ficar sério" com seu amigo Inácio...
O recorde dele é de 15 segundos!
Beijos
Corrigindo, 15 segundos é muito!
Samarone, cada dia me encanto mais com suas crônicas. Parabéns.Você torna a leitura um prazer. É admirável seu poder te tornar tudo tão mágico e bonito. Acho que aqui cabe citar o poeta: "Se todos fossem iguais a você, que maravilha viver".
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