quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Quase um bom-dia

Pelo mapa, são 35 quilômetros entre o Cabo de Santo Agostinho, onde vivo, e o centro do Recife. Para mim, no meu ponto de vista psicológico, são pelo menos 45, porque conto também o cansaço. Toda distância tem que levar em conta a carga de cansaço, principalmente se o camarada for usuário de transporte coletivo, como é meu caso, com raras gatunagens no Fiat da tia, um raçudo Uno vermelho, ano provável 1993.

Entre as duas cidades, há uma multidão sonolenta e cansada, aguardando de pé nas centenas de paradas de ônibus. É uma gente embrenhada nesta dura, ranhenta, obsessiva e obrigatória luta pela sobrevivência. Para estar no Recife às 7h33, por exemplo, é preciso estar às 6h em ponto no terminal do Cabo de Santo Agostinho. Não, amigos, não é nada saudável perder um lugar sentado nesta longa e maçante viagem, neste sol escandaloso das manhãs recifenses. Chega-se cêdo para conseguir um lugar ao sol, literalmente.

O motivo é simples, pelo menos no meu caso. Não há nada pior do que tentar ler algo de pé, em um ônibus lotado. Nessas longas jornadas, consigo um lugar sentado para ler algo delicioso, tomar notas, observar o povo, a paisagem etc. Como o Aquiles me alertou outro dia, em tom muito severo, que o sujeito pode descolar a retina, lendo dentro de ônibus, uso uma estratégia inovadora: leio uma página, olho a paisagem, o rosto das pessoas, sinto o cheiro do dia e só depois, quando sinto a retina voltando ao lugar, retomo. A bola da vez é "Justine", do meu amigo Lawrence Durrell.

A categoria dos motoristas de ônibus, a exemplo dos jornalistas, advogados, marceneiros, açougueiros e pais-de-santo, é estranha, complexa e desigual. Alguns começam o dia rindo e dão bom-dia até para as borboletas. Outros têm foto nas ventas e dão partida no veículo como se levassem uma carrada da Master Boi. Há os marcha-lenta, que não sei como escreve no plural, que são criticadíssimos pela população em geral, porque ninguém quer chegar atrasado ao trabalho. Andam bucolicamente, esses 35 quilômetros, enquanto os ponteiros do relógio voam. O expediente, no Recife, geralmente começa às 8h, não sei como está sendo no restante do Brasil, com esta confusão dos aeroportos.

As coisas ficariam mais fáceis se entre o Cabo e o Recife não existisse uma cidade que não acaba nunca, chamada Jaboatão dos Guararapes. Na entrada de Jabotão informam que "a pátria nasceu aqui", certamente por causa da "Batalha dos Guararapes", onde deram uns tapas nas orelhas dos holandeses, mas fica por isso mesmo. Se for confirmado cientificamente que a pátria nasceu em Jaboatão, eu atesto: eita pátria esculhambada!

Se você consegui atravessar Jaboatão, imediatamente se torna uma pessoa exausta e aliviada. Mas agradeça, que o pior já passou. Falta somente a Imbiribeira, uma avenida que lembra muito a Transamazônica. Existem 1.246 semáforos ao longo da Imbiribeira, todos no amarelo, caminhando para o vermelho, na sua vez de passar.

Para chegar ao centro do Recife, desça no Cais de Santa Rita. Ali, às margens do Capibaribe, alguns barcos vagabundos, recém-chegados de algum lugar que ainda tem peixe, abrem espaço para o comércio matinal do referido animal. São vendidas umas espécies que não reconheço nem de longe, nem de perto. A espécie é tratada ali mesmo, para o agrado matinal de nossas narinas.

Neste exato momento, às 7h23, todos os rostos ainda estão sonolentos. As moças com as camisas do "crédito consignado" já estão a caminho dos aposentados e pensionistas. Na Conde da Boa Vista, que atravessa o centro, vendedores enfadados aguardam, sentados, por alguém da loja que vai chegar com a chave. Esse alguém, por coincidência, é sempre o último a chegar. Enquanto isso, fuma-se e fala-se da loucura que foi o Natal, e especula-se sobre quem vai ser aproveitado para o quadro fixo. Ao lado, tem gente comendo cachorro-quente com carne de soja e suco a R$ 1,00.

Chego à avenida Agamenom Magalhães após pegar o Setúbal Conde da Boa Vista. Venho pegar restos de bagagem, antes da próxima viagem. Então, as coisas começam a se complicar. Na Agamenom, a criatura descobre que o Recife cresceu demais, que tem carro demais e outros muitos bocados demais que não levam a nada, pelo menos nestas minhas poucas linhas.

É preciso descer no Derby para ver ônibus de tudo que é cor, nome, jeito, velocidade. Perambulo um pouco, e chego à barraca do "Moreno" (aqui no Recife, todo negão é chamado de "Moreno"), onde bebo meu suquinho de maracujá, para acalmar os nervos. Chega um camarada e diz, animadíssimo:

" Fala, peixe!"

O negão, digo, o moreno, sorri e solta um muxôxo.

"Tu sabe que tu é meu peixe, né?"

O moreno-negão solta uma resposta comovente:

"Esse Dênys Oliveira tá é fodido".

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Murmúrios - I

(anotações aleatórias ao deus-dará, ao longo das estradas)

**
Fiel depositário
Ser fiel depoítário dos meus próprios desmantelos

Projeto literário - I
Contos da carrocinha, para cães suicidas.

Projeto literário - II
Contos de fraldas, para crianças (durante a amamentação)

Discussão
Nada compensa a energia gasta para vencer uma discussão. No final, o silêncio é sempre o grande derrotado.

Constatação
No infinito, todas as lembranças se encontram

Aviso
Nenhum destino fica de sobreaviso.

Inspirado em Giba
As reverberações policinésicas da antropogênese geram cinestesias sobressaltadas.

Solo
Para o solitário de si, um é demais.

Sonso
Concordo com o Sérgio, ladrão de gatos do centro do Recife. O gato é um animal sonso.

Função da vida
Esfregar o nariz na alma do mundo.

Psicanalítico
Na psicologia (ou será a psicanálise), há uma expressão muito rica: "equilíbrio enfermo". Gostaria de postular, modestamente, o desequilíbrio são.

Descoberta
Há, sim, olhos que sussurram luz.

Pergunta
Onde se escondem os vaga-lumes, durante o dia?

Místico azarado
No dia em que começou seu jejum, esbarrou em uma suculenta feijoada.

Alcooólicas
Peso 78 litros, me disse ele, com aquele bafo de cana e cerveja.

Limpeza interna
Está certo o sábio Iramarai, quando afirma que o melhor lugar para limpar catota é no trânsito, com os vidros fechados.

Diferença
Sim, mágicos temos aos montes, mas os que têm magia são raros.

Aparências
E o falso boa gente, heim?

Canina
Há cães que ladram tanto, que nunca vêem as caravanas passarem.

Diferença
Há mãos que aquecem e mãos que esquecem.

Focado
E aqueles, que para mudar, pensam somente no caminhão?

Ôps
O dinheiro do bêbado sempre fica no bolso da outra calça.

Jumentinho
Tenho um amigo que não é lá essas simpatias. Batizei-o de jumento amável.

Crime
A bufa, este crime sem cadáver.

Volta por cima
De derrota em derrota, até a cambalhota.

Sorte
Sorte, este pedacinho de nada brincando com a vida.

Cabo de Santo Agostinho, nos finalmente de 2006.

sábado, 23 de dezembro de 2006

Esse tal de Natal...

Recebi muitas mensagens desejando Feliz Natal, e retribuo com todo o carinho, mas com uma ponderação: é um período do ano que considero esquizofrênico.

Desde pequeno achava esquisito, na adolescência confirmei e depois, já adulto, nunca entendi o Natal. Aceito explicações as mais diversas.

Pode ser mesmo um trauma. Teve um Natal que meu pai se arretou com alguma coisa, e quebrou minha carreta que seria presente de Natal. Pisou a carreta e todos os carros, uma frota deliciosa vinda diretamente da Wolkswagem, creio.

Depois ele se arrependeu e resolveu me levar para comprar outra carreta. Ganhei uma maçã e fui com ele, na garupa da bicicleta. No caminho, a maçã caiu, e doeu mais que a carreta. Os psicólogos explicam essas coisas direitinho, e os psicanalistas vão mais longe, com acusações de complexos os mais diversos.

Estou em Petrolina, terra do saudoso Marcel "Despedida em Las Vegas" Tito. São 10h53 e o comércio está à beira de uma guerra civil. Olhei no jornal de hoje. Vai ter shopping no Recife funcionando de 9h às 23.

Fico olhando essa confusão toda e lembro que minha avó Zeneuda fazia um presépio, todo ano. O lago era um espelhinho, com areia ao redor. Tinha um menino Jesus lá em casa, num lugar bacana. É uma lembrança boa, porque depois do Natal, ela guardava o presépio embulhado em jornal, e no ano que vem tinha mais.

Depois que minha avó morreu, não teve mais presépio, pelo menos que eu saiba.

Meu irmão Paulinho não vai passar o Natal em Fortaleza, ao lado de sua mãe, que também é a minha, porque a TAM empombou tudo na reta final.

Me surgiu uma dúvida existencial de máxima grandeza: que diabos eu fiz, naquele Natal de muitos anos atrás, para meu pai pisotear a minha carreta e todos os carrinhos?

Vamos que vamos. Não vejo a hora de chegar ao Recife, cidade lendária.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Lembranças do Armazém Paraíba, dinheiro para o aluguel de Marcos Pioleiro, Orkut e outras histórias

Estou em Patos, a 305 quilômetros de João Pessoa, no Semi-Árido da Paraiba. São 3h57 da manhã e cheguei há meia hora, numa viagem pela Viação Progresso, que fez a gentileza de reajustar as passagens justamente no final do ano. Devem ter se inspirado em nossos deputados federais, que se presentearam com quase 100% de reajusta.

Pois bem. À minha frente está o famoso "Armazém Paraíba", com sua contundente marca em preto e amarelo, imagem que acompanhou as cidades da minha infância. Ao lado, o Banco Cruzeiro do Sul (empréstimos para aposentados e pensionistas do INSS e servidores públicos). Ao lado do banco, a loja "Realce" e depois a "Narciso". Para o lado da esquerda (contando do Armazém Paraíba), tem uma unidade odontológica, parceria do município com o Governo Federal. Mais à esquerda, a casa lotérica Esperança (o nome de quase toda casa lotérica) e a "Farmácia dos Municípios". Na esquina, uma casa toda pintada de amarelo, a cor oficial do PFL, que julgo ter sido outrora (estava louco para usar esta palavra hoje) o comitê de algum candidato na eleição passada.

Reparo o nome dos febrentos: Cássio-45; Antônio Mineral- 45.444; Gilvan Freire - 1234 (esse só não se elegeu se for mesmo ruim de voto).

Uma simpática, bucólica, singela e típica árvore de natal ilumina a pequena praça. Não deve ter custado nem dez reais, mas é mil vezes mais linda que a patética decoração-mulambo que a prefeitura do Recife reservou para este período do ano.

Eu estava assim, tomando minhas notinhas neste velho caderno de viagens, quando fui cutucado por um sujeito moreno, de uns 43 anos, meio sambado pela vida, cabelos indescritíveis, vestido de forma mais ou menos. Veio com uma conversa inacreditável, quase cinco horas da manhã, de que faltava somente dois reais para pagar o aluguel. Sinceramente, o sujeito que sai de bar em bar, em plena madrugada, com uma conversa dessa, deveria estar era escrevendo para o cinema.

"Dois reais para o aluguel? Ah, velho, tenho não. Se fosse para tu tomar uma dose, eu dava um jeito", respondi.

"Não, velho, estou falando na real", insistiu.

Diante do meu desdém, ele apelou:

"Dia 26 de dezembro, completo dois anos sem beber".

Aí pegou de jeito. Lembrei que meu tio Ademar outro dia completou um ano sem beber, com a ajuda do AA. Súbito, me veio uma ternura com todos os que pararam de beber e ficaram mais felizes, centrados e calmos. Sim, porque tem uma amiga minha que parou de beber que mudou do vinho para a água. Parece outra pessoa. Quando ela bebia, era mais interessante.

"Tu escreve poesias?", perguntou ele.

"Só quando tenho saudades de alguma coisa que não lembro", respondi, e não sei de onde veio esta resposta.

"Pois eu escrevo poesias", disse meu amigo.

Depois de um breve silêncio, ele mudou o pedido. Dispensou o vale-aluguel e pediu para que eu anotasse um poema dele.

"Vamos lá, mande brasa". Então ele começou a recitar, em tom emotivo mas pausado:

"Terra seca, pobre e nua
falta água, falta pão
falta tudo nessa vida
só não falta coração".

Era um poema longo, que anotei em meu caderninho, mas agora não dá tempo transcrever por inteiro. Ele recitou mais dois poemas, que anotei. Queria mais um, mas aí eu me arretei, porque não iria transcrever o livro do sujeito.

"Tá bom por hoje, né?", eu disse.

"Sabia que eu tenho uma comunidade no Orkut?", comentou o poeta.

Lembrei de meus 80 alunos, entre 16 e 19 anos: 79 têm Orkut.

"Anota aí para tu dar uma olhada: www.orkutcomunidademarcospioleiro.com.br"

Houve um silêncio repentino. Ele falou de peito estufado:

"Tem muita gente na minha comunidade. Até dos Estados Unidos".

Então ele esqueceu do dinheiro do aluguel e foi embora.

Na TV, aqui na lanchonete "Pão Quente" (padaria, lanchonete e conveniência 24 horas) começa a rolar Gasparzinho. As primeiras Toyotas e Rurais começam a passar. São 4h27 da manhã. Na mesa ao lado, quatro camaradas discutem meio exaltados sobre cheques, falcatruas, notas fiscais frias, acertos sobre cargas com material paraguaio, um disse que só ele mesmo "teve coragem de resolver aquela bronca com o João". Ficou liso no interior do Maranhão, e arrematou:

"Bota os pneus em cima do caminhão dele e toma dois mil conto!"

Não entendi nada, mas tudo bem. A viagem segue, a vida segue.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Cronista segue sua peregrinação pelo semi-árido nordestino

Ah, amigos leitores, vou chegar ao final do ano com alguns débitos neste blog. Estou em uma caravana que vai percorrer mais de cinco mil quilômetros, até 23 de dezembro. Até agora, vamos com uns reles 2.300. Ufa la lá. Hoje consigo escrever algumas coisas em Arcoverde, numa lan house defronte à praça principal da cidade, que o sujeito me informou o nome, mas esqueci. Sei que aqui mora a Teresa, minha ex-aluna, mas não sei onde está o telefone de Teresa, que agora é mamãe e tudo o mais. O motoboy que me trouxe do Max Hotel, na BR, até a lan house, é muitíssimo desinformado. Perguntei a população da cidade, ele ficou em silêncio. Insisti e ele respondeu:

"Rapaz, é muita gente, visse!"

Oquei, garotão, meus leitores ficarão sem saber da população arco-verdense.

De manhã toma-se café, seguimos para alguma cidade, os palhaços e pernas-de-pau fazem uma apresentação, encerra-se a cerimônia, voltamos para a estrada, almoçamos, vamos para outra cidade, repete-se a dose, e à noite, pela graça divina, dormimos em algum hotel. Durmo ao lado de um palhaço e de um cara que cuida do som, o Valentim.

Vamos percorrendo a paisagem do Semi-Árido brasileiro. Antes de ontem, em Palmeira dos Índios, surgiram uns flamboyants que eu vou dizer. O vento quente é constante, mas à noite, em algumas cidades, passa aquele ventinho bom, sossegando a gente, uns ventinhos que levantam as cortinas da alma.

Tenho feito o meu exercício diário de olhar o povo. Em cada cidade, uma multidão de crianças e adolescentes aguarda a tal "Caravana do Unicef". Vejo uns sorrisos para lá de esperançosos, misturados com aquele jeito inocente de quem vive longe dos grandes centro urbanos. Enquanto os artistas se apresentam, vou entrevistando professores, agentes de saúde, diretores de escola, crianças.

Informo que tem, sim, muita coisa boa acontecendo neste país, que muitos projetos estão sendo tocados com seriedade e persistência. Em Traipú, a secretária de Educação conversou comigo e quando falamos de livros, seus olhos vazavam luz. A Dulcinéia (sim, como em Dom Quixote) me levou ao prédio onde funciona a biblioteca e vi o "cantinho da leitura". É ali que ela começa a fisgar as crianças para o mundo da leitura.

Converso muito com as crianças, evitando fazer aquela estúpida pergunta "o que você quer ser quando crescer?" Tenho perguntado coisas mais simples, que fazem parte do hoje: se na escola tem merenda, e se a professora é boa. Sim, amigos, a meninada está comendo na escola, e tem muita professora comprometida com educação. Em muitas prefeituras, os livros para 2007 já chegaram. A palavra compromisso ainda viceja em muitos grotões do Brasil.

Por conta da correria, não tenho lido jornais ou assistido TV, o que parece ser muito saudável para a saúde psíquica. Tive que trazer minha cota de livros, pois livraria é algo que não existe no interior do Nordeste.

Em meio a esse vendaval de cidades e gentes, já vou perdendo as primeiras confraternizações deste final de ano. Domingo é o aniversário de Emília, ela já sabe como sou, nem esquenta. Domingo é também o dia da confraternização da nossa torcida desorganizada "Sanfona Coral". Pelo andar da carruagem, parece que até a confraternização do Poço da Panela, minha eterna pátria espiritual, vou perder. Será a primeira vez, em cinco anos. Mas eu não me incomodo com essas coisas. Uma hora chego lá, puxo o banquinho, tomo umas com os amigos, e fica tudo certo.

Vou terminando o ano com as pata no mundo. Isso me deixa novinho em folha. É como se o cansaço físico devolvesse à alma o regozijo das vivências, dos olhares, dos sorrisos encantados das crianças, com os palhaços da Caravana. Vejo o povo brasileiro em sua infância. Queria tempo e espaço para relatar tudo o que tenho visto, escutado, presenciado. Vai ficar para janeiro, já que o Unicef pretende publicar minhas anotações de viagem.

Quando a poeira baixar um pouco, vou contar umas duas ou três histórias de crianças que andei encontrando, conversando e fotografando.

Fico por aqui. Vou ali, ver o ensaio do Côco Raízes de Arcoverde. Fiquem bem. Ou, como disse uma uruguaia ao velho amigo Gustavo, à saída de uma livraria, em Montevidéu:

"Merece-te!"

ps.não deixem de ler o blog do poeta Gustavo de Castro: www.razaopoesia.zip.net

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Os dois ladrões-meninos e o poeta

Chama-se Gustavo o irmão que ganhei da vida, quando morava em São Paulo, no final dos anos 90. Dividimos apartamentos, fizemos viagens, varamos madrugadas em conversas intermináveis, deciframos as ruelas daquela Buenos Aires distante e tão próxima. Descobrimos novos poetas, tomamos porres homéricos, choramos nossas dores-de-cotovelo, e depois começamos a viajar pelo mundo. Eu pela América Latina, ele pela Itália, em busca do seu Ítalo Vida Calvino.

Um dia, fomos fazer o supermercado, em plena avenida Angélica, Higienópolis, ali onde moram os Fernando Henrique da vida. Enchemos um carrinho miúdo, certamente utilizado para colocar coisas de crianças, e depois saimos, como se algum carro estivesse à nossa espera.

Fomos descendo a avenida de mansinho, sem combinar nada, fomos descendo, certos de que escutaríamos aquele famoso "ei, rapaz, para onde você vai com esse carrinho!", mas não perceberam nossa fuga sorrateira. A partir do segundo quarteirão, éramos duas crianças descendo uma das principais avenidas de São Paulo com seu novo brinquedo. Cada um que estava mais feliz, se pendurando no carrinho e dando gritos de iurrruuuu....

O carrinho ficou na cozinha durante muito tempo. Era um sucesso colocar coisas neles, contar a história e rir muito.

Houve também um episódio bem menos sucedido, uma tentativa tosca, de minha parte, de afanar um exemplar de "A dama e o cachorrinho", de Tchekov. Não contava com a infelicidade, o rude golpe do destino, de ter apenas um exemplar na livraria, coisa notada rapidamente por um astuto vendedor. À saída da livraria, recebemos aquele "ei, rapaz!", de um vendedor exaltado, louco por briga. Tchekov quase nos custou uns sopapos, ali vizinho à PUC, onde Gustavo tocava seu doutorado.

No albergue de San Telmo, em Buenos Aires, passávamos o dia conversando sobre a vida, olhando os turistas e seus mapas.Eu, Gustavo e Daniel Raton, uma das figuras mais incríveis que conheci nesta vida. Eram horas sem pressa, sem rumo e sem turismo, falando de livros, pessoas, sentimentos, relembrando nossas coisas. Formávamos, junto com a Érika e a Cláudia o que ele, Daniel, denominava o "Petit Group", que enchia de felicidade o velho argentino, acostumado a ficar recolhido em seu quarto, lendo e fumando sem parar. Nunca mais vimos Daniel, aquele velho pilantra, que me lembra muito um personagem do Lawrence Durrell, em "O Quarteto de Alexandria".

Escrevo essas notas soltas, entre uma cidade e outra do semi-árido alagoano, porque hoje me deu uma saudade imensa do meu velho amigo, que está morando em Brasília. Justamente hoje fiquei sabendo que ele finalmente abriu seu blog de poesias.

Então fui ler. E descobri que meu irmão virou um poeta.

Quero somente compartilhar com vocês:

www.razaopoesia.zip.net

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Quem levará flores para Pinochet?

Recebi o telefonema de Daniel Buarque, que foi meu aluno da Católica, sobreviveu bem ao trauma, e está agora no site da Globo, fazendo suas matérias. Me informou que o general Augusto Pinochet tinha finalmente morrido. Eu estava ocupado demais, desfazendo uma mala e arrumando outra, para seguir viagem. Ele queria uns contatos chilenos, porque entrevistei muita gente que lutou contra a ditadura do tirano de lá, mas como estou terminando uma mudança, todos os cadernos de pesquisa sobre o Chile estavam em alguma caixa. Foi mal, Daniel, na próxima ajudo.

Depois, o camarada Amaury me entrevistou, para saber o que eu achava da morte do ditador. Conversamos um bocado, e o filminho passou de novo em minha cabeça. Era o final de 1999, e cheguei a Santiago para um curso de uma semana num lugar espetacular, chamado Cajon del Maipo. Éramos uns 15 pesquisadores de toda a América Latina. No final das contas, passei mais de 45 dias perambulando, com minha mochila nas costas. Passei um final de ano em Chiu Chiu, um vilarejo com 250 habitantes, e o reveillon foi em meio a um ritual indígena que mexeu com tudo por dentro.

Um dia, fui visitar o túmulo de Salvador Allende, o presidente morto no Palácio La Moneda, naquele maldito 11 de setembro de 1973. É um túmulo enorme, uma grande homenagem do povo chileno, e sempre tem flores novas, gente fazendo alguma homenagem.

Saí caminhando no meu galope manso, até que cheguei a uma pequena tumba, uma daquelas gavetas minúsculas, que chamava atenção por ser mais colorida e ter muitas, mas muitas flores. Então me aproximei e vi o nome do morto: Victor Jara. Foi morto logo depois do golpe, no Estádio Nacional. Morto não, ele foi massacrado.

Fiquei sentado, fiz minhas orações e na cabeça, ele cantarolava "Te recuerdo amanda", "Cigarrito", entre tantas canções que fizeram parte da história do povo chileno. Lembrei das tantas pessoas que eu tinha entrevistado, para meus livros, e que tinham sido presas, logo após o golpe. Todos eram sobreviventes. Ali, bem perto, estava a lista dos desaparecidos, gravadas em uma enorme pedra. Uma pedra de lembrança, saudade e dor.

Poucos dias depois, acompanhei o comício do candidato socialista, Ricardo Lagos. Ele disputava com um tal Lavin, ligado ao grupo de Pinochet. Estava quase dando um empate técnico, e todos temiam a volta por cima da turma do general. Na alameda principal de Santiago, umas duzentas mil pessoas. Lá pelas tantas, a multidão começou a saltar. Todos cantavam:

"Y va saltar/y va saltar
y quién no salta/es Pinochet".

Uma maré humana começou a saltar. Crianças, velhos, grávidas. Quem não saltasse era Pinochet. Eu dei uns pinotes que vou dizer.

Ricardo Lagos ganhou a eleição. Estava em São Paulo, e liguei para uns amigos chilenos. Era uma festa completa no país. Era o fim de um ciclo.Numa tradução fajuta, a frase mais gritada por um dos amigos foi a seguinte:

"Mandamos o puto embora".

Após o telefonema de Daniel, a conversa com o jornalista, fiquei um bom tempo lembrando daquela tarde, escutando Victor Jara, no cemitério de Santiago.

Não sei quem vai colocar flores no túmulo de Pinochet, mas cá entre nós... coitadas das flores.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

O dia em que cheguei a Esperança

Já são vários dias na estrada, acompanhando uma Caravana do Unicef. Chegamos, a troupe de artistas faz uma festa imensa com a criançada, palhaços e pernas-de-pau arrancam sorrisos generosos, vou tomando nota de tudo, entrevistando gente. Após a festa, o prefeito recebe um selo de "Município Aprovado", e seguimos para outro canto. Já fomos para Bananeiras, Picuí, Araruna, voltamos para Bananeiras, hoje chegamos em Esperança. Isso só na Paraíba. Depois vem Pernambuco e Alagoas, que conheço bem. Escrevo de Picuí, porque as lan house de Esperança e Bananeiras são lentas, e não dá para postar nada.

O fato é que eu estava louco para chegar a Esperança. Só o nome da cidade valia a pena. Já imaginaram a pergunta:

"Você é de onde?"

"Esperancense".

Eu faria uma licença poética e responderia:

"Sou esperançoso".

Chegamos a cidade hoje, às 9h04 e pensem num sol do Semi-Árido paraibano. Num lugar simples, o prefeito João Delfino e quase todos os vereadores. Um carro de som foi designado para acompanhar a Caravana. Tocava o "Tema da Vitória", aquela música quando o Ayrton Sena ganhava, o que atrapalhou deveras o trabalho musical da Banda Sinfônica Prefeito Luís Martins de Oliveira, fundada a 1 de dezembro de 1973, atualmente com 24 músicos. Passamos pelo Supermercado Esperança, Sapataria Esperança, Esperança Temperos, e finalmente o Educandário Santa Catarina de Alexandria, uma santa que inclusive eu desconhecia por completo.

Alguém foi designado para ir soltando fogos, o que me preocupou intensamente, porque tinha muita criança no caminho. Chegamos ao Ginásio Vovozão. Parecia dia de clássico. Estava lotado até a tampa. Os palhaços e pernas de pau fizeram a alegria da criançada. Fiquei anotando tudo. Fiquei sabendo que em 2001, apenas 89,01% das mulheres faziam pré-natal. Ano passado, o número passou para 97,35%.

São muitos dados bacanas que o Unicef acompanhou e cobrou, antes de fornecer o afamado Selo, que dá um cartaz danado para a cidade.

Mas o meu negócio é gente. Conversei com o senhor Thierry Walquer, aluno da terceira série. Antes que me perguntem, o nome dele é esse mesmo, igual ao francês que lascou a gente na Copa. Ele resolveu, por conta própria, fazer uma rádio na Escola Municipal Professora Maria Lopes, e conseguiu o apoio da diretora. Todo dia, na hora do recreio, que aqui é 15h30, tem o programa dele, do Thierry, que tem um sorrisão imenso de bom. O camarada, um gordinho simpaticíssimo e voz de locutor, coloca músicas, dá recados, avisos sobre a coleta seletiva de lixo. E não tem esse negócio de construtivismo , piagetismo, nada, é na raça mesmo.

"Meus colegas estão adorando", diz.

Das 27 escolas do município (5.100 alunos), 17 já têm conselhos escolares registrados. Recebem verba diretamente do MEC, sem passar pela mão do Prefeito, um tal Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), do Governo Federal, que eu nem sabia existir. Aliás, cada vez mais que viajo pelo interior do Nordeste, especialmente o Semi-Árido, concorco mais com meu amigo Inácio França, jornalista da maior estirpe. Há brasis que não se encontram e nem sabem um do outro. Tem ricaço no Recife que gasta R$ 3 mil num almoço naquele restaurante Leite, e tem escola, por aqui, que faria uma revolução na cidade com metade desse dinheiro.

Foi uma manhã inteira de apresentações. Vi o Corpo de Danças Xique-Xique, um aluno de uma escola tocou flauta doce (a insuperável Asa Branca, música predileta de qualquer tocador de flauta doce), vi os alunos de uma creche dançarem, vi os alunos da APAE se apresentarem, vi a Capoeira de sempre, vi o coral "Cantando Esperança".

Vi mais que isso. Vi professores com os olhos brilhando com seus alunos, vi gente simples bem vestida, vi mães contentes porque os filhos estão sabendo ler, vi uma escola entupida de livros já para o ano que vem.

Saímos do Vovozão depois do meio dia, o sol nos cascos. O negócio é cansativo, não dá tempo nem chegar, fazer amizades, que o ônibus do Unicef já está saindo para outra cidade. Até dia 23, serão mais 28 cidades, creio, que andam se enchendo de esperança.

Vou correndo, que a Caravana está saindo. Perdão pelos erros, é que estou escrevendo às pressas, nem deu tempo falar do agente de saúde de Picuí que quase me fez chorar, mas isso é coisa para outro dia, quando a poeira baixar.

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Peripécias de um eterno viajante

Essa minha paixão por mapas e viagens não termina nunca. O objetivo era chegar em Bananeiras, no interior da Paraíba, algumas dezenas de quilômetros depois de Campina Grande, para mais um trabalho de campo - acompanhar a caravana "Selo Município Aprovado", um projeto do Unicef.

Para começar, perdi o último carro para Campina Grande. Fiquei no TIP a ver navios. Vendedor de passagem, no Brasil, só sabe dizer duas coisas: "O último carro saiu agorinha", seguido do famoso "sei não".

É preciso ir a uma banca de revistas para comprar um mapa. O vendedor diz que não tem mapa do Nordeste. Fuça-se as revistas, e lá está, um belo mapa do Nordeste. É fundamental não falar nada, porque ele está certo. Não tinha mapa nenhum, eu é que encontrei.

É preciso retornar com o mapa, mostrar a gloriosa cidade de Bananeiras. Marca-se a cidade com um círculo, de caneta preta.

"Amigo, preciso ir para esta cidade. Não posso passar a noite no TIP" (para não recifenses: Terminal Integrado de Passageiros, e fica no inferno da pedra).

O camarada lembra de um ônibus para Caruaru, depois um para Campina Grande, saindo uma da madrugada. O ônibus sai 21h30, dá tempo tomar uma sopa bem quente, com pão, a R$ 2,50.

Embarca-se. Todos os relógios do TIP estão quebrados. O terminal é sujo e abandonado. Ao lado, é importantíssimo viajar um jovem com seu filho pequeno, de até um ano. O menino me olha e começa a chorar. Lembro que preciso aparar a barba. O pai mal sabe o que é uma chupeta. Daqui a pouco, o menino está soltando berros. Antes de Caruaru, já quero saltar com o carro em movimento.

Enfim, na segunda rodoviária, busca-se o ônibus para Campina Grande. Só duas horas da manhã. Às 4h estarei em Campina Grande. Com sorte, toma-se um café com a turma da viagem. Perambula-se pela rodoviária. Compra-se uma revista. É meia noite, e de madrugada, o ônibus demora vinte dias para chegar.

Banheiro a R$ 0,50, café, leitura. Depois, um Todinho, outro café. Aparece uma lan house. Em todo canto do Nordeste agora tem lan house. Postagem no Blog. Ao meu lado, dois computadores ligados, todos no Orkut.

Algumas mulheres dormem no cimento, esperando algum ônibus. Duas lanchonetes estão abertas, com aquela conversa sem rumo das madrugadas em rodoviária. Estava escrevendo umas besteiras no velho caderno, um bebinho quis moeda. Ah, amigo, você já bebeu demais, penso em dizer, mas dou uma moeda. Que bafo!

Descubro que tenho uma tia e duas primas em Caruaru, mas é o fim da picada ligar tarde da noite para ficar só um pedacinho. A TV está ligada, num volume altíssimo. O Jô Soares ainda acha que tem alguma graça.

É preciso seguir. Bananeiras, me aguarde. Acabei de olhar no mapa. A cidade fica entre Solânea, Pirpirituba, Cacimba de Dentro e Belém.

Lembrei agora que meu pai costumava usar mapas, nas muitas viagens familiares. O cérebro da gente é um mistério. Faz associações malucas. Ontem mesmo, lembrei de uma sova que levei no Natal, onde minha carreta foi quebrada sem pena. Agora estou lembrando dos mapas das viagens da minha infância. Ah, acabo de lembrar que meu pai tinha um mapa do Campeonato Brasileiro. A cada rodada, marcava religiosamente os pontos dos times. Eu achava aquilo o máximo.

Deve ser associação livre, o que às vezes ocorre com o ser humano, e até com o ser desumano.

Ou é só lembrança mesmo, e a gente inventa de complicar. Mas a imagem do mapa é mais bonita que a da carreta. Fico com o mapa e vou por aqui, tangendo meu destino.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Na estrada, mais uma vez

Estimados leitores,

Estou de novo na estrada, para acompanhar a "Caravana Selo da Cidadania", promovido pelo Unicef/Escritório do Recife.

Tão logo apareça uma lan house na região de Bananeiras ou Ararunas, na Paraíba, mandarei minhas notinhas habituais. Depois seguiremos para Esperança, e acho que é o melhor lugar do mundo para se escrever crônicas de viagem. "Estou aqui em Esperança, com meu grau de esperança um palmo acima da média", pode ser o início do próximo texto. Vamos ver. Tudo vai depender das paisagens e das caras que vou encontrar, das histórias, das palavras e dos silêncios, fora o cheiro na venta.

Enquanto isso, informo que o famoso evento do "Amigo Secreto", típico e obrigatório do mês de dezembro, está ajudando muito o autor a alavancar as vendas de "Estuário". Só na semana passada, vendi 13 exemplares. Seu Vital, no Poço da Panela, vai vendendo bem também. Não esqueça do seu amigo secreto, heim?

Frase da minha coleção:

"Quando alguém diz "eu tenho alma", é como se o rio dissesse: "eu tenho água".
(Bert Hellinger - anotado no mural de um consultório)

quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Viagem ao interior, inauguração de uma sala de leitura, os bêbados de sempre, violeiros etc (final da história em dois capítulos)

(Continuação da crônica de ontem, favor ler para entender)

Pois bem, chegou a hora da inauguração. Seu Paulino, muito cuidadoso, fez ata, organizou tudo. Fui chamado para a mesa sob a alcunha de "jornalista e escritor", o que me dá duas profissões na vida, e me exclui da de professor, ou educador, como queiram. Como sempre, fiquei suando frio, especialmente com o tema a ser falado. Rabisquei no meu caderninho algumas coisas para falar, inclusive a pérola "com um livro, você nunca está sozinho", que li não sei onde. Iria falar que cheguei ao Recife em 1987, apenas com uma caixa de livros e hoje tenho uma biblioteca, mas desisti de imediato. Alguém iria sussurrar no ouvido do outro:

"Esse camarada veio foi de longe para falar besteira, né?"

De formas que falei sobre a importância a leitura e lembrei que algo importante na Sala de Leitura, era a homenagem que estavam fazendo às antigas professoras. Três delas estavam presentes, e ganhei sorrisos. No final, aplausos tímidos e fiquei livre para curtir a noite.

Seu Virgulino Pereira da Silva, o aluno mais velho da escola, pediu para falar, e falou. Não anotei nada e agora não lembro o que ele disse. Perdão. Depois, Seu Paulino foi lendo o nome do Conselho Gestor. Dizia o nome e o apelido da pessoa. "Tué", "Mema", "Pitó" e Edmilson "Mimoso" eram alguns dos novos conselheiros. Louvados sejam.

Após a cerimonia, com "Cheiroso" passando para cá e para lá, chegaram os violeiros Edwaldo Zuzu e Severino Diniz. Também apareceu outro bebinho exaltado, que não me ocorre o nome. Este camarada daria muito trabalho, ao final da noite.

A cantoria rasgou a noite, que tinha uma lua no princípio de minguante. Anotei alguns trechos, no calor da hora:

"É pelo olho do livro que se lê o mundo" (Diniz).

"Paulino não é Paulo Freire, mas é seu sucessor" (Zuzu).

"Quem bota um livro na alma leva o mundo na mente" (Diniz).

"Escreve com duas coisas, o lápis e o coração". (Não anotei o autor".

Apareceu dona Nazinha, juiza perpétua da festa de Cachoeira, que ocorre dia 12 de dezembro, pela graça divina. O filho, Luís Antônio, era o que já estava fazendo concorrência com "Cheiroso". Pediu para os violeiros puxarem um mote sobre sua mãe. Aí foram outros quinhentos.

Após a cerimônia, ficamos jogando um dominó cheio de blefes, com Cabeção roubando feito o cão. A cachaça de cabeça comia no centro, acompanhada de queijo e bolacha cream cracker. Lá pelas tantas, Luís Antônio estava virado pelo avesso, quando resolvemos que ele só iria embora se acabássemos o dominó. Dito e feito. Após uma imensa peleja, ele entrou no carro de Seu Paulino. Como gosto de aventura, fui com eles, levar nosso camarada em casa. No caminho, ele disse que criava cinquenta perús, e eu caí na besteira de dizer que ele era um "Perucultor". O cara ficou brabo, me esculhambou até a nona geração. Sobrou até para Seu Paulino, um santo homem.

Voltamos com noite alta. Deu somente para traçar outra dose e entrar debaixo do cobertor. O friozinho do Agreste é um ar-condicionado no três. Dorme-se bem por ali, em Cachoeira do Taepe. Antes de cochilar, ainda lembrei dos violeiros. Concordei com eles:

"Isso aqui não é o céu, mas passa tirando um fino".

terça-feira, 28 de novembro de 2006

Viagem ao interior, inauguração de uma sala de leitura, livros, um bêbado chamado cheiroso e outras histórias - Parte I

Cachoeira do Taépe fica 13 quilômetros a Noroeste de Surubim. Não sei se é Noroeste, mas fica sendo, porque quando a gente lê algo dizendo "a Noroeste de", já se sente imediatamente bem localizado. Para chegar lá, é preciso ir até a avenida Caxangá e pegar uma vaga numa daquelas Toyota imensas, que cabe umas trinta pessoas, graças às mágicas diversas. A viagem custa R$ 7,00.

Na viagem acontece de tudo. No meu caso, peguei uma família que vinha de um casamento, na noite anterior. Era gente pra dédéu. Lá pelas tantas, descobriram que uma "bolsa preta" tinha ficado na Kômbi, e foi um deus nos acuda. Depois de muita discussão, tive que intervir. Sugeri parar a Toyota, ligar para o proprietário da Kômby, um amigo da família, e saber se a tal bolsa tinha ficado mesmo. Paramos em Carpina, creio, o rapaz desceu e confirmou. A bolsa estava mesmo na Kômbi. Respiramos aliviados, eu mesmo fiquei muito mais leve. Ele voltou para o Recife, a Toyota ciscou para frente. Mais na frente, fiquei sabendo que a família era toda de cerarenses, e que moram num bairro vizinho ao da minnha mãe. O senhor ao meu lado apresentava fortes dores na coluna vertebral.

A gente passa por Paudalho (à direita, Chã de ALegria e Glória do Goitá; à esquerda, Vitória de Santo Antão, se não anotei errado). Perto de Carpina, tem o Museu da Cachaça, vale a pena dar uma olhada e uma provada. Fica em Lagoa do Carro. O camarada ao meu lado teve um colóquio comigo, insistindo que era "Lagoa do Carmo", mas ele confundiu uma santa com um objeto. Ficou provado cientificamente, pelo dono da Toyota, que a cidade se chama Lagoa do Carro. Com dono de Toyota não se discute.


Mais à frente, você pode pegar à direita para Arassoiaba (estava escrito assim, na placa), Nazaré da Mata ou Timbaúba. No caminho, pode-se ler placas as mais diversas, como "vende-se galinha caipira"; "Manteiga da terra"; "Cachaça de cabeça" etc. Viajando de carro, minha sugestão é dar paradas homeopáticas e saborear tudo, além de comprar coisas para os amigos. Lá pela frente, algo tranquilizador, que é uma placa gigantesca:

"Fique tranqüilo: Limoeiro tem Unimeds".

Nada como ficar tranqüilo com uma simples frase.

As fazendas estão cheias de mensagem á turma dos Sem Terra. "Fazenda Sonho Meu"; "Fazenda "Meu refúgio", "Fazenda Meu Sossego", e por aí vai. Tudo é "meu".

De Surubim, você pode ir para Machado ou Timbaúba. À esquerda, você vai chegar em João Alfredo. No meu caso, fiquei na rodoviária, esperando o Thiago vir me buscar. Achei caríssimo ir de moto até Cachoeira do Taepe: R$ 6,00 - quase o preço da viagem de Toyota. Pechinchei por cinco pratas, mas o sujeito não quis acordo, deixei de lado.

Como ninguém é de ferro, pedi uma cerveja e comecei a anotar minhas bobagens. Lá pelas tantas, começou a tocar um brega clássico, "Sara/onde é que você se esconde", e lembrei imediatamente do tio Paulo, irmão da tia Flocely. Nos últimos tempos de vida, gravei Sara numa fitinha cassete, e ele ficava escutando várias vezes. Eu tinha que voltar a fita muitas vezes. Grande tio Paulo, o maior contador de histórias que já vi.

À noite, aconteceria o grande evento: a inauguração da Sala de Leitura José Sebastião, de Cachoeira do Taepe. Fui convidado para falar em cima de um mote invocadíssimo: "A lavra da palavra e o livro como fruto". Eu me meto em cada fria, que vou dizer.

Os preparativos foram imensos, mas destaco aqui o jantar. Amigos, que rango! Galinha de capoeira, cuscuz, ovo estrelado, etc. Destaco a presença do seu Virgilio Pereira da Silva, de 97 anos, o aluno mais antigo da escola local, que agora se transformava em sala de leitura. Forte como um touro, vigoroso, conversador, ele disse que as comidas de antes eram saudáveis, hoje comem muita porcaria. Pela cara, ele não precisa de Viagra.

Depois de alimentados, descemos as escadas, passamos pelo descampado e chegamos ao local da inauguração. Uma mesa na calçada alta, cadeirinhas brancas para os convidados, gambiarras iluminando o terreiro. Do outro lado, a igreja. Do lado de cá, a Sala de Leitura. os vira-latas brincavam o tempo todo, e quando me descobriram (outro vira-lata), fizeram a festa. Brincamos um bocado. Ao lado, um boteco bastante movimentado. Um camarada se movimentava muito, muito mais bicado que todos os meus amigos no Carnaval. Estava sendo sempre empurrado por um vento forte que não existia, e parecia querer cair por qualquer motivo.

"Já tomasse alguma hoje?", perguntei, provocando.

"Cheiroso já tomou muitas, desde cêdo".

Pois bem, daqui a pouco, falo sobre a inauguração, propriamente dita, e o final da festa, quando fomos levar outro bêbado em casa. Foi um trabalho dos diabos. Ele cria perús, e fui inventar de dizer que o cara era "Perucultor". Amigos, quase apanho.

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Conversinhas sobre pessoas ocupadas e o amor aos livros, antes de mais uma viagem

Uma leitora mandou um comentário, reclamando que estou demorando a atualizar o Blog, pois gosta de ler logo de manhã etc. Não deixou o nome, de formas que nem posso responder diretamente. Mas aqui vai uma informação, minha cara leitora: a vida de professor, numa escola de Arte e Tecnologia, não é lá essas tranqüilidades todas não. Tem o planejamento da disciplina, a avaliação (a cada três meses), os planos de aula, as reuniões semanais, enfim. Ah, tem o principal, que são as aulas. E vejam bem onde me colocaram: a disciplina que leciono se chama “Oficina da Palavra”. É uma responsabilidade e tanto. Palavra para mim tem algo de sagrado, e me esforço para ser um educador decente.

Some-se isso ao fato de estar me mudando (hoje, mais uma viagem) do Poço para o Cabo, a uns 40 quilômetros do Recife, o que é uma trabalheira danada. Informo que não tenho carro. Fora isso, tenho um trabalho jornalístico-esportivo com meu amigo Inácio França, algo da maior responsabilidade cívica e espiritual, que é um Blog sobre o nosso glorioso Santa Cruz Futebol Clube, que precisa ser atualizado diariamente (aos curiosos: www.blogdosantinha.com). O clube vai mal, mas nosso Blog está bem, com uns 500 acessos por dia, vocês nem imaginam como tem gente maluca no mundo, apaixonada por um clube de futebol, o que é meu caso e o do Inácio.

De formas que estou sendo, como dizem por aí, uma pessoa ocupada.

Cá estou, sexta-feira à noite, escrevendo estas poucas linhas para informar que gostaria de escrever muito mais, de preferência todo dia, mas para escrever algo decente, e publicar no Blog, é preciso tempo. Mais que isso, é preciso alguma idéia razoável e um texto que tenha algo a acrescentar. Não dá para ficar postando bobagem, porque a turma pega a parte dos comentários e desce a lenha. Lembro que todos os comentários vêm diretamente para minha caixa de email, de formas que é muito ruim o camarada abrir o email de manhã e receber uma sova ou uma vaia. Os leitores têm sido muito bacanas comigo, mas é preciso ficar esperto. Nada pior que um texto ruim, burocrático, só para constar. O leitor é sabido, vai procurar outras coisas na Internet.

Fora a escola, as aulas, o Blog do Santinha e a mudança em curso, tenho atividades paralelas. Aqui-ali, uma palestrinha sobre Jornalismo e Literaruta, uma oficina de alguma coisa, um seminário, um debate, um free-lancer para ganhar uns trocados a mais, e por aí vamos. Amanhã mesmo, estarei viajando à gloriosa cidade de Cachoeira do Taepe, perto de Surubim, para a inauguração de uma Sala de Leitura, projeto encabeçado pelo glorioso José Paulino, pai do Thiago, que foi meu aluno de Jornalismo. Ele, o pai, quer que eu fale, na inauguração da Sala, sobre a questão da leitura, dos livros etc. Depois, vai ter cantoria, o forró vai comer no centro e desconfio que a turma vai beber bem. Vai ser a melhor parte.

Esse universo dos livros é algo encantador. Entrar numa livraria me acalma. Entrar em um sebo me faz perder a noção do tempo. Fico horas em pé, acocorado, de lado, subo em banquinhos, escadas, vou descobrindo, colocando meu focinho para funcionar. Sou bom para fuçar e encontrar coisas boas. Foi por conta própria que descobri “O homem sem qualidades”, do Robert Musil. Foi pelo meu instinto literário que comecei a ler o velho Juan Carlos Onetti, há muitos anos, quando era vendido a R$ 3,00 em uma daquelas livrarias safadas de São Paulo. Agora o Onetti está saindo em edições de luxo, mas o conheci quando amargava um purgatório básico, ali na rua Augusta.

Quando vou à casa de algum novo amigo ou quando tenho que entrevistar alguém, faço a pergunta em poucos minutos: posso ver tua biblioteca? Ali, na biblioteca, está um pedaço da alma da pessoa.

Costumo dizer que tenho poucas coisas de bens materiais, mas tenho um bem que fui juntando aos poucos, entre compras em sebos, livrarias, presentes – uma boa biblioteca. Boa não, Samarone, deixemos de modéstia, é ótima mesmo. Estão todos lá, os amadíssimos, aqueles que fizeram a humanidade sorrir, sofrer, que mostraram os abismos da alma e o céu sem limites da criação. Há, o velho Guimarães, Porchia, Juarroz, Sábato, Soriano, Píglia, Rilke. Ah, sem nomes, por favor...trata-se mesmo de uma legião de anjos.

Sim, cometi algumas gatunagens literárias, mas são folhas passadas. Não fui um larápio contumaz. Livreiros de todo o Brasil e de alguns países latino-americanos: perdoem meus atos de apropriação indevida de produtos destinados à venda!

Não sei ainda o que vou falar na inauguração da sala. Sei apenas que não consigo me imaginar sem livros por perto. Sempre li, sempre lerei, apaixonadamente. Lembro do sentimento de deslumbramento que me tomou, quando li “Papillon”, ali pelos 12 ou 13 anos. Desde então, virei um leitor. Depois esbarrei em “Justine”, do Lawrence Durrell, e por acaso, nesta biblioteca meia boca, da minha casa, tinha todo o “Quarteto de Alexandria”. Até hoje, compro edições de “Justine” e releio como quem toma um bom vinho. É misterioso e belo o momento em que você descobre que é, de fato, um leitor.

Lembro que cheguei ao Recife com 18 anos, algumas roupas, muitos sonhos, e uma caixa de livros. Estou agora com 37, e tenho uma biblioteca. Na escola em que ensino, estou ajudando a montar uma biblioteca. Vou escolhendo pacientemente cada um, pensando nos jovens. Este sim, este não, este compraremos mais tarde, este tal aluno vai adorar, enfim. Então vejo que já li um bocado, e fez muito bem para minha alma.

Não tem aquele negócio chatíssimo e petulante do “vim, vi e venci”?

Eu acho melhor assim: “vim, li e reli”.


ps. Quem quiser doar livros para a Sala de Leitura de Cachoeira do Taepe "José Sebastião", pode entregá-los no Box Sertanejo, que fica no Mercado da Madalena. Diga que é para a Sala de Leitura do professor Paulino.

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

O retorno terno

Ah, nada como uma nova casa e a nova vizinhança! No meu caso, é um reencontro com uma vizinhança que deixei para trás em 1994, naquele rumoroso dia em que viajei para São Paulo, onde fiquei por seis bons anos.

À esquerda, um depósito de material de construção, nada a declarar. Um depósito de material de construção é um depósito e ponto final. À direita, pasmem, infelizmente, uma escola. Nunca pensei que fosse dizer isso: como é horrível morar ao lado da Escola Estadual Luisa Guerra, Deus do céu!

Tem aulas os três turnos. Daqui escuto uivos, gritos, e parece que na escola tem tudo, menos aula. Daqui da janela, posso ver as aulas no primeiro andar. Olho, reparo, busco um lenço para enxugar as lágrimas. Os jovens não estão nem ai, a falta de professores é constante. Os que dão aulas, dedicam um bom tempo a escrever coisas intermináveis, no quadro branco, aquele negócio que é um tédio completo para quem está na cadeira. Outro dia, vi uma professora de Português explicar o que era um verbo "intransitível".

Um amigo disse que tem um termo na Medicina que se chama “poliesculhambose”. Essa escola é um exemplo. A cena mais normal do mundo é as turmas serem liberadas lá pelas 10h da manhã. Outro dia, soltaram uma bomba de São João numa sala. A providência da diretora foi de uma pedagogia incrível: liberou todo mundo, e foi a maior festa.

Pela graça divina, a escola vai embora no próximo ano. Volta ao seu lugar de origem, após uma interminável reforma. Voltaremos a ter silêncio. Minha tia, que foi a primeira diretora, há muitos anos, acompanha meio desolada o rumo que sua escola tomou. Essa escola me parece ser uma pequena metáfora do que estão fazendo com a Educação no Brasil, mas isso não é tema para minha cronicazinha de hoje.

Mais adiante, a casa de Luizinho e Neide, depois da de Jorge, filho de Biliu, que morreu quando eu morava aqui, em 1993, creio. Tem uma bandeira do Sport pendurada na janela, objeto perfeitamente desnecessário em logradouro público. Do lado de cá, depois do depósito, a casa de Detinha, as filhas e agora um bocado de netos e netas. Virando à esquerda, o glorioso Centro das Mulheres do Cabo, uma ONG conhecida e muito atuante. Daqui a uns dias, vou levar meu curriculum, para ver se descolo alguma oficina de literatura ou coisa parecida. Virando à direita, temos uma pequena jóia que é o Fernando, o sujeito que conserta coisas diversas. Mais que isso: ele conserta máquina de datilografia. Conserta máquinas e bebe uma garapa incrível.

Foi lá que encontrei esta maravilha, chamada Olivetti Lettera 25, não sei o ano. Ele começou me pedindo oitenta reais, e tivemos uma seqüência de 12 assaltos e julgo que ganhei por pontos. Lá pelo terceiro round ele baixou para setenta mangos. Fui de esquerda, de direita, apliquei-lhe uns jabs, me esquivei várias vezes, mandei uns cruzados de esquerda (meu forte, Joãozinho Peruca sabe disso), até que o negócio ficou em R$ 60,00. No último segundo, baixou para R$ 50,00 e o gongo tocou.

Ela está aqui, e belezoca. Estou passando todos os poemas a limpo nela, graças à pressão psicológica do Gustavo, e batucando outras besteirinhas. Fico no primeiro andar escutando aqueles plec plec plec e lembro do curso de Datilografia, que fiz em Fortaleza, há muitos anos. A primeira aula eu lembro bem: asd asd asd asd, até encher umas folhas. Então, eu nunca mais na vida parei de encher folhas.

Eu adoro o som da máquina de escrever. Faz bem para a alma. Quando comecei a estagiar no Diário de Pernambuco, a redação ainda era movida a máquina de datilografia. Eu gostava daquela confusão, aquele ruído das máquinas. Redação sempre foi uma coisa barulhenta, animada, divertidíssima. Os computadores chegaram acompanhados de uma nova ordem – as coisas ficaram mais silenciosas. Acostumado com as máquinas de ferro, eu batuco com uma certa força no teclado. Acho que é uma tentativa inconsciente de escutar a música dos primórdios. Vou perguntar a Ana e Wal, psicólogas da minha escola, se uma coisa tem a ver com outra.

Na última vez que estive em Fortaleza, encontrei a minha velha Remington, aquela mesma que usei durante todo o curso de Jornalismo e Educação Artística. Ela torrou a paciência de muitos colegas de quarto, na Casa do Estudante Universitário (CEU). Fiz o contrabando para cá, sem que minha mãe percebesse.

Lembro que uma certa feita eu tinha que entregar um trabalho no dia seguinte, os colegas de quarto estavam dormindo, não tive dúvidas. Fui ao banheiro da CEU, levei a cadeira, a máquina, fechei a porta e fiz o trabalho todinho, madrugada adentro. Tem hora na vida que não adianta – ou o sujeito tem raça, esfrega a venta na vida, ou fica.

O Fernando cobrou R$ 25,00 para consertar, limpar, botar óleo, deixá-la tinindo. Tivemos uma nova guerra civil, que só terminou quando ele baixou para R$ 15,00. Isso é uma forte herança materna. Minha mãe pechincha até em loja de R$ 1,99.

À noite, passam uns vigilantes com uns apitos. Eu não gosto de escutar apito três horas da manhã, porque acordo e lembro que o Santa Cruz caiu para a Segunda Divisão. Minha tia disse que é para eles, os vigilantes, mostrarem que estão trabalhando. Sim, podem trabalhar meus amigos, mas precisa apitar às três da madruga?

Será que estou vivendo aquele negócio do Eterno Retorno? Volto a viver com a tia que me acolheu, quando saí da Casa do Estudante. Eu estava começando no Jornalismo, minha bagagem só tinha mesmo livros, ela tinha acabado de se aposentar, estava morando sozinha, fazia caminhadas e nadava.

Aqui, neste primeiro andar, vou trabalhar pra valer, nos próximos meses, para terminar meu terceiro livro-reportagem. É o último, fruto das minhas pesquisas sobre as ditaduras e outras coisas. Adoro esse negócio de "Trilogia". Mas esse tem também uma história de amor no meio, talvez outras coisas, vamos ver, é surpresa, tomara que eu consiga costurar bem as muitas histórias que se cruzam.

É fascinante saber que foi aqui, em 1993, que comecei as pesquisas para este livro. Lembro que eu voltava das entrevistas apaixonadamente encantado com as histórias de vida de uma geração que lutou contra a Ditadura, e mostrava alguns trechos das gravações para a tia. Ela se emocionava e compartilhava tudo, dando suas opiniões.

Não, não é eterno retorno o que estou vivendo. É o retorno terno, como bem diz o querido Rubem Alves.

domingo, 19 de novembro de 2006

Alguns motivos para comprar a segunda edição de “Estuário”



1. Livro é um ótimo presente de amigo secreto. Como os livros estão custando uma nota preta (nunca entendi essa expressão “Custando uma nota preta”, mas tudo bem, isso não vem ao caso agora), você dá um presente razoável e gasta apenas R$ 25,00;

2. Se você é leitor novo do Blog, vai poder ler uma coletânea dos textos publicados no JC On Line, em 2004 e 2005;

3. Se você é leitor velho das crônicas deste que vos escreve, vai se lembrar de algumas coisas que gostou e outras que achou horríveis;

4. A edição do livro, a cargo dos amigos do Ateliê, ficou supimpa e foi bastante elogiada;

5. A apresentação, feita pelo senhor João Valadares, ficou tão boa, tão empolgante, que ele comentou crônicas que não apareciam no livro, o que não deixa de ser um fato inédito no mercado editorial brasileiro;

6. O autor ganha um percentualzinho, que dá para ir juntando e pagar à Editora Bagaço, que fez a loucura de colocar a edição quase inteira nas minhas mãos. Resultado: já vendi um bocado de livros e gastei tudo com diversões;

7. Como diz o Monteiro Lobato, “um país se faz com homens e livros”. Sim, mas... e as mulheres, onde ficam nessa?

Mais tarde, depois do merchandising, boto crônica nova no ar.

Ah, “Estuário” está sendo vendido na mercearia de Seu Vital, defronte à Igreja do Poço da Panela, e na Livraria Imperatriz (qualquer uma). Se não encontrarem na Imperatriz, me avisem, que tomo as providências cabíveis e necessárias.

O autor também vende avulsamente o livro, basta mandar um comentário neste Blog, informando do interesse, acompanhado de email, que entrarei em contato.

Quem for de outro estado, melhor eu mandar o livro como encomenda, porque o Sedex está os olhos da cara (outra expressão que não entendo) - mais caro que o próprio livro.

Ps. a capa do livro foi escaneada pelo Renato, a quem agradeço muito.

O autor.

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Tocando em frente

Vou tocando em frente, levando as coisas como um boiadeiro leva sua boiada. Vou aqui, ruminando bovinamente alguns sentimentos, tentando simplesmente viver, sem querer tanto a experiência de tudo. Essa de amadurecimento também cansa. Quero esverdear, pronto.

Um leitor comentou que estou ficando melancólico, como se isso fosse um problema. Não foi um comentário, foi quase uma denúncia. Meu amigo, obrigado pelo comentário, mas cada dia que posto uma nova crônica, estou vivendo algo distinto. O último texto deste Blog, postei de uma casinha de fim de rua no Cabo. Não achei melancólico, porque tinha um certo lirismo. Era a tal melancolírica, que fala meu amigo Gustavo. Agora, escrevo de uma escola de Arte e Tecnologia, no Recife Antigo. De lá pra cá, muita água passou debaixo da ponte. Ao meu lado, alunos escrevem redações e esperam minhas correções. Tudo se entrelaçando. Pensando bem... qual o problema com a melancolia?

Vou aprendendo outras coisas que pareciam não ter importância. Já sei aferir pressão, graças à ajuda da amada Bebete, médica do Posto de Saúde do Poço da Panela. Comprei um tensiômetro e um estetoscópio, e estou com ares de médico. Aprendo a ler histórias para minha tia. Na manhã do feriado, li para a amada Flocely, "As três maçãs", uma das muitas coisas lindas de "As mil e uma noites". Ler histórias não é fácil, acreditem, estou tentando.

Outro dia aprendi a calar mais. Certas coisas não precisam ser repetidas para os amigos. Eles também cansam, enchem a paciência.

Primário, secundário, Universidade, essas coisas são fáceis. Difícil mesmo é este tocar em frente, saber a hora de algumas coisas, não alimentar tanto as angústias da vida, e saber que nem tudo é esta alegria. Há dias, sim, em que tudo vai mal, mas há dias que descem como dádivas. Há dias como o de hoje, em que tudo está por ali, a ponto de chegar - ou não.

Não sei quando uma coisa cicatriza. Apenas vem aquele sentimento de que estamos sarados, e não dói mais. Deve ser o aprendizado da cura. Não sei também quando a gente perdoa. Outro dia, perdoei meu pai por algumas coisas, e acho que o perdão veio para mim mesmo, de forma redobrada.

Logo que comecei a escrever crônicas, algumas pessoas me abordavam e diziam que liam, acompanhavam, gostavam do meu trabalho. Eu geralmente ficava sem graça, vermelho, até que um dia aprendi algo simples: a receber um agradecimento. Depois, tudo ficou mais simples.

Vou por aqui. Hoje não me ocorreu uma inspiração maior, nem menor.

Há mesmo os dias em que apenas empatamos com a vida, mas há um grande truque nisso tudo: a vida continua sendo vida.

domingo, 12 de novembro de 2006

De volta para um aconchego

Rua Hercilia Cavalcante, 65, no centro do Cabo de Santo Agostinho. A casa onde passo a viver fecha a rua, de sorte que não corro o risco de ser atropelado. Moro no primeiro andar, após subir uma escada com degraus finos. Sempre acho que vou tropeçar, mas não aconteceu ainda. Da janela lá de cima, posso ver e escutar o barulho imenso dos alunos do colégio estadual Luisa Guerra. Caramba, a escola é uma zona!

Moro com a amadíssima tia Flocely, com seus 79 anos e cabelos branquinhos, Renato, o filho de Rosa, que é o braço direito de tia. Uma figura de imenso destaque neste novo lar é um camarada chamado Bambam, um vira-latas de quatro anos, o reizinho da casa. Não tenho medo nenhum da saúde de tia. Tenho um pavor existencial de uma eventual fuga do animalzinho, ou de uma morte precoce. Tia sofreria demais.

Esta semana, aproveitando a troca do portão, o camarada fugiu. Cheguei em casa e a notícia chegou aos ouvidos de tia, que ficou arrasada. Ele foi localizado por mim e Elton (marido de Rosa) numa rua aqui próximo. Não esboçou reação e voltou para casa balançando o rabo.

Estou fazendo o reconhecimento do terreno aos poucos. Ontem dei uma boa caminhada, vi a academia "Sinta-se bem", alguns mercadinhos, o açougue, barracas diversas, e já localizei o meu boteco, que é o do Mário. O nome dele é Amaro, mas ele acha o nome horrível, prefere ser chamado de Mário.

"Como é que um pai bota o nome do filho de Amaro?", pergunta. Eu nem acho essas feiudices todas.

Adapto-me às rotinas da nova casa. O café da manhã eu não ligo muito, porque sou um cearense esquisito, que gosta muito de chimarrão logo cedo (as ervas que vendem por aqui, infelizmente, são o que de pior se produz no Sul, mas meus amigos vivem prometendo mandar um pacotinho, e nunca mandam). O almoço é ao meio-dia, e me esforço para estar com fome ao meio-dia, para não atrapalhar a rotina. Na sexta-feira, o almoço é peixe. Quando não estou trabalhando no Recife, passo a tarde lá em cima, escrevendo minhas besteiras, até que às 19h, tia chega ao pé da escada e diz:

"Sama... vamos jantar?"

Eu geralmente vou.

Jantamos eu, tia e Renato. Rosa faz tudo, cuida de tia, e vai embora à tardinha. Rosa adora dizer que meu cabelo está cada vez pior. Depois de jantar, Renato sai, e ficamos papeando, eu e a tia. Ontem fiquei sabendo que ela foi uma leitora voraz, mas agora anda cansada da vista. Falei que estou lendo "As mil e uma noites" e ela lembrou que já leu também. Amanhã vou ler uns trechos para ela. Antes, vamos a um frenologista. Descobri esta semana que frenologista é um médico dos rins.

Enquanto meu notebook não sai do conserto, uso o computador de Renato, que fica aqui no térreo. De vez em quando, Bambam vem, fica ao meu pé, aguardando um carinho. Passo a mão na cabeça, ele fica contente, depois vai embora. Sempre me dou bem com cachorros, especialmente os vira-latas. Acho que nas vidas passadas fui um deles.

Renato sabe copiar um bocado de coisas no computador, e está copiando alguns cds. Ele não cobra nada. Ontem, me ensinou a escanear fotos. Na hora aprendi, mas desaprendi logo. Decidi escanear as fotos antigas da família, que estou contrabandeando de Fortaleza, aos poucos.

O motivo da mudança é simples. Quero estar mais perto da tia, e as viagens Poço da Panela-Cabo estavam me consumindo a resistência. Continuo adorando o Poço, mas eu gosto dessas andanças. Daqui a pouco, arrumo as malas de novo. Por mim, eu teria casas espalhadas pelo mundo. Sonho em morar um tempo no exterior. Penso na África ou América Central.

É um reencontro também, o que estou vivendo aqui. Morei nesta casa entre 1992 e 1994, quando estava lá com meus vinte e pouquíssimos anos, e começava no jornalismo. A casa é a mesma, a rua é a mesma. Só Biliu e Zezé que morreram. Biliu era maravilhosa, aquelas velhinhas que contam piadas safadas. Tia levou duas quedas, teve um início de derrame, mas está bem, e daqui a pouco comemora 80 anos. Arali, que vi pequeníssima, está uma moça. Outro dia, morreu o Netinho, filho da vizinha, com 27 anos. Fui à missa de corpo presente com tia, e foi uma coisa muito triste. O padre também mudou. Sou mais o antigo. O quarto que morei, agora é ocupado por tia. Onde ela morava, agora vivo eu. São as reocupações geográficas, coisa que o mano Paulinho entende bem.

A casa fica ao lado do Centro das Mulheres do Cabo. Na época em que trabalhei para o Diário de Pernambuco, fiz matéria mostrando o trabalho das mulheres. O jardim é espaçoso, já comecei a dar umas arrumadas, vai caber todas as minhas plantas. Só não sei ainda como vou fazer com meus inúmeros livros, porque o primeiro andar não é tão grande assim.

Com calma vou me arrumando. Ainda sinto falta de acordar e tomar logo aquele café bem doce de Seu Vital, com o sol da manã do Recife, papear umas besteirinhas, ver ele botar a comida para os louros. Mas não faz parte da minha natureza estes apegos. Eu lembro, e é bom, a vida segue.

Estou mesmo de volta para um aconchego. Vou nessa, que Renato quer dar uma olhada no computador.



ôps: levei a tia a um nefrologista, não a um frenologista, que são coisas diferentes, como bem me alertaram.Ontem aprendi a tirar a pressão arterial.

Estuário está agora também no instigado site www.mutuca.com

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Mudanças

Não sei exatamente quando chega a hora da mudança. Em algum momento, a pessoa vai de uma casa para outra, ou vai de um apartamento para um sítio, de uma cidade para outra. Em algum momento, os filhos já não estão, a casa fica imensa, aqueles quartos, antes plenos de aleluias, se enchem de vazio, é preciso sair. Em algum momento, saiu a aprovação para o Mestrado, e é urgente começar de novo. Uma determinada hora, a dona do apartamento pede de volta, ou a família cresceu, é preciso novos espaços.

Chega o momento de buscar outras paredes, pendurar fotos em outros lugares, entregar as plantas queridas para o vizinho cuidadoso. Deixar para trás aquele quintal com uma mangueira, botar os livros dentro de caixas, pensar pela milésima vez que está guardando cacarecos demais, e esquecer disso pouco depois.


Surgem os aprendizados. A geografia da nova casa precisa ser percorrida sem pressa, de preferência com o espaço vazio. É preciso sentir o cheiro, apalpar alguma brisa, olhar onde o sol bate. Percorrer descalço o quarto novo, o corredor, inaugurar janelas. Sim, é preciso muito cuidado com a inauguração das janelas. Imaginar onde ficará aquela moldura de algum Carnaval passado, quando todos estavam felizes, no tumulto do frevo. É preciso acender um incenso e começar a chegar mansamente.


Não, amigos, não concordo com essas mudanças que chegam com o caminhão brusco e os homens que mal falam, suados e apressados. Eles carregam caixas, nunca as nossas coisas. Levam, esbaforidos, uma caixa de livros, nunca "a" caixa, com nossos poetas prediletos. É preciso um contato íntimo, uma celebração. Ver a cozinha, tomar um café inaugural, dar uma espiada no quintal, ver onde bate a sombra, onde cresce o sol, obseravar quais as plantas poderão ser levadas. Usar o sanitário, em silêncio, lembrando que durante algum tempo, este será o novo trono. Observar quietamente os azulejos, se estão nos conformes. Nunca, mas nunca, ficar no impasse das comparações.


Só depois, quando algumas ternuras estiverem vingando, passar para a transferência dos móveis, livros, discos, essas coisas que vamos juntando durante a vida. O fenômeno da ocupação. Redesenhar a geografia, repovoar os vãos, encher de vida o silêncio e a quietude. Colocar, na entrada, aquele singelo, esperançoso e por vezes patético "Nesta casa mora gente feliz". Por último, chamar os amigos, os parentes, e celebrar. Aqui recomeço minha jornada pelo mundo. Aqui descansarei. Aqui me recolherei do tumulto do mundo. Que os deuses nos permitam bons vizinhos, e que o cachorro do lado não seja daqueles que latem o dia inteiro.


Mudança é parte do meu caráter, das minhas células, é uma herança genética, espiritual, familiar. Minha família se mudou muitas vezes. Morei em várias cidades, em muitas casas diferentes, em geografias as mais diversas. Sou de mundos. De uma casa sentimental no Crato da minha avó, a uma residência bem mais ampla, em Imperatriz, no Maranhão. De umas repúblicas bolorentas, no centro do Recife, à uma bucólica casa, no Poço. Alguns apartamentos em São Paulo, uma casa numa rua sem saída no Cabo. São muitas as moradas do ser.


Aprendi, desde cedo, a me despedir sem dores, sem saudosismo, aceitando o novo destino. Outro dia, descobri que meu avô era um andarilho, e morreu no Rio de Janeiro, sabe-se lá como, após mudar mais uma vez.


Às vezes tenho uma inveja sentimental distante de quem nasceu e morou no mesmo lugar, criou a tal raiz, não consegue se ver em outro lugar, bate no peito dizendo "aqui é minha terra". Cinco minutos depois, a inveja já passou e fico lembrando das aventuras, dos lugares que já vivi. Minha terra é o planeta, que leva o mesmo nome.


Algo se perde, em cada mudança. Algo se quebra. Algo não encaixa mais na nova casa, e parece não se encaixar na própria vida. O espelho do antigo banheiro não cabe no novo. A estante imensa fica fora de ordem na nova biblioteca. Mas é preciso deixar, aceitar. Algo também parece compensar, de alguma forma. Uma vista maravilhosa às vezes não existe no novo lugar, mas tem um vento formidável, que antes não estava. O jardim imenso de outrora é trocado pelo silêncio profundo e inspirador, em plena tarde. Essas compensações da vida, que são muitas, o tempo todo, e às vezes nos falta um olhar mais acolhedor.


Para o lugar que fica para trás, é preciso somente uma cerimônia: a do agradecimento. O incenso derradeiro. Percorrer os espaços lentamente, caiando todas as paredes com a precariedade da memória. Aqui amei. Aqui escrevi meu trabalho da faculdade. Aqui fizemos muitas farras. Aqui vimos os jogos da Copa. Aqui recebi aquele telefonema tão triste. Aqui a Lulu aprendeu a dizer “água”, enquanto aguávamos as plantas. Aqui, nesta rede, li pela primeira vez o Guimarães Rosa. Ah, a memória, esta criatura vertical e imperecível...


Vou aqui, pacientemente, embalando minhas caixinhas...

ps. a partir de hoje, este blog passa a ser publicado também no belíssimo www.mutuca.com


sábado, 4 de novembro de 2006

Perambulações pelo Agreste (final)

Como eu vinha dizendo numa crônica anterior (antes das eleições), estava hospedado no Convento da Ordem Carmelita, em Camocim de São Félix, fazendo minhas tradicionais perambulações espirituais, quando o espaço religioso foi invadido pelo conhecido fenômeno da "excursão da terceira idade". Eu detesto essa definição "terceira idade", e prefiro velho mesmo, que é uma palavra muito mais forte e bonita. "É um homem velho" não tem maquiagem, enrolação, tem história, verrugas, história de vida, força. "Está na terceira idade" não me diz nada.

Pois bem, no final da manhã, a turma da excursão estava uma arara com a coordenação do convento, porque a piscina não estava liberada para o banho. O sujeito que conserta piscina (piscineiro?) teve que ir a Caruaru. A água estava marrom.

"A gente toma banho assim mesmo", disse uma velhinha. Não teve acordo.

Depois fiquei meditando. Convento com piscina? Se o Bento XVI souber disso, manda tapar tudo e construir um mausoléu.

Uma das velhinhas me olhava atentamente. À noite, no café, ela não resistiu. Passei com meu pedaço de bolo e um copo de café, e ela comentou:

"Esse aqui esqueceu de crescer".

Como tenho quase um metro e noventa, dei uma risadinha. Sentei na mesa ao lado. Ela ficou em silêncio, depois recomeçou.

"E essa barba, heim? És algum missionário?"

"Da Ordem dos Franciscanos Menores", respondi.

Ela arregalou os olhos.

"Eu sabia".

Veio diretamente para minha mesa. Fiz uma cara muito séria. Me animei com a brincadeira.

"Eu tinha certeza que você era missionário. Faz tempo que você está aqui, no convento?"

Como já morei com o ex-frade Gustavo e conheço a rotina das ordens religiosas, fora as hospedagens em diferentes mosteiros, tinha muito o que falar.

"Não senhora. O convento aqui é da Ordem Carmelita, e sou da Ordem dos Franciscanos. Não posso ficar em duas ordems ao mesmo tempo. Mistura o entendimento pessoal".

Não sei de onde tirei esse "mistura o entendimento pessoal", mas caiu bem. Ficaria melhor "entendimento espiritual".

"É como jogar no Santa Cruz no primeiro tempo, e no Central de Caruaru no segundo", continuei. Eu jamais iria comparar com nosso arqui-inimigo rubronegro.

"Sei, sei", dizia ela, muito atenta.

"Estou num pequeno retiro, repensando meus caminhos. Serão sete dias de muito silêncio e recolhimento".

"Sei, sei".

Fiz aquele silêncio grave. Comi o bolo lentamente, cheio de metafísica, como quem está com uma hóstia na boca.

"Mas você vive mesmo em qual convento?"

Lembrei do Gustavo e resolvi fazer uma pequena homenagem.

"Já morei em vários, seguindo as orientações do nosso superior, Dom Castro. Comecei em Caruaru, onde os franciscanos estão bem assentados, depois segui meu périplo, onde não posso escolher. Estive em muitos lugares, passei um período na África, vi muito sofrimento, mas agora devo retornar às minhas origens. Semana que vem, retorno a Caruaru, para um novo ciclo".

"Você gosta mesmo dessa vida? Não sente falta das coisas da mocidade? ", seguiu minha inquisidora.

"Já não sou tão moço assim, caminho para os 40 anos. Mas é um caminho sem volta. A gente sente a mesma alegria, só que de outra forma. Com o tempo, os valores mudam. Não me vejo num boteco, jogando dominó e conversando bobagens com os amigos".

Olhei-a atentamente.

"A senhora já pensou quanta energia uma pessoa gasta numa arquibancada de um estádio, torcendo por um time de futebol?".

Lembrei das temporadas de 2005 e 2006, acompanhando o Santa Cruz no Estadual, Série B, Copa do Brasil, Série A etc.

A conversa se estendeu e ela ficou muito feliz em conhecer um missionário franciscano. Inventei mais algumas histórias, improvisei uns dois ou três milagres menores, ressaltei o caráter inabalável de Dom Castro, que andava escrevendo sobre as formas elementares do ser humano, amparadas na espiritualidade do novo milênio e a poesia do cotidiano, e a velhinha ganhou a noite.

Mais tarde, informei que precisava "me recolher" mais cedo.

No dia seguinte, no café da manhã, ela foi a primeira a vir falar comigo. Trazia uma amiga pela mão.

"Frade, frade, preciso de um favorzinho".

"Pois não".

"É que minha amiga está com alguns problemas familiares e precisa de uns conselhos espirituais..."

Senti a barra pesar.

"Olhe, quando estamos em retiro, em outro convento, não podemos desenvolver nenhuma atividade de aconselhamento espiritual. Espero que me entenda, são as regras da Igreja, agora bem mais severas com o nosso novo Papa, Bento XVI".

"Mas era só uma conversazinha..."

"Não é possível. Além disso, Dom Gustavo de Castro é muito severo".

Ela sorriu, sem graça, e bati em retirada.

À tardinha, pela graça divina, era o momento de retornar ao Recife, terminando a peregrinação pelo Agreste.

Só lamento ter esquecido de perguntar o nome da velhinha, dom Gustavo.

terça-feira, 31 de outubro de 2006

Investigações paralelas numa reunião dos Alcooólatras Anônimos

Desde que fiz as pazes com o meu pai, as viagens a Fortaleza têm tido este tom mais fraterno. Acabou aquela saia justa do filho-rebelde-que-enfrenta-o-velho x pai-achando-que-foi-injustiçado. Da vez passada, tomamos uma cana troncha e rimos muito, num forró meia boca, daqueles em que um tiroteio é a coisa mais natural do mundo nos próximos minutos.

Nesta nova viagem, meu pai veio com essa. Encontrar o meu tio, que está frequentando os Alcoólatras Anônimos (AA). Olhem, se o meu tio está há um ano sem beber, meus amigos, o AA já pode ser tombado como patrimônio da humanidade. O camarada bebia e não era pouco, e era sempre. Fui lá para dar uma força ao meu velho tio, apesar de ele torcer pelo Flamengo, essas coisas esquisitas de família que eu, ao exemplo do Belchior, nunca entendi bem.

Chegamos lá. Não posso dizer o bairro nem o nome das pessoas porque o troço é anônimo. Meu tio estava lá. Mais envelhecido. Ao seu lado, o meu padrinho, que só vi uma vez na vida, e dizem que foi quando nasci, no longínquo 1969 (eu estava doido para escrever "longínquo", hoje). Meu padrinho é o caçula da turma: está há reles, magérrimos, quase não-registráveis 22 dias sem beber. Vai ter que passar uma sede monstra, se quiser se garantir no AA.

Um sujeito de uns 50 anos, um negão retinto, carioca, conta sua história. Só pela cara dá para perceber que ele conhece todos os botecos do Rio e agora, de Fortaleza. O cara é cheio de gírias, malandragens e artimanhas. "Não me preocupava nem comigo", diz. A história é longa, começa pela época de Madame Satan, que, segundo ele, virava até viatura da Polícial. Isso, pelos meus cálculos, faz um tempão. "Hoje, eu bebo é a sobriedade", diz. Daqui a pouco, passa a bandeijinha. Vejo meu tio tomar um inocente, bucólico, pacato, quimérico chá de erva doce, e acho que milagres acontecem. Bebo um também, em solidariedade, apesar do Flamengo.

O negão falava pra chuchu. Olhei no meu caderninho, tenho quatro páginas só com ele. Mas vamos matar logo a curiosidade: está há dez anos sem provar da malvada. Segue o lema do AA, que é evitar o primeiro gole.

Depois veio um militar da reserva. Esse fez merda pra cacete, brigou, arranjou confusão com vizinho, e lembrou as ressacas monstras que passou. Todos chamam o AA de irmandade. Passou outro chazinho e bebi mais. Meu tio faltava apenas a coroazinha na cabeça, para ser um santo. O militar já estava com uns 15 anos invicto. Nem aquela cervejinha no fim-de-ano. O perigo é constante.

O outro camarada, meio fanfarrão, contou uma história deliciosa. Estava noivo, na praia com sua beldade, comendo carangueijo, e fazia questão de ir buscar o produto lá dentro, na cozinha. Uma amiga comentou:

"Poxa, esse teu noivo é tão atencioso! Ele faz questão de ir lá dentro, escolher nosso carangueijo!"

Só que era artimanha do nosso amigo. A cada viagem, tomava uma lapadinha. Quando chegou a conta, ele tinha ido ao banheiro e a noiva ficou espantada:

"Botaram 16 doses de cana a mais em nossa conta!"

Deu errado, como diz o velho sábio Naná.

A última história foi dramática mesmo. Um advogado estava no primeito dia. O cara torrou uma herança que não era pequena. Fazia as petições com a caninha do lado. Estava decidido. Começava naquele dia sua longa batalha. Veio mais um chazinho, mas o meu tio encheu o saco de chá, bebi só para constar. O clima ficou emocionante. Todos davam uma força. Somados, os três que deram depoimento representavam uns 40 anos longe do copo. Não sei como estariam se tivessem continuado. O cara que chegou me pareceu sofrido, mas disse que estava se sentindo acolhido e amparado pelo grupo. Meu tio me segredou que desde setembro está sem fumar, e comecei a achar um exagero. Pena que o Santa Cruz esteja caindo pelas tabelas, porque mais tarde joga contra o Flamengo, no Maracanã, e podia dar uma boa lapada. Ôps, o trocadilho foi infame.

A reunião terminou às 21h e sete páginas de anotações a mais no meu caderno de investigação dos fatos paralelos. Saímos, conheci mais meu padrinho, que morou um tempão na Bahia e parece ser gente boa. Pela cara, acho que ele vai aguentar somente uns 30 dias. Dei um Estuário de presente para meu tio, outro para meu pai. Meu pai tem uns 63, torce pelo Fluminense, meu tio tem uns 60, é louco pelo Flamengo, mas quem está lascado mesmo é meu Santa Cruz, com 24 pontos, e matematicamente na Segunda Divisão do ano que vem.

No caminho de volta, meu pai perguntou onde a gente poderia tomar uma cervejinha.

"Não dá, pai. Depois de uma reunião dessas, o cara não tem clima para beber".

Terminei a noite tomando um inocente sorvetinho, com a dona Ermira e minha irmã.

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Um dia de votação em Fortaleza

Diretamente de Fortaleza, no Ceará.

Vim a Fortaleza com uma missão clássica: votar em Lula. Cheguei apenas com a cópia da justificativa do primeiro turno e a esperança de botar o 13 e depois o "confirma".

As coisas, para algumas pessoas, são mais difíceis. Amanheci o domingo com os amigos no jardim, saboreando a deliciosa Ypióka, enquanto a dona Ermira, que vem a ser minha mãe, preparava um cozidão. Água no jardim, cachaças e os petistos da mamma. O sujeito vai querer mais o que da vida? Eu queria mesmo era que Lula desse uma lapada.

No final da manhã, tia Lourdes, moradora aqui da frente, foi votar no Maracanaú. É como se uma senhora de 73 anos decidisse votar no Cabo, só para não perder o voto. Fui com o Neto. Na entrada, vem um velhinho.

"São dois votos de coração: no primeiro, e no segundo turno. Deixei o rosto dele aparecer para olhar ele direitinho e dizer - é você mesmo", me contou um velhinho. Usava um adesivo de Lula.

Tia Lourdes votou a jato. Voltamos com as bandeiras tremulando. Não sei como foi no Recife, mas Fortaleza estava toda vermelha.

À tarde, saí com o Pepo, Neto, Roncalli e meu irmão, o Tonho, para votarmos. Minha mãe já tinha votado em Lula. Com o dela, o de tia Lourdes, eu e meus amigos, Lula já começou o dia com sete votos. Depois vieram outros milhões. Minha irmã, Mônica, foi de Alkmim. Aqui, só chamavam ele de "Àlcool em mim".

Na primeira escola, onde estava meu título de eleitor, informaram que tinham mudado a secção. Fomos para outra. Comecei a entrar em dezenas de secções, e nenhuma tinha meu nome. Fomos para outra escola. Tinha uma faixa na frente:

"Mudamos para o Círculo Operário".

Eita, foi lá que aprendi datilografia: asd asd asd asd asd

O Pepo também lembrou da escola, e até da professora. Eu e o Pepo viramos jornalistas. Viva o curso de datilografia do Cículo Operário! A professora, creio, se chamava Miriam.

No Círculo Operário, bati todas as secções. Estava desistindo, quando o Pepo sentenciou:

"É aqui que tu vota".

Na última sala, o milagre. Meu nome estava lá. Foram quase vinte secções percorridas por este jovem que vos fala. Apertei o 13, vi o barbudo, esperei um pouco e confirmei.

Depois andamos pela cidade e derrubamos mais dois litrinhos, no Jardim. À noite, a festa foi na Avenida da Universidade. Eram milhares de pessoas.

Antes, passamos na casa da Mirtes, mas ela estava mamadinha.

Senti falta do mano, o Paulinho, que está em Minas.

Não lembro de muita coisa da festa, nas ruas. Eu já tinha tomado umas garapas, e não sou de ferro.

Dizem por aí que o senhor Inácio França vai ser convidado para a equipe de governo.

Sabem qual o lema da Prefeitura de Fortaleza?

"Fortaleza Bela: quem ama cuida".

Hoje estou telegráfico, mas escrever de lan house provoca isso.

Amanhã, já no Recife, botarei este blog em dia. Tem uma dezena de novas crônicas para postar, inclusive a que fala do dia em que virei frade franciscano, da ordem menor, no Agreste de Pernambuco.

Ah, a manchete do jornal O Povo, de hoje:

"É Lula de novo".

Bem original.

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

O amor do voto de Inácio e o desencontro dos brasis

Estava conversando ao telefone ontem á noite, com meu velho amigo Inácio França, quando o celular dele tocou. Era o chefe de gabinete da Presidência da República, o digníssimo Gilberto Carvalho. Ele pensou que era trote, claro, mas foi conferir. Disse que depois me ligava.

O Gilberto Carvalho disse que estava ligando em nome do Presidente da República, o senhor Luís Inácio Lula da Silva. É que Inácio escreveu um texto, há uns 10 dias, intitulado "O amor do meu voto", e postou para uns cinquenta amigos. O texto virou uma coqueluche da Internet.

Na segunda-feira, dia do debate da TV Record, o texto de Inácio acabou chegando à esposa de Gilberto, que repassou para o marido e, no começo da tarde, o próprio Lula recebeu uma cópia enviada pelo chefe do seu gabinte. Estava concentrado para o debate, certamente um pouco tenso, quando começou a ler essa pequena pérola, "O amor do meu voto".

"O presidente pediu para localizar o autor do texto, para dizê-lo que não apenas leu, mas se emocionou muito e chorou ao final", explicou Carvalho.

Mais que isso. Após a leitura, Lula sentiu uma imensa tranqüilidade. Estava pronto para mais um combate. Podia vir a besta-fera, que ele saberia enfrentar. Não era um material preparado por assessores, era um texto relativamente curto, produzido por uma pessoa que o presidente nunca vira.

"Ele pediu também o seu endereço, para mandar uma correspondência".

Inácio só fazia dizer "porra", "caralho", até que lembrou do velho amigo Laércio Portela, também jornalista, ex-assessor de imprensa de Humberto Costa, que mora em Brasília está trabalhando lá no Planalto.

"Isso é gréia de Laércio, não é?", perguntou Inácio.

Gilberto conhece Laércio. Jurou que não era nada de brincadeira, que Laércio não estava ao lado, dando risadinhas. Falava em nome do presidente. Repetiu a história. O texto está em tudo que é email, tem circulado muito pela Internte, acabou chegando ao presidente, e calou fundo.

"Teu texto foi a última leitura que ele fez antes do debate. Ele ficou tranquilo. Estava pronto", repetiu Gilberto.

Então a ficha de Inácio caiu. O pequeno texto enviado sem pretensão, para um grupo de amigos, acabou sendo a base sólida para Lula caminhar tranqüilo, no último debate.

Inácio me disse há pouco que já foi duas vezes à portaria do seu prédio, somente hoje, para ver se chegou a carta do presidente. Até a chegada da missiva, ele prometeu que vai repetir a pergunta:

"Meu querido, por acaso chegou uma cartinha do Lula para mim?"

Faltando quatro dias para o segundo turno, reproduzo o texto na íntegra, porque o amor do voto de Inácio é o mesmo amor do meu voto.

Samarone Lima, cronista recifense, declaradamente de esquerda, vai viajar domingo para Fortaleza, no Ceará, para votar em Lula.

**

O amor do meu voto

por Inácio França

Para se chegar a Olivedos de carro é preciso entrar à direita numa estrada de terra, 30 minutos depois de Campina Grande. Pouco mais de 3.300 pessoas vivem no município, a maioria em modestas casas construídas ao redor da pequena igreja matriz, pintada de amarelo. A caatinga que marca a paisagem dos Cariris Velhos, agreste paraibano, começa já no quintal das casas.

Numa viagem profissional às vésperas do feriado, passei algumas horas na cidade, tempo suficiente para cumprir a tarefa de acompanhar uma avaliação da gestão das políticas sociais do município. Tempo suficiente para as explicações racionais e ideológicas, que justificaram meu voto em Lula no primeiro turno, perdessem sentido.

Em Olivedos, pressenti que meu voto em Lula no segundo turno será um momento de intensa emoção. Um voto carregado de orgulho, um voto com amor.

Isso tudo porque cheguei cedo à cidade, uma hora antes do previsto. Aproveitei, então para perambular pela cidade e conversar com algumas pessoas que participariam da reunião. Logo me chamou a atenção o movimento diante de uma casinha pintada de verde, na verdade, uma espécie de garagem, com apenas um cômodo. Em fila diante da garagem, alguns homens simples, ao lado de jumentos que carregavam nas laterais aquelas enormes garrafas de alumínio para transportar leite. Dentro do imóvel, um enorme tanque, da altura de um homem adulto, com uns aparelhos modernos e um painel digital, algo improvável numa casinha simples, cercada de mandacarus, xique-xique, juremas e algarobas.

Uma senhora, que se apresentou como presidente da “associação”, explicou que aquele tanque era refrigerado, garantia a conservação do leite até meio-dia, quando um caminhão de uma empresa levava o alimento para a fábrica, em João Pessoa. Com a venda do leite, cada um dos pequenos criadores, donos de minúsculos lotes de terra e três ou quatro vacas, fatura até R$ 550,00 por mês. Até o ano passado, a principal fonte de renda dessas pessoas era o dinheiro da aposentadoria, um salário-mínimo, recebido geralmente pela pessoa mais velha da família.

Antes, esses criadores só tinham uma saída: percorrer a cidade em seus jumentos, vendendo diretamente para os moradores da cidade por R$ 0,30 cada litro. Às 10h, por causa do calor, o leite começava a estragar. O desperdício era grande. Hoje, a empresa paga R$ 0,70 por litro, dos quais R$ 0,05 fica na associação para pagamento dos impostos e do salário do rapaz que recebe o leite e faz os exames para controlar a pureza do alimento, antes de colocá-lo no tanque refrigerado.

O tanque foi comprado com recursos do micro-crédito de um programa do Ministério do Desenvolvimento Agrário. O rapaz aprendeu a testar a pureza do leite num curso na capital, pago com recursos federais.

Na mesma rua da garagem onde funciona a cooperativa de leite, está a Escola de Ensino Fundamental Monsenhor Stanislaw. Orgulhosa, uma funcionária da prefeitura me leva para conhecer as obras do auditório da escola, que está sendo construído no lugar de um galpão cujo teto já ameaçava os alunos. A obra também parece improvável naquela cidade: o auditório terá capacidade para 300 pessoas, 10% da população da cidade, e está sendo construído em forma de anfiteatro, com poltronas confortáveis que já chegaram e estão guardadas, prontas para serem instaladas. “Quando o auditório, ficar pronto os meninos da banda de Pífanos e do coral vão ter onde se apresentar”, antecipa a funcionária.

Perguntei de onde veio o dinheiro, a senhora se espantou, respondendo quase indignada com tamanha ignorância: “do Ministério da Educação”.

Mais adiante, buracos abertos no calçamento de paralelepípedos, na área em torno do colégio. A funcionária, grávida de oito meses, informou que aquelas eram obras do saneamento e da rede de esgotos. Segundo ela, até o final de 2007, Olivedos estará 100% saneada. Antes que eu fizesse mais outra pergunta besta, ela foi logo dizendo que o dinheiro veio do Ministério das Cidades.

À tarde, depois da avaliação, se desculparam porque eu não poderia conhecer o prefeito. “Josa (esse é o apelido do prefeito Josimar) foi em João Pessoa assinar um convênio para conseguir mais cisternas e banheiros pro pessoal da zona rural”. O convênio foi assinado na Fundação Nacional de Saúde., que já custeou a construção de dezenas de outras cisternas e banheiros que funcionam com água da chuva, captada por calhas, assim como as cisternas.

A caminho do Recife - onde vivo a mercê do noticiário da TV e da ótica de amigos que recebem salários razoáveis, vivem em apartamentos como o meu, com banheiros confortáveis, em ruas asfaltadas de classe média e filhos estudando em imensos colégios particulares – avaliei o quanto esses Brasis não se relacionam, não se conhecem. Compreendi o tamanho do abismo que nos separa e quanto está sendo feito para reduzir essa distância.

E entendi os motivos do ódio e da mobilização daqueles que sempre tiveram livre acesso aos recursos que correm nas veias do Governo Federal. Mais do que saber a origem do dinheiro, o que as elites brasileiras querem mesmo é mudar o destino do dinheiro, Afinal, para assegurar crédito para latifundiários e empresários (que nunca pagam o que conseguem nos bancos públicos), é necessário deixar de lado a construção de mais cisternas, novos auditórios em escolas sem estrutura, rede de esgotos e a ajuda para cooperativas de leite.

Mas, finalmente, compreendi porque os moradores de Olivedos se referem ao presidente da República como alguém da família. Luís Inácio Lula da Silva, para os olivedenses, é o “nosso Lula”. O Governo Federal está tão perto que o presidente é íntimo de todos eles.

terça-feira, 24 de outubro de 2006

Perambulações pelo Agreste - parte II (a missão)

Camocim de São Félix, Agreste de Pernambuco.

Sim, mas como eu vinha contando, minha expedição das forças desocupadas precisava de novas fronteiras. Depois de vasculhar São Joaquim do Monte e cheirar o túmulo de Frei Damião, era o momento de conhecer Bonito, ali na região, porque dizem que a cidade é bonita pacas. Botei meu tênis, catei a bolsa bolsa, o canivete, uma garrafa d´água e uma discretíssima maçã. Faltou-me uma bússola, para ficar igualzinho ao cinema, mas eu não me oriento nem com bússola.

No centro de Camocim de São Félix, sou informado que o ônibus acabou de sair. Não desanimo. O negócio é ir caminhando mesmo. Pocot, pocot, pocot, lá vou eu.

Daqui a pouco, à saída da cidade, passa a singela, bucólica e inenarrável figura de uma Belina, de ano incerto e não-sabido. Alguns de vocês, os mais velhos, devem saber do que falo.

“Vai para Bonito”, me pergunta o motorista.

“É carona ou é frete?”, pergunto.

“É só dois e cinqüenta”, me responde o rapaz.

Entro na Belina. Falta pouco para ela se desmanchar, de tão remendada. Vou na frente, e como tenho as pernas meio grandes, sempre fasto a cadeira para trás, puxando aquela alavanda. Temendo arrancar a cadeira do lugar, fico na minha. Daqui a poucos metros, mais três passageiros. Um com cara de agricultor, um com cara de contrabandista e uma senhora, com cara incerta, e um pandeiro imenso. A Belina gemeu, com tanto peso e o motorista sentou o pé.

Amigos, o povo no Agreste gosta de uma carreirazinha, visse? Daqui a pouco, a Belina voava rasante, e tive saudades da motoca do dia anterior (veja crônica passada). Como sou de puxar assunto, comentei o verdinho das plantações. O motorista informou, solene:

“Sabia que aí tem vinte e cinco mil pés de tomate?”

Sabia não, inclusive fiquei impressionadíssimo.

“E é tudo do mesmo dono”.

Eu quero é novidade, meu camarada.

Cheguei vivo a Bonito, para uma perambulação pela cidade. Fui por ali, voltei, cheguei a uma Igreja, lá no topo, tinha o busto de alguém. Fui lá, ver quem era. Acho que era o Barão de Bonito, creio, mas estava escrito somente “Priscila”, onde tinha a placa, outrora. Francamente, Priscila, francamente..

Ao lado da igreja, uma bela, mimosa, decente e bucólica casa azul, com aqueles pés de laranja ao redor, sombra para tudo que é lado, e a placa: "vende-se esta casa".

Imediatamente, me deu vontade de morar em Bonito. Bati palmas até cair o couro das mãos, mas nem um reles vira-lata apareceu. Não deixaram telefone, de sorte que não fechei o negócio, e continuarei morando, até ordem contrária, no Poço da Panela.

Desci, andei para um lado, para o outro, até que me veio aquele desejo antigo de ir à cidade vizinha, “Alto Bonito”, porque dizem que tem o rio Prata, a barragem, o povo tomando banho, e estou com meu calção de banho azul-desbotado por baixo, para o caso de aparecer algum açude ou barragem. Vou matar saudades dos banhos de açude da infância. Vou andando de novo. Pocot, pocot, pocot.

Lá pelo quilômetro três ou quatro, me dá um cansaço físico e espiritual. Paro à beira da estrada, como a maçã olhando a paisagem, bebo uns golinhos d´água e fico pensando na casinha, ao lado da igreja. Puxa vida, morar numa cidadezinha do interior, a duas horas do Recife, com cachorro fazendo festa na hora de passear e clima de montanha ao anoitecer! Ali sim, eu iria escrever umas crônicas supimpa. Melhor que isso, morar numa cidade chamada Bonito!

Fico pensando na minha burrice. Deveria ter perguntado a algum vizinho quanto custa a casa, para demonstrar o interesse, dar um sinal, algo assim. Vem aquele sentimento de ter perdido uma oportunidade de ouro.

Mas dá um vento contrário e caio na real. O sujeito só compra uma casa com dinheiro, e não estou com essa bola toda.

Volto para Bonito. No caminho, passo por um pequeno açude, estão três meninos brincando, pulando, jogando água um no outro. Vejo claramente Paulo, Antônio José e Samarone, muitos anos atrás, e me dá uma saudade imensa dos meus irmãos.

Chego vivo à rodoviária de Bonito e espero um ônibus para Camocim. Fico tomando suco de maracujá com canudinho, o melhor suco que existe no globo terrestre, olhando as pessoas na rodoviária. Anotei um monte de diálogos, mas o caderninho não está aqui, fica pelo menos o registro – anotei vários diálogos na rodoviária de Bonito.

Uma moça bonita, com aquele rosto forte de gente do interior, as pernas fortes, de galinha de capoeira, chega perto do namorado e comenta:

“Mas é parado aqui, né? Sou mais o Recife mesmo”.

O rapaz faz que sim com a cabeça. Não sei se o sim é sim ou se ele gosta mais dali mesmo, com aquele ventinho suave lambendo seus cabelos.

Volto para o convento mais cansado que no dia anterior. A moça me pergunta para onde fui.

“Para Bonito”.

“A pé?”

“Sim, a pé mesmo?”

Ela fica horrorizada.

“É que já fui maratonista, então tenho resistência”, digo.

“Vinte quilômetros para mim, é como ir ali na esquina”. Aí eu já estou mentindo de com força.

Em seguida, quase não consigo subir as escadas.

Terei que contar, mais tarde, do meu encontro no convento com as velhinhas de uma excursão, e de como me transformei em um frade franciscano num piscar de olhos, com viagens missionárias as mais emocionantes, para várias partes do Brasil e África.

Mas isso fica para amanhã, para criar um suspensezinho, que ninguém é de ferro...

segunda-feira, 23 de outubro de 2006

Perambulações pelo Agreste - I

Camocim de São Félix, Pernambuco.

Chego ao Convento das Carmelitas, aqui em Camocim, depois de viajar pela Borborema, saindo do TIP, que por sinal, anda meio derrubado. Ao lado, viajou uma freira, mas não me deu muita bola, e acho inclusive que ela era de outra ordem.

Vou chegando a alguma cidade, pergunto ao camarada da frente se ele sabe onde fica o convento. Ele informa que o ônibus vai parar mesmo na frente, e que me avisa. Cinco minutos depois, digo aquele "e então", e ele me responde com um "esqueci não, visse?". Pergunto se faz frio à noite. "É clima de montanha", informa, e lembro que esqueci meu cachecol e minhas mantas.

À entrada da cidade, veo que meu amigo está certo. "Bem vindo a Camocim de São Félix. Clima de montanha. Altitude: 723 metros". Eu, que tenho um medo ancestral de altura, já começo a ter vertigens. A cidade foi fundada em 1954, mas fizeram uma covardia com o fundador: sequer o nome completo dele colocaram na placa.

Chego ao convento. Um silêncio santificado no imenso espaço. Ganho um quarto confortável, com duas camas, uma mesinha e banheiro. Ao contrário de muitos conventos espalhados pelo mundo, este tem chuveiro elétrico com água forte e quente. Leio o aviso detrás da porta. Não pode fumar nem dentro nem fora do lugar. Como só tenho fumado ultimamente nos jogos do Santa Cruz, não terei problema.

Feito o reconhecimento do terreno, hora da primeira expedição. Vou ao centro, vejo a igreja, a praça, a prefeitura, as pessoas simples, e à saída da cidade, esbarro na imensa placa:

"São Joaquim do Monte - Santuário de Frei Damião".

Embico rumo a São Joaquim imediatamente. É uma caminhada longa, pela beira da pista, mas como sou bom no galope manso, vou seguindo, debaixo de um sol cortante. Os carros passam por mim tinindo. É cada fino do caralho. Duas horas depois, chego à cidade. A língua está por ali e os pés doem. Vou olhar qual é o problema: comprei um tênis 43, quando calço 44. Essas minhas distrações me lascam.

Olho a paisagem de São Joaquim do Monte. Farmácia Frei Damião, Mercadinho Frei Damião, Açougue Frei Damião, Foto Frei Damião, Lanchonete Frei Damião, Bomboniére Frei Damião, e por ai vai. Paro e peço uma água de côco. A senhora que me atende é de uma simpatia brutal. Olho na parede uma moldura de Miguel Arraes, com um baita sorrisão. Pergunto quem vai ganhar as eleições por aqui.

"É Lula lá e Dudu aqui".

Dudu vem a ser o senhor Eduardo Campos, candidato ao Governo. São as tais intimidades eleitorais.

Depois da água, tomo um café. O café é de grátis, e consegue ser mais doce que o de Seu Vital. Ela me informa que o prefeito da cidade também está com Lula.

O Santuário de Frei Damião está a um quilômetro. Vou me arrastando, com os pés doendo. Agora, na verdade, já estou até chateado com o Frei. Descubro que caminhei dez quilômetros com um sapato apertado. Vou devagar, reparando as propagandas políticas. Em toda esquina, tem uma foto de Inocêncio Oliveira. Depois de dez minutos, é impossível não decorar o número dele: 2233. Se a eleição fosse hoje, acho que eu erraria o meu voto para Deputado Federal, e o Paulo Rubem perderia meu singelo voto. Entraria na cabine, e marcaria o 2233 sem nem perceber. É o tal voto por osmose.

Estou a 500 metros do Santuário, cansado, com fome, os pés mastigados, então me vem uma pergunta: Mas que diabo de tanto esforço é esse, para ver o Santuário do Frei Damião?

Logo me vem aquela preguiça fundamental e descubro que nunca tive essas simpatias todas pelo velho frei (que ninguém na cidade perceba). Sou mais o Padim Ciço Mesmo, depois do amadíssimo São Francisco, Gustavo não me deixa mentir. Dou meia volta, esbarro na milésima propaganda de Inocêncio e paro em uma pracinha, para tomar minhas notas aleatórias.

Passo de novo na lanchonete, peço outro côco.

"Mas já visse o Santuário?", pergunta.

"Era só para rezar uma oraçãozinha e agradecer pelas coisas boas que têm acontecido", respondo.

De novo, café de graça.

Olho a paisagem e me vem aquele cansaço da metade da tarde. O sol ainda está rasgando. Inocêncio fica rindo para mim, e penso em como voltar para casa. Olho ao norte e vejo uma tuia de motoqueiros. São os famosos Moto-Táxi. A viagem de volta sai por R$ 7,00. Contrato o serviço, mas como o capacete não entra em minha cabeça, vou com o vento no focinho.

O motoqueiro tem um plano secreto de se suicidar comigo. Estamos voando pela pista, e de vez em quando ele se vira, para comentar alguma coisa. Olha pra frente, infeliz, penso em dizer. Se a moto virar, eu viro uma papa.

Chego ao mosteiro vivo, suado, cansado com número de Inocêncio na cabeça: 2233. Penso em ligar para Seu Vital, para ele jogar no bicho, mas preciso me desapegar do Poço, pelo menos por uns três dias.

Mais tarde, antes de dormir, coloco mais uma postagem. Descobri uma lan house com dez computadores, mas está invariavelmente entupida. A moçada do Agreste também adora um Orkut, então fico na linha de espera.

Ps. desculpem eventuais erros, escrevi na tora, porque o troço aqui cai direto.