terça-feira, 30 de agosto de 2005

Pequenas ternuras

Gravatá, 30 de agosto de 2005.

O texto abaixo é de Paulo Mendes Campos, mas eu gostaria de ter escrito, estou aqui sem tempo para escrever, prometo minhas pequenas ternuras amanhã, a vida segue, sempre segue, vamos com nossas pequenas ternuras, iluminando a vida...
Samarone.

"Quem coleciona selos para o sobrinho; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma largatixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se se detém no caminho para contemplar a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas ou de já não agüentar subir uma escada como antigamente; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso amoroso; quem procura numa cidade os traços da cidade que passou, quando o que é velho era frescor e novidade; quem se deixa tocar pelo símbolo da porte fechada; quem costura roupas para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar, já quebrando a cerimônia com um início de sentimento: " Meu pai só gostava de sentar-se nessa cadeira"; quem manda livros para os presidiários; quem ajuda a fundar um asilo de órfãos; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem compra na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias de um amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe derem de presente, a caneta e o isqueiro que não mais funcionam; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque para brincar com amigo ou amiga distante; quem coleciona pedras, garrafas e folhas ressequidas; quem passa mais de quinze minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em ligeiro e misterioso transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se envergonha da beleza do pôr-do-sol ou da perfeição de uma concha; quem se desata em riso à visão de uma cascata; quem não se fecha à flor que se abriu de manhã; quem se impressiona com as águas nascentes, com os transatlânticos que passam, com os olhos dos animais ferozes; quem se perturba com o crepúsculo; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente a pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga perceber o "pensamento" do boi e do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e, mesmo aparentemente livres como os outros, andarão por toda parte acorrentados, atados aos pequenos amores da grande armadilha terrestre".

Paulo Mendes Campos. "O amor acaba" - crônicas líricas e existenciais. RJ, Civilização Brasileira, 2001.

Para Zi, uma imensa ternura.

segunda-feira, 29 de agosto de 2005

"Tchau, guaranau"

Recife, 29 de agosto de 2005.


Foi Sidclay quem disse uma vez, aqui mesmo, na esquina da Vital, e nunca mais esqueci:

“Tchau, guaranau”.

É a forma que ele encontrou para dizer que alguma coisa tinha acabado, ou dado errado, ou sei lá, que algo tinha ido para o brejo. E sempre lembro da frase quando algo está mesmo terminando comigo, seja de trabalho, de sentimentos, afetos, projetos. Ruim mesmo é quando algo está acabando ou já acabou e não sabemos.

Um dos textos mais belos do Paulo Mendes Campos intitula-se “O amor acaba” e é de uma franqueza dolorosa, mas necessária. “O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite voltada à alegria póstuma, que não veio”.

O texto é lindo, dá vontade de copiá-lo inteiro, mas também preciso terminar de escrever minha cronicazinha, antes de mais uma viagem pelo Unicef. Aliás, já posso até ser pai, porque o que estou entendendo de criança e adolescente, não está no gibi.

Pois bem. Onde estávamos? Ah, no “Tchau, guaranau” que Sidclay me disse, uma vez, e que nunca mais esqueci. E andei pensando justamente nisso, no raro momento em que algo quebra, ou erra, ou termina. É de forma silenciosa que as coisas vão mais fundo, seja o amor, a mágoa, a tristeza.

Talvez esteja escrevendo isso porque na tarde do sábado magoei um grande amigo, em meio a uma conversa desajeitada sobre uma empreitada que estamos levando adiante. A conversa estava ruim, é certo, mas a certo momento eu me levantei e fui embora. Assim, no meio do turbilhão de coisas que precisávamos discutir e resolver, eu saí, num rompante. Não, eu não saí num rompante, saí num galope, porque foi uma cavalice, o que fiz. Lembram da expressão “Esse é um cavalo batizado”? Era eu, este cavalo, na tarde de sábado.

Ontem, fui à sua casa com uma cesta de humildades polidas durante a noite, mas ele não estava. Hoje, viajarei e ficarei fora dois dias. Lá para quarta-feira poderei tentar consertar o erro, minimizar o estrago. Não, de forma alguma eu quero receber um “tchau, guaranau” deste grande amigo, e acho que nem é o caso, mas compartilho essa tristeza com meus singelos leitores, que é para doer menos.

Porque não é só o amor que acaba depois duma noite voltada à alegria póstuma que não veio. A amizade acaba no meio de uma discussão desajeitada, no início de uma tarde de sábado. Desconfio que as coisas mais importantes acabem sem a gente nem perceber.

A gente nunca sabe exatamente quando um governo acaba, mas acaba. Algum de vocês lembra o dia em que a juventude acabou? Não, a juventude acaba a e gente não sabe direito quando foi, nem como, nem onde. Quem conseguiu registrar o dia em que envelheceu? A pessoa se olha no espelho, mexe os cabelos, faz umas caretas e diz para si mesma: “envelheci”. Esse dia nunca é um dia exato, ele vai chegando de mansinho, desde o nascimento, creio. Alguém sabe quando se decepcionou de fato com alguém? Não parece que a decepção é uma soma de pequenas decepções?

Já ganhei muitos “Tchau, guaranau” na vida. Doem como o quê. Mas até a dor tem isso – a gente nunca sabe exatamente quando algo parou de doer. Tive uma separação muito dolorosa, de uma pessoa que amava profundamente, e a dor era tanta, que eu tinha certeza absoluta que nunca iria parar de doer. Não era uma certezazinha qualquer, era certeza absoluta, imensa, irrevogável, dilacerante. Um dia parou de doer, não lembro quando foi, nem como foi, nem onde eu estava. Apenas parou de doer.

Hoje, quando algo dói intensamente, lembro dos muitos “tchaus” que recebi, e inda estou aqui, inteiro, seguindo, me encantando com as pessoas, com as coisas, me recompondo, mesmo sabendo que algumas vezes tudo fica turvo, feio, pesado. Tenho a tendência a levar as coisas numa boa, mas às vezes o bicho pega, e me lasco mesmo, fico gravemente ferido mas escapo vivo.

Então, Davi, você me desculpe pelo sábado, e não venha me dar um “Tchau guaranau”, porque ainda temos muito chão pela frente, eu só estava num dia ruim e obrigado pelo vinho que ganhei antes do rompante, aliás, da cavalice, eu já bebi o vinho todo para tentar me consolar mas não teve jeito, então seguem estas singelas palavras, que é para você não me achar tão feio assim.

sexta-feira, 26 de agosto de 2005

Pequeno tratado da grande tabacudice

Recife, 26 de agosto de 2005.


Eu tenho, vocês devem ter, em todo canto do planeta tem – um amigo ou simplesmente um conhecido que é, de fato, um tabacudo. Pode ser de qualquer sexo, idade, profissão, credo, do mais rico ao mais pobre – o tabacudo é uma figura que poderia ser estudada pela sociologia, filosofia, antropologia, endoscopia, fotografia etc.

Mas vamos à explicação que o Dicionário Aurélio nos dá para tabacudo – [de tabaca + udo] Adj.Bras., BA. Pop. Ignorante, bronco, obtuso.

Sinceramente, as últimas vezes que precisei do Aurélio, ele me decepcionou profundamente, e agora repetiu a dose. Outro dia, constatei de forma lamentável que ele não colocou, em suas 1.838 páginas , da edição de 1995 (a que consulto), a palavra “buchuda”. E ainda tem na capa “nova edição revista e ampliada”.

É, só que quem revistou e ampliou a edição, esqueceu de passar pelo Recife para saber o que povo aqui anda falando, desde que o mundo foi criado. Basta você pegar uma pranchetinha daquelas de R$ 1,99 e sair pelo Recife perguntando ao mais desinformado dos seres, à mais inocente criança, ao mais demente dos seres o que é uma “buchuda”, e a resposta será a mesma – “ora, é uma vitória de 6 x 0 no dominó”. Quem nunca levou sua buchuda num domingo à tarde que levante o dedinho!

A mesma coisa se aplica ao tabacudo. Pela minha vasta experiência no reino da tabacudice, a nossa definição aqui em Pernambuco é um pouco diferente da que veio no Aurélio. O tabacudo nosso de cada dia está mais para um sujeito que é uma mistura de engraçadinho que não é engraçado, sabido que não é sabido, conversador que não tem conversa, uma figura que está mais para o babacão mesmo, do que para o sujeito bronco, obtuso, ignorante.

“Que bicho tabacudo”; “Sai pra lá, tabacudo”; “Meu irmão, como é que tu faz uma tabacudice dessas?”, são frases que escutamos no dia-a-dia. Então, como tenho lido muitas coisas de psicanálise, antropologia e sociodrama, comecei a fazer um levantamento sobre a figura histórica do tabacudo, e finalmente estou terminando. O meu Pequeno Tratado da Tabacudice, em sua fase de revisão final definiu o tabacudo da seguinte maneira:

O tabacudo é um sujeito que espera as coisas acontecerem e depois passa muitas horas reclamando dos outros, porque as coisas não saíram como ele queria;

O tabacudo quer agradar todo mundo. Como diz João Valadares, “todo tabacudo é gente boa”;

Quando está apaixonado, o tabacudo vira uma massa gosmenta, incapaz de fazer outra coisa que não seja falar da namorada e telefonar 458 vezes por dia;

O tabacudo não gosta de Carnaval e faz questão de dizer isso para os amigos que pensam no Carnaval o ano inteiro;

O tabacudo pega a conta no boteco e faz o cálculo milimétrico de quanto cada um gastou individualmente, ao invés de somar tudo e dividir por cinco;

O tabacudo faz a maior confusão para bater o pênalty na decisão do campeonato de peladas, e chuta pra fora;

O tabacudo faz questão de ser o laureado da turma;

O tabacudo pendura o diploma em algum lugar da casa;

O tabacudo leva as visitas para verem o diploma pendurado em sua casa;

O tabacudo entende de todos os assuntos e dá pitaco em qualquer contexto;

O tabacudo explica racionalmente o governo Lula e diz que a esquerda acabou;

O tabacudo enche a caixa de email dos amigos com coisas idiotas que julga engraçadíssimas, e se sente o máximo.

Os amigos do tabacudo não reclamam, para não magoar;

Quando entra no elevador, o tabacudo diz “que calor, né?”;

O tabacudo acha que sabe contar piadas;

Os amigos do tabacudo fingem que acham engraçado;

Quando pára de fumar, o tabacudo descobre que cigarro é a pior coisa que existe no mundo;

Quando pára de beber, o tabacudo descobre que a bebida é a desgraça de todos os relacionamentos, crimes e mortes da cidade;

O tabacudo acha lindo dizer para os colegas que trabalhou até as quatro da manhã, que levantou às seis para correr na Jaqueira, e que às oito já estava no batente;

O tabacudo vai ao boteco sempre atrás de mulher e geralmente volta sozinho;


Não deixa de ser tabacudo um sujeito que tem um blog meia boca e escreve sobre os tabacudos.

quarta-feira, 24 de agosto de 2005

Relatos sobre a vida e a morte no Mercado de Casa Amarela

Recife, 24 de agosto de 2005.

Tive o prazer de conhecê-lo há cerca de 15 dias, ali no Mercado de Casa Amarela, aquela cidade de gente, barracas e produtos, onde costumo ir, especialmente aos sábados, dia recomendado por todos os terapeutas do Recife para um divertimento sadio, que é tomar umas cervejinhas e contemplar o povo se bulindo.

O Mercado (perdão, mas é com maiúscula mesmo, em sinal de respeito) é reduto de inúmeros “boêmios do dia”, como é o caso do professor Davi, que pode ser encontrado na barraca de Mary, com a singela e esfarrapadíssima desculpa de que vai “almoçar”. Ora bolas, nunca vi almoço demorar três, quatro horas, nem o sujeito ter o telefone da proprietária do estabelecimento, para reservar a mesa e encomendar suas Brahmas. Mas isso são outros 500, voltemos ao assunto.

Estava eu quietinho, bebericando de leve, mansamente, qual um bem-te-vi em seu galho, quando ele sentou ao lado, pediu um quartinho e dois pedaços de passarinha. Para quem não sabe, quartinho é um copo americano repleto de aguardente. Não sei de onde, nem como, nem onde, nem por qual o motivo, mas a conversa nasceu, cresceu e vicejou, até que ele me falou do Cemitério de Casa Amarela, que fica por detrás do Mercado, cemitério este que só tive oportunidade de entrar duas vezes – uma no enterro do amigo Barrabás, e outra para colocar uma florzinha em seu túmulo, tudo no ano passado, que Deus o tenha.

“O cemitério fechou de novo”, lamentou meu amigo. Depois de um silêncio pesaroso, completou. “Tá foda, visse? O que está morrendo de gente, não está no gibi”. Na seqüência, deu uma bicada de com força naquela garapa que passarinho não bebe, e mordiscou a passarinha, oleosa como o quê. É assim: quando o cemitério enche, fecha para evitar transtornos. Ah, sei lá, não pedi muitos detalhes.

Meu amigo se chamava Adão Pinheiro de Carvalho, (pelo menos foi o que me disse) e trabalhava num escritório de contabilidade, além de ganhar um extra fazendo as declarações de renda dos amigos. “Sei como funciona isso tudo. De leão eu entendo melhor que domador de circo”, completou, com um sorriso de convencimento.

Mas qual foi a minha surpresa, quando Adão Pinheiro me confessou que tinha como principal atividade, aos sábados, acompanhar os enterros no cemitério de Casa Amarela. Achei esquisito, mas da espécie humana espero tudo.

“Não é nenhuma obsessão, eu sou normal”, contou ele, com uma cara meio triste e aquele bigode a la Cantinflas, mal pintado e mal aparado. Eu realmente nasci para escutar essas histórias malucas, foi o que pensei. “Mas é que eu gosto de ver o último capítulo da vida. Ao final do dia, volta para casa muito mais humilde”, completou.

Ele me olhou nos olhos, acendeu seu Oscar, um cigarro que, segundo Vital, é falsificado no próprio Paraguai, e me disse assim em segredo:

“Professor, a vida é por um triz”.

Ele sabia os detalhes do funcionamento do cemitério, conhecia os coveiros pelo nome e apelido, explicou os setores, informou sobre as mulheres que cuidavam dos túmulos muitos anos após a morte dos respectivos maridos, enfim. Sabia de muitas histórias.

“Um dia, cinco coveiros botaram uma farinha no almoço e estava envenenada. Os cinco morreram horas depois, inclusive um que estava no primeiro dia de trabalho. Desse foi que eu tive pena. A imprensa não publicou uma linha, eu não entendo esses jornalistas”, disse.

Ele sabia também os preços das coroas de flores, o tempo que a família tem para desocupar uma gaveta, as taxas do cemitério. Depois de muitos anos de convivência com o mundo dos mortos, disse que o enterro mais triste de sua vida aconteceu há coisa de cinco anos, num sábado de chuva forte. Até desabamento de casa teve. O que chamou a atenção do meu amigo, naquele dia, foi que o carro da funerária levou o caixão e o deixou em cima da pedra. Nenhum parente ou amigo fora ao velório.

“A gente acha tanta coisa ruim na vida, mas ruim é morrer só, professor”.

Fiquei paradinho. Ele bebeu mais um gole, pediu outro quartinho e afastou a passarinha. “Perco até a fome quando lembro disso”.

Ele percebeu meu interesse e se aproximou.

“Fiquei ao lado, para dar uma força, esperando chegar alguém. Mais de uma em pé, ao lado do morto, e ninguém”.

“E ai?”, perguntei.

“E aí, professor, o senhor deixaria uma pessoa ser enterrada sozinha?”

Bem, ele tinha razão. Ligou para a irmã, Jésssica, que morava por perto, ali na avenida Norte. Explicou a situação, pediu que ela também acompanhasse o enterro, era um ato de compaixão.

“Estás ficando é doido”, respondeu a irmã, antes de desligar o telefone.

Quando o coveiro chegou, perguntou se meu amigo era o irmão do morto. Adão não soube me explicar o motivo, mas, num impulso, respondeu que sim. O coveiro, de nome Venceslau, também chamado de Lalau, disse que iria terminar logo, porque estava chovendo muito e teria tempo de jogar um dominó ali perto. Adão pediu cinco minutos e comprou uma coroa de flores, dessas de vinte e cinco reais. Acompanhou em silêncio o cortejo solitário até a gaveta (2234, jogou no bicho, mas não deu).

Enquanto o coveiro fazia seu trabalho, olhou pela primeira vez o rosto do morto. O que teria feito para ser enterrado sozinho? Mesmo sem crenças, ele rezou duas ave-marias. Aprendeu que se reza aos mortos. Depois, sentiu uma tristeza imensa, como se tivesse de repente alguém da família morrendo, e comentou com o coveiro:

“Ninguém merece morrer sozinho”.

“Ruim mesmo é viver sozinho”, respondeu Lalau.

Adão voltou do enterro, encostou numa barraquinha e mandou ver na sua garapa. Me contou que na época do enterro do solitário, estava intrigado do irmão mais velho, por causa de uma confusão envolvendo um dinheiro emprestado. “Coisas de família”, disse.

Saiu do mercado e resolveu telefonar para o irmão.

“Eu tinha perdido alguém que nem conhecia, então achei que era justo reencontrar um irmão que estava perdendo”, contou. O irmão de Adão ficou surpreso com o telefonema, mas também disse que vinha pensando em fazer um contato. Dois dias depois, se encontraram e tudo ficou resolvido. O irmão morreu ano passado, mas sem intrigas, graças ao morto de ninguém.

Depois de me contar sua história, Adão fez um silêncio, acendeu outro cigarro e ficou olhando para o nada, longe, com aqueles olhos perdidos, talvez lembrando que a morte é mesmo por um triz.

“Sei que é ruim viver sozinho, mas ninguém merece morrer sozinho, professor. Escreva o que eu digo, ninguém merece morrer sozinho”.

Então, eu escrevi.

domingo, 21 de agosto de 2005

Lembranças de um militante

Recife, 21 de agosto de 2005.

Nunca fui filiado a nenhum partido, apesar de ter tido, desde muito moço, esta simpatia visceral com o PT. Recordo da primeira campanha, em Fortaleza, nem lembro o ano direito, talvez 1984, eu sei lá, eu tinha uns 15/16 anos, mas lembro que a Maria Luisa era uma mulher, muito guerreira, altiva, falava bem como o quê, e nossa família, de centro-esquerda, creio, guinou para deliberadamente para a esquerda. Eu estava no segundo ou terceiro ano do segundo grau, e vivia nas mobilizações, distribuia panfletos, assistia comícios, inclusive o lendário "comício da virada", uma explosão de esperanças adormecidas, ao som de "Maria/Maria". No dia da eleição, eu e meu irmão, Tonho, fizemos uma boca de urna raçuda, ganhamos votos pra caramba dos indecisos, e tinha aquela mística no ar, de que poderíamos ser presos fazendo boca de urna, infelizmente não aconteceu esta emoção toda, minha prisão outro dia foi menos poética, é a vida.

Lembro também do meu pai, voltando de São Paulo, com as camisas "oPTei", que usei logo de primeira e fiz o maior sucesso, porque ninguém em Fortaleza tinha aquelas camisas e eu já tinha optado antes de todo mundo, achei demais. Maria Luisa Fontenele foi eleita numa campanha meio mítica, com todo mundo juntando os tostões, artistas improvisando camisas, bandeiras do próprio bolso e, principalmente, uma boca de urna que tornou o dia da eleição uma espécie de final de campeonato (o que, de fato, toda eleição é). O detalhe é que ela não tinha chance nenhuma de se eleger, e o "viramos", usado no finzinho da campanha, ficou associado, em minha vida, com a superação de qualquer dificuldade, a mais difícil. Sempre dá para a gente virar o jogo, quando estamos perdendo.

Vim para o Recife em 1987, e sempre participei das eleições, neste trabalho que acho precioso de distribuir santinhos, perguntar ao taxista se já tem candidato ou candidata, conversar, discutir, tentar mostrar alternativas, enfim. Eleição pra mim tem muito isso, da conversa, esse trabalho miudinho que é voluntário e, portanto, gratuito. No período em São Paulo (1994-2000) repeti a dose, eu sou assim mesmo, gosto de participar das coisas, escolho um candidato e meto as ventas, trabalho de graça, todas as campanhas trabalhei de graça, é a minha contribuição, o mínimo, não me arrependo de me apaixonar pelas coisas e pessoas.

Na segunda fase recifense, que começou em 2000 e segue até agora, pela graça de Deus, me envolvi ainda mais, participei de tantas coisas, tantas feijoadas-para-arrecadar-dinheiro, aqueles bingos, rifas, os improvisos para enfrentar uma luta tão grande, para tentar eleger gente bacana, ética, digna, gente que ama a vida, que vai cuidar da cidade, das plantas, da saúde das pessoas, que vai ajudar a cultura a vicejar, que vai democratizar acessos aos bens coletivos, enfim.

Acho que nesta vida de militante, nestas duas décadas de participação efetiva, ajudei a eleger muita gente boa (sem contar que sou um pé quente do caralho), umas pessoas que honraram os compromissos, que sempre deram retorno às minhas esperanças. Raramente eu vou para a posse. Tomo geralmente um porre gigantesco, esse tal porre de felicidade, e volto para casa com aquele sentimento de ter dado aquela bicuda de fora da área lá na gavetinha, sem chance para o goleiro, é algo maravilhoso isso.

O que sempre me encantou nessas campanhas foi um certo clima de festa, de improviso, de fazer coletivo. As feijoadas, as camisas pintadas tomando uma cervejinha, as reuniões na casa dos amigos para organizar algum panfletaço, a troca de email. Não sei, sempre tive a impressão de que estávamos crescendo junto com o País, sempre achei que estávamos aprendendo a superar expectativas, a criar coisas novas, a compartilhar sentimentos, sonhos, esperanças, e achava lindo as pessoas nas ruas, lutando pelo que acreditavam, voluntárias, intensas, cheias de uma beleza diferente. Havia uma gratuidade, um júbilo, uma felicidade. Estávamos lutando pelo que acreditávamos, como me disse uma vez, um velho sábio da esquerda que já nos deixou. Estávamos exercitando a Democracia, esta garota que já levou muita sova neste nosso País.

Mas aconteceu isso tudo o que está acontecendo. O marketing parece que venceu nosso suor, nossa beleza, nossa construção paciente, nosso trabalho de formiguinhas. Caramba, e o que dói mesmo é saber que estávamos elegendo umas pessoas bacanas, que devagar as coisas estavam andando, que a esperança estava dançando uma ciranda com a gente. Sabíamos que tinha gente ética, que a trajetória de vida contava, que havia, de fato, uma forma diferente de fazer política.

E fico pensando na próxima eleição, que já é no ano que vem. Não sei como vai ser. Eu como torço pelo Santinha, passei aí meus nove anos de jejum, voltando para casa com a bandeira enrolada, o coração frio. Mas começava outro campeonato no ano seguinte, e eu sabia que o Santinha era o meu time, e voltava aos estádios, cheio de esperança e alegria. Um dia seremos campeões, eu tinha certeza, e aconteceu justamente agora, em 2005. Mas com a política, com tudo o que está acontecendo, eu só tenho mesmo é um receio - de que as campanhas fiquem cada vez mais nas mãos dos profissionais do ramo, e que as pessoas deixem as ruas, as praças, usando o refrão trágico do " são todos iguais".

Como me considero um cidadão de esquerda, confesso que estou naquela morgação básica que o sujeito sente depois de ter escutado aquele melancólico "acabou" da namorada ou da mulher que amava (mas pior que o "acabou" é o insuportável "te cuida"). Mas já aviso aos amigos de velhas campanhas e batalhas - no ano que vem, não vou ficar morgado em casa abatido, desencantado da vida, como diz a canção. Vou olhar o candidato ou candidata que chegue mais próximo dos meus sonhos, dos meus códigos de conduta, das minhas esperanças, e vou de novo suar a camisa, pegar santinhos, levar para conversar com meus amigos.

Ora bolas, vocês já ouviram falar no "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima"? Eu sou dessa turma.


Para Luciana Azevedo, vereadora do PT que ajudei um pouquinho a eleger, e está horando nossas esperanças.

sábado, 20 de agosto de 2005

Poema em linha recta

Recife, 20 de agosto de 2005.

Iria escrever uma crônica curta neste sábado de sol recifense, mas o Fernando Pessoa me apareceu querendo ser lido com urgência e carinho, então refiz o percurso de sua poesia e escrevi o texto como se fosse uma confissão . Vai o “Poema em linha recta”, na forma de uma “Confissão em linha recta”, para compartilhar belezas com vocês.

***

Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, indesculpavelmente sujo, eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, que tenho sofrido enxovalhos e calado, que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco; eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho, nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que foi uma vez vil? Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semi-deuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza”.
(Poesia/Álvaro de Campos. Companhia das Letras, 2004)

quinta-feira, 18 de agosto de 2005

Coisas para fazer durante uma CPI

Recife, 18 de agosto de 2005.


Não sei o que tem acontecido comigo, mas desde que começou este grande lamaçal de CPI, mensalão, Delúbio, Valério, a podridão vindo à superfície, me dei de presente um raríssimo prazer – não gasto mais que dez ou quinze minutos para olhar as coisas feias de Brasília, ver o pior sempre piorar, e dedico meu tempo a outras coisas.

Não sei o que tem acontecido comigo, mas acho que passar mais de meia hora vendo os noticiários, gastar o tempo assistindo intermináveis sessões da CPI, na TV Senado, é o mesmo que pegar o tempo e jogá-lo numa lata de lixo.

Não sei o que tem acontecido comigo, mas ultimamente estou me deliciando com outras coisas, especialmente agora, que meu velho Fusca 68 está na oficina, avariadíssimo, sem dinheiro para cuidar de seus ferimentos, após o fatídico cochilo na 17 de agosto, que me levou de encontro a um Honda Civic.

E nas minhas constantes viagens dentro do ônibus da Transcol, rumo ao Derby, onde funciona o escritório do Unicef, tomo minhas notas sobre a vida que vai andando, vai seguindo, vai se mexendo, enquanto a mídia deixa no ar a impressão de que o País está parado, e que vamos todos sucumbir, que nossos sonhos acabaram.

Vou me encantando com essas besteiras que fazem parte do cotidiano menos trágico, vou achando que a vida é bem mais que isso que sai nos jornais, esses depoimentos repletos de mentiras e conchavos. Fico pensando mesmo é no abismo que existe entre tantas pessoas, numa árvore imensa que foi cortada perto lá de casa, e o sol inesperado que bate naquela parede escurecida. Penso em plantas que se apegam as muros, à procura de uma sobrevida, como tanta gente que se apega aos muros alheios, à espera do mínimo afeto. Vejo as folhas que caem, acho que são pequenos sinais da natureza para algo que não compreendo, mas pouco importa. Lembro daquele cheiro poucos segundos antes da chuva cair, e penso que este é mesmo um cheiro importante, que vem da infância, pelo menos a minha.

E súbito, lembro que o ônibus da madrugada, no Recife, se chama “Bacurau”, não sei exatamente o motivo, mas quem o vê apontando ao longe, às três da manhã, cheio de bicada, sente a alegria de já estar próximo de casa. E uma toalha branca dependurada na janela do Hospital da Restauração, semana passada, a quem pertence? Eu não sei tantas coisas da CPI, mas gostaria de saber mesmo quem batizou algumas ruas e bairros do Recife, como por exemplo o bairro chamado “Rosarinho”, eu acho lindo quem diz “moro no Rosarinho”, me parece uma coisa fraterna, a vida ali deve ser mais calma e doce, não sei.

E hoje, enquanto a política torna o Brasil mais feio, alguém perdeu o ônibus por descuido, talvez tenha prestado atenção na capa da revista, pendurada na banca, com a bunda da “Grazi”, que custou R$ 700 mil, creio, não sei ao certo, são tantas bundas com tantos preços. Uma freira passa com sua sombrinha, ainda tem gente sendo freira, nos dias de hoje, mas está cada vez mais difícil mesmo é ver um padre com aquela roupa, um certo ar de quem está sempre em contato com Deus.

Então isso é o mais importante para mim hoje. Esta vida no cotidiano, estes encontros e desencontros. Aquela fila imensa na porta do INSS de hoje, aqueles milhares de maltratados, me dói mais que todos os flagelos do atual governo, dos governos passados e futuros. A vida é pegar o ônibus, é conversar alguma lorota na fila do banco, com os infinitos desconhecidos de todos os lugares, são estes vendedores de quinquilharias nas paradas de ônibus, o vendedor de capa para celular com seu boné da Nike, a moça que parece tão sem esperança na calçada.

É o cansaço, o suor do final da manhã, a tarde que ainda vem, inteira, esta planta que nasce em meio ao cimento, é uma lembrança que tenho do Recife antes de mim, que não conheci, são os cartazes mal colados em paredes que mal se mantêm de pé, já arrasados no momento seguinte.

Há tanto para se fazer durante uma CPI. Há casinhas serenas, com jardim na frente para se olhar, há uma senhora com passo manco e cabelos desgrenhados tentando chegar a algum lugar, há o magro soldado do Exército, segurando um fuzil imenso, talvez menor que seus sonhos.

E lembro que nunca mais vi uma vendedora da Avon, que nunca mais escutei a palavra “resguardo”, a frase “fulana está de resguardo”, que era tão importante, tão séria, me pergunto finalmente por que as camisas dos clubes de futebol eram tão lindas, nos anos 70, e agora são apenas lembranças em fotos emolduradas, e me vejo tentando imaginar como tem sido a vida do Agenor, aquele meu colega da 5ª série que nunca mais encontrei, tanta gente que encontro e desencontro.

Rilke fala de “amor ao insignificante” e talvez seja isso o que ando sentindo. Eu vou por aqui, desviando meu olhar, não vou deixar CPI nenhuma me deixar infeliz, triste, solitário, há uma vida pulsando fora das TVs, ao largo de toda esta miséria midiática, e é algo mais rico, mais belo, com cara de gente, essa gente que, no final das contas, faz este País seguir, existir, resistir, e é preciso lutar não somente com mobilizações, passeatas, discursos, promessas, mas invocando ou reconhecendo a beleza, acima de tudo caminhando com beleza, acreditando neste mistério que é a vida, apesar de tanta feiúra que teima em vicejar, eu acredito mesmo é na vida até a última fibra.

Para Eleonora, que também acredita na beleza.

segunda-feira, 15 de agosto de 2005

Notas de um começo de semana

Recife, 15 de agosto de 2005.


Estou em casa nesta segunda-feira de chuva fina e constante e chega o carteiro, meio molhado. Traz um Sedex de uma leitora que me acompanha há alguns meses, quando eu ainda escrevia para o JC On Line. Ana descobriu que sou um caso raro de cearense que toma chimarrão, e me mandou dois pacotes com uma erva-mate saborosa. Fiz todo o ritual, preparei minha cuia, botei a água no fogo e fiquei lendo ao sabor do chimarrão, aquele amargo quente que parece limpar o corpo e a alma, bem de leve. O que fazer, a não ser agradecer? Tomo chimarrão desde 1988, quando fui morar na Casa do Estudante Universitário (CEU), e um camarada sempre me oferecia. Quando me perguntam se sou do Sul, respondo que sim - sou do Crato, que fica no Sul do Ceará.

Outro dia, a Magna, minha conterrânea, me fez algo especial. Trouxe de Brejo Santo uma porção de pequi, que minha família adora colocar no feijão, no arroz, em qualquer coisa que sirva para comer. Como estava fora de estação, ela trouxe cuidadosamente em um pequeno isopor, congeladinho. Magna, que conheci também graças a essas crônicas que escrevo, ao sabor dos dias. Levei quase todos os pequis para minha tia Flocely, que já comeu tudo. Ontem fui chamado para um " baião-de-dois com pequi", mas não pude ir visitar a tia, agora que o Fusca está baleado na oficina. Tive que acompanhar o enterro de Miguel Arraes com Iramarai e Carmem. Entrevistei gente, olhei o povo, as reações, iria escrever um longo texto de despedida, mas perdi o tempo da escrita. Era para ter trabalhado no texto hoje de manhã, mas me deu preguiça. Fiquei olhando a chuva e tomando chimarrão, depois li um bocado, acho que Arraes não vai ficar chateado. Tenho dado muita atenção à minha preguiça, acho que ela ensina muita coisa.

Tenho conhecido pessoas extremamente carinhosas, que fazem comentários no blog ou mandam email direto. Outro dia, depois de uma boa troca de email, duas irmãs vieram aqui ao Poço: Adriana e Lili, leitoras de longa data. Tomamos café, elas comprara o Clamor e conversamos nossas coisas. É bom conhecer essas pessoas carinhosas.

Marcel me mandou dois poemas cheios de beleza.

De vez em quando recebo um convite para o Orkut, sei que tem um monte de gente participando dessa história, mas minhas viagens pela Internet se resumem mesmo a escrever essas banalidades do Estuário, trocar email com os mais chegados (ou os que estão se chegando) e olhar uma notícia e outra nos sites de informação. Obrigado pelo convite aos que me convidam, mas vou ficar no meu arroz com feijão mesmo. Continuo sem saber baixar uma música na Internet e fiquei admiradíssimo com um amigo que consegue baixar até filmes para o seu computador. Quando vejo gente inteligente assim, fico impressionado e cheio de esperanças no Brasil.

Zeca ficou de vir aqui em casa para uma audição, com as músicas novas que andou garimpando. Pensem num sujeito que tem bom gosto é esse Zeca. Bernardo prometeu chegar também. Como já conheço os dois, melhor esperar sentado. Andréia ganhou novamente o mundo, acompanhada de Barreto e Léo. Está gravando um documentário sobre aquele projeto com o teatro de bonecos do mundo, que passou por aqui no Recife há alguns meses e perdi, por distração. Ela deve estar feliz, fazendo duas coisas que adora - viajando e filmando.

Registro minha simpatia ancestral pelos preguiçosos, os tímidos e os distraídos.

Hoje o telefone amanheceu sem poder fazer chamadas, devidamente informado por uma vozinha chata e fina de uma moça da Telemar. Mais uma vez, esqueci de pagar a conta, justamente no dia em que a Cabo Mais iria instalar um cabo a mais lá em casa, para eu não gastar tanto com o telefone. Estou aqui, em um lugar de Internet 24 horas. Uns camaradas exaltados jogam freneticamente algo no computador. Há gritos, urros, reclamações, estão matando gente adoidado, em algum desses jogos malucos. Impossivel escrever algo razoável com uma guerra de gritos ao lado. A música é um tunti tunti tunti frenético. Detesto gente que grita em lugares públicos e essa música de discoteca, repetida.

No final do enterro de Arrais, vi uma senhora de óculos preto, camisa branca, um colar simples, com bolinhas. A cerimônia já estava no final, ela olhou para o lado, com os olhos marejados, e disse: "já se foi". Era a pessoa mais triste daquele cemitério repleto de gente, no anoitecer do domingo, e nunca saberei seu nome. Algumas horas antes, escutei um trabalhador rural dizer: "é a primeira vez que entro num palácio". Ele tinha ido ver o corpo de Arraes.

Chove pra caramba agora, e não sei como vou chegar em casa. Na livraria Cultura, onde passei de raspão, para um chocolate quente, anotei duas frases que encerraram o périplo de hoje:

" Quem ri das cicatrizes nunca foi ferido"
(Shakespeare, em "Romeu e Julieta")

"Se eu tivesse que escolher entra a dor e o nada, escolheria a dor".
(William Faulner)

Perdão pela falta de objetividade. Boa semana a todos. La nave va.

domingo, 14 de agosto de 2005

Um forró para Arraes

Recife, 14 de agosto de 2005.


Não sei quem me deu a notícia, ou se foi a própria notícia que se deu. Ontem, no final da manhã, Arraes morreu. Me perdoem, mas quando você diz “Arraes morreu”, todos sabem o que aconteceu. Mais que isso, o que significa, neste momento da política nacional em que tudo está perplexo e confuso.

Miguel Arraes de Alencar, 88 anos, ex-prefeito do Recife, três vezes governador de Pernambuco e no terceiro cargo de deputado federal, pelo PSB, sai da cena política e passa a habitar o nosso imaginário, na forma indelével da lembrança.

Não vou aqui fazer a louvação do que merece ser louvado. A história de Arraes foi sendo escrita com um cinzel, nas pedras da vida. Ele foi um homem, uma raça, do início ao fim. É difícil uma pessoa ser tão querida pelo povo, essa gente simples, os menos favorecidos, e ao mesmo tempo ser tão respeitada pelos adversários políticos.

Como sempre, prefiro buscar no cotidiano as marcas e os contornos da trajetória humana em tudo o que a vida leva e traz – alegrias e tristezas, dores e conquistas, vitórias, empates, derrotas.

Ontem à noite, estávamos aqui nesta esquina de seu Vital, no Poço da Panela, quando aconteceu, por obra de nossas vidas e memórias, uma singela homenagem ao velho Arraes.

Estávamos bebendo umas cervejas, logo após o jogo do Santinha, quando nosso Chiló decidiu buscar a sanfona. Começamos então a cantar e dançar várias músicas, até que surgiu das almas a canção que atravessou tantos corações:

“O povo quer/Aquele que fez mais
Arraes/Arraes/Arraes
Em 86 só vai dar Arraes”.

Cantamos vária vezes esta pequena e modestíssima canção, e sempre que escuto os relatos sobre aquele momento histórico de Pernambuco, tenho a sensação esquisita de ter chegado ao recife atrasado em um ano. Também sou do Crato, como Arraes, mas só cheguei aqui em 1987, vindo de Fortaleza.

Ao escutar a música, Emília chorou discretamente. Disse que só viu o pai chorar duas vezes – uma delas foi durante o guia eleitoral de Arraes, então candidato a governador, em 1986. Depois Emília parou de ser discreta e chorou mesmo pra valer, quando cantamos a música-tema daquela famosa campanha:

“Olha nos olhos do povo e vai notando
um brilho novo está voltando”.

Sim, certos momentos na vida de um povo são mesmo para arrancar lágrimas. Lá pelas tantas, embevecidos pelo clima e com a ajuda das muitas cervejas servidas por seu Vital, decidimos ir ao Palácio do Campo das Princesas, fazer uma homenagem musical. De repente, estávamos todos ali, defronte ao Palácio, com sanfona, zabumba e triângulo, dispostos a cantar "Arraes/Arraes/em 86 só vai dar Arraes”. Seria, creio, emocionante. Mas o clima estava muito sério, o povão, a massa, ainda não tinha chegado. Estavam somente políticos, jornalistas e familiares. E aos poucos, fomos minguando nossa homenagem. Não era o momento, pensamos.

Na verdade, a homenagem já tinha sido feita, aqui na esquina aqui de Vital. Enquanto cantávamos, passei pela minha memória este momento que não vivi, a campanha de 1986, como um estrangeiro que chega a uma cidade e a reconhece pelo coração, como se fosse uma cidade que já viveu, em algum tempo nunca explicável. Senti minha presença no Recife, com 17 anos, distribuindo panfletos e cantando com o povo nas ruas que eu ainda não ousara desvendar, numa cidade que eu ainda não tinha amado. Tive então uma memória retroativa de um passado que me dei de presente, apesar de não tê-lo vivido como queria.

Vi Emília dançando, cantando, se emocionando, e em todos os olhos de uma gente mais moça, havia uma espécie de agradecimento ao velho Arraes, por tudo o que foi, é, e será. Lembrei que Edinaldo Miranda, seu pai, também foi um exilado para sobreviver. À saída do nosso festivo grupo, seu Vital, que nunca fala de política, disse uma curta frase:

“Em todas as eleições que ele concorreu, votei nele”.

Entrei no salão, onde estava o corpo já sem vida, dei meu tímido adeus, o “segue em paz, meu velho”, e voltamos, em silêncio.

Estou aqui com os jornais de hoje, e não há como sentir uma certa emoção ao ler um trecho do seu discurso de posse, no segundo mandato como governador de Pernambuco, em março de 1987, publicado no suplemento do Diário de Pernambuco:

“Sou um homem marcado, mas esta marca temerária entre as cinzas das estrelas há de um dia se apagar”. É a citação de um poema de Joaquim Cardoso (Canto do Homem Marcado, de 1952).

Comentei a frase com minha tia Flocely, há pouco, ao telefone. Ela está com 78 anos, os cabelos branquinhos, e só não vai ao enterro por problemas de saúde.

“E se apagou... ou meu Deus”, disse ela, entre lágrimas.


Para Arraes, na memória do coração.

sexta-feira, 12 de agosto de 2005

Silêncio

O Gustavo, meu amigo que nos presenteou com aquele belo poema, me mandou um email dizendo que eu tinha que colocar meus poemas no blog, tive até medo de levar um carão, não gosto de irritar Gustavo. Atendendo a um pedido, vou começando a publicar a minha coletânea, intitulada "Que meros poemas". Beijo a todos.


Silêncio


A vida me deu tantas palavras
Que encontrar o silêncio
É como buscar uma cegueira
No clarão da vida

O amor, tão cego quanto eu
Segue de olhos abertos
À procura de ti
Neste braile da vida

Risco fósforos na penumbra
Pinto vaga-lumes
No céu que não vejo
Contemplo meu rosto no espelho
Que nada reflete

Te amo
E aprendo a aquietar as palavras
Como se elas fossem
Meu coração que pulsa
No sentido contrário
Por todos os corações
Que encontrei em ti

quinta-feira, 11 de agosto de 2005

Antologia do Instante

Recife, 11 de agosto de 2005.


Informo aos poucos mas cativos leitores que a primeira edição da “Antologia do Instante” - a coleção das primeiras mil frases, tiradas, comentários e evasivas dos amigos e desconhecidos -, finalmente começou a ser editada. O material supra citado já está nas mãos do design César Maia, que promete um livro bonito, aconchegante e atraente, algo para levar no bolso e ler no metrô, ônibus, na fila do banco – até no banheiro, como tem feito o amigo Iramarai com o meu “Clamor”. Aguardemos o lançamento.

Como a vida é mesmo dinâmica, já estou com outras centenas de frases rabiscadas em pedaços de guardanapos, sobras de papel, pontas de cadernos, folhinhas de bloquinhos, essa interminável soma de papéis que vão fazendo minha diversão. Bem, em primeira mão, faço uma pequena seleção da “Antologia do Instante – volume II”, ainda em fase de gestação. Vamos às novidades, coletadas no sabor do instante, quando a frase foi dita sem muitos filtros, na hora exata em que a tirada foi arremessada, o comentário ferino aconteceu, a confissão escapou do coração, enfim, essas coisas demasiado humanas, mas exatamente naquele instante, eu que sou apaixonado pelo cotidiano.

Um dia, quem sabe, organizarei as frases e trechos de romances e livros que guardo desde 1988, mas só se eu viver muito, porque é muita coisa, e estou ficando, dia após dia, devoto da preguiça e amante da pouca produção, estou até a buscar um padroeiro da lentidão, um santo para me orientar os caminhos para o caminhar mais lento, aceito sugestões, por enquanto vou usando como referência a tartaruga que Déa me deu outro dia, já é um bom começo, desconfio.

“Ofende, mas não magoa”.
(Nana, do Poço da Panela. A frase serve para tudo na vida, creio)

“Estou sem bola e sem chuteira”.
(Duda a Milhão, na esquina de Vital, inconsolável com alguma coisa)

“Quanto mais você bebe, menos você paga”.
(Gordo, da turma aqui do Poço. Lógica de boteco não se explica, certo?)

“Ontem alguém espirrou ao meu lado nas Lojas Americanas e logo me deu uma dor de cabeça”.
(Prof. Davi, explicando como pegou a gripe mais rápida do Brasil)

“Seu Vital, uma saideira e uma cerveja!”.
(Não lembro quem foi, mas que foi um pedido de saideira original, foi!)

“Estou construindo uma piscina lá em casa. Já tenho até o calção de banho!”
(Iramarai, explicando o sonho da “piscina própria”, que nunca vingou)

“Está chuvispingarolando”.
(Jorge Alberto, explicando poeticamente um esboço de chuva)

“Se em terra de cego quem tem olho é rei, imagina quem tem dois olhos!”.
(Inácio, explicando algo que não entendi, mas vale a frase)

“A igreja está tão linda que dá até vontade de casar!”.
(Tânia, ao ver a igrejinha do Poço linda para um casamento)

“Arraes voltou, por que ele não iria voltar?”
(Um amigo, explicando a volta de outro amigo, após uma rápida separação)

“Hoje, agora, é tudo”.
(Seu Vita, dono de bodega e filósofo aqui do Poço da Panela)

“Emoção demais às vezes chega até no cabelo”.
(Eupídio)

“Não diga nada: realize e depois chame para a festa”.
(Sugestão de um amigo, quando lhe falei de um projeto grande)

“A pior coisa de um corno é a revolta. O corno tem que ser forte. Falo isso com 15 anos de experiência”.
(Neno Testão, aqui do Poço)

“Sim, querido, mas eu sou influenciável”.
(Luis Nunes, nosso ex-Diazepan, explicando uma mudança de opinião, creio)

“O álcool dá palavras aos pensamentos”.
(Priscila, uma amiga paulistana)

“Quando beber, não fale!”
(Clarissa, alertando os amigos)

“Ele contraiu o vírus da gaia”.
(seu Vital, se referindo a alguém que foi acometido deste mal)

“Se eu tivesse uma motoca, eu fugia com ela agora”.
(De um amigo, ao ver uma linda moça entrar sozinha em um bar)

“Se eu queria Rivaldo no Sport? Eu queria Rivaldo lá em casa!”.
(Giba, ao ser perguntado se queria Rivaldo jogando no seu clube)

“Ela era elíptica, proclítica ou mesoclítica?”
(Jorge Alberto, perguntando sobre o caráter de uma criatura)

“Palhaço não, profissional da alegria”.
(Ibdem, explicando suas palhaçadas)

“Mas você pode assistir sem solução de continuidade”.
(Prof. Davi, explicando que eu poderia assistir o filme a partir da segunda parte)

“Eu iria responder incontinente”.
(Prof. Davi, o único amigo que fala no cotidiano coisas do tipo “incontinente”, “peremptoriamente” e “solução de continuidade”)

“A gente sempre está em paz quando alguém chega”.
(Andréa Ferraz, uma amiga, ao escutar Cássia Eller cantar “eu estava em paz/quando você chegou”)

“Tem dicionário que não tem tudo. No meu não tem feio”.
(Jamille, de 7 anos, neta de seu Vital)

“Eu sou pessimista, eu sei... mas eu sou otimista”.
(João Valadares, falando sobre seu famoso pessimismo futebolístico)

“Vou pintar minha bicicleta de vermelho e amarelo, as cores da Ferrari: é para ela correr mais”.
(Fernando, de 11 anos, menino aqui do Poço)

“O novo papa derrotou papa-léguas, papa-figo e papangu”.
(De um taxista, falando da eleição do papa Bento XVI)

“Tinha um negócio escrito “help” e eu pensei – esse cara está precisando de ajuda”.
(Numa mesa de bar)

“É uma fantasia que a gente coloca para ir a outra fantasia”.
(De uma amiga, toda enfeitada e maquiada para ir a um casamento)

“Eu quero ter um mausoléu com chaminé por dentro, para quando eu acordar, sair na naturalidade”.
(Não lembro de quem foi)

“Só há uma coisa que me separa de você: o ar entre nós dois”
(de um texto de Clarice Lispector)


Em breve, publicarei as “Antologibas”, as frases de Giba, o rei das frases.

Inté.

terça-feira, 9 de agosto de 2005

Com quanto amor se constrói o inesquecível?

Recife, 9 de agosto de 2005.


Estou em casa, quieto, ando muito quieto ultimamente, apesar dos tantos trabalhos, de ser novamente dono de bar, de tantas coisas que chegam, mas eu me sinto quieto, que é o mais importante, quando recebo o email do velho amigo Gustavo. Fala de amor, de encontros e despedidas, “muito choro de parte a parte, coisas da vida, coisas da morte”. Numa época em que tanta gente investe nas piscinas rasas, o meu amigo vai cada vez mais fundo em suas escavações da alma, encontrando a água cristalina que serve para a outra sede, que é da alma. E depois de falar de suas coisas, uma frase me chamou a atenção:

“Amores são feitos de partidas. Acho que servem para nos purificar”.

Fiquei com as palavras do velho amigo. Levei-as comigo durante todo o dia, cheio de reuniões, definições, encaminhamentos, perguntas, respostas. A princípio, parece esquisito, para nós tão possessivos. Depois, a frase foi se depurando, decantando. É preciso ler certas coisas com calma, limpando os olhos, abandonando conceitos, definições ou preconceitos. As coisas do amor carecem de uma certa humildade. Mas, salvo engano, os amigos de verdade costumam dar estes presentes – frases, palavras, clarões, acenos, tudo sem pedir nada. Acho que ao final do dia, consegui entender.

Ao final do email, veio o presente. É um belo poema de um andarilho potiguar, que atualmente vive em Brasília, tocando sua vida, seus sonhos e amores. Fiquei pensando que de Brasília também vem coisas lindas, e sinto um certo alívio, depois do bombardeio diário de CPI, mensalões e essa merda toda.

Há pouco, Gustavo me autorizou publicar o poema neste pequeno Blog, que ainda está nascendo, e não sei muito bem para onde vai. Espero que se encantem como estas palavras, que sirvam de adubo para os amores que chegam e partem quando nem pensamos, que ajudem a tocar a vida, nestes dias conturbados e que nos causam uma certa tristeza.

No meio do poema, uma das perguntas me serviu para o título da conversa de hoje: com quanto amor se constrói o inesquecível? Outras perguntas parecem trazer respostas silenciosas. “Quantas lágrimas põem fim a uma perda? Com quantas lágrimas se constrói um amor?

Belas perguntas, Gustavito. Obrigado por esta delicadeza de hoje, em tempos tão indelicados. Vamos ao teu poema:


Purificação

(Gustavo de Castro e Silva)


Não existe estatística para a dor.

Quem sofre e cala sabe que sobe.
Porém, o volume das cicatrizes
não medem a altura de um homem.

Quantas lágrimas põem fim a uma perda?
Quantos gritos aplacam um desespero?
Quanta angústia necessitamos viver
para melhorar o ser?

Não existe limite para a dor.
E, apesar de vivermos entre limites,
não existe o limite do padecer.

Com quantas lágrimas se constrói um amor?
Com quanto amor se constrói o inesquecível?
Com quanta memória se constrói um futuro?

Mesmo que fosse possível medir a dor,
o homem usaria instrumentos de ilusão,
dissimularia a verdade, esconderia a luz,
falaria que a sua dor é insuportável,
maior que a do vizinho; insuportável.

O homem é a reunião de suas dores.
Ainda que ele não esteja à altura delas.



Para os que amam, mesmo em silêncio.

segunda-feira, 8 de agosto de 2005

Tu tens coragem de abrir um blog?

Recife, 08 de agosto de 2005.


Desde que me entendo por gente, escrevo diários. Na minha biblioteca, em casa, tenho uma estante recheada de cadernos os mais diversos. Uns de capa dura, outros de capa mole, uns comprados no exterior, outros ali no centro do Recife, vários recebidos de presente, mas a essência é a mesma – eu sou um sujeito que escreve sempre, nas boas e más horas, nas alegrias e infortúnios. Outro dia fui dar uma olhada num diário de 1983 e reparei na letra ainda não consolidada, a assinatura começando a ganhar forma, e as palavras, sempre as palavras, me acompanhando em todos os momentos.
Confesso que sempre olhei atravessado para esse negócio de “blog”, porque me parecia algo narcísico demais – colocar o diário na Internet? Macacos me mordam, se colocassem meus diários na Internet, seria certamente uma das maiores agressões que eu poderia sofrer. Diário é, para mim, uma espécie de psicanálise com a própria alma, e pelo que eu sei, os psicanalistas não andam divulgando, na Internet, as confissões mais secretas de seus pacientes. São as intimidades, as coisas que exigem cuidado, são garatujas da alma, que precisam cuidado.
Acuso uma inveja ancestral de quem ter a coragem de escrever e publicar um diário on line, mas descobri que nem só de diários vive um “blog”. Aos poucos, comecei a reparar que vários jornalistas estavam usando este espaço para exercer livremente a profissão, sem aquela chateação do editor dizendo que não tem espaço, que a matéria vai ficar para amanhã, que precisa cortar o texto pela metade. Vejamos aí o caso do Ricardo Noblat, que dá furos na mídia inteira, com seu “blig do noblat”. Andei vendo também alguns escritores e poetas colocarem suas coisas no ar, compartilhando belezas, espalhando coisas novas. O melhor é que não é preciso pagar para ter um blog. E aos poucos foi me dando aquela “coceira no organismo”, como dizia uma empregada de um amigo meu.

Depois de manter a coluna “Estuário” no glorioso site “Aponte”, me transferi para o JC On Line, onde fiquei durante um ano. Quando saí do JC, no dia 28 de junho, fiquei meio órfão de uma imensa troca que estava havendo com os leitores. Pensei que fosse passar, mas esse negócio de escrever, de compartilhar sentimentos e olhares com as criaturas, acaba criando umas raízes meio poderosas. Passei o mês de julho disfarçando, fingindo que estava de férias. Assobiei, cuidei do jardim no quintal, chutei pedrinhas, joguei meu dominó sofrível, mas sentia, perdoem o péssimo trocadilho, uma saudade crônica das crônicas. Quantas coisas aconteceram, deus do céu! De vez em quando eu me pegava garatujando uns textos, pensando na próxima crônica. Mas, vinha a pergunta... escrever para onde?
Até que numa dessas longas caminhadas com Iramaraí, o cartão caiu (sim, porque ninguém mais usa ficha) – por que não deixar de frescura e criar um blog, para publicar as crônicas, ô abestalhado? Não sou tão preocupado com esses negócios de democracia, liberdade de expressão, comunicação alternativa? Na volta da caminhada, olhei no espelho e falei – estás vacilando, Samarone, deixa de queijo e cria teu blog, cabron!
Com a ajuda de Macksandra, na noite de domingo, finalmente criei o espaço para as crônicas (mas vou publicar, esporadicamente, alguns poemas e reportagens, que ninguém é de ferro). Para Macksandra, foi tudo simples, ela clica os espaços e o blog vai nascendo. Eu fico impressionado com esse pessoal mais inteligente, superior no tamanho do cérebro. Da minha parte, vivi momentos de aflição, temendo sempre o pior (sempre acho que a tela vai sumir e vou perder todos os arquivos, imagens etc), especialmente quando decidimos colocar uma foto, e ela ocupou um pedaço grande da página. “Danou-se, o cara escreve crônicas ou quer aparecer?”, seria o primeiro comentário, possivelmente do magro Valadares. A foto ficou para depois, para quando eu estiver mais calmo.
Hoje de manhã, cliquei no endereço e lá estava – estuáriope (infelizmente, algum blogueiro já tem o endereço “estuário”). Deu aquele nervosismo de todo começo, mas, no meu caso, isso funciona como um combustível generoso para enfrentar novos desafios. Por favor, dêem os descontos para os erros, imprecisões e coisas estranhas neste espaço. Todo começo é cheio de sobressaltos, com exceção daquelas criaturas que já nasceram prontas, mas lembremos que até Rimbaud sofreu muito na vida. Ai, meu São Francisco de Assis, quantos recomeços já vivi, nestes 36 anos...
Bem, hoje é só para dar um alô aos velhos amigos que caminharam comigo nas crônicas publicadas no JC On line: estou por aqui. A sensação é a mesma de quando encontro o professor Davi Vieira (agora meu sócio no bar), ali pelas 11h27 da manhã, de qualquer manhã recifense. Ele conversa, desconversa, atende telefonemas, fala sobre algum assunto fundamental, e depois de um silêncio dramático, teatral, olha nos olhos e pergunta:
“Tu tens coragem de tomar uma?”
Geralmente, depois da pergunta, ele dá uma salivada boa.
É preciso uma certa coragem para acompanhar o professor no copo, porque ele bebe com raça e dedicação. Precisei um pouco de coragem para criar um blog, mas já estou também salivando.
“Garçom, traz a primeira, que agora deu sede!”.
Sede de palavras, penso.
Então, que seja uma farra boa, uma mesa farta, muitos sorrisos e afetos, nos estuários da vida...


Para Macksandra, minha professora de blog.