terça-feira, 29 de novembro de 2005

Coisas que um sujeito faz para sobreviver...

Uma leitora pegou o livro “Estuário” e viu na orelha que eu já tinha trabalhado como autor de relatos eróticos para uma revista em São Paulo. Quis saber se foi verdade, e eu já confirmei. Sim, amiga, um sujeito faz muitas coisas nessa vida para sobreviver, e meu amigo Gustavo acompanhou essa história de perto. Ele riu muito com a aventura literária-sexual. Então vamos a ela.

Era o começo de 2000, e tinha acabado minha última fonte de renda, uma bolsa da Fundação Ford. Tinha viajado um bocado, ficara longos períodos no Chile, pesquisando para escrever Clamor, meu trabalho de mestrado, acabei participando de um congresso nos Estados Unidos, de formas que voltei para casa, depois de muitas viagens, liso como um gambá. Não sei se gambá é liso, mas a frase fica boa assim.

Tinha que terminar o trabalho de mestrado, não queria voltar a trabalhar em redação de jornal ou revista, meu amigo Gustavo garantiu o aluguel e o “de comer”, mas não daria para terminar o mestrado sem um tostão no bolso. Foi então que me ocorreu perguntar ao meu amigo Guilherme Salgado, botafoguense ilustre, se ele não conseguia um quebra-galho na editora que em ele fazia bicos. A editora só trabalhava com revista pornográfica. Pornográfica não, era putaria mesmo, com o pê maiúsculo.

No dia seguinte, Guilherme me telefonou.

“Tu topa escrever relatos eróticos?”

“Nunca escrevi isso”, respondi.

“Aprende”.

Fui à tal editora, um casarão encravado num bairro nobre. O dono da empresa me recebeu numa sala luxuosa, perguntou se eu trabalhava no ramo, respondi que não, mas que podia aprender a trabalhar no ramo, desde que não precisasse participar das histórias. Ele me resumiu o problema todo. A revista publicava as cartas dos leitores com relatos de suas sacanagens, mas era difícil chegar um texto razoavelmente bem escrito, pronto para publicação.

“Tem cara que não diz nem como conheceu a mulher, e já está tirando a roupa dela”.

Me deu umas dez revistas e uma tuia de carta, umas 30, acho. “Vê aí as expressões que a turma usa”. Eu ganharia R$ 30,00 por relato. O trabalho era ler as cartas e transformar tudo em coisa legível. "O que não der para aproveitar, inventa uma boa história", pediu ele. Antes de sair da sala, a advertência.

“Olhe, tinha uma mulher que fazia esse trabalho e era muito competente, mas teve que sair. Depois, contratamos um escritor, mas não deu certo, porque ele queria fazer literatura”.

Me olhou bem sério e completou:

“Não queremos literatura. O negócio é sacanagem”.

Caramba, voltei para casa lendo as histórias. Eu nunca fui nenhum coroinha, mas era cada relato mais exagerado que o outro. Falei para meu amigo Gustavo a história, ele bolou de rir.

Naquela liseira toda, não me restou outra alternativa. Sentei, li todas as cartas dos leitores, li as revistas, fiz um glossário pra lá de imoral e mandei brasa. Varei a noite contando histórias de neguinho que comia gente em tudo que era lugar do Brasil, as cartas inclusive dariam um ótimo estudo sobre o imaginário sexual do brasileiro.

No dia seguinte, estava com dez histórias prontas. Eu só pensava era nos 300 contos que poderia ganhar, para sair da pindaíba. Gustavo olhou algumas. Só fazia rir da cena toda, o velho Jacaré. O dono da editora mandou um motoboy buscar o disquete. Fiquei aguardando, nervosíssimo. Será que eu tinha exagerado? Será que não escrevi coisas muito cruas? Lá pelas tantas, tocou meu bip (sim, esse objeto de comunicação já existiu), com a mensagem:

“Ligar para a editora”.

Liguei. O editor estava eufórico.

“Rapaz, do caralho. Muito bom, muito bom mesmo. Tem certeza que nunca trabalhou no ramo?”
“Não”, respondi. “Eu só estou é muito liso e fiz o que tu pediu”.

Depositou o dinheiro no mesmo dia e mandou mais uns 50 relatos. Paguei a conta de Nabuel, o bar defronte, e acho que fiz alguma farra com Gustavo.

Durante alguns meses, a minha reta final em São Paulo, esse foi o ganha-pão. De manhã cuidava da dissertação de mestrado. À tarde, lia as histórias de sacanagem de um Brasil meio desdentado mas cheio de tesão, e transformava tudo em histórias com início, meio e fim. A revista se chamava “Brazil”, com "z" mesmo, e vendia como água. Outro dia vi numa banca do Recife. Teve tudo o que o ser humano possa imaginar no aspecto da sexualidade. É cada lapa de doidice, que eu vou dizer.

Com o dinheiro, consegui sobreviver, comprei a passagem de volta para o Recife, e sobrevivi bem, até chegar o primeiro salário da Universidade Católica. O editor queria que eu continuasse, mas pendurei as chuteiras.

Acho que escrevi uns 100 relatos. Estão todas arquivadas no meu computador. São totalmente impublicáveis. Se lessem, os leitores deste blog não me chamariam nem de safado, mas de tarado. São essas coisas que a gente faz na vida para sobreviver.

Tem a história do dia em que assinei TV a cabo, mas não tinha TV em casa (para instalar o cabo, lógico) e de como ganhei o visto para ir aos Estados Unidos mesmo estando desempregado, com o nome no Serasa, mais liso que o porteiro consulado dos Estados Unidos. Qualquer dia escrevo. São histórias divertidas, para a gente relaxar um pouco.

(Para o Guilherme Salgado, o maior botafoguense que pode existir no globo terrestre).

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

Um taxista e suas teorias

Não sei o que aconteceu esta semana, deve ser o efeito estufa botando pra gerar, porque senti o maior calor da história do Recife. Eu almoçava com o Inácio na Casa do Estudante (R$ 3,50 por cabeça e bem gostosinho), saía andando pelo Derby até a parada de ônibus, isso lá pelas 13h33, e o sol vinha rachando tudo. Cada passo, um grau célsio a mais no organismo. Na parada de ônibus, do lado do sol, todo mundo era suor puro, dava um desamparo tão grande, uma fraqueza no sentimento, que surgia até uma vontade de chorar. Descia na 17 de Agosto, e para vir caminhando até o Poço, era tudo um deserto quente, árido, eterno e infinito. Quando chegava em casa e ligava o ventilador, o paraíso tinha um nome: Britânia, ligado no três.

Pois bem. Na quarta-feira, olhei para os dois lados e pensei. Vou deixar de pirangagem. Mesmo liso, decidi que voltaria de táxi para casa. Chega de sofrimento! Arre! Dois livros publicados, um mestrado, campeão estadual pelo Santa Cruz, e sofrendo mais que retirante! Decretei a independência. Estendi gloriosamente a mão para o táxi. O carro parou. Não me arrependi, porque gastei R$ 11,20 e cheguei em casa menos cansado, menos suado, menos tudo.

Mas, como ninguém é de ferro, descolei uma historinha para compartilhar com meus leitores.

Eu, quando ando de táxi, vou logo puxando assunto com o motorista, porque acho um saco aquele negócio de cada um na sua. Eu gosto muito de conversar com os amigos, mas conversar com desconhecido, isso é que é bom mesmo, porque tudo é surpresa e a gente nunca sabe o que está por vir, cada ser humano é um grande mistério mesmo. Um dia, eu quase desci do táxi porque puxei assunto três vezes, e o camarada era monossilábico. Um chato, aquele cabra. Não desci por pura preguiça. Em sinal de protesto, vim cochilando o restante da viagem.

Mas na quarta-feira, o taxista que me trouxe era também um exagero. Fiz uma simples pergunta, um comentário sobre o calor, sobre o jogo do Santa Cruz no sábado, e o camarada soltou o verbo. Veio falando do Derby ao Poço da Panela. Conversou R$ 11,20, na bandeira 1. Teve um momento que não resisti. Peguei o bloquinho e anotei: “Um taxista e suas teorias”.

Primeiro, ele serviu ao Exército durante um ano, e só aprendeu duas coisas: matar gente e recolher corpo. “Ah, a gente faz amizade também”, completou. Ainda bem. Fui informado que qualquer país, até o Paraguai, pode invadir o Brasil, porque nossas armas são obsoletas e ninguém sabe nada de guerra.

“É só isso o que a gente aprende no quartel: matar gente e recolher o corpo. Não tem nada de cultura”.

Por sua vasta experiência em quartéis, ele defende a tese que os oficiais, ao invés de ficarem jogando dominó, porrinha, totó, baralho, deveriam assumir as crianças de rua do Recife (que, segundo ele, “não passam de 300”). Cada oficial seria um tutor.

“Está na rua? Então pega. Se está na rua é da nação”.

Nunca mais eu tinha escutado esta palavra, nação.

Ele disse que em várias outras cidades, não tem essa tuia de menino de rua nos sinais.

“Só no Recife tem essa fuleiragem”, completou. Caramba, outra palavra que eu não escutava há muitos anos. Fuleiragem. Acabei de olhar no Aurélio, tem sim.

A idéia do taxista é simples. Como tem gente ganhando um bom salário, sem ter guerra com nehum país (ele não citou nossa guerra civil interna), se não há estratégia nenhuma, se os norte-americanos ainda não cismaram de invadir a Amazônia, o Exército deveria cuidar das crianças de rua do Recife. Ele disse que são 300, e conhece todas. Eu não concordei nem discordei, eu só queria saber onde ele iria chegar.

Ele foi chegando. Disse que os galpões lá do Recife Antigo deveriam ser arrumados (não sei quem faria isso, se a Prefeitura ou o Governo do Estado), para abrigar os mendigos. Detalhe: a partir das 22h, todo mundo já recolhido, banhado e cheiroso, para dormir.

“A cidade ia ficar mais limpa”, assinalou. É cada lapa de doido nessa cidade, pensei.

Ele acha que é preciso mais ordem. Parece que foi assim que o Hitler começou, com esse negócio de limpeza, ordem.

“É um alisado da porra com esse pessoal”, justificou meu colega de trânsito. Pelo que ele vinha falando, o "pessoal" eram os meninos de rua e os mendigos.

Depois ele passou para a questão sexual, com a lapidar frase:

“Eu nunca escutei falar que existe um ex-gay”.

Rapaz, tudo bem que eu gosto de conversar com taxista, mas o camarada também não me deixava respirar. Tinha começado com o Exército desocupado, passou para os mendigos e agora entrava nos temas sexuais. Ele começou com a temática gay, mas não desenvolveu. Saiu falando de suas peripécias com as mulheres, e parece que eram muitas. É casado, tem dois filhos, mas não acredita nesse negócio de camisinha.

“Isso de camisinha não existe, tá ligado? Até hoje, tenho 43 anos, nunca usei camisinha. Facilitou, eu atolo o pé”.

O sujeito falava mais que o homem da cobra. Eu, por minha vez, não tinha tempo nem de dizer um ran ran. Esqueci até de olhar para o taxímetro, para ver o tamanho da bronca. Lá perto do Hiper de Casa Forte, ele parou ao lado de uma praça, que estava com uns cinco vendedores de CD pirateados. Ele olhou e me cutucou:

“Tás vendo? Os caras estão vendendo CD pirateados, tudo bem, eles precisam sobreviver. Agora me diga: eles precisam ocupar a calçada toda?”.

Caralho, que cara arengueiro!

Ele saiu falando que o País não investe em educação, que as escolas do Estado são todas umas tapeações, que não existe preocupação com o “futuro da Nação”, e neste momento, lembrei do Legião Urbana. Já perto da minha casa, ele arrematou:

“Não querem nada de cultura para o povo. Querem a população cada vez mais analfabeta e burra”.

Pela primeira vez, concordei. Desci, paguei meus R$ 11,20 mas esqueci de anotar a placa do carro, para jogar na milhar.

Faz mal não, ganhei uma pequena crônica, nesses dias de tanto calor. Liguei o ventilador no três e dei vivas à Britânia.

ps. o editor deste blog só poderá escrever algo decente amanhã. É que o seu clube, o Santa Cruz, classificou-se ontem para a Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro. É cachaça até umas horas...

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

"Se é para fingir que vivemos em uma democracia, vamos fingir direito"

Está na capa dos jornais de hoje, no Recife, a foto do comandante do Batalhão de Choque da Polícia Militar, o famoso Coronel Luiz Meira, dando uma gravata em um estudante, que leva a bandeira azul da União Nacional dos Estudantes (UNE). Quantas coisas são ditas, em apenas uma imagem: um jovem dominado pela garganta (de onde sai a voz, a indignação e a revolta), e a expressão transtornada de um coronel (com a boca torta, que range de raiva). Ah, mas quanto ódio desperta na PM de Pernambuco o movimento dos estudantes, dos moços, os Sem-Terra, os Sem-Teto, os Sem-Nada, que só estão esperneando minimamente, no legítimo direito de lutar, de protestar, de tomar as ruas...

É preciso ser meio de pedra, para não sentir raiva dessa polícia daqui, conhecida pela truculência com que enfrenta os movimentos sociais (é só na base da porrada, gás lacrimogênio e spray de pimenta), e famosa pela incompetência em lidar com a criminalidade (que lhe dá um banho de competência, todos os dias, e nós pagamos o pato).

Nessas manifestações, teve vidro de ônibus quebrado, teve exagero sim, mas nem de perto lembrou aquela revolta na França, onde a moçada botou pra quebrar, e incendiou uns 6 mil veículos. Não havia, nas ruas do Recife, um movimento articulado de vandalismo, é sempre aquele negócio de gente que se exalta, enfim. Aqueles carros incendiados na França me dizem muito do que está sendo gestado nos subúrbios das grandes cidades do primeiro mundo, e do que pode estar vindo aí, da periferia do terceiro ou quarto mundo, que é a periferia do Recife.

A impressão que tive, na segunda-feira, quando passei pela avenida Agamenom Magalhães, foi a de que um Batalhão do Ódio partia para cima dos rapazes e moças. Eu nem olhei muito, para não adoecer a alma. São as mesmas cenas que vejo nos estádios, nos acampamentos dos Sem Terra. Os caras batem, e batem bem, com raiva, em todo mundo. Sugiro inclusive a mudança do nome: de Batalhão de Choque para Batalhão de Ódio. Teve de tudo. Prisões arbitrárias, espancamentos, recolhimento de jovens em um quartel (com identificação no próprio quartel).

“A ordem era: teve baderna, a gente mete porrada, se não teve, a gente mete porrada para prevenir”, disse um PM ao jornal Diário de Pernambuco de hoje.

Precisa dizer alguma coisa, depois de um depoimento desse?

O relato da Ana Paula, estudante de Jornalismo (www.aostraeovento.blogspot.com), vale por muitas matérias publicadas nos últimos dias, que tratam os estudantes somente como “baderneiros” e “vândalos”, como se ali não estivessem ali os que sofrem calados ou resignados, fora os que não têm coragem de jogar uma pedra, quebrar um vidro, queimar um carro.

Encerro com uma frase da Ana Paula, quando ela pede que coisas desse tipo não continuem a acontecer.

“Se é para fingir que estamos em uma democracia, vamos fingir direito”.

E de pensar que o governador, Jarbas Vasconcelos, foi, longo tempo atrás, defensor das liberdades democráticas...

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

"O desconhecido é nosso bem" - parte final da entrevista com o poeta Rainer Maria Rilke

Somente ao entardecer desta segunda-feira (e me parece que o entardecer é um ótimo horário para encontrar poetas), reencontrei o meu querido Rainer Maria Rilke, no mesmo lugar da conversa anterior - ali num box do mercado de Casa Amarela.

Ele me pareceu ainda mais cansado do que no dia anterior. Seu semblante me passou uma impressão contraditória. Por mais que visse tristeza em seus olhos, exalava de sua alma uma certeza de que a vida estava em sua forma mais inteira, como se ele soubesse arrancar pontos de luz em sua escuridão mais profunda. Seu rosto transmitia uma bondade generosa, uma tranqüilidade que fazia da pressa, qualquer pressa, quase um desregramento dos sentidos.

Estava em silêncio, quando cheguei e o saudei. Usava um terno simples, puido, com aquele elegância sóbria que se reflete em seus poemas. Ele abriu um sorriso tímido, ofereceu-me a cadeira e fechou seu caderno, em sinal de respeito. Eu, por outro lado, abri meu caderno, também em sinal de respeito. Não poderia conversar com ele, talvez pela última vez, sem tomar notas para compartilhar com os meus leitores. Foi assim nossa última conversa.

Eu: Perdão pela intromissão, mas há algo de triste em teu semblante...
Rilke: Verias também a tristeza como algo negativo para a alma?

Eu: Não. Trata-se apenas de um comentário.
Rilke: Quase todas as nossas tristezas são, acredito, estados de tensão que experimentamos como que tolhidos, assustados por já não nos sentirmos viver. Pelejamos como se lutássemos com uma corrente de que tivéssemos de suportar as ondas. A tristeza também é uma onda. O desconhecido uniu-se a nós, penetrou no âmago do nosso coração, e já nem sequer está no nosso sangue, pois se mesclou com o nosso sangue e assim ignoramos o que se passou.

Eu: E como enfrentá-la?
Rilke: Quanto mais silenciosos, pacientes e recolhidos formos nas nossas melancolias, de forma mais eficaz o desconhecido penetrará em nós. O desconhecido é o nosso bem. Metamorfoseia-se na carne do nosso destino, ligando-nos a este quando foge de nós para se realizar, isto é, para se projetar no cosmo. E é preciso que assim seja. É preciso – e é nisto que consiste a nossa evolução – que jamais encontraremos nada que não nos pertença há muito tempo.

(Ele abriu o caderno, buscou entres as folhas algum poema e começou a recitar, de forma muito mansa, quase num sussurro)

“As folhas caem como se do alto
caíssem, murchas, dos jardins do céu;
caem com gestos de quem renuncia.

E a terra, só, na noite de cobalto,
Cai de entres os astros na amplidão vazia.
Caímos todos nós. Cai esta mão.
Olha em redor: cair é a lei geral.

E a terna mão de Alguém colhe, afinal,
Todas as coisas que vão caindo”.

Eu: E para quem quer escrever, como eu, quem peleja com a escrita, o que o senhor sugere?
Rilke: Uso uma velha expressão que cunhei há muitos anos – “Levar a termo e dar à luz” – eis tudo. É necessário deixar cada impressão, cada germe de sentimento, amadurecer em si, na treva, no inexprimível, no inconsciente – essas regiões herméticas ao entendimento. Espere com humildade e paciência a alvorada de uma nova luz.

Eu: O tempo, neste caso, se conta de outra forma...
Rilke: O tempo, neste caso, não é uma medida. Um ano não conta, dez anos não representam nada. Ser artista não significa contar, é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e resiste, serena, aos grandes ventos da primavera, sem temer que o verão possa não vir. O verão há de vir. Mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão sossegados como se tivessem na frente a eternidade.

Ele me olhou com atenção e falou quase como quem recita um mantra:

Aprendo todos os dias, à custa de sofrimentos que abençôo: a paciência é tudo.

Eu: Que conselhos terias a mais para quem segue pela vida, em busca de encontros mais profundos com a humanidade?
Rilke: Alegre-se da sua marcha em frente: ninguém poderá acompanhá-lo. Seja bom para os que ficarem atrás, senhor de si e tranqüilo perante eles. Não os atormente com suas dúvidas; não os assuste com a sua crença, com o seu entusiasmo, porque não poderiam entende-lo. Procure comungar com eles na simplicidade e na fidelidade: esta comunhão que não tem necessariamente de passar pelas mesmas metamorfoses por que passa a sua alma. Seja tolerante para aqueles a quem a idade faz temer essa solidão a que se abandona. Evite alimentar o drama sempre pendente entre pais e filhos, esse drama que exaure a força dos filhos e cansa o amor dos velhos, que não precisa de compreender para agir e para esquecer. Não lhes peça conselho. Renuncie a que o compreendam. Acredite somente nesse amor que lhe pertence como um bem de raiz. Tenha a convicção de que há nesse amor uma força, uma bênção que podem segui-lo tão longe quanto seus passos o levarem.

(Eu já não tinha mais condição alguma de comentar nada, diante daquela jorro de palavras e belezas, ditas de uma forma tão calma, quase como se estivessem tatuadas em sua alma. Ele me olhou, já como que se despede, e completou):

Quanto ao resto, tenha confiança na vida. Creia, a vida tem sempre razão.

Depois, segui-se um longo silêncio. A tardinha começava a migrar para a noite, em Casa Amarela. Ele bebeu o que restava do seu conhaque, pegou no meu braço direito e disse, como uma profecia:

“Seja alegre e tenha fé”.

E então partiu, com seu passo silencioso, e o vento da tarde assanhou levemente seus cabelos e espalhou folhas na calçada. Então percebi, ali, que nunca mais encontraria o senhor Rainer Maria Rilke em Casa Amarela. Então peguei o pequeno livro dele, "Cartas a um Jovem Poeta", e comecei a ler novamente, e me pareceu que tudo o que ele tinha dito, estava no livro. Então fiquei na dúvida se tivemos ou não este encontro, se foi apenas um sonho imenso e muito real, se tudo não passou da minha imaginação.

Voltei para casa sem querer definir isso claramente, e a frase ficou reverberando aqui comigo:

"O desconhecido é nosso bem".

sábado, 19 de novembro de 2005

Entrevista com o poeta Rainer Maria Rilke - Parte I

Encontrei ontem, ao final da tarde, com o poeta alemão Riner Maria Rilke. Ele estava sentadinho, numa mesa do mercado de Casa Amarela, com aquele seu bigode bem assentado num rosto que me pareceu suave, apesar de marcado por golpes da vida. As sobrancelhas eram mansas e seu olhar exalava uma perplexidade feliz, diante daquele movimento intenso no mercado.

Ele bebericava um conhaque, e não tive a ousadia de interroga-lo sobre a marca, porque cada um com seu cada qual. Como ficamos bem próximos, vi que ele anotava pequenas coisas em um caderno grosso, sempre pontuando as anotações por silenciosas e demoradas pausas. Eu também comecei a tomar notas esparsas, para completar o primeiro volume da minha coleção “Divagações e inutilidades”.

Lá pelas tantas, nos falamos sobre algo que não lembro, talvez um comentário sobre o calor, essas coisas que iniciam conversas. Ele perguntou se eu escrevia poemas, respondi que sim, mas para guarda-las em minhas gavetas, porque a poesia não poderia ser ferida pela indelicadeza da escrita ruim. Ele abriu um sorriso e me chamou para sua mesa. Depois de muitos conhaques, já com a tarde trespassando para a noite, perguntei se podia fazer uma entrevista para um blog na Internet. O Rilke me abriu um sorriso e disse que não tinha muito a dizer. Mesmo assim, me respondeu às seguintes perguntas:

Eu: O Senhor diz, em seus escritos, que a gente deve preferir o difícil. Nos dias de hoje, é um contra-senso, porque as pessoas querem cada vez mais o amor fácil, não querem enfrentar a dificuldade de construir coisas coletivas, enfim. Continuas a pensar assim, depois de tantos anos?

Rilke: Primeiro, faça-me o favor de não me chamar de senhor. Somos iguais, nesta grande aventura da humanidade. Respondendo à tua pergunta, diria que os homens possuem, para todas as coisas, soluções fáceis e convencionais, as mais fáceis das soluções fáceis. Entretanto, é evidente que sempre se deve preferir o difícil: tudo o que vive lá cabe. Cada ser se desenvolve e se defende à sua maneira e tira de si próprio, a todo o custo e contra todos os empecilhos, essa forma única que é a sua. Conhecemos muito poucas coisas, mas a certeza de que devemos sempre preferir o difícil nunca deve nos abandonar. É bom estar só, porque a solidão é difícil. Se uma coisa é difícil, motivo mais forte para a desejar.

Eu: Você fala sobre isso, naquele seu famoso livro, "Cartas a um jovem poeta", e fala muito sobre as dificuldades da vida, com uma certa tranqüilidade, quase como se tivesse uma certeza antiga de que é este o caminho...
Rilke: Se construirmos a nossa existência sobre o lema de que devemos sempre dar preferência ao mais difícil, tudo o que ainda hoje nos parece singular se tornará familiar e fiel. Como olvidar esses mitos antigos que se encontram no início da história de todos os povos, os mitos dos dragões que, no momento supremo, se transformam em princesas?

(neste momento, Rilke olhou para mim com uma expressão muito serena, e completou)

Todos os dragões da nossa existência são talvez princesas que esperam ver-nos, um dia, belos e audazes. Todas as coisas assustadoras não são mais, talvez, do que coisas indefesas que esperam que as socorramos.

Eu: E no amor, a gente deve ir pelo mais difícil?
Rilke: Amar também é bom, porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais superior testemunho de nós próprios, a obra absoluta em face da qual todas as outras são apenas ensaios. É por isso que os seres bastante novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam aprender.

Eu: É preciso aprender a amar?
Rilke: Sim. O amor é a oportunidade única de sazonar, de adquirir forma, de nos tornarmos um universo para o ser amado. É uma alta exigência, uma cupidez sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelo mais largo dos horizontes. Quando o amor aparece, os novos apenas deveriam enxergar nele o dever de trabalhar em si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos entregarmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles.

Primeiro, é preciso ajuntar muito tempo, acumular um tesouro. Quantos jovens existem que não sabem amar, que se limitam a entregar-se, como sucede habitualmente (e decerto a maioria limitar-se-á sempre a isto), e inclinam-se depois sob o peso do seu erro!

Eu: Amar é algo que vamos mesmo aprendendo durante a vida?
Rilke: Denomino o amor de “uma dura aprendizagem”. Em vez de nos dispersamos em brinquedos fáceis e levianos que permitem que os homens se furtem à seriedade da vida, talvez um progresso sutil, um certo alívio, possa então resultar para aqueles que nos acompanharem, muito tempo ainda depois do nosso trespasse. Isso já seria bastante.

Eu: E qual sua expectativa sobre o futuro do amor?
Rilke: O amor deixará de ser o comércio de um homem e de uma mulher para ser o de duas humanidades. Mais próximo do humano, será infinitamente amável e cheio de atenções, bom e claro em tudo o que realizar ou desfizer. Este será o amor que, combatendo duramente, agora preparamos: duas solidões que se protegem, se completam, se limitam e inclinam uma para a outra.

Os sexos estão talvez mais próximos do que se pensa e talvez seja a chave da grande renovação do universo: o homem e a mulher, libertos de todos os seus erros, de todas as suas dificuldades, não tornarão a procurar-se como contrários, mas como irmãos e como parentes. Unirão suas humanidades para suportar juntos, gravemente, pacientemente, o peso da carne difícil que lhes foi propiciada.

Neste momento, vendo já o poeta Rilke demonstrar um certo cansaço, perguntei se poderíamos continuar no dia seguinte. Ele aceitou, e será a segunda parte desta entrevista, que publicarei segunda-feira, se tudo der certo. Mas gostei muito disso, do "Unirão suas humanidades". Sim, foi uma bela tarde com o poeta. Espero que o segundo encontro seja também cheio de beleza e intensidade como foi o primeiro.

Informo que não o deixei pagar a conta.

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

Cada pessoa é seu próprio rio

Foi ontem de manhã, a caminho do trabalho, no Alto Santa Isabel. Ali no Derby, perto do Hospital da Restauração, subiu o rapaz, de uns 25 anos. Negro, com um boné, sorriso farto. Levava uma caixa cheia de canetas. Foi lá para a frente do ônibus, dizendo bom dia a todos com uma alegria inesperada. O camarada acordou o ônibus inteiro. Todos os pensamentos vagos, todos os problemas que estávamos alimentando, foram desviados para ele, o vendedor de canetas.

Ele começou a falar, e me chamou a atenção pela educação. Chamou todos de senhoras e senhores (a tal questão de gênero), pediu licença para mostrar seu produto (um vendedor de verdade), disse que iria tomar somente alguns segundos da atenção de cada um (o cuidado para não encher os outros com muita conversa). Educadíssimo, falava um português gramaticalmente perfeito, fora a articulação das palavras e a fluidez no discurso.

Fiquei preocupado, porque estava quase na hora de descer, e já não me interessava a caneta, mas o ser humano que estava ali. Queria saber onde tinha nascido, onde vivia, como teve a idéia de vender canetas de três cores, andando pelos ônibus do Recife, se tinha família, se tinha filhos, por qual time torcia, onde tinha estudado.

Mas eu tinha que seguir minha vida, ele tinha seu ofício para ganhar o dia. Só deu tempo comprar uma caneta, que me custou R$ 1,00. Estou aqui, com ela. São três cores, uma para cada estado espiritual em que me encontro.
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Jorge, meu vizinho que é escultor, de vez em quando me chama para almoçar em sua casa, um casarão aqui no Poço. São sempre almoços calmos, sem pressa, arroz integral, salada, legumes, um peixinho etc. Ele manda brasa na birita, fuma um bocado, mas quando almoça, se alimenta bem.

Outro dia, preparei um rango e chamei meu amigo. Ele veio com Machado de Assis debaixo do braço. Nunca li Machado de Assis nem Eça de Queiróz, que parecem ser gigantes. Mas não me preocupo com isso. Então ele leu o seguinte trecho de "Esaú e Jacó":

"O tempo é um tecido invisivel em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo".

Ele me olhou com os olhos brilhado e completou:

"Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo e acaso do outro".

Nem precisamos sobremesa
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Lucidélia vai se recuperando bem do câncer, estou conseguindo finalmente vender o bar, fui informado ontem à noite que estamos na primavera. Acabou o meu dinheiro, a viagem para Cuba vai ficar para outro tempo, mas estou com aquele estranho e bom sentimento de que a vida está seguindo seu fluxo natural, que cada pessoa é o seu próprio rio.

O meu rio segue graças a essas pérolas que aparecem no cotidiano, essas "ráfagas de felicidade", como diz o chileno Hernán Rivera Letelier. O vendedor de canetas com seu sorriso, o almoço com Jorge, Machado de Assis na sobremesa, a primavera que eu não sabia, o rio que existe em mim, que me banho sempre, e que às vezes fica seco, um fiapo de água, mas depois enche novamente e transborda.

Essas coisas sem objetividade alguma, que tanto me interessam.

terça-feira, 15 de novembro de 2005

O triunfo da delicadeza

Urgente, vá ao cinema. Eu não sou crítico de cinema, não entendo de linguagem cinematográfica, não sei nada de enquadramento, penso em escrever roteiros para curtas brevemente, mas sugiro: desmarque o dentista, a cárie segura até amanhã. Cancele a reunião no condomínio, arranje um atestado médico, a instituição que mais funciona no Brasil. Deixe o bar para depois do filme. Vá sem falta ao cinema, assistir “Cinema, aspirina e urubus”, dirigido por Marcelo Gomes.

A história é simples e reproduzo o que saiu no Diário de Pernambuco, sexta-feira:

“No sertão pernambucano de 1942, um alemão, fugindo da guerra e desbravando o Brasil vendendo remédios, e um nordestino, que sonha em morar no Rio de Janeiro, travam uma relação de amizade”.

Fui à sessão das 20h40, no Cine Boa Vista, que sai mais barato (R$ 11,00). Eu, adoro trailler, fiquei impressionado. Passaram uns oito, pensei até que teríamos uma sessão só de trailler, o que também seria demais. Pois bem. Era tudo filme norte-americano, e os personagens engatilharam umas 30 armas, só para começo de conversa. Foi bala até umas horas. Eita povinho pra gostar de desgraça, meu deus!

Depois de tanta bala e arma, entra na tela a história do alemão, que fugiu da guerra, e viaja pelo Brasil, vendendo Aspirina, essa mesma que todo mundo consome hoje como se fosse água. Lá pelas tantas, o alemão, Johan, conhece o Ranulpho, que sonha em morar no Rio de Janeiro. Da carona, vai surgindo a amizade. E a amizade entre os dois segue prendendo a gente do começo ao fim. Tudo de um jeito delicado, com dois atores simplesmente irretocáveis.

Aviso logo que quem for nordestino e estiver longe de casa, vai se rasgar todo de saudades. O Ranulpho rouba a cena, é um personagem maravilhoso, com seu azedume, sua perspicácia, seus olhares reveladores, seu jeito de falar e se relacionar com o mundo. “Ô seu menino”, diz ele, para chamar um desconhecido. “Sai, tristeza”, fala ele com o alemão, quando está irritado. “Bicho cabuloso”, repete em algum momento.

A amizade entre os dois é construída de uma forma tão delicada e engenhosa, que é impossível não se envolver e emocionar com as duas criaturas. Na verdade, dois mundos acabam dialogando pelos caminhos intermináveis da amizade, em pleno sertão nordestino. Um alemão, que fugiu do seu país porque não queria matar ninguém, e um sertanejo, que fica com os olhos brilhando, quando fala no Rio de Janeiro, e vive esculhambando sua terra, “esse buraco”, “esse fim de mundo”, “esse lugar que nem guerra chega”.

Lembro com especial carinho de duas cenas: Numa delas, o alemão diz que guardou dinheiro por tanto tempo, e agora, não servia de nada. Ele resolve fazer uma grande farra com seu amigo. O motivo?

“Vou comemorar a vida”, diz.

O Ranulpho, por sua vez, toma uma decisão ou fala algo que não me lembro. Era algo que fugia completamente do seu jeito de ser. O alemão questiona a decisão, e o sertanejo responde, na lata:

“Eu mudei. Pode não, é?”

Amizade, comemorar a vida, as mudanças que uma pessoa acaba gerando na outra, por mais diferente que sejam os mundos, essas coisas bestas que o mundo tem perdido, e que um cineasta foi encontrar no calor e na aridez do Sertão.

Não sei escrever sobre cinema, que a Luciana Veras não me leia. Sei apenas quando tem um belo filme passando na cidade. Então, me sinto na obrigação de sugerir. Por sinal, só fui hoje ao cinema porque li um texto lindo da Luciana, na mesma edição do Diário. Em algum momento do belo texto, ela fala do “triunfo da delicadeza”, que acabou sendo o título desta breve crônica.

É só isso: O triunfo da delicadeza, com tanto filme cabuloso em cartaz.

segunda-feira, 14 de novembro de 2005

Pequenos mistérios

Olho aqui uma foto que tenho na época em que trabalhei no Diário de Pernambuco, em 1993/1994. Estou saindo da redação com uma pauta na mão, com um sorrisão imenso, usando uma camisa que não sei mais onde está, eu acho sempre um mistério esse: saber onde foram parar as roupas que nos acompanharam durante tanto tempo.

Lembro que uma vez eu e meu irmão abrimos um baú lá em casa, e encontramos umas camisas lindas, com gola, de clubes de futebol de salão que meu pai tinha jogado. Então, descobrimos que ele tinha sido um grande jogador, na época em que o Crato assombrava os clubes do sul com times que eram verdadeiras máquinas. Era o comecinho dos anos 70.

Passamos a usar as tais camisas do baú, e os amigos ficaram loucos, querendo saber onde tínhamos conseguido aquilo. Por muito tempo, usamos essas camisas, que eram relíquias do meu pai, até que elas foram rasgando, se perdendo, e nada mais restou, apenas a lembrança.

Então fica o primeiro mistério: por que as camisas dos clubes dos anos 70 eram tão lindas, todo mundo adora, e não fabricam mais? A beleza tem que ser coisa do passado?

Outro grande mistério que me intriga há muitos anos é o seguinte: por que o poder é tão destruidor?

Não sei o que é, mas algo no poder destrói muitas vidas, e desconfio que muita gente seria mais feliz se tivesse (ou desejasse) menos poder. Poder não, mas o desejo dele, o objetivo do poder, sustentando a vida. O sujeito, para ser governador, deveria a princípio não desejar ser governador, mas ir chegando, naturalmente, ao cargo.

Não sei se é uma coisa muito pessoal, mas na época em que trabalhei em redação de jornal, eu nunca quis ser editor, que ganhava bem melhor e tinha poder. Eu gostava mesmo era de ir à rua, escrever, ver a matéria publicada e sentir que tinha feito algo bacana. O editor tinha o poder dele, mas eu fazia o que mais gostava, que é mesmo o grande poder.

Mais um mistério: por que as pessoas brigam tanto?

Basta olhar o trânsito, para ver que as pessoas estão brigando por segundos. Se alguém está saindo da garagem e você para, para que a pessoa tenha tempo de sair, alguém atrás buzina feito louco. Mas se ele estivesse na garagem, diria: nossa, que pessoa gentil, me dando uma colher de chá em plena manhã de segunda feira!

Tive um bar defronte a um colégio de classe média, que é bem bacana, a forma de educar é cheia de coisas bonitas, as crianças estão realmente tendo uma chance maravilhosa de serem pessoas doces, educadas, de cultivarem inteligências e talentos. Mas nem queira estar na porta da escola ao final de cada turno. Os pais fazem da buzina armas poderosas, estão sempre berrando com suas buzinas, e acho que a escola bem que poderia chamar os pais para um workshop sobre “como pegar seu filho na escola sem fazer um escândalo”. Pior: quanto maior e mais luxuoso o carrão, menor a paciência. Será que esperar no ar-condicionado com um carrão luxuoso cansa?

Vai a minha sugestão para hoje: saia dez minutos mais cedo, e faça gentilezas com todo mundo no trânsito.

Outro mistério: por que tiraram a Fanta Uva do mercado?

É questão pessoal mesmo, perdoem. Eu adorava Fanta Uva e Grapette. “Quem bebe Grapette, repete”, era a propaganda.

Mistério número cinco: por que quase não tem mais circo visitando as cidades?

Tudo bem, teve um festival de circo aqui no Recife, coisa grande, convidados do mundo inteiro, mas a impressão que tenho é que o velho circo, com palhaços mal vestidos e divertidíssimos, com Globo da Morte e domador de leões, acabou. Os circos agora não são mais na periferia, para as pessoas de riso fácil, mas coisas muito gigantescas, para quem tem grana e pode pagar.

Mistério número seis: por que os encontros de ONGs têm que ter a famosa “integração?”

Não sei o motivo, mas tudo que é de encontro de ONGs, de gente que trabalha no terceiro setor, tem que ter uma história de abraços, histórias, confissões, a tal da "integração". Não sei por que as pessoas não podem ir se conhecendo aos pouco, num cafezinho, sem alarde, num sosseguinho básico. Fico pensando nos tímidos, na hora da integração. Eles sofrem, creio.

Sétimo mistério: sumiu das prateleiras as geléias de mocotó Colombo. Francamente, a vida ficou mais difícil sem as tais geléias, e seus copinhos admiráveis.

As cartas postadas e escritas à mão, cadê? Não, aí não tem mistério, é o e-mail mesmo, ocupando todos os espaços. É a pressa com algumas perfeições, mas semana passada recebi uma carta do meu irmão, e adorei.

Mistério nove: por que as comissárias de vôo andam tão enjoadas?

Não sei o que é, mas há dez anos, as comissárias de vôo eram umas deusas, delicadíssimas, amorosas, que nos amparavam de qualquer medo. O sujeito estava com medo da altura, elas abriam aquele sorriso, quase nos colocavam no colo, e tudo ficava ao pé do chão, parecia que estávamos num carrinho de roliman. Hoje, elas são duras, bravas, se você não pegar logo o sanduba, perde o rango, e quando elas mandam botar a cadeira na posição vertical, você tem que obedecer rápido, sob o risco de levar um cascudo.

Décimo mistério: por que essa fantasia em torno da velhice?

Eu não entendo. Chamar a pessoa de velha, para mim, é um elogio. “Velho” é uma palavra muito mais digna e bonita do que essa invenção amena da “terceira idade”. Pior: agora, inventaram o troço da “boa idade”. De quantas idades é feita uma pessoa? Quantos anos envelheci desde que cheguei ao Recife, em 2000? Quantos jovens envelhecidos no espírito não conheci? Quantos velhos amargos não estão por ai? Por que o sujeito que nunca dançou na vida tem que começar a dançar, depois de velho, numa nostalgia pálida do que não viveu por uma simples questão de opção? Boa idade pode ser qualquer idade.

Último mistério: o mistério do amor.

Por que, quanto mais você deixa livre a pessoa que você ama, mais ela é fiel ao sentimento, e mais te respeita?

Talvez esse mistério tenha uma mínima resposta, e vem do Humberto Maturana:

“O que é especialmente humano no amor não é o amor, mas o que fazemos no amor enquanto humanos”.

Para encerrar:

"O amor é inimigo da apropriação".

**
ps. não deixem de assistir "Cinema, aspirina e urubus", de Marcelo Gomes. Um belo filme.

sexta-feira, 11 de novembro de 2005

Louvação aos que brincam

Outro dia, já chegando na avenida 17 de Agosto, vi dona Fátima, a gerente de organização da minha casa, caminhando em minha direção, com a cabeça baixa, talvez triste. Não tive dúvida: me escondi detrás de uma árvore, esperei um bocadinho ela se aproximar e dei-lhe um baita susto. Ela deu um pulo formidável, pareceu a Daiane dos Santos, e me soltou um carão:

“Ôx, tás doido Samarone? Tu não sabe que eu detesto susto?”

Eu sei que ela detesta susto, mas é que em certos momentos, não resisto à tentação. Levei uns carões, mas depois ela falou do filho que descolou um trabalho e prometeu me levar um suco de maracujá, à tarde. Saiu do susto rindo, e acho que fiz bem. Ela fez o tal suco, que adoro, e vou bebericando enquanto escrevo.

Uma amiga que mora na Inglaterra disse que seria complicado uma brincadeirinha desse tipo em Londres. Estranhariam muito. Creio que seria aquele famoso negócio de “perturbar a ordem pública”. Então eu fiquei pensando como seria difícil, para mim, morar numa cidade assim, tão séria, sem lugar para essas tabacudices essenciais para o bem viver, sem este verbo saborosíssimo: brincar.

Sim, porque apesar das broncas da vida, dos problemas, da falta de esperança nos rumos do País, da violência toda, nós aqui no Recife, brincamos pra caramba. Eu mesmo, posso me denominar um brincalhão, e tenho uma penca de amigos do mesmo tipo.

Brincar com a morte, aqui onde moro, já faz parte da vida, perdoem o trocadilho barato. Outro dia, duas amigas de São Paulo chegaram de viagem (ela se hospedaram aqui umas quatro vezes) e perguntaram pelo Walter, nosso grande amigo e vizinho, o sujeito que inclusive foi o primeiro rei do nosso bloco “Os Barba”.

“Soubesse não?”, completou Nana.

Elas:

“O quê?”.

“Morreu”.

Elas ficaram pálidas, tristes. Eu e Nana entabulamos uma conversa imensa, séria, com semblante triste, falando do problema que levou nosso amigo desta para a pior, e quanto mais mentíamos, mais ficávamos sérios. Por dentro, estávamos dando gargalhadas.

Fomos dormir e esquecemos de desmentir o óbito. Elas amanheceram arrasadas.

“Puxa, não conseguimos dormir pensando no seu Walter”.

“Coisas da vida”, respondi, quase com uma lágrima escorrendo, uma lágrima de cinema.

Quando elas encontraram Walter, à noite, mais vivo que todo mundo, tomaram um susto e ficaram bravas comigo. A brincadeira custou uma noite de sono para elas, mas não deu para resistir. Não sei quantos já matamos, e somente uma vez deu errado. Vamos aos detalhes.

Nosso amigo Severino “barrabás” fora internado às pressas, em um hospital. À noite, nossa turma foi visitá-lo e ele já estava quase recebendo alta. Quando todos retornaram, começou o converseiro. Quem chegava e perguntava por Barrinha, respondíamos quase chorando que ele tinha embarcado, que morreu mesmo, que o enterro seria no dia seguinte, um fuzuê danado. Ficamos nisso até umas 11h da noite, e esquecemos de desmentir.

O fato é que nosso amigo morreu de verdade, acho que umas 9h da noite, de um infarto. Quando começamos a dizer que nosso amigo tinha morrido, todo mundo acho que era brincadeira e somente quando o filho de Barrinha chegou chorando, acreditaram.

Informo que ninguém ficou com remorso de nada. É do espírito de quem brinca, brincar sem culpa.

Brincamos muito no dominó, esse esporte que cada vez me cativa mais, e merece uma boa tese de doutorado, eu queria muito saber quem foi o inventor do dominó, este gênio esquecido da humanidade. Tem gente que fica enfezada, se irrita muito com uma buchuda (uma derrota por 6 x 0), mas o bom do jogo é a brincadeira, aquela encenação toda, os blefes, as artimanhas de cada dupla, que refletem a personalidade de cada um. Quem fica do lado de fora, comentando o jogo, é o famoso “Peru”. Lucidélia, já quase boa do câncer, é a maior “Peru” aqui do Poço. Nunca ouvi ninguém chamar a pessoa de “Perua”.

Ontem mesmo, eu e Guga Mota fizemos um estrago nos adversários, só na base da brincadeira. Ganhamos três partidas seguidas. Me disseram que eu estava jogando muito bem, e me deu vontade de rir, porque eu só demoro a jogar para fazer a munganga mesmo. De dominó eu só entendo que tem que pegar seis pedras e ir jogando, e quando não tem a pedra, o sujeito toca. Sigamos.

Brincamos muito com as crianças. Não sei como é nos outros estados da Federação (incrível, o Brasil é uma Federação), nos demais países e continentes, mas aqui, quando chega um pirralho, vai ter sempre gente brincando, tirando onda, ensinando algo, mostrando o papagaio, ensinando uma palavra ou puxando a sardinha para ver se a criatura torce para o seu time. Fico me perguntando: será que na Croácia é assim? Será que nos Estados Unidos, que meio mundo de gente quer ir morar lá, as pessoas brincam no cotidiano? A impressão que tenho, assim de longe, é que se você botar a mão na cabeça de um pirralho norte-americano, pode rolar um processinho básico por assédio sexual. Botar no colo, então, algemam na hora e mandam para a prisão.

Eu só sei que nossa última brincadeira com Luisa, a adorável Lulu, de um ano e meio, foi ensiná-la a dar tchau com o pé direito. Então, quando alguém dá tchau, ela levanta o pé e fica balançando. Nana também ensinou Lulu a colocar areia no sapato das pessoas, e ela adorou.

Para quem gosta de brincar com crianças, vai a sugestão: aquela brincadeirinha de se esconder e aparecer, por mais patética que seja, faz o maior sucesso.

Brincamos muito com as palavras, isso é mesmo delicioso. Ontem fiquei aqui na venda de Seu Vital, sentado, bebericando uma Brahma e vendo o entardecer, essa coisa que adoro. Fiquei com meu bloquinho, anotando eventuais pérolas e a quantidade de pessoas que entravam na venda. Das 17h40 às 18h, entraram e saíram (lógico) na mercearia, 22 pessoas, para comprar pão, vela, fósforo, cerveja, cana, pirulito, queijo, mortadela, big-big (é antigo ping-pong, não sei porque chiclete tem que ter sempre duas palavinhas). Todo mundo fala com todo mundo, é incrível, e muita gente brinca com desconhecidos. Teve uma hora que a mulher perguntou se tinha pão e Vital respondeu, na lata:

“Você quer só do François Campeux ou do Califórnia também?”

Pelos meus cálculos, François Campeux é o pão doce, e o califórnia, o pãozinho francês. Posso estar equivocado, mas é que de pão eu não entendo quase nada, só entendo que um sujeito com a fama de brabo de seu Vital é um brincalhão de primeira linha, e vive fazendo pérolas com a língua portuguesa. “Lá vem o Capitão Sem Fronteiras”, diz com o filho. “Foi para a Iuguslávia”, diz, quando alguém morreu. A lista é grande.

Nos ônibus do Recife, a coisa mais comum do mundo é encontrar motorista inspirado, que gosta de brincar. Quando o motorista e o cobrador são amigos, prepare-se para a viagem. O ônibus todo acompanha a conversa, e tirar onda é com eles mesmo. Brincam com tudo. Quando para um amigo motorista ao lado, vem “arriação”, como dizemos aqui. Cuidado com a gaia, cadê teu urso, enfim, coisas da vida e dos chifres que ocorrem de vez em quando, e se o cara for levar a sério, endoida.

Fico imaginando os casais que não brincam, que ficam sérios. Eu não suportaria. Lamento muito, mas sem brincar, não dá para amar, eu penso que o amor deve ser uma grande e maravilhosa brincadeira, um passeio de bicicleta num sábado à tarde, como sugeriu outro dia uma criatura adorável. E aqueles casamentos sérios? Quando conheço alguém que tem a fama de ser "sério", já fico amuado. Não sei porque os políticos usam tanto isso em campanha: "Seriedade e competência"; "Um homem sério". Deveriam brincar mais e foder menos a gente.

Penso no sujeito que é sério, que não brinca, que não desarma. Caramba, como eu sofreria, se não pudesse brincar, se não tivesse aprendido a brincar. Pior, se tivesse vergonha de brincar.

Talvez seja por isso que eu goste tanto de uma canção que fala em “Brincar de Viver”, onde diz que ninguém é o centro do universo, assim é maior o prazer.

Informo aos meus distintos leitores que escrever essa crônica de hoje foi uma grande brincadeira, depois de uns dias meio complicados que andei tendo.

E dona Da Luz, uma senhora aposentada, que ganha uma pensão de um salário mínimo, acabou de me avisar que passasse na sua casa lá pelas 11h, para pegar um omelete que ela vai fazer. Vou almoçar omelete com luz, o que não é pouco.

Esta crônica vai para dona Da Luz, claro.

quarta-feira, 9 de novembro de 2005

Sobre pipocas e flores

Outro dia eu passava ali pelo bairro do Rosarinho (eu adoro esse nome de bairro), e vi um sujeito no telhado, um negão imenso, pendurando as lâmpadas de piscar do Natal, que cada vez estão mais baratas. Perdão, agora tem que chamar “afro-descendente”, mas era um baita de um negão mesmo, inclusive meio pesado para aquele teto franzino. Quanto às lâmpadas, não sei que mistério é esse, mas cada dia estão mais baratas, acho que é o trabalho escravo na China. Acho que daqui a uns dias, a caixinha vai custar R$ 1,99. Quando eu era pirralho, essas coisas eram mais caras e difíceis.

Acho que a humanidade anda vivendo numa pressa dos diabos. O sujeito que em outubro já está se arrumando para o Natal, definitivamente está com pressa. Daqui a pouco vai começar aquela frescura das lojas do Recife: um calor de entortar concreto, e os funcionários daquelas lojas do centro usando o gorro do papai Noel. É pra derreter o juízo. Caramba, hoje eu só estou falando besteira!

Nem sei por que comecei a falar sobre o negão e o pisca-pisca do Natal. Ah, sim, lembrei. É que em meados de novembro já começa mesmo aquele clima de fim de ano, e a gente pensa nas besteiras que fez, nas que deixou de fazer, e nas que não deveria ter feito. São os tais balanços do ano. Olha eu, falando dos outros e me apressando...

Então me ocorreu que este ano está sendo muito atribulado, mas tive algumas boas idéias, que passo a relatar, na esperança de retribuir as bondades que têm me chegado dos meus poucos mas insistentes leitores.

Uma delas surgiu de uma longa caminhada com meu amigo Iramarai. Eu tinha saído do JC On Line, estava meio morgadão, largado, escrevendo só nos meus cadernos, com saudade daquela troca com os leitores, quando ele me deu um safanão espiritual e sugeriu a criação de um blog. Depois veio a Macksandra e me ensinou a fazer tudo direitinho. E vejam só o resultado: me comunico na hora que eu quero, lê quem quer, tenho escrito muito mais, e tenho adorado esta brincadeirinha.

Ontem mesmo eu estava numa fossa danada, macambúzio e sem animação, botei minha cronicazinha sobre o tema, e o que aconteceu? Um bocado de email na minha caixa postal, com palavras bonitas e animadoras, fora os telefonemas. É como uma gemada para o espírito.

Outra boa idéia deste ano foi o “momento Kinito’s”, que criei para mim mesmo, e me resultou em importantes e fundamentais decisões. Kinito’s, para quem não sabe, é uma pipoca salgada deliciosa, feita, obviamente, pela fábrica Kinito’s, perdão pela redundância. É um troço saborosíssimo, não sei o que eles colocam dentro, que dá até barato, é melhor que ópio, apesar de não ter ainda provado ópio, a não ser do futebol, que os intelectuais de meia tigela insistem em dizer que é o ópio do povo. Custa R$ 0,25 aqui em Seu Vital, mas a tal pipoca é vendida em toda esquina do Recife, dizem até que o dono da empresa está riquíssimo, deve estar mesmo e no fundo, bem que merece, porque o cara se garante no que faz.

Uma vez por dia, paro tudo o que estou fazendo, puxo da minha bolsa uma pipoca dessas e como bem devagar, tentando não pensar em nada, somente saboreando cada pipoquinha, que é bem crocante. É preciso exagerar no barulhinho, para ficar mais saboroso, e jogar para algum passarinho, se ele aparecer.

Nem sempre dá para ficar sem pensar nada, porque a cabeça da gente é uma máquina de produzir coisas, é impressionante. Mas o “Momento Kinito’s”, especialmente nas praças do Recife, foi uma das grandes idéias de 2005. Agora vai o alerta: tem que ser a pipoca salgada, que é realmente do outro mundo, muito melhor que aqueles biscoitinhos que o Proust comeu, e que rendeu uns sete livros em busca do tempo perdido. Tomei muitas decisões maravilhosas e pensei muita besteira também, mastigando o citado produto.

Outra boa idéia para 2005 foi deixar de fazer um bocado de coisas que tinha programado, obedecendo a uma lei natural da existência que se chama preguiça, já caminhando para a vagabundagem, porque adoro os vagabundos, ainda chegarei lá.

Sim, amigos, este ano finalmente introduzi a preguiça na minha agenda, apesar de ter sido atrapalhado bastante pela figura fantástica de um bar. Mas reduzi as idas ao cinema (porque está caro demais e são quase todos longe de onde moro), fiz menos exercícios, desisti de ser boxeador com o titio Jaime, aceitei que não nasci fisicamente preparado para beber whisky e quase não conheci boteco novo. Uma noite, me levaram ao tal do Borracharia, mas de longe, vi aquela multidão, tive um faniquito e dei meia volta.

Mais uma vez, não compareci a vários aniversários, batizados, noivados, chás de bêbê, bodas, despedidas de solteiro e casamentos, pela questão elementar da preguiça. Melhor, preguiça sem culpa. Ao casamento de Bruno Fontes eu só não fui porque estava em São Paulo, acompanhando o Santa Cruz, mas a culpa é dele, do Bruno. Não sei como o sujeito, em sã consciência, é capaz de marcar o casamento para o dia do jogo do Mais Querido.

Em 2005, assisti 90% menos de telejornais, e julgo que foi muito bom para minha saúde física e mental. Deixei para ver só o finalzinho, que tem as notícias do futebol e os gols da rodada. Descobri que estar mais desinformado não me atrapalhou em nada a vida. Pelo que sei, ninguém andou me chamando de burro por ai, porque eu não sabia os nomes de quem foi cassado e de quem roubou mais. Em troca, dei umas olhadinhas básicas nas novelas. Vi o primeiro capítulo dessa “Belíssima”, achei um barato, mas no segundo dia, já começou aquela baixaria previsível da mulher velha, rica e rabugenta ficar arrasando a menina bonita e gostosinha que já foi pobre, então já vi que não dá para o meu bico. Desliguei a TV e fui cuidar do meu jardim do quintal, que foi elogiado até por dona Fátima, a minha gerente de organização da casa.

Informo que pela primeira vez, em muitos anos, escapei do crediário que a dona Ermira faz todo ano, para comprar roupas novas para mim. Em compensação, estou com cada camisa que é de doer. Mas não canto vitória antes do 31 de dezembro. Ela pode chegar a qualquer momento, com a famosa frase: "Meu filho, fiz essas comprinhas pra você".

Uma das melhores idéias de 2005 foi uma ação besta, mas que me fez um bem danado. Cuidei com um zelo imenso do jardim do quintal e da frente da casa. Todo dia, um pouco, sem pressa. Quando menos notei, o jardim estava florescendo. Descobri que adoro ficar nesta leseira de aguar, plantar, mudar planta de lugar, enfim. Travei uma batalha heróica contra umas lagartixas (reptis lacertílios, de pequeno porte, especialmente da família dos geconídeos), que estavam detonando uma planta belíssima. Venci pelo cansaço, mas o que matei de lacertílios em 2005, não está no gibi.

A Kinito’s que me perdoe, mas cuidar do jardim é melhor que o “Momento Kinito’s”. Ah, já sei o que fazer quando terminar de vender o bar: vou botar uma cadeira no quintal, e comer uma pipoquinha olhando para as flores. Se aparecer passarinho, melhor.

segunda-feira, 7 de novembro de 2005

Cada tempo tem sua marca, cada desolação tem sua maravilha

Já aconteceu comigo algumas vezes, e talvez seja por isso que eu encare com tanta tranqüilidade: novamente, estou na lona.

A primeira, depois que resolvi viver longe da família, aconteceu no Recife, onde moro. Eu morava na Casa do Estudante Universitário (CEU) da UFPE, e era um homem liso da cabeça aos pés, um sujeito que dependia fisicamente do Restaurante Universitário, o famoso "RU", quem não comeu naquele bandeijão não sabe o que é bom pra tosse. Algumas vezes, pedi vale-transporte emprestado aos amigos de moradia, para ir à Católica. De manhã estudava Educação Artística na Federal, e de noite fazia Jornalismo, na Católica. Um liso, um fodido, fazendo duas faculdades, era o que eu era, com 19 anos.

Estava todo malamanhado, liso de dar dó, e uma esquina antes da universidade, perto da rua do Príncipe, vi uma nota desmaiada no chão. Acho que era o equivalente a uns dez reais, hoje. Pisei em cima da bicha como quem pisa numa barata, rápido e com força. Olhei para os quatro lados, os quatro pontos cardeais, não tinha nenhuma velhinha procurando seu dinheiro, não tinha nenhum magricela cutucando os bolsos, ninguém por perto reclamando do azar. É hoje, foi o que pensei. Fui direto para o restaurante da Católica, pedi uma baita de uma sopa, um suco e um sanduba no capricho. Ah, que maravilha aquele rango inesperado...

Muitos anos depois, voltei ao Recife para ensinar Jornalismo na mesma Universidade. Então, fico achando que a vida é mesmo inexplicável, tudo segue seu rumo.

Outra vez foi em São Paulo. Eu tinha saído do Diário de Pernambuco por causa de uma rusga com o chefe, fui trabalhar numa ONG em Sampa, e três meses depois, a ONG quebrou. Fiquei novamente na pior, poderia voltar, tinha emprego garantido no jornal concorrente, mas resolvi ficar. Um frio do caralho, morava numa pensão, estava só o bagaço da cana, um baixo astrala da moléstia, quando olhei o saldo no banco: só tinha mais trinta contos. Na semana seguinte, quando nada mais restava, pintou um trabalho como free lancer num jornal da Igreja Católica, e fui me recompondo.

O trabalho no pequeno jornal da Igreja me abriu portas, depois fui para outros jornais e revistas, e graças a esta chance, no último minuto, pude escrever um livro que gosto muito, chamado Clamor.

Outra vez, eu cheguei perto da lona. Estava com um restinho de grana da demissão da Veja (perdão, amigos, a gente faz merda na vida), quase liso, quase fodido, quando concorri a uma bolsa de estudos de um ano, dada pela Fundação Ford.

“Essa bolsa já é tua”, vaticinou Gustavo.

A bolsa chegou quando eu já era um homem desprovido de saldo bancário.

Na outra vez que quebrei, Gustavo estava por perto e não me deixou passar maus momentos. Ele, um retirante, como eu, que fazia um doutorado sobre Ítalo Calvino, pagou os aluguéis pelos dois, garantiu o rango pelos dois, encaixotou minha mudança quando voltei para o Recife. Quer dizer: eu fiquei na lona, mas sem a contagem do juiz para anunciar o nocaute. Ah, o meu velho e inesquecível amigo Gustavito, que saudades de nossas infinitas conversas...

Uma vez, eu estava viajando pela Europa, três meses perambulando, e quando voltei para a casa de uns amigos em Viena, meu refúgio fundamental, eles tinham viajado para a Alemanha. Então fiquei só, na calçada, com uns cinco dólares, sem ter para onde ir, um frio do caralho, sem contato com ninguém conhecido. O que eu fiz? Peguei um cigarro (nessa época eu fumava o suficiente para ter uma carteira de cigarro no bolso) e acendi. Detalhe bom para a cena: era o último cigarro.

Fiquei fumando, no frio, olhando a neblina, achando que estava num beco sem saída, até que apareceu um casal que morava no prédio. No meu francês perfeito, expliquei tudo e ganhei 200 dólares de empréstimo. Eles tinham me visto uma ou duas vezes no prédio, se comoveram, abriram o cofrinho e me deram 200 dólares assim, do nada. Viajei para Paris na mesma noite, e na casa de Luzilá, onde eu estava hospedado, tinha chegado uma carta de uma amiga com 200 dólares dentro, fruto de um empréstimo que ela tinha feito.

Hoje me veio de novo o nocaute. De tanto investir no bar, zerou tudo. O bar está sendo vendido por causa do meu cansaço, mas não posso negar: quebrei dos pés à cabeça. A vizinha (dona da casa onde moro), acabou de chegar, cobrando o aluguel atrasado. Devo em Seu Vital, devo à minha chefa no trabalho, devo ao Enos, devo a Emília, a tia Flocely, devo a Gerrá (a passagem para São Paulo), devo a Nana, enfim. Devo à TIM, Telemar, Celpe, Compesa, só não devo ao cartão de crédito ou ao banco, porque não uso cartão de crédito nem faço empréstimo em banco, que não sou doido. De resto, só devo a Deus e ao mundo.

Em todas essas ocasiões, cheguei perto do limite físico e espiritual (quando vem aquele sentimento de que pior não pode ficar). E em todas elas, me veio uma força misteriosa, um impulso para a alma, uma reação tranqüila, apaziguada. No limiar, nasce a sensação de que a vida suporta bem mais do que imagino.

Mas... para que estou falando dessas coisas? Eu sei lá. Talvez porque eu tenha esta mania de ficar me colocando no lugar dos outros, imaginando possibilidades para a vida. Eu, este otimista desajeitado e confesso, cada vez mais manco de todas as certezas, acredito que alguém possa ler essas linhas, hoje, e tratar tudo com mais leveza.

Lembro que uma vez eu fiquei na lona no assunto do amor. Tive uma certeza interior que nunca mais amaria outra criatura como aquela. Sofri como um cão pulguento, sem as patas traseiras. Foi o pior sentimento que já vivi, e só eu sei o quanto doeu. Outro dia nos encontramos, foi bom, doce e sereno, porque envelhecemos alguns anos. Ela segue, eu sigo. Depois disso, outros amores apareceram, e foram misteriosamente fortes e importantes para ser o que sou. Cada vez mais, acho que só está ao lado da gente quem quer mesmo seguir com a gente, fazendo suas escolhas na medida do desejo e no tamanho do sentimento.

Agora só me ocorre mesmo um poema do uruguaio Mario Benedetti, onde ele diz que “cada lugar tem seu tempo, cada tempo sua marca, cada desolação, sua maravilha”.

sexta-feira, 4 de novembro de 2005

Eles, que me amparam sempre...

São muitos os que me ajudam a viver. Na minha algibeira, fazendo parte já das minhas entranhas, estão eles, os que me fizeram suportar os dias ruins, os que me trouxeram o êxtase nos dias calmos, os que me fizeram mais humano ao longo da caminhada. Eu preciso sempre ter por perto as crônicas do Rubem Braga; preciso do “Livro do Desassossego” e dos poemas do Álvaro de Campos, para fazer de qualquer falência, uma vitória; preciso da Clarice Lispector, para alucinar os sentimentos; preciso das pequenas frases do Antônio Porchia, que dizia querer subir, mas não escalando homens; preciso do Ernesto Sábato, que me fez ir ao parque Lezama, em Buenos Aires, em busca de Alejandra, uma personagem.

Tenho os amigos, tenho as pessoas que amo, tenho família, tenho vizinhos, as crianças aqui do bairro, os leitores, sempre generosos comigo. Tenho esta rede de afetos, mas preciso do amparo dessas criaturas que me chegam com suas palavras, em livros que me acompanham para qualquer parte do mundo, sem pedir nada em troca (sempre me apavorou a possibilidade de viajar para qualquer lugar sem um caderno, uma caneta e um bom livro).

Preciso do Luis Cernuda, que disse num poema que um dia será todas as coisas que ama; preciso do Gaston Bachelard, capaz de escrever um livro inteiro sobre a chama de uma vela; preciso do Maiakovski, que tinha como lema “iluminar sempre/por toda parte,/até o último alento/iluminar”; preciso da Alejandra Pizarkick, que comparou os olhos de alguém que amava como a entrada de um templo; preciso do louco divino Robert Arlt, do Osvaldo Soriano, que do exílio, estava preocupado mesmo era com os resultados dos jogos do seu time, em Buenos Aires; preciso do Juan Gelman, que diz num poema: “Terminou o mês e não te amei as pernas”.

Me amparo neles, sobrevivo neles, são as paredes por onde vou espalhando-me, como as plantas que sobrevivem numa simbiose perpétua, até que se confundem parede e planta. Há muitos anos, tenho este hábito de anotar trechos de romances, de poemas, diálogos, frases. É mais que ler, é copiar, com a minha letra garatujada, na tentativa de imitar o movimento desses que modificaram minha vida. “Sou um surdo-mudo berrando em voz alta”, diz o Álvaro de Campos; “Ser poeta é minha maneira de estar sozinho”, continua ele; “Não há verdade mais armada que a pura inocência”, diz o Juan Gelman, em minha tradução duvidosa; “O amor é o contato de duas poesias”, diz Bachelard; “O amor é cego mas nos vê”, diz o Adolfo Montejo Navas, que chegou aqui em casa outro dia (julguei que ele estava muito solitário, naquela prateleira da Livraria Cultura).

Poderia escrever o dia inteiro, resgatando coisas dos meus cadernos. Muitos dos amados ficaram de fora de minhas lembranças aleatórias (ia me esquecendo do Raduan Nassar, Deus do céu!), mas é assim. E quando eu vinha pensando em escrever sobre eles, os que amo e me amparam com suas palavras, recebi um email, de uma moça que mora em Londres, com esta crônica do Rubem Braga. Então compartilho com vocês a crônica e saio para resolver a venda do bar, que está a me consumir as horas mais tranqüilas.

Sim, meus queridos leitores. A próxima crônica haverá de ter a leveza de quem vai cuidar de outras coisas mais valiosas, de quem terá mais tempo para seu jardim, seus livros, mais sossego para uma conversa fiada com os amigos, do lado de cá do botequim, e passará muitas horas na rede, escrevendo as bobagens de sempre, ao som daquele nheco nheco de qualquer rede brasileira. Fiquemos com o Rubem Braga, meu grande amparo para o dia de hoje:
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O Desaparecido

Rubem Braga

Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente quesentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.

Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.

Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo,pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.


Para Fabiana.

quarta-feira, 2 de novembro de 2005

Cenas da vida - I

Passei defronte ao bar, foi ontem, já bem tarde. Ele, um gordinho com cara mansa, sandálias havaianas e bermuda quase nos joelhos, disse para os amigos:

“Vocês são todos uns surdos, que não conseguem ver nada!”

Achei ótimo aquilo. Surdos que não conseguem ver. Conheço alguns.

Estava de pé, com os cabelos desgrenhados, os óculos pendurados no pescoço, aqueles óculos para ler. Ele também via pouco, creio. A camisa de manga cortada, meio surfista, emoldurada numa extensa barriga, lhe dava um ar patético, infantil, e ao mesmo tempo simpático. Ele saiu do bar, contrariado, desconfio que sem pagar a conta, e reduzi o passo, para acompanhá-lo. O ser humano, minha eterna paixão.

Ele foi por ali, tropeçando nos próprios passos, gemendo de cansaço e solidão, creio. Repetiu algumas vezes “uns surdos”, “todos surdos, esses idiotas”. Andava roçando as paredes, que pareciam velhas companheiras. Companheiras de titubeio.

Dobrou a esquina como quem se desvencilha de uma dor. Segui-o, vendo o cambaleio perpétuo, até a entrada do seu prédio, que data do número 2345. Ele tocou o interfone. Silêncio.

“Sou eu, meu amor”.

A porta abriu, diante daquele código secreto, embaralhado pelo cigarro e o àlcool, que ela já não estranhava, creio. Talvez o esperasse, preocupada.

Ele entrou no prédio. Bateu no vidro da guarita e falou para o vigilante:

“Eu gosto tanto de rubronegro mesmo...”

Não havia maldade. Era um cumprimento de fim de farra, troçando com o porteiro, torcedor de um time adversário. Depois, ele entrou no saguão, e o perdi de vista. Sei que foi dormir exausto, sem trocar a roupa. Vai acordar sem lembrar de muita coisa. Se for antigo mesmo, vai correr em busca de um Engov e prometerá, solene:

"Minha filha, vou parar de beber".

Mas a vida seguirá sem muita dor. Depois da ressaca, voltará ao bar. Encontrará os amigos, uns surdos, outros não. Discutirá, brindará, roçará outras vezes os muros, mas chegará em casa, de um jeito ou de outro.

Vi a cena em câmera lenta e lembrei de uma frase do Fernando Pessoa:

"Mas o que me preocupa é esta palavra: devagar..."

Voltei para casa chutando pedrinhas. Adoro andar chutando pedrinhas.