Saio do trabalho, um quase anoitecer no Recife, ali no Derby, uma espécie de pescoço do Recife, um lugar de eterna passagem de tudo, de gente, carro, ônibus, vendedores, anônimos, perdidos. Ninguém vai ao Derby para ficar, todos estão de passagem, como o sangue no pescoço.
Atravesso aquelas imediações de mal jeito, um dia esquisito, quem tem esses dias sabe, quem não tem dia ruim, louvado seja, ou é santo ou é besta. Nesses dias, eu respiro mal, hoje eu era um desses homens sem pulmões, atravessando o Derby devagar, como quem vai mas não chega, vai mas não vai. Cruzo o parque sem flores, sem nada, cruzo a Restauração, aquelas barracas mata-fome dos parentes dos doentes e transeuntes, um sujeito lava as salsichas numa bacia que pelo amor de deus.
Pego à esquerda, passo defronte ao Santa Joana, que hospital lindo, parece um hotel, mas é só para quem pode, e poucos podem, depois viro à direita, acho que era rua das Crioulas e continuo o mesmo, cadê o oxigênio do Recife para meus pulmões? Sem respirar, paro no Bacia D'Barro, assim mesmo, com apostrofe. Sento, pego o caderno e faço anotações sem rumo. Escrevo telegramas para os que amo, cheios de saudade e espanto. Quero saber o que aconteceu com o Agenor, meu amigo da 5a série do Salesiano, em Fortaleza, e se a Sandrinha, que conheci em Belém, em 1991, está feliz, depois daquele nosso romance de verão, e sinto que tudo em meu coração está mais ameno, se dissipando, é bom sentir isso.
Guardo a nostalgia na algibeira. Abro Onetti, o velho e bom Juan Carlos Onetti, com o maravilhoso "A vida breve", publicado em 1950 no Uruguai, e que só agora, anos depois, nos chega, o Brasil parece que lê tudo em braille. Leio, releio, tomo notas, tentando aprender. É minha Bíblia, meu Alcoorão, meus 10 Mandamentos, meu Torá, meu Evangelho Segundo o Espiritismo. Cada página, uma humanidade inteira.
O bar vai enchendo. Na TV, com DVD, "Calcinha Preta" e "Saia Rodada", essas maravilhas do brega. Onetti me fala de "corações sem esperança". "Quanto a mim, só podiam convir-me o júbilo e a inocência", diz, meu amado uruguaio, louvado seja.
Aos poucos, o ar começa a me chegar. A literatura, este balão de oxigênio, obrigado. Quero silêncio, um pouco de silêncio, um cálice de silêncio, para o anoitecer chegar nos ossos e nas pálpebras, nos olhos e na alma, para aceitar que tudo é assim mesmo, a alma não tem chão definitivo, só abismos e céus, um de cada vez, os dois juntos é um clarão.
Acaba "Calcinha preta", pela graça divina. Então o som é ligado, eu não sei quem canta em voz alta, um órgão nervoso e apressado, som de churrascaria sabendo a fumaça e carne tostada. Fecho Onetti, para que não sofra tanto. "Comoções sem esperança", tinha dito ele em algum parágrafo, lo siento, Onetti. O brega come solto no bar, estou mais para Ben Harper, "excuse-me mister".
Recolho tudo, me recolho, guardo Onetti, pago a conta, volto para casa no meu passo de camundongo. Antes, passo na Praça do Entroncamento, para ver o presépio gigante, eu não ligo para presépio, mas gosto de ver a manjedoura só por causa da palavra, manjedoura, que acho linda.
São oito da noite. Pego o ônibus. A cobradora me recebe com um sorriso exausto. Está trabalhando desde as cinco e meia da manhã, me diz, é a pisada de segunda a sábado, com a folga só no domingo. Na semana do Natal, nem o domingo vai escapar. Paramos numa ponto, um fiscal olha rasteiro e puxa assunto. "Ele quer saber se a gente cochila, depois de tantas horas de trabalho", diz, melancólica, exausta, e hoje antecipamos U$ 14 bilhões para o FMI, achando isso tudo lindo, somos bons otários pagadores.
O brega venceu Onetti, o cansaço venceu a cobradora, e no íntimo, perdão pela confissão, um sentimento de derrota, então o Onetti ressurge e diz: "E como nos falta a grandeza necessária para pôr outro objetivo no lugar da felicidade..."
meus poemas estão no www.quemerospoemas.blogspot.com
4 comentários:
Sama, meu querido, como é gostoso ler o que você escreve. É assim mesmo a angústia de quem só deseja um pouquinho de silêncio. Seu texto me aperta o coração e eu sinto cada palavra como se fosse minha. O pescoço do Derby, o Santa Joana, as barraquinhas de "comeu-morreu" da Restauração, o cansaço sorridente das cobradoras de ônibus (coitadas!)e o inevitável sentimento de derrota. Nessa época de presépios e manjedouras o povo corre muito, compra muito, se endivida muito e a gente acaba mesmo por não encontrar um lugar de silêncio e tranquilidade para ter direito de "poetar". E "nos falta a grandeza necessária para pôr outro objetivo no lugar da felicidade..." como muito bem disse Onetti. Parabéns, poeta!
Um beijo de mãe.
Caro Samarone: você está passando dos limites! Meu irmão, cada vez mais te admiro... São pequenas-grandes coisas que você olha, sente, vive, que me identifico pra cacete. E tome 14 bilhões de ianques e nosso povo tomando naquele canto.. Não sei mesmo onde vamos parar! Continue nessa de nos tocar, provocar e, por fim, nos confortar com suas palavras. Tu bota pra fuder. (foi mal o palavrão)
não estás só, meu irmão !!!
nem na angustia
ou na solidão.
G.
A gente te ama mais ou menos. Né assim não !!!
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