sábado, 31 de dezembro de 2005

A pelada, Borges, a milhar e o Garotinho

O dia 31 de dezembro de 2005 me chegou com um grito de "Dinho Papeira", 46 anos, com 28 anos de contribuição com o INSS.

“Olha a pelada!”

Dei um pulo do colchão. Perder a última pelada do ano é um crime de lesa-humanidade, pelo menos a minha. Peguei a chuteira (costurada em Casa Amarela por R$ 7,00), o meião (num camelô, a R$ 3,00) e o calção muito antigo, que julgo me dar sorte nas pelejas futebolísticas.

Dinho estava na calçada, pronto para um clássico no Arruda. Chuteira, meião, caneleira. Perguntei pelas horas.

“Dez para as seis. É que hoje estou seco”, disse. Geralmente ele me chama às seis da manhã, a cada domingo, os dez minutos antes é a ansiedade para começar o jogo.

A última pelada do ano foi arrasadora. Levamos um sonoro 8 x 2, e confesso que joguei mal três quartos da partida. Me recuperei no final, tomei umas duas bolas importantes e comecei a dar berros com o time, pedindo raça, quando estávamos penando com um 7 x 1 nas costas. No finalzinho, dei uma entrada de sola em Dinho, que lhe deixou um calombo na coxa direita. Quem manda me acordar tão cedo?

Foi a costura na chuteira que deu azar, foi o que pensei, retornando para casa cabisbaixo com meu desempenho na zaga. Teve a confraternização dos Caducos, mas não fiquei. O fígado não agüenta, e é matematicamente, digo, humanamente impossível ir à confraternização dos Caducos e tomar guaraná. Não tenho vocação para herói.

Jadir veio, arrumou a prateleira que estava pensa, consertou uma porta quebrada no primeiro andar, desde que perdemos o título para o Náutico, ainda apertou o armador da rede. Não quis aceitar pagamento de jeito nenhum. Pagarei em vinhos Carreteiro, que ele adora, aqui em Vital, e escutarei ele cantar Lupicinio Rodrigues, quando estiver meio alto.

E súbito, me chegou aquela fleuma literária, aquele arroubo cósmico: tenho que ir a alguma livraria, neste último dia do ano, para terminar 2005, esse ano ranhento, de bem com a vida. Tomei banho, vesti meu bermudão creme, minha camisa Hering de sempre (branca, claro) e as havaianas azuladas, já meio gastas e fui num galope manso para o Shopping Plaza, lept, lept,lept, até que cheguei à Livraria Imperatriz.

Passo as mãos nos bolsos, a bolsa ficou em casa. Cutuco os trocados, tenho uns reles R$ 22,00. Então surge a missão, o último desafio do ano: encontrar um livro bacana, o último de 2005, com o limite de R$ 22,00. Fico lambendo as coisas boas, mas não tem livro no Brasil por menos de R$ 30,00, é uma safadeza isso, depois reclamam que o povo não lê.

A procura é longa, mas tenho fé. Vou por ali, me agacho, encontro umas coisinhas por R$ 20,00 mas não é “aquele” livro para terminar o ano. O ano foi duro, é preciso saber terminar com beleza, sem a beleza tudo fica inconsolável e distante.

Até que encontro o Jorge: “Elogio da Sombra”. Num átimo (ôps, Davi), meus olhos chegam ao preço: R$ 17,00. Quase dou um pulo dentro da livraria. Saio com o Borges e mais R$ 5,00 de troco, deus do céu, vou tropeçando nas pernas com as primeiras linhas, que leio do fim para o começo. “Chego a meu centro,/ a minha álgebra e minha chave,/ a meu espelho./ Breve saberei quem sou”.

Volto lendo, quase sem andar direito, até que um táxi pára com um baita de um negão de barba branca. Era Davi, com sua esposa Ana. Ele desce e diz:

“Entra aí, que vamos ali”.

Entro, porque sou um sujeito obedientíssimo. Mostro o Borges. Lá pelas tantas, sou informado da programação: Caldão, em Água Fria, depois o ateliê de Mila, coisa para a tarde inteira. Quero sossego, para ler meu Borges, cochilar e escrever a derradeira crônica do ano. Chega de farras. Penso numa desculpa urgente, tem uma visita chegando daqui a pouco em casa. Colou. “Não exageres o culto da verdade”, diz o Jorge Luis, à página 72. Desço do táxi, pego um ônibus e volto, lendo Borges, claro.

Desço na avenida, mas faço minha última fezinha no Jogo do Bicho em 2005:(7475/1225/1112/8584).

“Bota também a placa o Garotinho”, peço. Léo registra a milhar 6611.

Volto para casa cheio de esperanças. Vai ser lindo ganhar no Bicho no último dia do ano. Quando vejo, o Garotinho vai passando em seu táxi.

“Bora que eu te levo em casa”, diz meu fiel parceiro do dominó, já com a cara vermelha, de quem tomou umas garapas.

Mostro a pule do bicho com a placa dele.

“Também joguei”, diz.

“Vamos ganhar juntos”.

“Tavas trabalhando?” -, pergunto.

“Tava era tomando umas naquele bar do açude”.

O citado bar fica no açude de Apipucos, e é bom mesmo, garanto.

“Comesse o que de tira-gosto?”, pergunto.

“Uma manga que eu levei”.

“Aí ta certo”.

Desço, venho para casa, ler Borges. Antes, faço um café delicioso e acendo um incenso. Olho os email, um monte de gente bacana mandou mensagem, há uma humanidade linda que compartilha coisas comigo, isso é uma bênção.

Em homenagem ao Garotinho (o nome dele é Zinho), como uma manga espada, que caiu hoje de manhã, no quintal, enquanto eu dava botinadas nos atacantes adversários. O caroço é lambido até a exaustão. O mundo, com uma manga espada no quintal de casa, torna-se imediatamente mais gentil e doce.

Vai anoitecendo, e é tudo. Daqui a pouco vem a passagem do ano, estarei perambulando entre a casa de Seu Vital, Dona Fátima, Nana e adjacências. Meu reveillon é de casa em casa. Não troco esses afagos por queima de fogos nenhuma. Sou cada vez mais um homem de vizinhanças.

Borges me dá de presente um texto intitulado “Uma oração”. Compartilho um pequeno trecho:

“O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo.Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo”.

Por precaução, deixo o pule do bicho dentro do livro de Borges, com a leve impressão que vai dar a placa do Garotinho na cabeça.

ps. a todos e todas, um 2006 bem bacana, simples e feliz. Vai um poeminha de Borges para começarmos com o pé direito, ou esquerdo, para quem chuta com a canhota...

Os Justos
Jorge Luis Borges

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.

3 comentários:

Anônimo disse...

Sama...começar o ano lendo esta crônica tua é um presente sem tamanho. Não apenas porque você escreve muito bem, mas porque Borges é meu escritor de coração e 1112 é a data do meu aniversário.
Elogio da Sombra é um belo livro e foi uma escolha supimpa. Se as pessoas soubessem como os livros de J.L. Borges têm preços mais acessíveis e o quanto ele é bom, os exemplares da obra dele estariam em mais mãos por esta cidade. Dei o Informe de Brodie para o meu paizinho, mas o meu preferido é O Livro de Areia. Na lista para este ano está O Aleph e viva Borges!!!
Um 2006 muito cheio de poesia para você :D

Mariana Mesquita disse...

Vc tb salva nosso mundo
;.)
Beijo

Carlos Besen disse...

alegria de crônica, Samarone, alegrias para 2006.

Abraços fortes