Então vai me chegando este sentimento novo, que é mais simples. Quando me perguntam se sou escritor, jornalista, sempre acho que a palavra “escritor” é muito forte, e que ainda não cheguei lá, e que “jornalista” não me define por completo, porque a realidade dos fatos não é mais a minha prioridade. Cansei do “lead”, do “sub-lead” e coisas do tipo, que as escolas de Jornalismo ainda teimam em ensinar. Além disso, a realidade brasileira é tão estúpida, tão brutal, que me comove muito mais encontrar os que não aparecem como personagens principais desta realidade, como os andarilhos, os poetas, os boêmios, os jogadores de várzea dos domingos, contempladores de belezas e caçadores de veredas.
Faltava-me uma definição melhor, que desse conta do meu ofício, e ela chegou agora há pouco: descobri que sou um anotador. Anoto histórias, pensamentos, personagens. Eu vivo anotando. A idéia de sair de casa sem um pequeno bloco no bolso e uma caneta, é como sair sem documentos, e vale lembrar que já encarei um camburão da nossa querida Polícia Militar, por estar sem a identidade. Difícil fazer o policial entender que eu estava sem o documento, mas continuava gente, ou um “ser humano”, como diz o velho e bom Lira.
Sim, eu anoto coisas. Descubro que há muitos anos faço isso. A imagem de um caderno e uma caneta por perto, é antiga e fundante. São meus objetos primários, constitutivos, minha ponte com o mundo. Lembrei da 5a série, quando tínhamos um time na sala que era um verdadeiro esquadrão. Ficávamos à porta da sala, como cães sedentos, esperando o toque para o recreio. Nosso time ficou umas 25 partidas invicto, e estava lá, ainda bem garoto, o anotador. Eu anotava os lances, a escalação do nosso time, os gols, registrava tudo em um caderno somente para isso. Não sei em qual prateleira da memória este caderno foi dormir. A memória tem milhares de prateleiras, algumas somem e só reaparecem mais tarde, talvez nunca.
Foi nesta mesma 5a série, que ficamos sabendo. A mãe de nossa professora estava doente, muito doente. Me encarreguei de escrever algo para ela, em nome da turma. Daria tudo para lembrar o nome dela agora, mas a prateleira da memória da minha 5a série está meio empoeirada e distante. Sei que ela era magra, cabelos pretos e muito firme. Então, deixei um bilhetinho em cima da mesa dela, falando algo do tipo “estamos sabendo do seu sofrimento, e estamos todos torcendo por você”. Lembro que ela chegou, botou a caderneta na mesa, os livros, e viu o bilhete. Leu e começou a chorar, escondendo o rosto. Era um choro silencioso e contido, possivelmente para não assustar seus alunos. Então, pela primeira vez, falou do que estava vivendo e agradeceu à turma pelo carinho. Essa recordação me enche de alegria.
Tenho uma estante entupida de cadernos de todos os tamanhos e cores. São como minhas memórias sobressalentes. Às vezes, nesses dias em que as coisas estão atravessadas, vou reler minhas coisinhas. É possível ver o camarada que chegou ao Recife, com 18 anos, naquele distante 1987, brigado com o pai e querendo viver as coisas. Mas está lá, o caderno de 13 anos depois, o já adulto, com 31 anos, ainda inseguro diante da possibilidade de ensinar no curso de Jornalismo da Universidade Católica. Depois, tudo fluiu, até as pazes com o velho, após tantos desencontros.
Outro dia, ganhei da Fabiana, uma caixa com pequenos cadernos de capa marrom. Ela mandou de Londres e os batizei de “Murmúrios”. São cadernos para pequenas frases. Já enchi quatro cadernos, viu Fabiana?
Cada vez que vou a Fortaleza, visitar minha família, encontro papéis com anotações minhas, cartas que escrevi para meus parentes, poemas absolutamente horríveis e infantis, pedaços de lembranças que eu já nem lembrava, e que parecem ter sido lembradas por outra pessoa. Então vou fazendo um contrabando de mim mesmo, vou recolhendo minhas anotações, velhas agendas, papéis soltos, trazendo para junto. É como se estivesse recolhendo os pedaços soltos de mim, completado ausências, tentando me completar.
Anoto frases inteiras de livros. Anoto frases e diálogos de amigos. Anoto idéias, sonhos, frustrações. Anoto idéias para crônicas, anoto toda palestra que assisto, anoto reuniões, frases dos amigos, sempre foi assim. Diria que anoto a vida.
Lembrei de um encontro com uma mulher maravilhosa, em Fortaleza, uma amiga incomparável, que se apaixonou por um homem portador de HIV. Quando eles se encontravam, ela contava muitas histórias.
“Era isso que eu queria ser para aquela pessoa, a sua Sherazade, para contar muitas histórias, e que ela não morresse nunca”, disse, lembrando do livro "As mil e uma noites".
Então anotei isso, e prometi compartilhar.
7 comentários:
Sama! Anote aí!
Você e seus textos já fazem parte do meu imaginário, das pequenas coisas que a vida oferece, essas, as urgentes, as necessárias!
Abração!
.
Mas vê ... "anotador" pra mim só define 10% do que em realidade você faz.
Escolher as anotações, sentí-las, pensá-las, organizá-las em textos que são como chocolate para chocólatras, tudo que as pessoas mais querem e precisam ler, saber e lembrar, isso sim compreende os outros 90%.
Para isso eu realmente não tenho UM NOME e a coisa mais próxima que consigo rastrear é algo como: criador.
Beijo pra tu.
Ps. já mandei e-mail pra teu amigo, bora ver ...
Sama,
Como andam as anotações sobre os mercados do Recife? Gostaria de acompanhar a próxima peregrinação, tomar uns quequéus e fazer umas fotos.
Avise-me.
K2, as anotações sobre os mercados pararam um pouco, porque meu comparsa Serjão está metido em campanha. Mas sábado retornaremos à ativa, com incursões no Mercado da Madalena.
já estás avisado.
sama
Saminha, seu bandidinho, te levo umas quando voltar.
saudades.
;)
legal, muito legal.... coisas simples, anônimas, cachos e cachos de palavras se desenrolando num fio imenso e flutuante. Como deve ser interessante tudo isso !!! A tia, a escrita, o contrabandista, o passado... e a emoção que já está instalada.
señor mi corazón: le ruego que
no estalle ahora
por ahora
no
hunda su rostro en lo que conoció
no arda contrario a su razón de fe
no se rompa contra el presente de
callar/callar/callar/callar
y no
mate el espacio que le dio
un animal de rabia y otro de
pena que va y le come corazón
para que no le sobre corazón
y humano ande y mucho duela se
viendo que tanto humano corazón
abraza el duelo de su corazón
y corazón y humano y calla y qué
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