sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Essa gente cheia de chuvisco nos olhos...

Fim da viagem ao Sertão. Não sei quantos quilômetros percorridos em carros diversos, a pé, em ônibus surrados pelo chão quente. As estradas solitárias, ao lado do velho e bom Iramarai, o asfalto devorado a bordo das rurais, D-20 e outros carros do interior, que cabem sempre velhos, crianças, mães amorosas, filhos netos, com suas outras andanças, compras, mantimentos, na manutenção da vida e dos sonhos.

Como sempre, ao final de cada viagem, a paisagem fica agarrada à memória, como uma planta reinventada, que cresce a cada silêncio. Mas são as pessoas que invocam presença, que se instalam em definitivo, este humano que está por aí, espalhado na imensidão do nosso país. É delas que lembro, ao fim de cada jornada. Rostos, sorrisos, palavras, acolhimentos, olhares. Gestos mínimos que são encantamentos. Perguntas sobre nossa peregrinação, com o sentimento da identidade, do “também queria seguir com vocês”. Trocas de idéias, reflexões, sonhos, projetos. No fim de cada viagem, parece que a gente encontra quem a gente busca.

Gente como Janemeire, a brava professora na Chapada do Araripe, que tem a filha Jordana como aluna, e não admite que ela tenha mau comportamento, para “não dar exemplo ruim para as outras crianças”. Gente como Paulo Sérgio, seu marido silencioso, um homem que convive com seu roçado, mas capaz de ir ao guarda-roupa, muito discreto, e pegar um agasalho para o Maraí, que estava tremendo de frio. Quantos gestos semelhantes, mínimos, não transformariam o Recife numa outra cidade...

Gente como Ricardo, secretário de saúde de Moreilândia, um jovem de 31 anos, que encontramos duas vezes na viagem, capaz de falar apaixonadamente sobre seu trabalho, as dificuldades, durante todo o tempo em que ficamos juntos, na praça central do Crato, naquela manhã de sábado. Não era apenas um jovem secretário municipal de saúde, com pretensões futuras, era um homem querendo fazer as coisas, tomando iniciativas, enquanto esperava o retorno de um sujeito que consertava o aparelho de radiografia de sua cidade.

Gente como Patrícia, que conhecemos no ônibus de Ouricuri para o Exu, e que nos presenteou com os doces que faz em casa, saborosíssimos. Ela, que perdeu sua irmã em um acidente de ônibus três anos antes, na mesma estrada que percorríamos, fez questão de mostrar a cruz azul, no local do acidente. Eu, que anotei os nomes de todos os mortos durante a viagem de ida, tinha comentado com meu parceiro de viagem que aquela cruz azul não tinha nome. Na volta, coube à irmã me dizer que se chamava Jacqueline, a única estudante a morrer naquele acidente de ônibus, que levava 65 pessoas.

Gente como Vicente Bernardo do Nascimento, um homem na casa dos 70 anos, duro, inteiro, forte, resistente, com seu chapéu de Sertanejo, que estava indo do Sítio Juá, em Santa Cruz, para visitar uns amigos em Salgueiro. A bordo da boléia da D-20, aquele homem quieto, calado, que teve 12 filhos, contou que certa vez teve que passar três meses no Hospital da Restauração, no Recife, cuidando de um dos filhos, que paralisou o corpo inteiro, por causa desconhecida.

“Foi um tempo muito difícil”, contou, o suficiente para imaginar como deve ter sido a vida deste homem do Sertão, ligado à roça, ao ter que viver dentro de um hospital, com o filho imóvel, sem que o mundo ou os médicos soubessem explicar o que acontecia.

Por esses milagres do mundo, após três meses o menino simplesmente ficou bom, e voltou com o pai ao Sítio Juá.

Gente, gente, gente. Tantos nomes. Islândia, a brava coordenadora do Programa de Saúde da Família de Exu, Elma, a secretária de Saúde que ainda acredita na militância. Neide, a diretora da escola Barão de Exu que percorre orgulhosa mostrando as salas organizadas, o jardim, a galeria dos ex-diretores, uma mulher incansável na luta pela educação.

Gente tanta, gente acolhedora, gente que me dá esperança, que percorre outros caminhos, que não me deixa desanimar, de acreditar na vida. Gente que está longe desse massacre diário da cultura da corrupção, dos vícios da política, de tanta ganância e maldade.

Gente que me faz lembrar do meu velho Guimarães Rosa, quando diz que merece de a gente aproveitar mesmo o que vem e que pode, “o bom da vida é só chuvisco...”

Tenho encontrado gente cheia de chuvisco nos olhos nessas andanças.

12 comentários:

Anônimo disse...

"no fim de cada viagem, parece que a gente encontra quem a gente busca." gente, a gente, gente. e no fim da estrada, a gente ganha uma multidão. e no fim das tuas linhas, a gente é um pouquinho desses pés. e no final das contas, a gente sabe que só se morre mesmo é de não viver. não tem outra razão para que meu corpo ainda siga por aqui que não seja encontrar gente, essa gente que é a gente e que é tudo o que vale o povo. e é só o povo, essa gente, que vale a vida. então amém e un petit bisou para você, que dessa gente faz esperança para ser, não, para sermos. e no fim do sempre a gente vai é porque não se acaba o lutado na lida, nem se despede do que cravado ficou na gente mesmo. sim, un petit bisou pour toi.

Unknown disse...

Samarone, eu já deixei meu recado lá embaixo. Eu te descobri esses dias, por intermédio de uma amiga pernambucana que me recomendou a leitura. E, com todo o respeito, eu tenho que dizer que me apaixonei perdidamente por tua escrita, e por ese brasil que eu vejo pelos teus olhos, tão diferente do brasil que frequenta os jornais todo dia e que eu vejo, tão cínico e consumista, na maior parte dos lugares pra onde eu olho, aqui no meu rio de janeiro.
Acho que virei beber chuvisco e orvalho aqui sempre que puder.
abraço,
ana paula

Anônimo disse...

Muito bom, Sama!! Adoro seu Blog, você sabe como ninguém falar das coisas simples que nos deixam tão felizes... Grande abraços...

Anônimo disse...

Samarone,

Fico imaginando se nos cruzamos por essas vias da vida...Mas gosto muito de ler seus relatos, gosto tanto. Um cheiro...

Anônimo disse...

Sama,

Num Brasil tão pisado e dolorido, precisamos desta gente de chovisco para deixar florescer a semente da esperança.

Essa tuas andanças ainda nos mostra que a esperança no mundo real não é o que vemos no dia-a-dia. O mundo real é aquele das gentes dos sertões e das cidades que ainda tem muita coisa boa para ensinar e aprender.

Essa tua andança foi um grande estradar.

Dimas Lins
www.estradar.com

Anônimo disse...

Lindo.....Maravilhoso,parabéns!!!!! Sem palavras...bjs,Graça.

Anônimo disse...

Sama, é muito bom ler o que você escreve, seu blog está cadastrado no meu "favoritos", é só dar um click e pronto. Pronta pra ler textos de alta qualidade.
Um abraço,
Els Amorim

Carol disse...

Eita, Sama, num é que fizesse o teu caminho de santiago de mortadela??? Se um dia você resolver fazer outro, pelamordedeus me chama tá? Eu topo linda:) Esse povo é muito lindo né? Ajuda a gente a ter fé na vida! Vai nessa, amigo!
beijos carinhosos
bolinho

Anônimo disse...

Sama,
o Brasil têm gente de todas as características e que bom que têm gente como vc que consegue ver essas pessoas simples e captar sua essência mais bela.

Anônimo disse...

Samarone

estou encantada com "O Passado".
Obrigado

Samarone Lima disse...

Será que os leitores poderiam mandar comentário com o email, para uma respostiva mais direta?
Aquele abraço,
Sama

Anônimo disse...

Suas andanças trazem de volta lembranças das minhas origens. As pessoas simples, de pouco sonho e de muito contentamento. Eu, já recifense, mas originário de um povo interiorano retratei muito desses comportamentos de uma gente realmente brasileira, de suor de generosidade e de muitas outras histórias. Eu, Alexandre Cavalcanti, o também tricolor!!! Como você pediu,(alexandre.cavalcanti@tvglobo.com.br)