terça-feira, 9 de maio de 2006

Entrando numa fria

Tudo bem que gosto de emoção, mas às vezes me meto em cada uma que vou dizer. O fato é que outro dia eu tinha dado um pulinho no Posto de Saúde da Família do Poço da Panela, para conversar algo com a médica, a gloriosa doutora Bebete. Olhei o jardim, me pesei, bebi água, falei com os conhecidos, e quando iria falar com Bebete, ela veio toda serelepe.

“Vamos precisar de Naná. Tem que levar um paciente com urgência para o Getúlio Vargas”.

Os hospitais do Recife tudo tem nome de gente famosa. Getúlio Vargas, Otávio de Freitas, Barão de Lucena, Agamenom Magalhães. Vai minha sugestão para os próximos: Hospital Manuel Bandeira, PSF Carlos Pena Filho, Unidade de Emergência Mauro Mota, Maternidade Dona Olegarinha etc.

Pois bem, chamei Naná, que atendeu prontamente. No Posto, ele foi informado que teria que levar um senhor idoso, negro, de andar arrastado, para ser internado no Getúlio.

“Tu vai comigo, Sama?”

Não tinha nenhum compromisso naquela hora, e, num átimo, como diz Davi, resolvi acompanhar meu amigo. Vai que o Jacaré tem um problema no traslado, pensei. Acomodamos o velho lá atrás e seguimos.

Nana me deixou na rampa do hospital.

“Vai levando ele, que vou estacionar o carro”, disse meu amigo gordinho.

Botei jacaré numa cadeira de rodas e levei para o atendimento. Aquela grosseria de sempre, aquela indelicadeza básica. Lá pelas tantas, me deram a ordem para entrar no corredor, a segunda porta à direita. Mandei ver. Entrei com Jacaré e tudo numa enfermaria. Jacaré ficou na cadeira me olhando com cara de leso e descobri que tinha acabado de entrar numa senhora fria.

Uns quinze minutos, chega um médico, muito jovem e bonachão, classe média-alta de poucos sofrimentos, faculdade paga pelo papi, carrinho do ano etc - pergunta qual o problema do Jacaré, ele mal fala, mas aponta para a barriga, tinha uma sonda, aquelas coisas bem fodidas mesmo.

“Olhe, meu amigo, o seu pai não está nada bem”, diz o médico, me olhando com uma falsa seriedade.

“Não é meu pai não, amigo, é uma pessoa da comunidade”, respondo.

“Sei”, diz ele, achando muito feio eu renegar o próprio pai.

O médico dá umas cutucadas em jacaré, passa um remédio, acho que até deu uma injeção. Na consulta, o celular tocou duas vezes, ele atendeu, acho isso o fim da picada e da ferroada. Enquanto isso, Naná me procurava, do lado de fora.

“Visse por aí um cara bem cabeludo passar com um negão velho, numa cadeira de rodas?”

Ninguém viu. Depois da consulta-relâmpago, Jacaré foi liberado. Não tinha vaga para a cirurgia, ele teria que esperar uns seis meses e meio. Voltei com ele na cadeira de rodas. Vamos levar o sujeito para casa, combinamos eu e Naná.

“Tu mora aonde, Jacaré?”

Ele não fala coisa com coisa, parece cheio dos paus. Pior. Eu, pela minha experiência no ramo, diria que Jacaré estava mamadinho. Passamos no Posto de Saúde, para saber o endereço. Estava fechado para o almoço.

“Parece que ele mora em Santana”, diz Nana. Então saímos, eu e Nana, à procura da casa de Jacaré, no bairro de Santana. A Kombi vai andando devagar e escutamos aquele baque:

“Pei!”

Jacaré levou uma queda do banco que quase morre. Ficou estirado no chão da Kombi, com os olhos vesgos.

“Naná, acho que ele morreu”.

Nana pára a Kombi, aperreado, pede para eu não brincar. Vamos dar uma olhada em Jacaré.

“Jacaré, Jacaré, tás bem”, dizemos, cutucando a fera.

“Vão tomar no cu”, responde ele, perdão leitores, mas foi o que ele disse, não vou ficar com alisado, a vida na rua é cheia de palavrões mesmo.

Começamos a circular. Paramos em vários botecos, chamávamos o povo e perguntávamos:

“Ei, algum de vocês conhece este senhor?”

As pessoas se aproximavam lentamente, temendo encontrar um cadáver. Ninguém sabia onde morava Jacaré. Isso já caminhando para duas da tarde, eu e Nana com fome, cansados, e ainda sendo esculhambados a todo instante. Que caralho.

Até que Nana lembra de uma casa em que Jacaré trabalhou como vigia, há muitos anos. A alternativa é passar por lá, a empregada informa mais ou menos onde é a tal casa. É a última tentativa. Rodamos, rodamos, até que chegamos numa vila cheia de labirintos. Vamos eu e Nana segurando Jacaré, para ele não cair.

“Me solta, seus viado, seus corno”, diz Jacaré, irritadíssimo.

Aos poucos, os vizinhos vão reconhecendo.

“Aparecesse, né, safado?”

Nos apontam a casa dele. Batemos palma. A esposa vem buscar Jacaré.

“Ô meu véi...”

Ela estava mais bêbada que ele. Jacaré nos esculhambou pela derradeira vez, entrou, fecharam a porta e acabou a história.

Eu e Nana voltamos rindo. Mais uma para nossa coleção de frias. Almoçamos galinha a cabidela em seu Antônio, ali em Santana mesmo.

10 comentários:

Anônimo disse...

Esse Jacaré é muito do ingrato.
beijos Saminha.

cometaurbano disse...

Saminha, que enredo mais eletrizante. Parece um daqueles seriados de tv tipo "A grande família". Os textos são pura antropologia urbana. Saudades. Vem passar uns dias aqui em BH.

Anônimo disse...

e ainda tem gente que acredita que o governo tá fazendo alguma coisa pela saúde.
estória massa.

Anônimo disse...

Muito bom.
João Valadares

Anônimo disse...

Meu Deus... tragicômico total!!
Não consigo parar de rir...
Que horror!
Rosinha.

Anônimo disse...

Muito boa!!!! Me fez rir!!!
Grande abraço, Priscila

um simples pseudo-parnasiano burguês disse...

uaheuhauehauh! que fria mermo! o mais horrivel talvez seja a grosseria do velho ¬¬ n sei pq algumas pessoas, quando envelhecidas, ficam mto chatas o.O
n sei como add teu blog no meu, mas espero q vc me adicione e me explique como. =) gosto de ler. e vc escreve bem.
abracos
ellison.

Anônimo disse...

O humor da narração nos faz esquecer por alguns instantes o horror que é a saúde pública no Brasil, embora Nosso Guia afirme que é quase perfeita.

Anônimo disse...

Só duas almas boas feito vocês têm essas histórias arretadas pra contar. É só isso que se leva da vida: amigos e boas memórias.

Beijo.

Oa, cadê nosso encontro blogueiro?

Mack

Yvette Maria Moura. disse...

que atire a primeira pedra aquele que nunca se meteu numa fria dessas!! rsss

quase morro de tanto ri, sama (em pleno ambiente de trabalho), imaginando a cena...

muito boa!