Não sei exatamente de onde veio isso, talvez depois de uma manhã inteira dando aulas para jovens que moram em bairros periféricos do Recife, na tal “Oficina da Palavra”. O fato é que aprendo muito com os alunos, acho que acontece o fenômeno da troca. Sei algumas coisas, passo para eles, em troca recebo novos olhares sobre as coisas e o mundo. Isso me deixa muito cheio de idéias, quase todas sem importância nenhuma para a humanidade.
Na volta, entro no Unibanco para ver se um cheque caiu, e tem um camarada na porta do banco, numa cadeira de rodas.
“O senhor pode me dar um minuto de sua atenção?”, pergunta.
Acontece que nunca é um minuto, e já sei o assunto – doação para alguma coisa que está faltando. E era mesmo. Ele tinha uma medalha no peito, e estava fazendo campanha para comprar outra cadeira de rodas, certamente mais confortável.
“Rapaz, estou liso que só um gambá. Se o dinheiro cair, te ajudo”, respondi. Não deu tempo ele dar mais detalhes sobre o processo da compra da tal cadeira. Agora mesmo, enquanto escrevo esta crônica, me vem uma gravíssima dúvida existencial – quanto custa uma cadeira de rodas?
O cheque não caiu. O saldo da conta era R 0,58. No bolso, eu tinha outros R 0,65 e um vale A. Dar um vale A para o sujeito que quer comprar uma cadeira de rodas nova é covardia.
“Deu zebra. Meu dinheiro ainda não caiu”, disse, antes de caminhar para casa, ali pela 17 de Agosto.
E o tema ficou latejando na minha cabeça – aproximações. Mas o que diacho é isso, pensei. Será o tema da minha próxima crônica, chegando sem pedir licença, enquanto avanço rumo ao Poço da Panela, com meu passo de camelo?
Então veio um carteiro suado, passou por mim levando as cartas para alguém, isso quase uma da tarde. Caiu a ficha. As aproximações que eu vinha ruminando em silêncio eram uma espécie de afinidade afetiva. Há muitos e muitos anos, tenho uma simpatia ancestral pelos carteiros, uma raça que anda. Eu gosto muito de gente que anda. Gosto mais de gente que anda do que gente que corre, apesar de ter uma frustração, que é não ter sido maratonista.
Resolvi passar no Hiper Bompreço, para olhar os livros, o que chega a ser patético. O sujeito com R 0,65 no bolso vai a um supermercado olhar livros! Então veio a segunda aproximação (ou afinidade) da tarde – fui olhar as TVs, fingindo que iria comprar algo, mas somente para ver os gols da rodada de ontem, do Brasileirão, e a lista dos jogadores brasileiros convocados para a Copa. Outros malandros estavam lá, gente de bem, fingindo olhar a marca da TV, mas esperando os gols e a lista do Parreira. Em poucos segundos, surgiu uma mesa redonda, e respiramos aliviados – ele convocou o Rogério Ceni para o gol. Os cronistas do supermercado reprovaram em peso a convocação do Ricardinho, que "não é jogador de seleção". Eu, que não sou de ferro, também desci a lenha.
Passo no setor de DVDs e vem a aproximação/afinidade número três. Estão exibindo um show antigo do velho Luís Gonzaga. Acho que esse negócio de aproximações é uma forma simples de dizer as coisas que gosto: gente que leva cartas, a escalação do nosso selecionado canarinho, Luís Gonzaga cantando, com Dominguinhos na sanfona. Sinto um remorso muito antigo por nunca ter visto Luis Gonzaga tocando ao vivo.
Depois de enrolar, saio do supermercado sem gastar nada. No caminho, tem uma padaria, lembro que o café expresso custa R$ 0,60. Paro, tomo um baita de um café expresso no calor “arrombante” do Recife, como diz a velha Grão de Bico, e continuo a jornada. Pocot, pocot, pocot, pocot. Percebo outra aproximação – café. Ainda tenho R$ 0,05 no bolso, dá para uma bala.
Chego em casa suado, cansado, e resolvo dar uma geral na casa (por conta da grave crise financeira deste que vos escreve, no primeiro semestre, tive que cancelar provisoriamente os inestimáveis serviços quinzenais da gloriosa dona Fátima). Mandei ver. Do lado de fora, Zé Carlos, nosso bêbado de estimação aqui do Poço, dava seus gritos lancinantes. Ele é aquele típico bêbado esculhambado, que fica de calção, descalço, errante pelas ruas. Ele chega aqui na frente de casa, dá um grito e depois completa:
“Samarão, iurruuu uêeeee iau uôoool!’
É uma língua estranha, mas entendo tudo. Às vezes eu saio, e dou uma moedinha para ele bicar mais um pouco, mas gastei todo o orçamento no café. Tinha só o vale A, mas é covardia dar um vale para o cabra beber. E R$ 0,05 não dá nem para meia cana. Finjo que não estou em casa. Ele grita, grita, até cansar. Depois vai embora, perturbar outro.
Além disso, iria aparecer um sujeito politicamente correto para reclamar:
“Tu tem coragem de dar o passe para um bêbado, e não dá para o cara numa cadeira de rodas?”
Não posso fazer nada. São as tais afinidades afetivas.
Além do mais: quem disse que o sujeito da cadeira de rodas não vai entornar todas e errar o caminho de casa?
17 comentários:
sensacional
espetacular.
vc se superou.
seu beque
Gustavo.
Sou mais o vale para o bêbado. Vai lá Samarão. Muito bom o texto.
João Valadares
Ótimo. ;P
Vc consegue ser cada dia melhor.
Beijosssss.
oi, Samarone!
Simples, tocante e adorável.
Obrigada.
Um abraco,
Claudia
Porque voce não escreve suas cronicas em meio de comunicação mais amplo?Não precisa nem ser de grande circulação, só mais amplo. Voce poderia ter mais leitores. Tem talentos para isso.Poderia ganhar um pouco mais de dinheiro. Não precisa ser muito dinheiro, só um pouco mais. Será que está idéia não te apedece?Voce Tem medo? Sempre foi calmo e desprendido desta maneira? Escreva um pouco sobre a tranquilidade e despreendimento, como se alcança.Adorei o texto.
Samuca: a aceitação bem-humorada dessa tua "liseira" eterna só pode ter uma explicação - você é a mais perfeita tradução e a reencarnação de São Francisco de Assis. Ane
Samarone,
Você não é deste mundo.
Essas suas histórias dariam belos filmes, a gente vai lendo e vendo as imagens, perfeito.
Comigo, é sempre assim.
Hoje, mais uma vez, fui às lágrimas.
Grande abraço
Naire
Amados leitores, vamos às respostas:
1- Gustavo: deixa de cachorrada e dá noticias.
2- João Valadares: aguardamos outro texto par o blog do santinha.
3- Andreia: um cheiro.
5- Claudia: obrigado pelos comentários carinhosos, sempre.
6- Anônimo, que me pergunta por que não escrevo para um meio de comunicação maior, se não quero ganhar dinheiro etc. Confesso que não sei o caminho das pedras, e também não quero ficar me oferecendo para o povo. Escrevi um ano para o JC, e quando falei em receber uns trocados, acharam ruim, então abri o blog. Se você tem alguma dica, me avise, que vou gostar de ganhar uns trocados e destrocados.
Naire - Você é demais. Só descuidou na educação do filho, que tocou fogo na casa e ganhou fama de pé frio coral.
Abraços a todos,
Samarone
"...Resolvi passar no Hiper Bompreço, para olhar os livros, o que chega a ser patético. O sujeito com R 0,65 no bolso vai a um supermercado olhar livros!"...
Coloco em destaque parte do teu texto só para lembrar que foi lá, no Hiper Bompreço de Casa Forte, onde comprei o primeiro exemplar do seu livro CLAMOR e que é circunstancial ter apenas algumas moedas no bolso, mas, é eterno ter escrito um livro tão bonito e que nenhum "liseu" vai apagar o fato de que você frequentou como autor as prateleiras daquele supermercado. um abraço.
Adorei sua crônica, Samarone. Sabe, aqui em casa não tem mais dona Fátima há uns 3 anos. Quanto a livros, faça como eu, um c´riculo de empréstimos, cada um comra um, que faz ronda entre os demais.
Mais uma crônica arretada, Sama, pra variar. É por isso que tanta gente tem afinidade com essas histórias que tu escreve. Gostei da sua reflexão sobre os carteiros e essa de gostar mais de gente que anda do que de gente que corre. Mas eu, que tô precisando baixar o lombo cheio de colesterol, costumo responder assim de meio mau humor a quem me aconselhar sair andando por aí: "se andar fosse bom mesmo pra saúde, todo carteiro era imortal". Dá licença que vou ali consertar minha bicicleta velha.
Sei que aqui não é orkut nem esse negócio chato de chat, mas só por curiosidade gostaria de saber: Renilde, você é a Renilde que é amiga de Miguel Oliveira Jr., que estudou na UFPE e foi pro Canadá e depois pro Xingu, e agora tá perambulando por aí pelo mundo (na Inglaterra, acho), trabalhando com Fonética e Fonologia ?
julio,
eu sou famosa pela minha péssima memória, principalmente em relação a nomes, mas não tenho nenhum amigo com esse currículo... que eu saiba.
É sempre uma brisa pra alma visitar teu blog.
Beijo, meu querido.
Mack
Sama, será que vc é mesmo a reeencarnação do humilde São Francisco? Fico aqui imaginando o velho santinho indo com os seus pássaros e a sua túnica marrom ver o jogo do santinha no arruda ao lado de Naná e cia, bebendo umas pitus e falando palavrões. Até Judas iria tremer com tal reeencarnação. Um abraço grande do mano PH
Olá Samarone,
Sou aluna do curso de Jornalismo da UNICAP, estava na turma que vc e o Ivan foram visitar.
Cheguei em casa e vim direto pro pc, estava super curiosa para ler as crônicas.
Sou formada em Turismo tb pela Unicap, mas sempre tive uma paixão pelo mundo do jornalismo e precisei me formar em outro curso pra perceber que o que eu queria mesmo era ser jornalista.
A Conversa de hoje foi muito produtiva, estou descobrindo muitas coisas novas.
Parabéns pelas crônicas, elas são maravilhosas, adorei!
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