Recife, 20 de setembro de 2005.
Estou sem assunto para a crônica de hoje, fico tamborilando no computador, pensando em algo decente, quando vejo no jornal que o filme “2 Filhos de Francisco” está em cartaz no lendário Cine São Luis, ali no centro do Recife, às margens do Capibaribe. Pronto, ganhei o meu pão de hoje. Tomo um banho apressado, e em minutos, estou dentro de um ônibus da Transcol, numa viagem ensandecida para o cinema.
Não sei se Lucimério mandou a moçada correr muito, mas o fato é que o motorista estava alucinado. O ônibus rasgou a Rui Barbosa em questão de segundos, e a sinuosa avenida mais parecia mais uma reta de Fórmula 1. Vum, vum, vum, cada acelerada doida, que eu vou dizer. No banco de trás, dois jovens travavam uma conversa formidável, um deles disse inclusive que duas coisas mexiam muito com ele - a curiosidade e a inquietação - , mas não tive tempo nem jeito de tomar muitas notas. Eu tentava rezar para chegar vivo ao cinema, porque o motorista raspou três postes a mais de 180 por hora, não tenho a menor dúvida. “Mas menino...tem uma vida me esperando lá fora”, comentou o rapaz da cadeira de trás, eu pensei em responder “aproveite, meu filho, que sua vida está já acabando num belo poste”.
“Eu bebi um copo d’água para descer aquilo que estava entalado”, disse o outro, e ainda perguntou umas duas ou três vezes “entendesse?”. Não sei se o outro entendeu e nem o que o entalava tanto, mas quando chegamos ao Derby eu já me dei por satisfeito de continuar com todos os ossos inteiros. “Esses pontinhos de luz são vida pulsando, e a vida é um leque de possibilidades”, arrematou o mesmo rapaz do copo d’água. Foi minha última anotação, antes de me agarrar à cadeira como um desesperado, para não sair voando pela janela e morrer no início da Conde da Boa Vista.
Cine São Luis, não sei quantos anos depois, mais de uma década, com certeza. Já gostei do ingresso (R$ 6,00) e do enorme saco de pipoca na calçada (R$ 1,00), que decidi comer às margens do Capibaribe, ali na rua da Aurora, centro do Recife. A pipoqueira banguela me abriu o mais generoso dos sorrisos, antes de perguntar se queria pipoca era doce ou salgada. Salgada, com manteiga, minha senhora, que de doce já basta a vida, como diria Mauricio. Até agora, vou gastando R$ 8,50 para um cinema, porque a passagem no Recife custa R$ 1,50.
Sento e olho a fachada do belo cinema, cravado na esquina da rua da Aurora com a Conde da Boa Vista. Fico tão contente, que deixo cair a pipoca e perco a metade do saquinho. Faltam vinte minutos, resolvo entrar. Entro com o pé direito, igualzinho aos jogadores de todo lugar do planeta, ao pisarem no gramado. Um senhor vestindo uma bermuda, camisa aberta até o umbigo, de chinelão, espera bovinamente o início da sessão. Tem cara de quem não fez nada hoje e está cansado, o que angaria logo a minha simpatia. Ao lado, um casal se amassa com fé e fome, com beijos tão calorosos que as línguas aparecem, isso eu não acho muito bonito, falta uma certa delicadeza, mas tudo bem, cada qual com seu cada qual.
Entro no São Luis e tomo um susto. De repente, ele ficou imenso, há cadeiras da rua da Aurora até o Derby. Olho para os lados, nada de amigos. Puxa, pensei que iria encontrar um bando de amigos no filme sobre Zezé de Camargo e Luciano, no centro do Recife, numa bela segunda-feira de lua cheia... Ah, já sei – Déa está viajando, César Maia agora cuida do filhote, Emilia viajou de novo e Waldemir está em casa, descansando. Giba deve estar conversando fiado em algum boteco, João Magro está fazendo suas reportagens, Bruno prepara o casamento e Marcel anda lendo muito. Inácio agora deve estar com os filhos ou com seu amor. O que sobrou de amigo está em Vital, tomando uma cerveja e conversando água.
Umas trinta pessoas no cinema, quase todas acompanhadas. Ao lado, uma bela morena com cabelos castanhos até os ombros, mas eu, com minha pipoquinha, não vou a lugar nenhum. Sou absolutamente incapacitado para chegar a uma criatura do sexo oposto e puxar assunto, como se nada estivesse acontecendo. Pensei em ir ao banheiro, ver “o banheiro do Cine São Luis”, mas me deu aquele medo histórico de perder os trailler, parte que considero das mais importantes da história do cinema. Filme sem trailler é como amor sem beijo.
Olho o telhado, procurando uma goteira. Não estava chovendo, então só vi mesmo o telhado descascado, mas nada decadente. Oba, lá vem trailler. São uns três, e me esbaldo. Caramba, esse tal de Harry Potter é feio pra chuchu. A casca do amendoim ficou presa no dente, pego a tampinha da Bic e resolvo a parada. No Cinema da Fundação, tirar a casca do amendoim com tampinha de Bic é absolutamente arriscado, sugiro não tentar, porque vão notar e vai pegar mal. Fiz nas entocas, por precaução.
O filme
Muita gente cabeça não vai nem passar na calçada do cinema, porque o filme é a história da dupla sertaneja Zezé de Camargo e Luciano, mas eu gostei e recomendo, é muito melhor que muito filme cabeça. Meu amigo Inácio França, que leu Dostoievski de cabo a rabo (me informou ontem, como quem faz um gol de escanteio), também tinha assistido e me recomendou.
Deixando os preconceitos musicais de lado, o filme é bem feito e mostra a história de uma família nas brenhas de Goiás, no início dos anos 60. O pai da dupla, Francisco, ganhou minha simpatia desde a primeira cena. Teve uma hora que a família do seu Francisco já tinha sofrido tanto, que eu já estava com os olhos marejados, implorando por uma cançãozinha de sucesso, para desafogar o peito.
A música que levou a dupla para a fama se chama “É o amor”, e quem nunca escutou a dita cuja, ou é surdo ou é cínico. “Eu não vou negar que você é meu doce mel/Meu pedacinho do céu/Eu não vou negar”. Nunca escutou? Não conhece? Então, meu nego, ou minha nega, você nunca passou por um mercado público, nunca entrou num boteco, nunca viu um programa de auditório na TV, no domingo, nunca viu uma faxineira cantando durante o trabalho. Você morou na Iuguslávia, nos últimos 15 anos.
A cena mais comovente do filme acontece quando eles finalizam o primeiro disco, e a gravadora não lança no mercado, porque falta um sucesso. Seu Francisco, sempre ele, pega a fita com “É o amor”, leva para uma rádio da cidade, e começa a ligar, pedindo a música. Na construção onde trabalha, sai espalhando fichas (lembram da ficha telefônica?) com os operários, para que eles peçam a música. Parece um menino, fazendo peraltice. Todo mundo começa a ligar para a rádio, até que a música emplaca os primeiros lugares em Goiânia, e obriga a gravadora a lançar o disco, que vende um milhão de cópias. Eu, que adoro os malucos, achei o seu Francisco a jóia do filme.
Tem de tudo no filme. Fome, pobreza, miséria, a busca de um sonho, generosidade, falta de terra para trabalhar, êxodo rural, uma mulher raçuda cuidando dos filhos (ai, aquela Dira Paes me mata), fome, desespero, morte, ganância etc. Tem um momento em que o pai lê algo para os filhos, e um deles pergunta o que quer dizer “Nação”. Ele não sabe, fica em silêncio, e responde:
“Ora, vamos pra frente”.
Peguei o Casa Amarela/Nova Torre para voltar, e o motorista corria três vezes mais que o primeiro, além de conversar pelos cotovelos, olhando para a cobradora. Pensei em anotar alguns trechos da conversa, mas é coisa de tabacudo querer anotar tudo da vida. Na descida do viaduto da Torre, a 250 por hora, pensei em rezar para São Francisco, pedindo que ele intercedesse, no uso dos freios, mas não deu tempo. Cheguei vivo sabe-se lá como.
O passeio todo me custou R$ 10,00 (passagens + cinema + pipoca), matei saudades do velho Cinema, sujei a rua da Aurora com pipoca e descolei uma crônica novinha. Como disse o Eduardo Carvalho, em um blog que li outro dia, "escrever exige trabalho de campo".
Não sei se sonhei com a Dira Paes, mas acordei com esta belezoca na cabeça – “Eu não vou negar que sou louco por você...”
Inté.
14 comentários:
Lindo, meu filho! Até pra fazer bagunça você é poeta. Eu ainda não vi o filme mas agora, sabendo que está no São Luis, que não é multiplex, nem tem porta-copos nas cadeiras, nem cadeiras inclinadas e tem aqueles maravilhosos vitrais laterais que tantos sonhos vividos nos lembram, vou produzir um tempinho e vou correndo antes que nem as 30 pessoas que você contou lá dentro estejam mais "lotando" o cinema. Seus comentários são ótimos. Obrigada por tudo. Um cheirinho, de mãe.
Belo trabalho de campo! Tenho certeza que, de alguma forma, São Francisco intercedeu por nós... sim, porque ele sabe bem o quanto esperamos por mais uma história! Bom dia,
adorei.Vc é ótimo.
Samarone, esse negócio de ler teu blog viciou...Ai de vc nao ter inspiração! Pensa na Dira Paes...bjs, eugênia.
Pra quem disse que estava sem assunto você até que se saiu muito bem. (rs)
Caro "Poeta" Samarone, de todas as suas cronicas que venho acompanhando, esta foi uma das que mais mexeu comigo, pois me fez sentir mais saudades ainda da minha terra, do meu povo e da minha cultura. Nao tive oportunidade ainda de ver este filme, mas ja ouvi falar muito bem dele, acho que retrata um Brasil antigo, nao esse cheio de corrupcao que vemos hoje em dia.... Obrigada por me fazer lembrar um pouco da minha bela cidade (Recife), como minha amiga Adri, fala: vc mexe com os nossos sentimentos mais intimos..... Espero um dia poder te conhecer e conversarmos mais pessoalmente sobre o seu trabalho, por enquanto fico por aqui nos EUA matando as saudades da nossa terrinha atraves das suas cronicas. Abracos Rita
Samarone,
Quando li a sua descrição de como andam os ônibus em Recife me vi rindo nervosamente tal qual quando me encontrava enlatada experimentando involuntariamente a emoção que estimula os pilotos de corrida, a alta velocidade. Só que dentro dos ônibus da Transcol pela Avenida 17 de Agosto e Rui Barbosa essa emoção se transforma na certeza da aproximação do seu fim. Ficava também rezando para sair dali com vida e inteirinha. Poucas vezes, já quase diante da certeza de que não escaparia com vida tomava coragem e dizia para o motorista:
- Motorista! Quero chegar viva! Essa atitude nunca resultou na diminuição da velocidade.
Tantos anos se passaram e continuo buscando como lidar com os diversos tipos de enlatamentos da vida.
Beijos,
Eu
PS. O filme pode ser bom mas independente da classificação em que eu venha a me colocar (ser ou não cabeça) não posso suportar esse gênero de música. Respeito e até sinto orgulho da diversidade musical e principalmente da musicalidade do nosso povo mas não gosto da nova versão do sertanejo, do forro eletrônico e tão pouco que chamo de carnavalesco baiano.
Con qué tersa dulzura
me levanta del lecho en que soñaba
profundas plantaciones perfumadas,
me pasea los dedos por la piel y me dibuja
en le espacio, en vilo, hasta que el beso
se posa curvo y recurrente
para que a fuego lento empiece
la danza cadenciosa de la hoguera
tejiédose en ráfagas, en hélices,
ir y venir de un huracán de humo-
(¿Por qué, después,
lo que queda de mí
es sólo un anegarse entre las cenizas
sin un adiós, sin nada más que el gesto
de liberar las manos ?
Samarone. Assisti ao filme na quinta passada e amei de paixão mesmo. Fora a hora das fichas - realmente linda - acho que me surpreendeu a música que eles tentaram veicular na rádio sobre o regime militar... Acho que o filme tem cara de Brasil e dos brasileiros e traz sem dúvidas, um pedaço da nossa história. O rádio, o sertão, a vida dura no campo, mas pior ainda na cidade, os sonhos... Realmente, muito especial... Ainda não tinha ouvido cantar "É o amor" pela Maria Bethania, e a música ganhou uma outra cara, totalmente nova para mim... Também estava super preconceituosa quando vi a notícia de jornal sobre o filme, e pensei... Imagina se irei ao cinema ver um filme sobre o Zezé de Camargo... Logo, meus amigos começaram a me dizer que o filme era bom, ótima fotografia, e que valia a pena conferir... Conferi e recomendo!!! Mais um soco na cara de meus preconceitos... Espero que aos poucos eles vão desaparecendo.
Linda crônica. Um abraço, Priscila
Até porque eu não soumuito fã dos blogs imaginativos. Trabalho de campo sempre. Qualquer dia comum, vou tomar uma em Seu Vidal de tanto que já "conheço" o lugar.
Olá Samarone, que bom ler suas crônicas nvamente!!! Já estava com saudades, pois não lia nada seu desde o jc. sua crônica me fez pensar que as vezes sair sozinho pra ir ao cinema pode ser uma grade aventura, principalmente quando somos surpreendidos pelo filme. Tenho que confessar que fiquei fã do seu Francisco e de sua determinação, quando assisti ao fime.
Beijos, Raquel
...vc é máximo, nas mínimas coisa, eu fico encantada quando leio, parece que escuto sua voz, doce delicada...sutil (nem sei se confere), e confesso :INVEJO ... sua simplicidade !!!AH! OBRIGADA POR FAZER PARTE DOS MEUS DIAS, AS VEZES SEM SOL!!!!
BJO.
TATIANA
Sama, sou muito suspeita para falar. Ainda não tinha lido essa crônica, mas você consegue me fascinar sempre. Me deu uma louca vontade de assistir o filme, mas nunca vou sozinha, dessa vez vou tentar. Beijossssssss
Andreia
Samarone,
assiti ao filme, depois que tia adriana (adri)me indicou sua crônica.
Confesso que estava meio sem acreditar que o filme era bom, mas depois queli sua crônica eu fui. E adorei, que bonito esse filme. Chorei, e me emocionei, principalmente com o seu Francisco. Acho que me ajudou a lembrar da força a gente tem e que como tempoparece que vai perdendo, nao é. Ainda bem que sem´pre temalguem que nos ajuda a lembrar que ela ainda tá la...
Obrigada, viu?
Um grande beijo, fique com Deus
Luciana (sobrinha de adri)
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