terça-feira, 27 de setembro de 2005

Para uma amiga com câncer

Recife, 27 de setembro de 20005.

Estamos acompanhando há semanas, já são meses, creio. Lucidélia, ou Lucinha, ou “a professora”, nossa vizinha e amiga, estava com um nódulo no seio, o troço cresceu, inchou muito, e foi diagnosticado: câncer. Ô palavrinha complicada de dizer e escutar, deus do céu...

Por conta de nossa amada Luisa, de um ano e três meses, eu e Lucidélia nos aproximamos muito, nos últimos meses. É a tal força dos afetos, especialmente quando chega uma criança com aquele sorriso, que desfaz todos os nódulos. Diante de uma criança, tudo parece mais simples, menos atribulado e doloroso. Era quase um ritual de dois tios abestalhados. Eu tomava um cafezinho em Vital, depois passava na casa da professora e dava um grito:

“Lucidélia!”.

Ela aparecia na janela com um sorriso e eu completava:

“Menos, professora, menos”.

Tenho umas manias esquisitas mesmo, uns rituais que fazem parte da alma, um jeito de falar que incorporo como uma espécie de código. Eu só falava esse “menos”, Lucinha abria um sorriso e saía de casa, para começar o dia brincando com Lulu. Eu, de 36 anos, e Lucidélia, de 60, parecíamos dois doidos, fazendo estripulias para ver Lulu sorrindo. E Lulu sorrindo é mesmo uma bênção, então viva.

Veio a primeira sessão de quimioterapia. É uma surra na alma da pessoa. Lucinha ficou quebrada mesmo, daqui a pouco os cabelos já não estavam, veio aquela vontade de não fazer nada, dificuldade para se alimentar etc. Ao invés de sair para o dia, ela me pedia para entrar em sua casa. Numa das visitas, reparei nas muitas fotos dela quando jovem. Era uma mulher bonitona, vistosa, os cabelos claros, rosto afilado e sorriso generoso. Conversamos muito sobre a vida dela, o que tinha feito e deixado de fazer, com um bom humor danado, tratando o câncer como uma espécie de visita chata, na hora do cochilo ou no meio da sessão da tarde.

Depois veio uma certa dificuldade em cuidar do jardim. As manhãs começaram a ter este gosto de cuidado com o jardim, do molhar as plantas, com Luisa aprendendo a manejar o regador, o que não deixa de ter aquele sentido da vida sempre renascendo. Da última vez, ganhei de presente várias mudas de rosas, e a professora se furou com um espinho. Me deu um carão, ficou chupando o dedo sangrado, mas me deu flores. Luisa ficou só olhando. Eu queria ter tido isso na infância sim - gente que dá plantas e se fere, mas vai sorrindo.

Veio a segunda quimioterapia. Antes de sair, ela me deixou um bilhetinho:

“Samarone, não deixe minhas plantas morrerem. Conto com você. Te adoro, Lucinha”.

Ela está agora na casa da irmã. Ontem à tarde, fui com Nana fazer uma visita. É pau. O corpo sente a carga. Mesmo assim, debilitada, ela não escondeu a preocupação com o resultado do jogo do bicho da tarde. A vida é mesmo este mistério mesmo do câncer por vencer e o resultado do jogo do bicho por conferir.

Na quinta-feira, ela completa 61 anos. Estamos preparando uma visita-surpresa, na Kombi de Nana, com bolo e tudo. Acho que vamos todos, os mais chegados, e vai ser uma boa farra, movida a guaraná e bolo de chocolate.

Ainda vai ter a cirurgia e mais umas três quimioterapias. Lucinha vai ter que ter uma força muito grande para atravessar este deserto que é o câncer.

Não deixarei as plantas morrerem, Lucinha, mas veja se volta logo, para o dia amanhecer melhor.

11 comentários:

Anônimo disse...

Oi!
Sou prima do César ( você deve conhecê-lo como Júlio Vila Nova). Ele me mandou uns textos seus e eu AMEI! Pedi que o parabenizasse por mim, mas que também me enviasse um endereço onde eu mesma pudesse fazê-lo... e aqui estou eu! Pra te dizer que gostei muito das suas palavras, dos seus escritos que já havia lido através do César... E que também gostei muito do que li aqui hoje!
PARABÉNS, Samarone! Ganhou uma leitora assídua e uma nova fã!

Anônimo disse...

Um beijo pra sua amiga Lucinha. E não deixe mesmo as plantas morrerem.

Anônimo disse...

Muita força e Luz para sua amiga.
Eu sei que vc já cuida bem das plantas...
Bjs

Anônimo disse...

Sama, meu filho, sentir a dor do amigo e ainda cuidar dos pequenos mimos enquanto, por força da doença, ele se ausenta. Você, poeta, não poderia ser amigo de outro modo. E é assim que tem que ser. Adoro você.
Um cheiro, de mãe.

Anônimo disse...

Samarone,
estou na torcida por sua amiga Lucinha...
Mas o poder da fé é muito grande!
Que Deus ilumine os caminhos de vcs! Para que ela atravesse esse deserto e para que vc continue a iluminar o nosso.
Forte abraço p/ vc e sua amiga!!

Anônimo disse...

nada melhor que um amigo de verdade nessas horas incertas, não é?...bom que ela pode contar com você! estamos torcendo por ela também..
beijão,
Luciana (sobrinha de Adri)
luciana.o@ig.com.br

Anônimo disse...

Belo texto! Sabes introduzir suavidade onde só há aspereza.

Dica: o melhor texto que eu já li sobre os mitos a respeito do câncer - sim, porque há muita mistificação ante o suposto abismo - é um livro curtinho da Susan Sontag, "A doença como metáfora". É imperdível.

É grande a minha alegria de estar por aqui. Já volto, viu?

Anônimo disse...

Um tema difícil, doído...
E vc trata sem ir pelo caminho fácil, sem ser piegas..
E não fala na "vida&obra" da tua amiga... Fala apenas no seu cuidado com as rosas... É o detalhe que faz a diferença...
Numa hora destas, tem muita gente que gosta de vc, icluindo a tua amiga nas suas preces... E isto também pode fazer toda a diferença...
Um beijo.

Anônimo disse...

Samarone, quero dizer que estou feliz por voltar a ler suas crônicas, pois desde que vc saiu do JC não sabia por "onde andavas"...Só soube hoje quando fui ao garrafus e te perguntei... Estou muito feliz de poder voltar a ler suas crônicas...
Tudo de bom sempre! E parabéns!

Anônimo disse...

Samarone, transmita os parabéns a sua querida Lucinha, neste aniversário. Diga-lhe que, mesmo sem a conhecer, ponho-me ao lado de todos numa linha de frente positiva em sua batalha pela vida. Hoje, a Vida está marcando um gol, na energia do amor fraterno que você dispõe aqui para celebrarmos o aniversário de Lucinha. E todos os leitores, tenho certeza, acolherão esse sentimento e o transformarão em poderosa arma do bem. Vamos em frente !
JULIO VILA NOVA

Anônimo disse...

Este ano, o aniversário de Lucinha, deve ter sido um dos mais bonitos de sua vida. Sim. Porque o amor e a companhia dos amigos verdadeiros fazem milgares... daqueles milagres que nenhum médico acredita. Beijo no coração de vcs três (não dá para esquecer da Lulu, óbvio).