Recife, 03 de setembro de 2005.
Onde estávamos? Ah, sim, eu falava das histórias do desconhecido que conheci ocasionalmente na praça de Casa Forte. A última frase da crônica sentimental anterior foi “O sangue nas minhas veias se expandia...” – uma imagem por demais poética e amorosa (quem não leu, faça-me o favor, é o texto anterior, logo abaixo). Meu amigo se referia ao seu grande amor, Zeza, uma criatura feia, baixinha, gorda, mas que ele amava, com o amor não tem isso, não escolhe beleza, palavras do próprio amigo.
Na verdade, quando entramos no delicado tema amoroso, o meu amigo fez confissões as mais duras. Com a retroescavadeira, chafurdou a alma. Sofri junto com ele, quando disse que seu coração pulsava por ela. “Aquele olhar seguro, humilde, me acalmava. Perto dela eu me sentia feliz”.
“E o que era ela para você?”, perguntei, e imediatamente descobri que arrancara a tampinha da ferida.
“Eu sofri dores angustiantes que me fizeram padecer. Mas sou de sofrer calado. Agora, respondendo à sua pergunta – uma árvore, um pássaro, uma canção, tudo me lembrava ela”.
“Mas se era assim tudo tão perfeito, por que vocês se separaram?”
“Eu nunca entendi, mas ela separou de mim”, respondeu ele, tristíssimo.
Me olhou muito sério e completou:
“A mulher é uma criatura que ninguém entende”.
Concordei imediatamente. Sei que tem gente que entende, mas não conheci tal felizardo. Descobri que meu amigo se chamava Luis Antônio Bezerra Tavarêz (com z e acento circunflexo, como me informou), 62 anos. Deu baixa do Exército em 1964. Trabalhou 20 anos na Celpe e saiu em 5 de janeiro de 2000, graças a um Programa de Demissão Voluntária (PDV). Recebeu uma bolada razoável – R$ 78 mil e gastou tudo, absolutamente tudo com Zeza. Passeios, piscina, viagens. Viveram seis anos juntos, me disse ele.
“O pedestal é o edifício mais alto que existe”, completou.
O Tavarêz gostava de sair com frases intempestivas, que alavancavam a conversa. “No pedestal tem piscina, caviar, pernil, Ballantines 12 anos”, prosseguiu.
“E hoje, na terra tem lapadinha de cana”.
Foi isso. Meu amigo recebeu uma boa grana, torrou tudo com a querida Zeza e depois levou um chega-pra-lá. Veio o famoso tombo. Eu já estava me preparando para encerrar a conversa, tinha sido um ótimo começo de noite, quando o Tavarêz deu uma tossida breve, aquela de quem vai começar um assunto, e me disse que tinha amado uma mulher que o Orlando Silva cantava em prosa e verso. Perdão, fui consultar meu bloquinho agora, e é o Orlando Dias. Me parece que um é mais antigo que o outro, não sei, é só uma intuição.
“Ela se chamava Dolores. Tomei uma cana tão grande, que fui pedi-la em casamento”.
Então caiu o mito do “único amor”, que o Tavarêz tinha alardeado. Teve a Zeza, mas a Dolores também fez estragos.
“Eu era cambiteiro na época e ela disse que eu não podia sustentar ela”. Informo que não sei o que é cambiteiro. “Foi a mulher que mais amei na vida, Dolores”, disse ele, em meio a um suspiro.
Francamente, Tavarêz, tem hora que eu não entendo mesmo são os homens. Há pouco, a mulher de sua vida era uma morena baixinha, feia etc. Agora me surge, assim do nada, essa Dolores, que me parece ser uma mulata alta, esguia, cabelos até os ombros e lábios grossos, pelo menos foi como a imaginei, pelo olhar de gula dele.
“Depois veio Toinha, Rosângela, Maria, Zefinha... e hoje eu nada tenho, só sofro de saudades”, lamentou ele.
“Espero um dia abraçar novamente a mulher que mais amei na vida”.
Como eu já não sabia qual era a mulher que ele queria abraçar, preferi não perguntar, para não ser indelicado. Ficamos conversando mais um pouco, pensei em chamá-lo para uma cervejinha num fiteiro defronte à praça, mas eu tinha que trabalhar, essa minha vida de dono de bar me mata. Falamos umas potocas, mas a conversa deixou de ter percalços bíblicos ou rasgos filosóficos. Percebi que Tavarêz era uma daquelas criaturas que tinha amado demais na vida. Ultrapassara o dique que ele mesmo podia suportar e ficara como Nova Orleans, inundado.
O resultado era que a dor também tinha deixado marcas fundas, sulcos, buracos em sua alma, e talvez não houvesse mais como fazer os tais remendos. Perdera, talvez, as sementes e a colheita. Não havia mais como plantar, nem como esperar brotar. Daí a solução caseira – “amor só existe um, que é o de mãe", como ele dissera, no início da conversa”.
Sim, Tavarêz, mas é o mais seguro também, porque e é diferente amar uma criatura como a Zeza, que é feia mas fica linda. Se minhas amigas psicólogas te pegarem, estás em maus lençóis. Terás um complexo de presente.
Mas estou conversando água. Tavarêz fez o primeiro silêncio da noite, me olhou fixamente e disse:
“Hoje, só fracasso e solidão”.
Senti uma fisgada no coração. Doeu até em mim.
Ele se levantou, me estendeu a mão direita e completou:
“Mas amanhã é outro dia. Paramos por aqui”.
Ele saiu andando devagar e creio que conheci um homem que amou demais. Há gente assim na vida. É só uma constatação. Há que se acolher, nem que seja com um olhar, num banco de praça no Recife, uma pessoa que amou demais e rompeu os próprios diques.
5 comentários:
Maravilha, Sama. Que figura esse Tavarêz!! Fiquei imaginando a cena, vcs dois conversando na praça, os dentes separados e polidos, a boca filosofando, suspirando... Já tô curiosa pra ler esse livro. Se der, põe ilustrações. Essa história é visual demais.
beijo
Leila
Acabei de chagar em casa.. passei há uns vinte minutos pela Praça de casa Forte e a lembrança foi inevitável.. olhei para a Praça e quase ultrapassei o sinal vermelho.. eita.. essas histórias viciam o cidadão!
"Eu quero ficar só... mas comigo só eu não consigo!
Eu quero ficar junto... mas sozinho só não é possível!
É preciso amar direito com amor de qualquer jeito, ser amor a qualquer hora, ser amor de corpo inteiro.
Amor de dentro p/ fora...
Amor que eu desconheço.
Quero um amor maior ... amor maior que eu... que eu!!
Então seguirei meu coração
pra saber se é amor
magoarei mesmo assim, mesmo sem querer
pra saber se é amor
eu estarei mais feliz, mesmo morrendo de dor...
pra saber se é amor... se é amor!"
(Jota Quest)
Pra todos aqueles que ainda acreditam no amor ou já viveram um (ou dois, ou tres...) amor(es) como seu Tavarêz.
Beijo enorme p/ vc Samarone.
meu menino,
obrigado pelo ombro ontem à noite quando tudo aqui parecia desmontar.
que espécie de ternura nos mantém assim tão próximos?
que espécie de amor pode unir nossos corpos distantes?
Será que Alguem vai ler isso? Esse texto é de setembro. Mas só pra constatar, achei aqui: Cambiteiro - Regionalismo: Nordeste do Brasil.
aquele que cuida do transporte de cargas em cambitos ('forquilhas'), no lombo de animais. Esse Houaiss eletrônico é moderno demais!
Postar um comentário